Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
439/14.4TBVFX.L1.S1
Nº Convencional: 6ª. SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: REGULAMENTO (CE) 1393/2007
CITAÇÃO
OMISSÃO DE FORMALIDADES
NULIDADE
PRAZO DE ARGUIÇÃO
Data do Acordão: 09/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO COMUNITÁRIO - CITAÇÃO E NOTIFICAÇÃO DOS ACTOS JUDICIAIS E EXTRAJUDICIAIS EM MATÉRIAS CIVIL E COMERCIAL NOS ESTADOS-MEMBROS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - ACTOS PROCESSUAIS ( ATOS PROCESSUAIS ) / NULIDADES DOS ACTOS ( NULIDADES DOS ATOS ) / CITAÇÃO DE RESIDENTE NO ESTRANGEIRO - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 334.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 191.º, N.ºS 1, 2 E 4, 239.º, N.º1, 674.º, N.º3, 682.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 8.º, N.º 4.
Legislação Comunitária:
REGULAMENTO (CE) Nº 1393/2007: - ARTIGOS 4.º E SS., 8.º, N.º 1, 14.º
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 05.03.2013, PROCESSO Nº 1869/11.9TBPTM-A.E1.S1, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 11.2.2015, PROCESSO Nº 500/13 E DE 25.11.2014, PROCESSO Nº 6629/04.0TBBRG.G1.S1, DISPONÍVEIS EM WWW.DGSI.PT; E DE 11.12.2014, PROCESSO Nº 25908/11, SUMARIADO EM SUMÁRIOS DO STJ, 2014, DEZEMBRO.
Sumário :
I. Tendo a ré, sociedade estrangeira sediada na Grécia, sido citada através de carta registada com aviso de receção (art. 14º do Regulamento (CE) nº 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho relativo à citação e à notificação dos atos judiciais e extrajudiciais em matérias civil e comercial nos Estados-Membros, era obrigatório que o expediente enviado contivesse a cautela indicada no art. 8º do Regulamento (menção à possibilidade de recusa da receção por razão do idioma).

II. A citação operada com a preterição de tal formalidade padece de nulidade.

III. Tendo a Relação inferido dos factos processuais conhecidos que o citando estava em condições de entender o ato e que a sua defesa não ficou prejudicada, não pode proceder a arguição da nulidade.

IV. Mesmo que assim não fosse, a nulidade não pode proceder se não foi arguida no prazo da defesa nem aquando da primeira intervenção do citado no processo.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

AA Lda. demandou, pelo Tribunal Judicial de Vila Franca de Xira, BB, S.A., com sede na Grécia, peticionando a condenação desta no pagamento da quantia de €101.063,56, acrescendo juros de mora vencidos e vincendos.

A Ré foi citada através de carta registada com aviso de receção.

O conteúdo da carta seguiu em língua portuguesa.

A Ré não apresentou contestação.

Junto o aviso de receção assinado pela Ré, foi proferido o seguinte despacho:

“I) Considero a ré regular e pessoalmente citada, nos termos do art. 239 nº 1 do CPC e do art. 14 do Regulamento (CE) nº 13397/2007, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13-11-2007, relativo à citação e notificação de actos judiciais e extrajudiciais em matéria civil e comercial dos Estados-Membros, que entrou em vigor em 13-11-2008, com excepção do art. 23 (cf. art. 26 do Regulamento) sendo também directamente aplicável em Portugal, nos termos do art. 288 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

II) Face à revelia da Ré, considero confessados os factos articulados pela Autora, cuja prova não deva ser feita por documento – nº 1 do art. 567 do Código de Processo Civil.”

Mais tarde foi proferida sentença, que julgou a ação procedente e condenou a Ré nos efeitos peticionados.

Interpôs então a Ré recurso contra o despacho que a considerou regularmente citada e que considerou confessados os factos articulados.

