Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2709/22.9T8PTM.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: INTERESSE EM AGIR
AUTOR
AÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
USUCAPIÃO
UNIDADE DE CULTURA
JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
NORMA INTERPRETATIVA
REVISTA EXCECIONAL
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I. Para que se considere que o autor tem interesse processual numa acção em que pede a declaração da existência de certo direito é preciso que se conclua pela existência de uma incerteza objectiva e grave quanto à existência do direito.

II. Existe incerteza objectiva e grave para o efeito de se considerar que existe interesse processual quando, sendo o direito que o autor se arroga um direito do tipo cuja aquisição é controvertida na jurisprudência, o recurso à acção é susceptível de proporcionar ao autor manifesta utilidade prática.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

Recorrentes: AA e BB

Recorridos: CC e Outros

1. AA e BB intentaram ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra CC e Outros pedindo:

a) Se declare que o prédio rústico sito em Ribeira do ... ou M..... .. .... ou V... ........, na freguesia da ..., concelho de ..., composto de figueiras, oliveiras, eucaliptos, horta, cultura arvense e ruinas de prédio urbano (este com a área de construção de 185 m2, com logradouro, possuído a área total de 1 250 m2), a confrontar do norte, com DD; do sul, com EE e FF; do nascente, com GG, EE e outro, e do poente, com Ribeira, com a área de 4,705 ha, inscrito na matriz cadastral nº 40 da secção B e na matriz urbana nº 3637, todas da freguesia da ..., deste concelho e ..., e descrito na conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 9050, Fls 23vª do livro B-24 ( hoje descrito sob o nº 3353), se encontra materialmente dividido, por usucapião, em três parcelas, distintas e autónomas, designadas pelas letras A, B e C no levantamento topográfico aqui junto como Doc. Nº 10, com as áreas respectivamente de A =17 823 m2; B = 14 316 m2 e C = 14 911 m2.

b) Se declare que os AA adquiriram por usucapião a parcela designada com a letra C do prédio apontado em a), com a área de 14 911 m2 (catorze mil novecentos e onze metros quadrados), sendo donos e legítimos possuidores da mesma parcela e que esta é distinta e autónoma em relação ás demais parcelas, sita em Ribeira do ...ou M..... .. .... ou V... ........, na freguesia da ..., concelho de ..., composta de figueiras, oliveiras, eucaliptos, cultura arvense, horta, a confrontar do norte, com HH; do sul, com DD; do nascente, com DD e do poente, com ribeira.

c) Se condene os RR a reconhecerem, quer a divisão por usucapião do dito prédio naquelas três parcelas distintas e autónomas (identificadas em a), quer a parcela pertencente aos AA, designada pela letra “C” e estes como donos, proprietários e legítimos possuidores daquela mesma parcela.

d) Condenar-se os RR a reconhecerem e a acatarem a constituição e existência de tal parcela de terra como autónoma, distinta e independente, dividida e demarcada, assim como o direito de propriedade dos AA sobre o mesma, e a se absterem de praticar actos que perturbem ou impeçam aos AA o uso da dita parcela/prédio ou o exercício do direito de propriedade, ou de outro com este conexo, sobre a mesma parcela.

E ainda:

e) Declarar-se a aquisição por usucapião pelos AA da propriedade de 1/3 da água do referido charco e dos demais direitos constantes do alegado nos artigos 59 a 73, ambos inclusive.

f) Condenar-se os RR a reconhecerem e a acatarem os direitos dos AA, e sequentes aquisições, correspondentes ao pedido indicado na alínea e) e a se absterem de praticar actos que lhes perturbem ou impeçam o exercício daqueles mesmos direitos e dos que com estes estejam conexos”.

2. Regularmente citados, os réus não contestaram.

3. O Tribunal de 1.ª instância ordenou a notificação dos autores para querendo se pronunciarem quanto à eventual verificação da excepção dilatória insuprível de falta de interesse em agir, por não se achar descrita na petição inicial qualquer situação de oposição dos réus aos pretensos direitos dos autores.

4. Os autores apresentaram requerimento onde defendem que, no caso, existe interesse em agir.

5. Em sede de despacho saneador, o Tribunal de 1.ª instância decidiu a questão prévia da falta de interesse em agir, concluindo no dispositivo:

Em face do todo e exposto e verificada a exceção dilatória de falta de interesse em agir por parte dos autores e absolve-se, consequentemente, os réus da instância”.

6. Inconformados, os autores interpuseram recurso de apelação.

7. Em 28.06.2023, o Tribunal da Relação de Évora proferiu Acórdão em cujo dispositivo pode ler-se:

Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida”.

8. Vem o presente recurso dos autores interposto deste Acórdão “nos termos dos artigos 671-1 e 672-1 a) e c) e 2 a) e c), todos do C.P.C.”.

A concluir as alegações, formulam os autores as seguintes conclusões:

a) O recorrente marido é um dos três filhos do casal de II e de JJ, já falecidos;

b) Os pais do recorrente marido eram donos e legítimos possuidores do prédio rústico, de sequeiro, com a área de 4,705 hectares, (contendo, no seu interior, a ruína de um prédio urbano), sito em Ribeira do ... ou M..... .. ...., na freguesia da ..., concelho de ..., confrontando, do norte, com DD; do sul, com EE e FF; do Nascente, com GG, EE e outro e do poente, com Ribeira, inscrito na matriz cadastral sob o art. 40 da secção B e na matriz urbana sob o artigo 3637, tudo da dita freguesia da ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 3353.

c) Logo, o prédio possui área inferior à unidade de cultura determinada em sequeiro para o ... (8 hectares) pela Portaria n.º 19/2019 de 15 de Janeiro;

d) Em vida dos pais do recorrente marido e há mais de trinta e cinco anos, estes fizeram, verbalmente, doação do prédio identificado em b) aos seus referidos três filhos (o recorrente marido, HH e KK) todos melhor identificados em 18 da p.i.

