Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
20914/21.3T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO DE LIMA GONÇALVES
Descritores: GARANTIA BANCÁRIA
GARANTIA AUTÓNOMA
CLÁUSULA ON FIRST DEMAND
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
INTERPRETAÇÃO DA VONTADE
RELAÇÃO JURÍDICA SUBJACENTE
CONTRATO DE CONCESSÃO COMERCIAL
Data do Acordão: 03/12/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

Se a garantia bancária subscrita dizia que “A CEMG deverá pagar, à primeira solicitação, no prazo máximo de 10 (dez) dias úteis, contados da data da receção do pedido formulado por escrito, enviado por carta registada com aviso de receção para a CEMG, até ao montante garantido identificado, quaisquer verbas que a IP Património solicite, sem que caiba à CEMG saber do fundamento ou ilegitimidade de tal pretensão, ainda que se verifique qualquer objeção da garantia. (…) A presente garantia poderá ser acionada, parcialmente, por uma ou mais vezes, permanecendo sempre em vigor até atingir o seu montante máximo ou até ao final do respetivo prazo (…). O pedido por escrito deverá ser apresentado, por carta registada com aviso de receção, pela IP Património no prazo máximo de 15 (quinze) dias contados da ocorrência do incumprimento das obrigações assumidas pela garantida perante a IP Património, prazo além do qual a reclamação não poderá ser aceite pela CEMG” e o credor emitiu, em 18/11/2020, várias faturas todas com vencimento em 18/12/2020 (e outra, com vencimento em 30/01/2021), tendo acionado o garante por carta datada de 22/12/2020, recebida pela ré em 28/12/2020, não foi a garantia acionada fora de tempo, nem pode o garante recusar o seu pagamento com fundamento da resolução do contrato base, a que o garante é estranho (terceiro) – os pagamentos pedidos respeitam a obrigações da subconcessionária assumidas no contrato subjacente à garantia e abrangidas pela garantia, mesmo que posteriores à cessação do contrato subjacente, mas com ele relacionados.

Decisão Texto Integral:

Acórdão


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

1. IP PATRIMÓNIO – ADMINISTRAÇÃO E GESTÃO IMOBILIÁRIA, S.A. intentou a presente ação declarativa, com forma de processo comum, contra CAIXA ECONÓMICA MONTEPIO GERAL, CAIXA ECONÓMICA BANCÁRIA, S.A. pedindo seja a Ré condenada a pagar à Autora a quantia de €70.500,00 (setenta mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora vencidos, no valor de €3.501,82, e vincendos à taxa legal, até ao efetivo e integral pagamento.

Os fundamentos da petição inicial são, em síntese, os seguintes:

- No exercício da sua atividade comercial, em 03.06.2016, pelo prazo de 5 (cinco) anos, retroagindo os seus efeitos a 27.04.2016, a Autora celebrou com a Mediata Gestão de Estacionamento, Lda. um contrato de subconcessão de uso privativo de parque de estacionamento na Estação ..., mediante remuneração mensal fixa de €5.000,00 e mensal variável de 10% da receita obtida com a exploração do parque de estacionamento;

- As partes no contrato de subconcessão acordaram, ainda, na prestação pela Mediata, para garantia do exato e pontual cumprimento das obrigações que assumiu com a celebração do referido contrato, de uma caução no valor de €70.500,00 (setenta mil e quinhentos euros), mediante garantia bancária autónoma e irrevogável, à primeira solicitação, a favor da IP Património – Administração e Gestão Imobiliária, S.A., garantia que foi assumida pela ora Ré;

- Em consequência do estipulado entre as partes, foi emitida pela aqui Ré, em nome e a pedido da Empresa G..., a favor da Autora, garantia bancária com o n.º ...7-1, datada de 15/11/2016, da qual consta que: “Assim, por força desta garantia, obriga-se a CEMG a pagar à primeira solicitação da IP Património, sem interferência da garantida e observando o montante acima estabelecido sem que a IP Património, tenha de justificar o pedido e sem que a CEMG possa invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com o contrato acima identificado ou com o cumprimento das obrigações que a garantia assume com a celebração do contrato, as importâncias que a IP Património, lhe solicite, sendo-lhe vedado deixar de o fazer sob qualquer pretexto ou fundamento (…). A CEMG deverá pagar, à primeira solicitação, no prazo máximo de 10 (dez) dias úteis, contados da data da receção do pedido formulado por escrito, enviado por carta registada com aviso de receção para a CEMG, até ao montante garantido identificado, quaisquer verbas que a IP Património solicite, sem que caiba à CEMG saber do fundamento ou ilegitimidade de tal pretensão, ainda que se verifique qualquer objeção da garantia. (…) o pedido por escrito deverá ser apresentado, por carta registada com aviso de receção, pela IP Património no prazo máximo de 15 (quinze) dias contados da ocorrência do incumprimento das obrigações assumidas pela garantida perante a IP Património, prazo além do qual a reclamação não poderá ser aceite pela CEMG”;