Disse no recurso (conclusões) o seguinte:

“(i) A aqui Ré, que é estrangeira, tem a sua sede na Grécia, foi citada para os trâmites da ação apenas por carta registada com aviso de receção e nada mais;

(ii) A Ré não percebe a língua portuguesa, sendo que a língua grega é em tudo diferente da portuguesa, incluindo nos próprios caracteres;

(iii) Não obstante o Regulamento (CE) nº 1393/2007, de 13 de Novembro de 2007, permitir que a citação seja feita via postal, certo é que rodeou a mesma de extremas cautelas, que nos autos não foram cumpridas;

(iv) Desde logo permitiu, ao abrigo o art. 8º daquele Regulamento, o direito à recusa por parte do destinatário, direito esse que é um dos princípios essenciais deste modelo;

(v) No caso vertente, nada disso aconteceu nos autos, sendo que a Ré foi simplesmente citada por carta registada com aviso de receção sem que tivesse sido informada da possibilidade que tinha de recusar o acto, o que, evidentemente teria de ser feito na sua língua, para que o entendesse, assim compreendendo o sentido e alcance dessa informação;

(vi) Competia pois ao Tribunal promover que o acto de citação, ainda que abrigo do artigo 14 do Regulamento 1348/2007, fosse feito de molde a que o direito à recusa por parte da aqui Ré pudesse ser realmente exercido, fazendo-o através do modelo uniforme constante do anexo II e na língua oficial do Estado-Membro de destino;

(vii) Não o fazendo, como não fez, a citação realizada nos autos é nula, e de nenhum efeito, dado que não foram, na sua realização, observadas as formalidades previstas na lei;

(viii) Sendo nula a citação –  que necessariamente prejudicou o direito de defesa da Ré, por ter sido feita numa língua de todo estranha à mesma, o que é facto notório, impedindo o contraditório e a igualdade das partes, garantindo um processo equitativo – a mesma pode ser invocada a todo o tempo e assim deverá ser atendida.

(ix) Por tudo isto e porque a falta cometida prejudicou o direito de defesa da Ré, em termos do exercício efetivo deste seu direito, apenas uma repetição do acto de citação poderá sanar a nulidade cometida, ordenando-se consequentemente a mesma, observando-se os legais formalismos, de forma a permitir- -se à Ré apresentar sua defesa em tribunal.”

A apelação foi julgada improcedente por acórdão da Relação de Lisboa.

No acórdão aduziu-se como fundamentação o seguinte:

«A ré é estrangeira e tem sede no estrangeiro

Conforme a Autora refere na petição inicial, a ré é uma sociedade comercial com sede em ....., Atenas, Grécia. Assim, à citação é aplicável o Regulamento (CE) nº 1393/2007 (e não 13397/2007 referido no despacho recorrido) do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de novembro de 2007 – regulamento relativo à citação e à notificação dos actos judiciais e extrajudiciais em matéria civil e comercial, dos Estados-Membros da União Europeia.

Nos termos do artigo 14 do citado Regulamento, os Estados-Membros (Portugal) podem proceder directamente pelos serviços postais à citação de actos judiciais a pessoas que residam noutro Estado-Membro (Grécia) por carta registada com aviso de recepção. No entanto, a entidade requerida avisa o destinatário de que pode recusar a recepção do acto, quer no momento da citação ou notificação, quer devolvendo o ato à entidade requerida no prazo de uma semana, se este não estiver redigido ou não for acompanhado de uma tradução numa língua que o destinatário compreenda ou na língua oficial do Estado-Membro requerido – art. 8º do Regulamento. Fala-se aqui em “entidade requerida” mas, no caso de a citação ser enviada directamente pelos serviços postais ao destinatário, é este a “entidade requerida” – arts. 14, 8º.4 e 2º.2 do Regulamento.

Isto é, ao enviar a citação por via postal, era preciso enviar uma redacção em língua que o destinatário compreendesse ou uma tradução em grego.

Mas a ré é uma sociedade internacional de despachos e logística

Mas cabe agora perguntar: a destinatária, sociedade internacional de despachos e logística, forwarders and logistics, compreendia a língua portuguesa?

Na carta de fls. 158, queixa-se de que recebeu uns documentos em língua portuguesa, “todavia não conseguimos perceber exactamente o que querem dizer”.

Mas esta carta está redigida num português perfeito, e foi assinada na Grécia pelo gerente da empresa, antes de a empresa passar procuração ao Ex.mo Advogado português.

Então, não pode dizer que não percebia a citação que recebeu em 21 de maio de 2014 (fls. 132).

Talvez o gerente não perceba bem o português. Mas o gerente não é a empresa. A Ré é uma empresa internacional, especializada em despachos e logística, com clientes em todo o mundo, com relações comerciais já antigas com uma empresa portuguesa (a autora, AA), e que até tem uma ação pendente na Grécia contra ela (fls. 158). E portanto tem certamente pelo menos uma secretária-correspondente ou outros funcionários perfeitamente habilitados a traduzir- -lhe a citação do português para o grego.