e) Imediatamente após aquela doação, os filhos dos doadores acertaram entre si a divisão do prédio referido, também de forma verbal, pelo que dividiram o dito prédio em três parcelas, cada uma destinada a cada donatário;

f) Na mesma altura, os filhos dos doadores demarcaram as referidas parcelas com marcos de pedra, individualizando-as, constituindo três outros novos prédios, distintos e independentes e autónomos, todos com ligação directa à via pública, pelo que nenhum deles constitui prédio encravado.

g) Muito embora assim divido de facto, que não de direito, todas as parcelas continuam a integrar o prédio mãe de que os 3 filhos dos doadores são comproprietários.

h) No entanto, tais donatários, no sentido de melhor entenderem as características das suas parcelas, levaram a afeito o competente levantamento topográfico de todo o prédio, o qual veio a denominar as três parcelas pelas letras A, B e C, com a atribuição das áreas respectivas, como sejam: parcela A, com a área de 17.823m2; parcela B, com a área de 14.316 m2 e a parcela C, com a área de 14.911 m2.

i) Sendo que a parcela C (que confronta do norte, com HH; do sul, com FF; do nascente, com DD e do poente, com ribeira) é a que tem vindo a ser destinada aos recorrentes, que dela têm tratado, cultivado, retirado frutos, pago a quota parte dos inerentes impostos há mais de trinta e cinco anos, à vista de toda a gente, de forma pública, pacificamente, sendo tidos por todos como os seus únicos donos, sem oposição de ninguém, possuindo o corpus e o animus.

j) Os recorrentes adquiriram a posse e a propriedade da parcela C por usucapião, como se retira dos artigos 1263, 1281, 1282, 1283, 1287 e 1288, todos do C.C..

k) Ainda que o prédio divido possua área inferior à unidade de cultura prevista para prédios de sequeiro no ..., o alegado de 20 a 30 supra inculca bem o não impedimento de os recorrentes terem adquirido a sua parcela por usucapião.

I) Salientando-se, quer a 1a instância, quer o Acórdão recorrido, que a P.l. indicia acordo entre os donatários quanto à divisão do prédio mãe, há que dizer que a versão naquele articulado é tão só a dos ali autores, que não pode significar, sem mais, que os então RR concordem agora com ela. Uma coisa foi o que os donatários acordaram aquando da divisão do prédio mãe, outra bem diferente pode ser a realidade de agora, muitos anos depois. Daí que, para além da cominação que a falta de contestação implica, nada mais se deverá extrair dali à falta de prova.

m) Também apontam aquelas instâncias que o facto de os RR não terem contestado a acção reforça a ideia de que o acordo existe. Ora se os ali RR não contestaram - desconhecendo-se a razão de tal omissão - a cominação só pode ser a que prevê o ns 2 do art. 574 do CPC. Extrapolar em deduções de que tal omissão reforça a ideia de existir um acordo (que perduraria para todo o sempre e desde há trinta e cinco anos entre os conhecidos donatários) é, salvo o devido respeito, especular. Sabido que a não contestação pode resultar de diversas razões que vão desde um acto voluntário, até esquecimento, negligência, etc. Aliás, deviamente referenciado em 41 a) e b) supra.

n) Nem a falta de contestação, como se disse, avaliza dizer-se que não existe conflito de interesses entre AA e RR e apenas um desacerto futuro, como diz o acórdão recorrido, que levara os AA a recorrerem aos tribunais para obterem o reconhecimento do direito a que se arrogam. Tudo como bem se desenvolve em 41 supra que se dá por reproduzido o ali alegado e se solicita o favor da sua leitura.

o) A jurisprudência referenciada, quer pela 1a instância, quer no Ac. recorrido, não aponta especialmente para o caso de divisão de prédios rústicos com área inferior à unidade de cultura, mas apenas se refere genericamente à divisão de prédios rústicos (mormente à aquisição dos mesmos por usucapião), sabido é que os prédios que levantam dificuldades na sua divisão são os que possuem área inferior à unidade de cultura e não os outros.

p) A questão dos autos tem de ser vista à luz da redacção do art. 1379 do C.C. que existia antes da entrada em vigor da Lei N.5 111/2015, de 27 de Agosto.

q) E nem mesmo a referência que a jurisprudência faz àquela lei (no sentido de adiantar que tal diploma veio aliviar os tribunais de certos actos) avança com a indicação, em concreto, de normas que imponham a efectivação da escritura notarial para os casos (de divisão de prédios com área inferior à unidade de cultura e de aquisição das suas parcelas por usucapião) susceptíveis de se virem a confrontar com a decisão da falta de interesse em agir.

r) O douto acórdão recorrido aponta o nº 3 do art. 8 do C.C. para sustentar o apoio jurisprudencial que serviu de base para a sua decisão, mas devia também considerar o que dita o art. 92 do mesmo diploma para se aquilatar se o legislador, aquando da elaboração deste último preceito já previa a interpretação que tem vindo a ser dada ao art. 39 do C.P.C, e ou se tal interpretação se enquadra no dito art. 9.º.