- A empresa garantida deixou de cumprir e, por carta de 01/09/2020, foi-lhe comunicado estarem em dívida faturas no valor de € 130.831,89, devendo proceder ao seu pagamento em 8 dias, sob pena de resolução; na mesma carta foi-lhe pedida a receita obtida no parque no mês de julho e que, de acordo com o n.º 5 da cl. 5.ª do contrato, devia ter enviado até 10 de agosto;

- Por se encontrarem vencidas e não pagas faturas no valor de € 130.831,88, a Autora resolveu o contrato de subconcessão, nos termos da cláusula 16.ª/2 do contrato, por carta que remeteu à Empresa G..., datada de 08.10.2020, que foi recebida em 14.10.2020;

- Na mesma carta de 08.10.2020, interpelou a devedora para remeter à Autora as receitas de julho e agosto de 2020, para cálculo dos pagamentos devidos relativamente aos referidos meses, receitas que deviam ter sido comunicadas até 10 de agosto e 10 de setembro, respetivamente;

- Só por cartas datadas de 10.11.2020, 11.11.2020 e 28.12.2020, a Empresa G... forneceu à Autora os mapas com a discriminação das receitas obtidas entre agosto e novembro de 2020 com o parque de estacionamento;

- Uma vez apurada a remuneração variável correspondente aos meses de julho a novembro de 2020, a Autora emitiu as seguintes faturas, que não foram pagas, na sua data de vencimento, nem posteriormente:

i. Ft. …3405 de 18.11.2020, com vencimento em 18.12.2020, no valor de €16.736,52, correspondente a 10% das receitas de julho de 2020;

ii. Ft. …3406 de 18.11.2020, com vencimento em 18.12.2020, no valor de €17.701,29, correspondente a 10% das receitas de agosto de 2020;

iii. Ft. …3407 de 18.11.2020, com vencimento em 18.12.2020, no valor de €19.162,91, correspondente a 10% das receitas de setembro de 2020;

iv. Ft. …3408 de 18.11.2020, com vencimento em 18.12.2020, no valor de €18.474,80, correspondente a 10% das receitas de outubro de 2020;

v. Ft. …3468 de 31.12.2020, com vencimento em 30.01.2021, no valor de €16.036,85, correspondente a 10% das receitas de novembro de 2020;

- Em virtude do não pagamento por parte da Empresa G... no prazo de vencimento (18/12/2020) das faturas n.ºs …3405, …3406, …3407 e …3408, todas emitidas em 18/11/2020, a Autora notificou a Ré para efeitos de acionamento da referida garantia bancária pelo montante máximo garantido, por carta datada de 22/12/2020 e recebida pela Ré em 28.12.2020, fazendo-se acompanhar do título da garantia, das ditas faturas vencidas e não pagas pela Mediata e dos extratos de conta corrente.

2. Citada, a Ré veio contestar, invocando a extemporaneidade do acionamento da garantia, porque posterior à carta de resolução remetida ao ordenante.

Pugnou pela improcedência da ação com a sua consequente absolvição do pedido.

3. Findos os articulados, foi realizada audiência prévia na qual foi proferido despacho saneador e dada a palavra para alegações, com vista ao conhecimento do mérito da causa.

4. Em seguida foi proferida sentença absolutória, com a seguinte fundamentação de direito:

«Como é consabido, a garantia bancária é o contrato (unilateral e não sinalagmático) pelo qual uma instituição bancária se obriga a pagar certa quantia em dinheiro ao beneficiário no caso de invocada inexecução ou má execução de um contrato-base.

Conforme escrevem Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, in “Garantias de Cumprimento”, Almedina, 1994, p. 49-50, “a garantia bancária ou autónoma implica a concessão eventual de um crédito equivalente ao montante garantido, mediante uma contrapartida. O garante recebe uma contraprestação para, na eventualidade de ocorrência de certos factos, pagar uma quantia a terceiro, constituindo-se credor do garantido por essa importância. A garantia representa uma determinada soma em dinheiro, independentemente na natureza da obrigação assumida. O garante, perante o credor, responsabiliza-se pelo pagamento de uma obrigação e não pelo cumprimento de uma dívida alheia (do garantido); não se trata de garantir o cumprimento da obrigação de devedor mas antes de assegurar o interesse económico do credor beneficiário da garantia”.