Recebeu a citação em português, numa língua que compreendia (art. 8º.1.a do Regulamento), porque é uma empresa internacional, com pessoal habilitado a escrever cartas em português perfeito.

A nulidade de citação que agora invoca não passa de uma habilidade processual para atrasar a decisão da causa. Em nada foi prejudicado o seu direito de defesa. Não é um simples cidadão grego residente em Atenas. É uma empresa internacional de despachos e logística, com relações económicas com Portugal.

A decisão da Instância Central de Loures é legal e justa. A ré foi regularmente citada e não contestou porque não quis.»

Ainda inconformada, pede a Ré revista.

Da respetiva alegação extrai a Recorrente as seguintes conclusões:

(i) A aqui Ré, que é estrangeira, tem a sua sede na Grécia, foi citada para os trâmites da ação apenas por carta registada com aviso de receção e nada mais;

(ii) A Ré não percebe a língua portuguesa, sendo que a língua grega é em tudo diferente da portuguesa, incluindo nos próprios caracteres;

(iii) Não obstante o Regulamento (CE) nº 1393/2007, de 13 de Novembro de 2007, permitir que a citação seja feita via postal, certo é que rodeou a mesma de extremas cautelas, que nos autos não foram cumpridas;

(iv) Desde logo permitiu, ao abrigo o art. 8º daquele Regulamento, o direito à recusa por parte do destinatário, direito esse que é um dos princípios essenciais deste modelo;

(v) No caso vertente, nada disso aconteceu nos autos, sendo que a Ré foi simplesmente citada por carta registada com aviso de receção sem que tivesse sido informada da possibilidade que tinha de recusar o ato, o que, evidentemente teria de ser feito na sua língua, para que o entendesse, assim compreendendo o sentido e alcance dessa informação;

(vi) Competia pois ao Tribunal promover que o ato de citação, ainda que abrigo do artigo 14º do Regulamento 1348/2007, fosse feito de molde a que o direito à recusa por parte da aqui Ré pudesse ser realmente exercido, fazendo-o através do modelo uniforme constante do anexo II e na língua oficial do Estado-Membro de destino;

(vii) Não o fazendo, como não fez, a citação realizada nos autos é nula, e de nenhum efeito, dado que não foram, na sua realização, observadas as formalidades previstas na lei;

(viii) Sendo nula a citação - que necessariamente prejudicou o direito de defesa da Ré, por ter sido feita numa língua de todo estranha à mesma, o que é facto notório, impedindo o contraditório e a igualdade das partes, garantindo um processo equitativo - a mesma pode ser invocada a todo o tempo e assim deverá ser atendida;

(ix) Se nada entendeu da citação que lhe foi dirigida, ainda que decorra do art. 191º na 2 do CPC que o prazo para arguir a nulidade corresponde ao que tiver sido indicado para a contestação, pergunta-se, como se compagina essa possibilidade com o facto de a Ré nada ter entendido dos documentos que lhe foram entregues??? Seria exigível à Ré, com sede na Grécia, ter rapidamente procurado aferir do que se passava quando não domina a lei portuguesa e como tal desconhece o prazo que teria para o efeito?

(x) A aqui Recorrente arguiu a nulidade da citação perante o Tribunal da lª Instância que entendeu não poder já, em face da sentença proferida, conhecer da nulidade invocada;

(xi) A aqui Recorrente contactou com um advogado em Portugal no sentido de apurar o sucedido, que mandatou para o efeito (com quem, aliás, se corresponde na língua inglesa) tendo sido nesse mesmo enquadramento que enviou a carta de 07/5/2015, a solicitar fosse traduzida a notificação para a sua língua (o que fez com dificuldade, recorrendo a tradutor exterior à sua empresa para o efeito);

(xii) O entendimento vertido pelos Srs. Desembargadores no Acórdão de que aqui se recorre, extravasa a matéria dos autos, e encerra em si mesmo uma interpretação não consentânea com o Regulamento Europeu e contrária ao mesmo;

(xiii) Consubstancia em si mesma uma decisão surpresa que o CPC no seu artigo 3º nº 3 proíbe, pois que, se aquele douto Tribunal tinha dúvidas poderia, e deveria, no uso dos seus supremos direitos, questionar a Ré e permitir-lhe a prova do agora alegado, quanto às circunstância que rodearam a aludida carta, o que, não o tendo feito, V. Exas poderão sempre suprir;

(xiv) Não podia era aquela Instância de Recurso retirar, sem mais, da aludida carta que a Ré domina a língua portuguesa, o que é, no mínimo, surpreendente, pois que, a nosso ver, nada nos autos indicia que os representantes legais da ré compreendessem a língua portuguesa;