s) A declaração de falta de interesse em agir, tendo em vista, como aponta alguma doutrina e jurisprudência, retirar dos tribunais litígios cuja resolução ali não é indispensável, aliviando-os e poupando-lhes tempo e trabalho, só faria sentido se à entrada do processo no tribunal fosse possível submetê-lo a triagem para ali se verificar a existência ou não de interesse em agir. Da forma como o assunto tem vindo a ser tratado assiste-se, desde logo, a que os AA tenham de pagar a respectiva taxa de justiça (que nunca lhes vai ser devolvida) em face da justiça que esperam seja feita; depois o processo segue para verificação do cumprimento das regras preliminares, são feitas as citações, podem haver contestações, incidentes a resolver, despachos e, finalmente, julgamento. Ou seja todo o processo percorreu o trâmite normal de qualquer processo e até pode chegar em recurso até ao STJ, como o presente. Obrigando o juiz a debruçar-se em permanência sobre todos os procedimentos ocorridos para, ao fim, declarar a dita falta de interesse em agir- com absolvição da instância - e obrigar os AA a recorrerem daquela decisão e ou a voltar de novo ao tribunal se os recursos não tiverem vencimento. Então o que é se ganhou em tempo e trabalho? (conforme se explanou de 47 a 58 supra)

t) O que parece é que se afigura sair frustrada a visão que defende o alívio dos tribunais com a declaração de falta de interesse em agir, quando, por esta descrição - que é o que acontece - se verifica que o resultado de tal declaração é precisamente contrário: maior peso em tempo e trabalho, repetição de acções, recursos, etc. quando uma decisão sobre o mérito da causa, essa sim, teria efeitos na economia processual e aliviaria os tribunais.

u) A doutrina e a jurisprudência têm vindo a considerar que a falta de interesse em agir (como foi declarado nestes autos) inculca terem os AA que recorrer a processo de justificação, indicando o Conservador do Registo Predial competente para o efeito, baseando-se no que dizem retirar-se da Lei N.º 111/2015. E em nalguns deles até se indica como saída o que ditam os artigos 34, 116, 117A, 117B e 117H-2, todos do Código do Registo Predial. Ora, por um lado, ao Conservador cabe elaborar os registos e estes terão por base uma decisão judicial ou uma escritura notarial. Sendo que o papel do Conservador (que não faz escrituras, mas registos) não se confunde com o papel do Notário (que não faz registos, mas escrituras), ambos tendo funções distintas, e parece que as faladas doutrina e jurisprudência confundem tais funções, nomeadamente quando apontam o Conservador como competente para aquele efeito e indicam os citados artigos do CRP, esquecendo que as escrituras são reguladas pelo Código do Notariado (nomeadamente as de justificação nos arts. 89 a 95), não fazendo a este qualquer referência (como se explanou em 59 e 60 supra).

v) Porém, estando em causa divisão de prédio com área inferior à unidade de cultura (que tem que ver com a previsão dos artigos 1376 e 1379 do C.C., na redacção anterior à entrada em vigor da lei 111/2015), ainda que, pela sua formação tenham obrigação de saber e conhecer como se poderão resolver questões como a destes autos, os notários contactados pelos recorrentes sentem-se inseguros e receosos por terem de se confrontar com normas de interesse e ordem pública como são as que se referiu do C.C. e, daí, recusam levar por diante tais escrituras de divisão e de aquisição por usucapião resultantes da divisão de prédios que possuem área inferior à unidade de cultura, conforme correspondência trocada com aqueles profissionais, que aqui se junta como prevê o n^ 1 do artigo 680 do C.P.C., no seguimento do propósito manifestado em 41 in fine.

w) Pelo que, perante tais circunstâncias -posição dos tribunais sobre o interesse em agir e receio dos notários em infringirem a lei - fica O cidadão comum desprotegido da defesa dos seus interesses.

x) Disso se alheando o próprio Estado, que tem obrigação de zelar pela defesa dos direitos dos cidadãos através de instituições próprias e por si criadas para o efeito, neste caso os tribunais, a quem pagam as taxas de justiça que lhes são exigidas em processos nos quais procuram defender os seus direitos, e sem que vejam ser-lhes feita justiça que procuram.

y) Quando um prédio rústico é adquirido por inteiro e por usucapião, ou quando da divisão de um prédio rústico não resultem parcelas com área inferior à unidade de cultura, a legalização em nome dos adquirentes pode passar apenas pelo conhecido trato sucessivo no registo predial (já que aos notários, que sempre terão de efectuar a escritura competente para se concretizar o registo correspondente, não oferece dificuldade em cumprir a lei que regula a questão); quando se trata de divisão de prédio como o dos autos, para as parcelas resultantes da divisão, que se apresentam como novos prédios, haverá que abrir novas descrições prediais para cada parcela/novo prédio, não se tratando de trato sucessivo, pelo que os indicados artigos do CRP não terão aqui aplicação. Logo não tendo aqui aplicação aqueles artigos do CRP, para que aponta diversa doutrina e jurisprudência, haverá, sim, que encontrar no Código do Notariado, - e não do Código do Registo Predial -solução para que a eventual declaração de falta de interesse em agir declarada em processo judicial, encontre caminho para a outorga da escritura de Justificação notarial nestes casos de divisão de prédios com área inferior à unidade de cultura e aquisição das respectivas parcelas por usucapião.

z) Parece aos recorrentes que a solução para a questão aqui em apreço existe, como demonstraram nas anteriores instâncias e sem que aquelas a tivessem considerado, assenta no que foi decidido no já referido Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 21/02/2017, sendo Relator o Exmo. Desembargador, Dr. Luis Cravo, no Proc. 110/15.OT8CLB.C1, que explanou exaustivamente, diga-se com a devida vénia, uma situação semelhante à dos presentes autos, (acórdão cuja cópia aqui se junta em conformidade com o disposto no artigo 672-2-c) do C.P.C.), aresto que, tendo há muito transitado em julgado, mexe em todas as questões que serviram às instâncias para "chumbar" esta acção, tais como: o alegado acordo entre as partes, a falta de contestação, a aquisição por usucapião, o interesse em agir, a existência de litígio, a necessidade de intervenção do tribunal para resolução do caso, a incompetência do Conservador do Registo Predial para o efeito, e mais adianta a necessidade de se verificar se estão respeitados os requisitos da usucapião) pelo que se encontra em total oposição com decidido no acórdão aqui recorrido.

aa) O cidadão comum, que tem consciência dos direitos que possui; que sabe que as circunstâncias em que adquiriu tais direitos obedeceram à forma legal e que pretende, como nos casos dos autos, tornar-se proprietário independente dos demais comproprietários do prédio mãe que foi sujeito a divisão na situação aqui conhecida, não aceita e não entende que não lhe seja feita justiça ao ter de se confrontar, sem solução, com a discussão entre o papel dos tribunais e o dos notários no reconhecimento de tais seus direitos.