Ou seja, o garante assegura ao beneficiário certo resultado – o recebimento de certa quantia em dinheiro – e terá de proporcionar-lhe esse resultado, desde que este invoque a verificação do evento garantido (o incumprimento da obrigação do mandante), sem que o garante possa discutir essa alegação, nomeadamente, invocando exceções de que poderia prevalecer-se o garantido.

Daí chamar-se de garantia autónoma, já que, contrariamente ao que sucede na fiança e até no aval, não é acessória ou dependente da obrigação garantida, sendo ao invés autónoma da dívida que garante, na medida em que o garante não pode invocar em sua defesa quaisquer meios relacionados com o contrato garantido. Com a prestação dessa garantia visa-se, precisamente, colocar o beneficiário ao abrigo do risco de incumprimento do contrato de base, proibindo o garante de invocar exceções relativamente a esse contrato.

In casu, é pacífico que a ora Ré emitiu uma garantia bancária a favor da ora Autora, a pedido de determinada Sociedade sua cliente e Subconcessionária desta, pela qual declarou obrigar-se a pagar à primeira solicitação da ora Autora, sem que esta tenha de justificar o pedido e sem que ela possa invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com o contrato acima identificado ou com o cumprimento das obrigações que a garantia assume.

Todavia, nos termos da mesma Garantia, que podia ser acionada parcialmente, por uma ou mais vezes, o pedido do seu acionamento deverá ser feito, por escrito, no prazo máximo de 15 dias contados da ocorrência do incumprimento das obrigações assumidas pela garantida perante a ora Autora, “prazo além do qual a reclamação não poderá ser aceite pela CEMG”.

Ou seja, a garantia prestada previa, nos seus próprios termos, um determinado prazo para o seu acionamento (total ou parcial), sem que a verificação, ou não, de tal condição se reporte a qualquer exceção ou meio de defesa relativos ao contrato base.

Assim, a informação pedida com vista à verificação desta “condição” (temporal) não contende com a relação de base, antes resultando dos próprios termos da Garantia em causa.

Por outras palavras, a exigência de prova (da data) do incumprimento do ordenante não se relaciona com o contrato base (em relação ao qual o garante é alheio) mas com o próprio contrato de garantia.

Resulta demonstrado que por carta de 08 de outubro de 2020, recebida em 14 de outubro de 2020, a Autora declarou a resolução do contrato base, e fê-lo na sequência de duas comunicações anteriores que davam já nota do incumprimento - num valor total de € 130.831,88 - e que justificaram, por isso, a consideração deste como definitivo e a resolução.

Acresce que, nos próprios termos da declaração de resolução, os efeitos desta produziam-se 30 dias após a receção da carta.

Por sua vez, o pedido de acionamento da Garantia foi feito, por carta, em 22/12/2020, recebida em 28/12/2020, com referência a faturas emitidas em data posterior aos efeitos da resolução do contrato base.

Ora, sendo certo que as faturas não são fonte de obrigação, mas antes o contrato ao abrigo do qual as mesmas são emitidas, e que, no caso, tal contrato foi declarado resolvido por incumprimento definitivo com efeitos a 14 de novembro de 2020, é fora de dúvidas que quando é feito o pedido de acionamento da Garantia - 22/12/2020 - se mostrava já ultrapassado o prazo máximo de 15 dias na mesma fixado para o efeito, sendo, pois, lícito, à ora Ré “recusar” a reclamação.

Defende a Autora que a Garantia não exclui e, portanto, também abrange, a satisfação das “obrigações/quantias que continuam a vencer-se após a resolução do contrato”. Salvo o devido respeito, após a resolução do contrato base não há como continuar a ter obrigações “vincendas”. Conforme já dito supra, a emissão de faturas não é fonte de obrigação! A fonte de obrigação será o contrato com base no qual tais faturas são emitidas. Questão diversa será a da “certeza” do valor da dívida, em termos de se mostrar líquido o valor devido (sempre ao abrigo do contrato base), cuja exigibilidade, em todo o caso, advém do incumprimento já manifestado.

Nesta conformidade, conclui-se, pela improcedência da ação.».