(xv) Entende pois a Ré que, enquanto sociedade grega, foi absolutamente espoliada dos seus direitos de defesa, não tendo sequer os Tribunais da 1ª Instância e da Relação atentado na cláusula de desresponsabilização aplicável, pois que, de acordo com as Comunicações dos Estados-Membros, em conformidade com o disposto no artigo 23° do Regulamento (CE) nº 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Novembro de 2007, a Grécia apenas aceitou que os formulários do pedido de citação fossem preenchidos em francês ou inglês, para além do grego;

(xvi) Por tudo isto e porque a falta cometida prejudicou o direito de defesa da Ré, em termos do exercício efetivo deste seu direito, apenas uma repetição do ato de citação poderá sanar a nulidade cometida, ordenando-se consequentemente a mesma, observando-se os legais formalismos, de forma a permitir-se à Ré apresentar sua defesa em tribunal.

A parte contrária não contra alegou.

     Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

                                                         

Questão prévia:

Afigura-se que a fundamentação aduzida no acórdão recorrido é essencialmente diferente da fundamentação da decisão da 1ª instância. Pois que enquanto nesta se considerou a citação da Ré regularmente efetuada tal como o foi [à luz do art. 14º do Regulamento (CE) nº 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho], já no acórdão recorrido se discorreu no sentido de terem sido preteridas certas formalidades impostas pelo mesmo Regulamento, sendo a decisão recorrida confirmada por outras razões (a compreensão da língua portuguesa por parte da citanda, ou a possibilidade de a compreender se quisesse).

Como assim, julgamos que não estamos perante uma situação de dupla conformidade decisória relevante (para efeitos de inadmissibilidade da revista), tal como figurada no nº 3 do art. 671º do CPCivil.

Razão pela qual haverá que conhecer do recurso.

II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou fundamentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

             

É questão única a conhecer:

- Nulidade da citação.

III - FUNDAMENTAÇÃO

Plano Factual:

Dão-se aqui por reproduzidas as incidências fáctico-processuais acima descritas.

Plano Jurídico-conclusivo:

Começa por reger para o caso o art. 239º nº 1 (ex vi do art. 246º nº 1) do CPCivil, que estabelece que quando o Réu resida no estrangeiro se observa para a sua citação o que estiver estipulado nos tratados e convenções internacionais.

Sendo Portugal e Grécia Estados-Membros da União Europeia, isto leva-nos mediatamente (ou seja, por efeito sucedâneo das pertinentes normas do Tratado que institui a Comunidade Europeia, e ademais visto o nº 4 do art. 8º da Constituição da República Portuguesa) à aplicação ao caso do Regulamento (CE) nº 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho relativo à citação e à notificação dos atos judiciais e extrajudiciais em matérias civil e comercial nos Estados-Membros.

Nesta base, sem dúvida que a Ré podia ser citada, como foi, através de carta registada com aviso de receção (art. 14º do Regulamento).

Contudo, se não era obrigatória a tradução do expediente que integrava a carta, havia pelo menos que ser tomada a cautela indicada no nº 1 do art. 8º do Regulamento. O que teria que ser feito mediante o envio do formulário (versão em grego[1]) constante do anexo II ao Regulamento.

E tal cautela, a despeito de expressada no contexto, algo diferenciado, da transmissão de atos judiciais através de entidades específicas (art. 4º e seguintes do Regulamento) é também exigível no caso de citação postal.

A este propósito, aduziu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de março de 2013 (processo nº 1869/11.9TBPTM-A.E1.S1, relator Gregório Jesus, disponível em www.dgsi.pt), entendimento que se subscreve e que vale mutatis mutandis para o caso vertente:

«(…) o Regulamento n.º 1393/2007, apesar de procurar assegurar eficácia e celeridade à utilização de todos os meios adequados à transmissão dos actos, não descura a possibilidade, em situações excepcionais, de recusa pelo destinatário da citação ou notificação de actos. O seu considerando preambular n.º 12 evidencia manifesta preocupação com a defesa do interesse dos destinatários, traduzido no direito que lhes assiste de recusar um acto realizado numa língua que não seja reconduzível ao prescrito no art. 8.º, nº 1 acima enunciado.