Nos termos da alínea c) do nº 1 e das alíneas a) e c) do nº 2, todos do art. 672 do C.P.C., adiantam os recorrentes:

I - (alínea c) do nº 1 do art. 672 do C.P.C.) – O acórdão, já transitado, que se encontra em contradição com o acórdão recorrido é o que está referido em 62 supra e em Z das conclusões, de que se junta cópia;

II - (alínea a) do nº 2 do art. 672 do C.P.C.) - As razões pelas quais a apreciação da questão é claramente necessária para melhor aplicação do direito são as que se encontram explanadas em 48 a 62 supra e em S e T das conclusões. Com efeito, a alteração provocada pela Lei N. 111/2015 aconteceu há escassos 8 anos e, com os fundamentos que os recorrentes fixaram na p.i., nomeadamente sobre a nova redacção do art. 1379 do C.C., muitos outros processos virão a ser intentados nos tribunais relativamente a aquisição por usucapião com posse iniciada antes de 2015 que, se não se uniformizar jurisprudência que pondere devidamente tais factos, continuar-se-á indefinidamente a discutir nesta instância questões como a que está a ser aqui discutida, com todos os prejuízos resultantes, quer para o cidadão, quer para o direito propriamente dito.

III - (alínea c) do nº 2 do art. 672 do C.P.C.) - Os aspectos de identidade que determinam a contradição alegada, encontram-se explanados supra, de 41 a 62 por um lado, e de 63 a 69 por outro lado, e em U, V e W, X, Y e Z das conclusões, como resultado do confronto entre o que consta do acórdão recorrido com o que consta do citado Acórdão da Relação de Coimbra identificado em Z das conclusões”.

9. O Exmo. Senhor Desembargador Relator proferiu, então, um despacho com o seguinte teor:

Revista Excecional:

Por estar em tempo, os recorrentes terem legitimidade e ter sido invocado o disposto no artigo 672.º, n.º 1, alíneas a) e c), e n.º 2, alíneas a) e c), do CPC, remetam-se os autos ao STJ, nos termos do n.º 3 do mencionado artigo 672.º”.

10. A presente Relatora proferiu despacho remetendo o recurso à Formação prevista no n.º 3 do artigo 672.º do CPC para os efeitos aí previstos.

11. A Formação admitiu o recurso de revista excepcional interposto pelos autores “com fundamento em relevância jurídica da questão em discussão”.


*


Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a questão a decidir, in casu, é a de saber se, no caso concreto (em que os autores se arrogam o direito de propriedade sobre parcela de prédio rústico adquirida por usucapião e com área inferior à unidade de cultura), existe interesse processual dos autores.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

No Acórdão recorrido considerou-se que os factos e as ocorrências processuais relevantes para apreciação do objecto do recurso constavam do respectivo Relatório, que, por sua vez, se encontram vertidos no presente Relatório.

O DIREITO

Concordando com o Tribunal de 1.ª instância, o Tribunal recorrido concluiu que inexistia interesse processual dos autores, com base na seguinte fundamentação:

Os Autores optaram por intentar uma ação de declarativa sob a forma de processo comum.

Como causa de pedir invocaram factos que consubstanciam a existência de uma doação verbal de um imóvel dos falecidos proprietários aos seus filhos, os quais por acordo amigável e informal, há mais de 35 anos, dividiram o prédio em três parcelas, que cada um dos três filhos dos doadores possui desde então como se fossem os seus proprietários (ora Autores e Réus), invocando a aquisição da respetiva titularidade através do instituto da usucapião.

Formularam pedidos típicos de uma ação de simples apreciação positiva (quando pedem o reconhecimento do seu direito de propriedade – alíneas a), b) e e) do petitório) e pedidos típicos da ação de condenação (quando pedem a condenação dos Réus a reconhecerem esse direito – alíneas c), d), e f), do petitório).

Embora não seja absolutamente relevante para a decisão da questão controvertida em apreciação, sempre se recorda que, como referia, ANSELMO DE CASTRO (Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, vol. I p.. 126, nota 1), é normal, nas praxes forenses, em pedidos de mera declaração, concluir-se pela condenação do réu a ver reconhecido o direito ou relação jurídica. Fácil é ver, porém, que na realidade não há condenação alguma, visto não poder falar-se numa obrigação de reconhecimento de direito de outrem.

De qualquer modo, e independentemente da forma da ação e do modo como foram configurados os pedidos, a verdade é que os Autores não alegam que exista qualquer estado de incerteza ou de dúvida grave e objetiva sobre o direito que vêm invocar, nem que os Réus se oponham ao reconhecimento do mesmo.

No fundo, a petição inicial evidencia a falta de litigiosidade ou do estado de incerteza que justifica a demanda por uma tutela jurisdicional.

A falta de contestação veio, se dúvidas houvesse, confirmar a falta de dissídio ou controvérsia, pois as partes estão totalmente de acordo quanto aos direitos de cada um sobre as parcelas e sobre o como dividiram o prédio originando as mesmas. Até sobre o modo como dividiram o direito à utilização da água (charca) que serve o imóvel.

Alegam, contudo, os Autores que não têm outra forma de obter o reconhecimento jurídico da divisão do imóvel e de procederam ao respetivo registo.

Entendem, assim, que o seu interesse em agir reside no facto de apenas o tribunal poder decidir, com base nas regras da usucapião, confirmando, desse modo, a divisão do imóvel em parcelas autónomas com áreas inferiores à unidade de cultura.

Mas sem razão, em nosso entender.

Como se refere no Acórdão da Relação do Porto de 04-05-2022 (proc. n.º 70/21.5T8VGS.P1, disponível em www.dgsi.pt), relatado num caso com evidentes semelhanças em relação ao presente, justifica-se a falta de interesse em agir do seguinte modo:

«Ora, o apelante não estrutura a sua pretensão numa situação de existência de conflito ou de uma situação de incerteza, mas tão só na necessidade de obter um título que lhe permita registar a propriedade em seu nome.

E para o efeito a lei estabeleceu dois mecanismos destinados a suprir a falta de documento válido que legitime a inscrição no registo, meios esses de utilização necessária, estando vedado ao interessado recorrer aos meios judiciais em primeira linha: a escritura de justificação e a acção de justificação, previstas nos artigos 116.º e ss. CRP.

Assim, nos termos do n.º 1 deste artigo, O adquirente que não disponha de documento para a prova do seu direito pode obter a primeira inscrição mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto neste capítulo.

E, de acordo com o n.º 2, Caso exista inscrição de aquisição, reconhecimento ou mera posse, a falta de intervenção do respetivo titular, exigida pela regra do n.º 2 do artigo 34.º, pode ser suprida mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto neste capítulo.

No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 273/2001, de 13 de Outubro, que alterou a redacção deste artigo, deixou-se clara a intenção de desjudicialização desta matéria:

O presente diploma opera a transferência de competências em processos de carácter eminentemente registral dos tribunais judiciais para os próprios conservadores de registo, inserindo-se numa estratégia de desjudicialização de matérias que não consubstanciam verdadeiro litígio.

Trata-se de uma iniciativa que se enquadra num plano de desburocratização e simplificação processual, de aproveitamento de actos e de proximidade da decisão, na medida em que a maioria dos processos em causa eram já instruídos pelas entidades que ora adquirem competência para os decidir, garantindo-se, em todos os casos, a possibilidade de recurso.

Passa assim a ser objecto de decisão por parte do conservador o processo de justificação judicial, aplicável à maioria das situações de suprimento de omissão de registo não oportunamente lavrado (…).

Assim sendo, uma acção, como a presente, destinada apenas a obter título para a inscrição do direito de propriedade no registo predial, sem que esse direito esteja questionado por quem quer que seja, esbarra inevitavelmente com a falta de interesse em agir.

Como se realça no acórdão da Relação de Lisboa, de 07.04.2005, Salazar Casanova, www.dgsi.pt.jtrl, proc. n.º 469/2005-8.

«A lei não abriu dois procedimentos a utilizar ao arbítrio das partes: acção declarativa para reconhecimento de aquisição da propriedade por usucapião e processo de justificação relativa ao trato sucessivo de tal forma que se um interessado não fosse bem sucedido num deles poderia tentar a sua sorte no outro e vice-versa.

Assim, o interessado deverá recorrer à via judicial no caso de o seu direito estar a ser posto em causa (pressuposto de litigiosidade); se tal não suceder, o que se verá pelos termos concretos à luz dos quais desenha o litígio, utilizará a via do registo predial sob pena de, demandando quem se não lhe opõe, ver a sua pretensão soçobrar processualmente por via da procedência da excepção dilatória da falta de interesse em agir.

Em conclusão: verifica-se falta de interesse em agir numa acção em que se pede que seja declarada a aquisição por usucapião do direito de propriedade uma parcela de um determinado prédio, sem que seja imputada aos réus qualquer oposição a essa titularidade ou ao exercício das faculdades a ela inerentes, ou que se alegue uma situação objectiva de incerteza que ponha em causa a consistência desse direito.»

Sublinha-se a concordância com a fundamentação supra extratada, acrescentando-se, ainda, que a objeção dos recorrentes a este entendimento baseada na alegada impossibilidade de recorrerem às vias extrajudiciais que mencionam, em nada invalida esta conclusão, pois apenas evidencia que também, no caso, não se encontram preenchidos os requisitos para despoletarem aquelas formas de tutela.

Em suma, o que se verifica é um acordo amigável entre comproprietários sobre o fracionamento de um imóvel rústico em parcelas inferiores à unidade de cultura, que colide com a norma do artigo 1376.º, n.º 1, do Código Civil, determinando a infração dessa norma a nulidade do ato de fracionamento (artigo 1379.º, n.º 1, do Código Civil).

A manifesta intenção dos Autores de contornarem essa prescrição legal não corresponde a um interesse em agir baseado na procura de uma tutela jurisdicional adequada e necessária à defesa do alegado direito de aquisição originária ou ao afastamento do estado de incerteza grave e objetiva sobre o mesmo.

Reiterando-se que da matéria de facto invocada não emerge qualquer litígio ou sequer qualquer estado de indefinição relativamente aos direitos de cada um, sendo que esse litígio ou estado de incerteza sempre teria de emergir da matéria de facto alegada. Resultando, ao invés, da factualidade alegada na petição inicial e da falta de contestação, que não há qualquer litígio ou estado de incerteza, uma vez que as partes estão de acordo quanto aos direitos de cada uma sobre o prédio em causa.

Nestes termos, nenhuma censura merece a decisão recorrida, concluindo-se, em sintonia com a mesma, que inexiste interesse em agir”.

Como se viu atrás, os autores discordam deste entendimento.

Argumentam, no essencial, a necessidade de obviar à insegurança dos notários relativamente à escritura de divisão e de aquisição por usucapião das parcelas do prédio rústico, não deixando de referir a particularidade do caso, que é facto de as parcelas em causa terem uma área inferior à unidade de cultura [cfr., designadamente, conclusão v)].

Aprecie-se.

Como acontece com qualquer acção, a admissibilidade desta acção está subordinada ao preenchimento de determinados pressupostos – pressupostos processuais1.