Vale isso por dizer que, a permissão contida no artigo 14.º do Regulamento (citação ou notificação pelos serviços postais), sem acompanhamento de uma tradução, não implica a derrogação de todas as garantias de estabilidade e segurança na transmissão de um acto judicial, mormente as do artigo 8.º consubstanciadas no direito à recusa por parte do destinatário, até porque nessa situação se encontra mais desprotegido por ausência de prévio aviso da entidade requerida do Estado-Membro onde reside.

Perante a possibilidade de realização directa do acto judicial, ou extrajudicial, o direito efectivo à recusa por parte do destinatário ganha uma ainda maior importância na medida em que nenhuma entidade, seja no Estado-Membro de origem seja no Estado-Membro requerido, intervém no procedimento.

O mesmo considerando nº 12 do Regulamento nº 1393/2007 expressa, claramente, que “As regras sobre a recusa deverão igualmente aplicar-se à citação ou notificação efectuada por agentes diplomáticos ou consulares, pelos serviços postais ou directamente (...)”.

Significa isto que os Estados-Membros tiveram por inadmissível que o Tribunal de origem optasse por proceder à realização do acto judicial ou extrajudicial directamente, por serviço postal, sem garantir que o direito à recusa de recepção do acto fosse observado, assegurando expressa comunicação desse direito ao destinatário do acto, mediante formulário próprio.

Na conformidade com esta exigência, competia, então, ao Banco Nacional de Injunções promover o acto de notificação, ainda que ao abrigo do artigo 14.º do Regulamento, por carta registada com aviso de recepção, de molde a que o direito à recusa por parte da destinatária fosse, ou pudesse ser, realmente exercido.

Cabia-lhe, pelo menos, o dever de comunicar à destinatária da notificação, através do modelo uniforme constante do anexo II, e na língua oficial do Estado-Membro de destino, a possibilidade de recusa do acto por não se encontrar acompanhado de uma tradução, de acordo com o disposto no art. 8º, nº 1 do Regulamento n.º 1393/2007.»

Ora, tal cautela não foi tomada, de sorte que a citanda ficou privada da faculdade de recusar a receção do ato pelo facto de não estar redigido (ou acompanhado de tradução) em grego ou em idioma que compreendesse.

Razão pela qual podemos assentar em que a citação da Ré não foi adequadamente efetuada, padecendo de nulidade (art. 191º nº 1 do CPCivil).

E dizer isto é o mesmo que dizer que estamos de acordo com o que a Recorrente diz a esse estrito propósito.

Mas o acórdão recorrido também não diz o contrário.

O que o acórdão diz basicamente é que a preterição das devidas formalidades da citação acabou por não causar qualquer embaraço à citanda, por isso que esta compreendia a língua portuguesa ou estava em condições de a compreender, e daqui que podia perfeitamente ter contestado.

O que é dizer, o acórdão recorrido considerou implicitamente que a arguição da nulidade da citação constituía um ato processual abusivo e de má-fé, e que não prejudicou a defesa da Ré.

Para tanto o acórdão alicerçou-se nos factos que indica (e que estão claramente espelhados nos autos), quais sejam:

-que a ré é uma sociedade internacional de despachos e logística (forwarders and logistics);

- que a ré apresentou um requerimentos nos autos redigido num português perfeito, assinado na Grécia pelo gerente da empresa, antes de a empresa passar procuração ao Ex.mo Advogado português;

- que a Ré tem relações comerciais já antigas com a Autora, contra quem tem até uma ação pendente na Grécia.

E desses factos fez derivar as seguintes ilações:

- que a Ré tinha que conhecer minimamente o português em ordem a perceber o teor do ato que lhe foi transmitido;

- que a Ré tinha que ter pessoal habilitado para traduzir a carta.

Pode este Supremo sindicar estas inferências factuais do acórdão recorrido?

Pensamos que não.

Tais inferências resolvem-se obviamente em presunções judiciais.

Sucede que as presunções judiciais reconduzem-se ao apuramento da matéria de facto, de modo que os factos tidos por demonstrados à luz delas não podem ser escrutinados pelo Supremo Tribunal de Justiça (v. art.s 674º nº 3 e 682º do CPCivil). Como tem sido sistematicamente afirmado na jurisprudência do Supremo, não compete a este Tribunal sindicar o juízo de facto formulado pela Relação para operar as presunções judiciais, precisamente porque se trata de atividade relativa à aferição da matéria de facto (v. neste sentido, entre muitos outros, os acórdãos de 11.2.2015, processo nº 500/13 e de 25.11.2014, processo nº 6629/04.0TBBRG.G1.S1, disponíveis em www.dgsi.pt; e o acórdão de 11.12.2014, processo nº 25908/11, sumariado em Sumários do STJ, 2014, dezembro).