O interesse processual, também conhecido como “interesse em agir”2, é um desses pressupostos, cuja exigência visa evitar que a máquina judiciária seja posta em marcha para tramitação de acções frívolas ou inúteis, dado que isso acarretaria uma sobrecarga absolutamente injustificada da actividade dos tribunais.

A falta de interesse processual constitui uma excepção dilatória (inominada3), que é susceptível de conhecimento oficioso (cfr. artigo 578.º do CPC) e conduz à absolvição da instância (cfr. artigo 576.º do CPC), em concretização do brocardo “pas d’interêt pas d’action”.

Explica a doutrina especializada que o interesse processual consiste no “interesse em recorrer aos tribunais para tutela do interesse material”, um “interesse sério para o recurso a juízo4. Quer isto dizer que deve ser visível que a propositura da acção – e a possibilidade da sua procedência – proporciona uma utilidade prática ao autor.

Voltando ao caso em mãos, deve distinguir-se entre os dois grupos de pedidos formulados na presente acção: os pedidos formulados nas alíneas a), b) e e), característicos da acção de simples apreciação do direito, e os pedidos formulados nas alíneas c), d) e f), característicos da acção de condenação em reconhecimento do direito5.

Logo se vê que, no que toca às pretensões do segundo tipo, os autores carecem de interesse processual pois não há qualquer sinal de lesão infligida ao direito que se arrogam nem qualquer outra forma de ataque ou contestação.

Como dizem Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “[s]e ninguém contestou o direito do dono do terreno, nem violou por qualquer forma as suas faculdades de uso e fruição da coisa, é evidente a falta de interesse na acção que ele proponha para fazer reconhecer o seu direito de propriedade pelos proprietários vizinhos6 7.

Observam, adiante, os autores, em análise prática do conceito de “interesse processual”, que “[n]as acções de condenação, o interesse processual resulta da simples alegação de violação do direito do autor, visto a este não ser lícito fazer justiça por suas mãos”.

Note-se ainda (sem que isso adquira carácter decisivo para o caso dos autos) que, segundo o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Dezembro de 2019 (Proc. 25097/17.0T8PRT.P1.S1), “condenar ao reconhecimento, ou exigir o reconhecimento, não tem em direito nenhum sentido’: ‘O réu não é condenado a reconhecer, não tem de prestar facto ou declaração com este conteúdo. A única declaração que pode estar em causa é a do tribunal’”8 9.

Em contrapartida, quanto às pretensões do primeiro tipo, típicas da acção de simples apreciação, as coisas são mais duvidosas. É, aliás, neste tipo de acções que “o apuramento do pressuposto do interesse processual reveste maior acuidade10 e – acrescentar-se-ia – se torna mais complicado.

Tem-se entendido que “não basta qualquer situação subjectiva de dúvida ou incerteza acerca da existência do direito ou do facto, para que haja interesse processual na acção”; é exigível “uma situação de incerteza objectivamente grave que justifique a intervenção judicial (exs. negação, ainda que só verbal, dum direito do autor (…)11.

Em conclusão, só se pode dar por verificado o interesse processual quando haja uma incerteza objectiva e graveobjectiva porque resultante de factos ou circunstâncias exteriores e não de meras conjecturas ou especulações do autor e grave porque susceptível de conduzir a um prejuízo (material ou imaterial) visível e não insignificante dos interesses do autor12.

Normalmente, a incerteza objectiva necessária para que se reconheça interesse processual resulta da contestação do réu. Mas não tem de ser assim, podendo resultar de outras circunstâncias.

Com relevância para este ponto, verifica-se que os autores alegam, no essencial, que os notários por ele contactados para o fim de elaboração da escritura de justificação notarial (necessária para o registo do seu direito) se manifestam inseguros e receosos [cfr., designadamente, conclusão v)], o que se deve à particularidade de a parcela em causa ter sido adquirida por usucapião e, sobretudo, ter uma área inferior à unidade de cultura [cfr., designadamente, conclusão y)].

Reconhecem, em suma, os autores que a situação de facto não corresponde à situação de direito (para todos os efeitos jurídicos, o prédio continua indiviso). Pretendem a sua conversão, para adequada protecção do direito que se arrogam (através do registo predial), sabendo que, para tal, necessitam de um título. Mas deparam-se com dificuldades para obter a escritura pública de justificação notarial (os notários manifestam receio por insegurança quanto à existência do direito). Entendem, por isso, que é justificado o seu recurso aos meios judiciais.

Deve dizer-se que, confirmem-se ou não, em concreto, a insegurança e o receio ou mesmo a relutância referidas, elas não são de estranhar num caso como o dos autos.

Por mais que estas justificações sirvam, justamente, para permitir ao titular de um imóvel ou outro bem sujeito a registo que não disponha de título comprovativo o seu direito, obter a primeira inscrição de aquisição do bem a seu favor no registo predial, o facto é que o direito de propriedade em causa adquirido por usucapião incide sobre parcela resultante de divisão de prédio rústico com uma área inferior à unidade de cultura – numa palavra: é um direito cuja existência é controversa.

De facto, existe uma conhecida divergência na jurisprudência portuguesa quanto à possibilidade de aquisição por usucapião de direitos de propriedade sobre prédios como o dos autos, ou seja, prédios rústicos com área inferior à unidade de cultura, invocando alguns que isso contraria normas de natureza imperativa.

Circunscrevendo a análise à jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça. discute-se, mais precisamente, se a aquisição do direito de propriedade é admissível, rejeitando parte da jurisprudência a possibilidade quando estejam em causa normas de carácter imperativo, designadamente, o artigo 1376.º, n.º 1, do CC em conjugação com o artigo 1379.º, n.º 1, do CC na sua redacção actual (i.e., depois da alteração pela Lei n.º 111/2015, de 27 de Agosto13), e admitindo-a de forma tendencialmente irrestrita outra parte.

Veja-se, para ilustrar a primeira corrente, o Acórdão de 26 de Janeiro de 2016 (Proc. 5434/09.2TVLSB.L1.S1), em que se concluiu:

Na ausência de demonstração do cumprimento das limitações impostas pelas normas administrativas de ordenamento do território relativas à validade das operações urbanísticas como o loteamento ou o destaque (artigos 3.º, alínea a), 5.º, 53.º, n.º 1 e 56.º, n.º 1, do Regime Jurídico dos Loteamentos Urbanos, republicado pelo Decreto-Lei n.º 334/95, de 28-12, aplicáveis na data da celebração da escritura), não podem os actos de posse baseados num facto proibido por essas leis permitir uma aquisição por usucapião na medida em que contrários a uma disposição de carácter imperativo (artigo 294.º do Código Civil), sendo nula a escritura de justificação que a titula”.

Veja-se ainda, admitindo a hipótese de aquisição do direito de propriedade mas apenas no quadro da anterior redacção do artigo 1376.º, n.º 1, do CC, o Acórdão de 3 de Maio de 2018 (Proc. 7859/15.5T8STB.E1), onde se afirma:

A usucapião, como forma originária de adquirir, pode incidir sobre parcela de terreno inferior à unidade de cultura, contrariando o regime previsto no art. 1379.º, n.º 1, do CC, na versão anterior à alteração legal introduzida pela Lei n.º111/2015, de 27-08

E, na mesma linha, o Acórdão de 18 de Junho de 2019 (Proc. 1786/17.9T8STB.E1.S1), em que se diz:

Mostra-se válida a posse sobre parcelas inferiores à unidade de cultura vigente que levou à usucapião do direito de propriedade sobre os terrenos, invocada nas escrituras de justificação notarial, não obstante ter subjacente a violação do então vigente artigo 1379.º, n.º 1, do Código Civil (na redacção anterior à alteração dada pela Lei 111/2015, de 27-08)”.

Veja-se, para ilustrar a segunda corrente, o Acórdão de 21 de Fevereiro de 2019 (Processo n.º 7651/16.0T8STB.E1.S3), do qual consta:

Mesmo sendo nulo o fracionamento de terreno apto para a cultura que despoletou o início da posse, tal vício não é suscetível de excluir a faculdade de usucapir por parte do possuidor de parcela emergente dessa divisão ilegal.

Não se descortina, entre as normas legais reguladoras do fracionamento de prédios rústicos, alguma que negue a possibilidade de adquirir por usucapião as parcelas de terreno que venham a ser objeto de posse mercê de fracionamento ilegal de prédio rústico.

Igualmente não tem essa natureza o art. 1376º do CC, pelo não existe a “disposição em contrário” que, nos termos do art. 1287º, pode obstar a que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculte ao possuidor a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação”.

Decisivo para comprovar a divergência jurisprudencial de que se fala é, por fim, o recente Acórdão da Formação deste Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Maio de 2023 (Proc. 81/20.9T8TMR.E1.S2), em que, a propósito da admissibilidade do recurso num quadro factual semelhante ao dos autos, se observa:

Nos autos discute-se, no essencial, se o incumprimento de regras de natureza urbanística obsta à aquisição originária do direito de propriedade por via da usucapião, num caso, como o dos autos, em que está em causa a aquisição por usucapião de parte de um prédio, resultante de fracionamento ilegal.

Ora, muito embora a matéria em discussão nos autos tenha sido já objeto de tratamento por este Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente, nos Acórdãos de 21 de fevereiro de 2019 (Processo n.º 7651/16.0T8STB.E1.S3), de 28 de março de 2019 (Processo n.º 7604/16.8T8STB.E1.S1), de 30 de abril de 2019 (Processo n.º 1293/09.3TBLRA.C1.S2) e de 18 de junho de 2019 (Processo n.º 1786/17.9T8STB.E1.S1), a verdade é que, como resulta à saciedade das alegações de recurso em análise, a matéria trazida à discussão é intrincada e implica operações exegéticas de complexidade superior.

Por outro lado, cumpre afirmar que a matéria atinente às consequências decorrentes das alterações introduzidas pela Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto, ao n.º 1 do art.º 1379º do Código Civil não se mostra, a nosso ver, tratada pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de forma expressiva, uniforme e suficientemente esclarecedora.

De facto, muito embora o Supremo Tribunal de Justiça já tenha abordado esta específica matéria, a verdade é a resposta dada à questão não se nos afigura unânime, havendo quem propugne o entendimento de que a nulidade do fracionamento de prédio rústico não obsta à aquisição do direito de propriedade por usucapião - Acórdãos de 21 de fevereiro de 2019 (Processo n.º 7651/16.0T8STB.E1.S3) e de 30 de maio de 2019 (Processo n.º 916/18.8T8STB.E1.S1) - e quem entenda que a aquisição do direito de propriedade por usucapião apenas se mostra possível se os factos respetivos ocorrerem antes da entrada em vigor da alteração do n.º 1 do art.º 1379º do Código Civil, operada pela Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto - Acórdãos de 30 de abril de 2019 (Processo n.º 1293/09.3TBLRA.C1.S2), de 18 de junho de 2019 (Processo n.º 1786/17.9T8STB.E1.S1), de 1 de março de 2018 (Processo n.º 1011/16.0TBSTB.E1.S1) e de 3 de maio de 2018 (Processo n.º 7859/15.5T8STB.E1.S1).

Assim, não sendo inédito, o tema em discussão aos autos gera, ainda assim, clivagens jurisprudenciais que importa atenuar, o que, aliado à complexidade das matérias em discussão, resulta na evidente relevância jurídica da questão a apreciar”.