Só assim não deverá ser - caso em que poderá então o Supremo censurar o uso que foi feito da prova por presunção - se as presunções extraídas violarem norma legal impositiva em matéria de meios de prova, ou se padecerem de ilogicidade ou se partirem de factos não provados.

Não é, manifestamente, o que se passa no caso vertente.

Donde, terá este Tribunal que aceitar as ilações extraídas pelo acórdão recorrido.

A ser assim, como é, é de concluir que não se poderá dar procedência à arguição da nulidade. A tanto se opõe, nomeadamente a diretiva constante do art. 334º do CCivil (é ilegítimo o exercício de um direito quando se exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé), como a regra constante do nº 4 do art. 191º do CPCivil (só há lugar à procedência da nulidade se a falta cometida puder prejudicar a defesa do citado).

Mas mesmo que assim se não entenda, sempre importa observar o que se contém no nº 2 do art. 191º do CPCivil (o prazo para a arguição da nulidade é o que tiver sido indicado para a contestação; não havendo prazo indicado, a nulidade pode ser arguida aquando da primeira intervenção do citado no processo).

Sobre este assunto diz-se no supra referido acórdão deste Supremo, cujo entendimento continua a valer mutatis mutandis para o caso vertente (tenha-se presente que as normas legais citadas no excerto que se segue são as do CPCivil anterior):

«A qualificada irregularidade apenas dava à recorrente o direito de arguição de acordo com a regra estabelecida no nº 2, 1ª parte, do aludido art. 198º. Competia-lhe, dentro do prazo que lhe foi concedido para se opor ao pedido da injunção, a invocação de tal irregularidade dependente que está o seu conhecimento de arguição da parte (art. 202º, 2ª parte, do CPC), e não posteriormente, aquando da oposição à execução que se seguiu à aposição da fórmula executória, que diz ser coincidente com a sua primeira intervenção no processo o que aqui não releva, como defende a coberto do disposto no art. 205º, nº 1 do CPC.

De facto, tomando-se como padrão um cidadão com diligência e zelo minimamente exigíveis, é inaceitável que recebida uma carta com aviso de recepção em língua que não compreende, mas proveniente de um país onde é proprietária de um prédio urbano situado no concelho de ... e onde tinha interesses de natureza económica, pelo menos desde o ano de 2008 como se infere da procuração conferida a uma sociedade portuguesa de advogados sediada em ... (cfr. nº 5 dos factos provados), e também por este facto, a recorrente não tenha procurado saber o sentido da comunicação recebida, quedando-se sem mais. Abster-se, em tempo oportuno e devido, de iniciativa idêntica à que agora tomou, já num momento mais doloroso perante a penhora do aludido bem.

Não tendo arguido a recorrente/executada/oponente, em devido tempo, qualquer vício de notificação, tal nulidade, a mesma sempre estaria definitivamente sanada por força do estatuído no nº 3 do art. 206º do CPC.»

Ora, no caso vertente a Ré tinha relações comerciais com a Autora, sendo por demais óbvio que havia que ter consciência de que a carta que recebeu se relacionava com um litígio perante a justiça portuguesa e que se lhes referia. Porém, e ao longo de 60 dias (prazo da contestação e dilação), nada cuidou de diligenciar com vista á verificação do porquê da carta (nem que fosse pura e simplesmente fazer devolver a carta com indicação de que não estava em condições de entender o seu conteúdo). Se o fez por incúria ou intencionalmente, sibi imputat. E, de outro lado, é certo que interveio no processo (através da junção de procuração a advogado) sem arguir logo a nulidade da sua citação. Razões que levam a concluir que precludiu a possibilidade de arguir a nulidade, que assim ficou convalidada.

Não pode assim dar-se procedência ao recurso.

Improcedem pois, com o sentido ou alcance que fica exposto, as conclusões do recurso.

IV. DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista.

Regime de custas:

A Recorrente é condenada nas custas da revista.

Sumário:

                                               Lisboa, 20 de Setembro de 2016

José Rainho (Relator)

Nuno Cameira

Salreta Pereira

__________________


[1]  Segundo diz a Recorrente, a Grécia informou que aceitaria também formulários em inglês e francês. Não logramos confirmar que assim seja. Trata-se, em todo o caso, de assunto que não põe em causa a exigência da referida cautela, e é disso que se trata.