Isto é quanto basta para se considerar demonstrado que o pedido de declaração judicial da existência do direito de propriedade sobre a parcela se reveste de indiscutível utilidade prática para os autores.

Em conclusão, a incerteza que está na origem da propositura da acção, na parte relativa aos pedidos do direito de propriedade invocado pelos autores, apresenta as características de objectividade e de gravidade exigíveis para que se configure interesse processual, devendo concluir-se que eles são titulares de um interesse sério e atendível, que justificava o seu recurso à acção na parte em que pedem a declaração da existência do direito de propriedade.

Esclareça-se, a terminar, que para esta conclusão em nada releva o facto de, aparentemente, não ser possível obter a justificação notarial e de a acção se apresentar, em concreto, como o único meio para os autores obterem o título comprovativo do seu direito. A utilidade a que se associa o interesse processual não reside, com efeito, na necessidade, em concreto, da acção para o resultado pretendido pelo autor (faltando, por conseguinte, interesse processual quando existam meios alternativos); o que importa é tão-só a aptidão do meio jurisdicional para a satisfação do interesse do autor14. E não há dúvida de que isso se verifica.


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III. DECISÃO

Pelo exposto, concede-se provimento à revista e revoga-se o Acórdão recorrido, julgando-se verificado o pressuposto do interesse processual relativamente aos pedidos formulados pelos autores nas alíneas a), b) e e) e determinando-se o prosseguimento conforme dos autos.


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Custas a final.

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Lisboa, 25 de Janeiro de 2024

Catarina Serra (relatora)

Emídio Santos

Afonso Henrique

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1. Sobre os pressupostos processuais cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, volume I, Lisboa, AAFDL, 2022, pp. 51 e s.

2. Explicam Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio e Nora (Manual de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1985, p. 179) a expressão “interesse em agir” é “importada” da doutrina italiana, usando, por seu turno, a doutrina alemã, com maior propriedade, a expressão “necessidade de tutela judiciária” (Rechtsschutzbedürfnis).

3. Uma vez que a lei não lhe faz referência directa.

4. Cfr. José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º - Artigos 362.º a 626.º, Coimbra, Almedina, 2018 (3.ª edição), p. 583.

5. O mesmo percurso é feito pelo Tribunal a quo. Diz-se no Acórdão recorrido: “Formularam pedidos típicos de uma ação de simples apreciação positiva (quando pedem o reconhecimento do seu direito de propriedade – alíneas a), b) e e) do petitório) e pedidos típicos da ação de condenação (quando pedem a condenação dos Réus a reconhecerem esse direito – alíneas c), d), e f), do petitório)”.

6. Cfr. Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, cit., p. 180 (destaques dos autores).

7. Cfr. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, cit., p. 182 (destaques dos autores).

8. Parafraseia-se aí José de Oliveira Ascensão, “Acção de reivindicação”, in: Revista da Ordem dos Advogados, 1997, p. 516.

9. Esta é uma visão, ao que tudo indica, plenamente partilhada pelo Tribunal a quo. Diz-se no Acórdão recorrido: “Embora não seja absolutamente relevante para a decisão da questão controvertida em apreciação, sempre se recorda que, como referia, ANSELMO DE CASTRO (Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, vol. I p.. 126, nota 1), é normal, nas praxes forenses, em pedidos de mera declaração, concluir-se pela condenação do réu a ver reconhecido o direito ou relação jurídica. Fácil é ver, porém, que na realidade não há condenação alguma, visto não poder falar-se numa obrigação de reconhecimento de direito de outrem”.

10. Cfr. Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, cit., p. 186 (destaques dos autores).

11. Cfr. José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, ob. cit., loc. cit.

12. Segue-se, uma vez mais, Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, cit., pp. 186-187.

13. A Lei n.º 111/2015 estabelece o Regime Jurídico da Estruturação Fundiária, altera o Código Civil, e revoga os Decretos-Leis n.ºs 384/88, de 25 de Outubro, e 103/90, de 22 de Março, e alterou, entre outras, a redacção do artigo 1379.º, n.º 1, do CC. Onde se dizia: “[s]ão anuláveis os actos de fraccionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º” passou a dizer-se: “[s]ão nulos os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º”.

14. Observam Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio e Nora (Manual de Processo Civil, cit., pp. 180-181) que, “[r]elativamente ao autor, tem-se entendido que a necessidade de recorrer às vias judiciais, como substractum do interesse processual, não tem de ser uma necessidade absoluta, a única ou a última via aberta para a realização da pretensão formulada”. Mais desenvolvidamente, explica Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, volume I, cit., pp. 366-367) que “[a] utilidade da tutela pode referir-se à necessidade de um meio processual concreto para obter o resultado (‘utilità processuale’); nesta hipótese, falta o interesse processual se a parte não necessitar do meio processual concreto para conseguir o resultado, ou seja, se o puder alcançar pela via extraprocessual ou evitando uma duplicação de processos; a utilidade da tutela pode respeitar à utilidade do resultado a obter (‘utilità sostanziale’), nesta situação, o interesse processual só falta se o resultado a obter for, em abstracto, inútil. Qualquer das referências do interesse processual é doutrinariamente aceitável (…) no direito português, a desnecessidade do meio processual concretamente utilizado pela parte não implica a falta de interesse processual, pelo que resta referenciar o interesse processual à utilidade, em abstracto, do resultado a obter pelo requerente da tutela (ou seja, à referida ‘utilità sostanziale’. Em suma: a necessidade da tutela processual concretamente solicitada pela parte nãoé relevante para aferir o interesse processual; o que é relevante é se a tutela, em abstracto, é útil ou inútil. Portanto, o interesse processual fica assegurado sempre que, em abstracto, a tutela jurisdicional seja útil”(destaques do autor). O autor critica esta solução do direito positivo, atendendo, sobretudo, a que ela conduz a indesejáveis casos de duplicação de acções.