5. Inconformada com esta decisão, a Autora interpôs recurso de apelação.

6. O Tribunal da Relação de Lisboa veio a proferir Acórdão, com o seguinte dispositivo:

“Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação procedente por provada, revogando a sentença recorrida e condenando a ré a pagar à autora o montante de €74.001,82 (setenta e quatro mil e um euros, e oitenta e dois cêntimos), acrescido de juros sobre o capital de €70.500,00, vencidos desde a propositura da ação e vincendos, à taxa legal supletiva aplicável, até efetivo e integral pagamento.”

7. Inconformada, a Ré veio interpor recurso de revista, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

I. Por carta datada de 2020.10.08, recebida em 14 de outubro de 2020.10.14, a recorrida declarou a resolução do contrato base.

II. Resolução essa considerada operante, 30 dias após a receção da carta: em 2020.11.14.

III. Operando plenamente a resolução contratual, ocorre necessariamente uma destruição da relação contratual, tendo pretendido a recorrida, por acto de vontade expresso, regressar as partes à situação em que elas se encontrariam se o contrato não tivesse sido celebrado.

IV. A resolução é equiparada, no ordenamento jurídico nacional, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico.

V. Após a resolução do contrato base não há como continuar a ter obrigações “vincendas”.

VI. A emissão de faturas não é fonte de obrigação.

VII. A fonte de obrigação será o contrato com base no qual tais faturas são emitidas.

VIII. Questão diversa será a da “certeza” do valor da dívida, em termos de se mostrar líquido o valor devido (sempre ao abrigo do contrato base), cuja exigibilidade, em todo o caso, advém do incumprimento já manifestado.

IX. Distinguindo-se claramente, na obrigação contratual, os dois momentos – “vencimento” e “liquidação”, dúvidas não podem existir que, a sua exigibilidade nunca dependeu da definição do seu quantum, mas sempre logicamente a precedeu.

X. Em conformidade, a garantia bancária foi accionada, pela recorrida, extemporaneamente.

XI. Deste modo, a decisão recorrida, viola, entre outros, os preceitos contidos nos artigos 432.º e segs. do Código Civil.

8. A Autora contra-alegou, pugnando pelo infundado da revista, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

“1) A garantia bancária accionada pela Recorrida é uma garantia bancária on first demand, autónoma, no quadro da qual o garante, ora Recorrente, não pode invocar os meios de defesa que poderiam ser invocados pelo garantido.

2) A Recorrente defende que a resolução operada em 14.10.2020 extinguiu a obrigação de o subconcessionário pagar os seus débitos ainda não liquidados à Recorrida, mesmo que estes só pudessem ser liquidados após a data da resolução e mesmo que a subconcessionária não tenha enjeitado o seu dever de enviar os mapas de receitas dos meses que precediam a data da resolução.

3) Pretender que a exigibilidade da quantia em causa “nunca dependeu da definição do seu quantum, mas sempre logicamente a precedeu” é simplesmente usar um argumento de má fé, porque é óbvio para quem das coisas tenha um entendimento são que a exigibilidade de uma obrigação expressa em moeda corrente dependente de informação a prestar por terceiro, como era o caso.

4) É por isso que o Tribunal da Relação de Lisboa bem decidiu que o vencimento da obrigação garantida só ocorreu com a sua liquidação, em Novembro de 2020, mesmo que esta tenha ocorrido apenas após a resolução contratual. Não deixam essas obrigações de ser emergentes do contrato-base e, de resto, de serem dele emergentes em momento anterior à resolução e de terem sido incumpridas, apenas, em finais de Novembro de 2020, porque só nessa data foram liquidadas, facturadas e não pagas.

5) O Acórdão recorrido não merece qualquer reparo.”

9. Cumpre apreciar e decidir.

II. Delimitação do objeto do recurso

Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que, dentro dos preditos parâmetros, da leitura das conclusões recursórias formuladas pelo R. / ora Recorrente decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito à questão de saber se a garantia bancária foi acionada dentro dos prazos e se devia ser honrada.

III. Fundamentação

1. As instâncias deram como provados os seguintes factos (com as alterações introduzidas pelo tribunal da relação):

1.1. A Autora dedica-se à gestão de patrimónios e empreendimentos imobiliários, próprios ou alheios; aquisição e alienação de bens imóveis e constituição de direitos sobre os mesmos, bem como aquisição de prédios para revenda e a gestão e exploração de estações e equipamentos associados, incluindo a respetiva exploração comercial; prestação de serviços de gestão dos imóveis.

1.2. No exercício da sua atividade comercial, a Autora celebrou com a Mediata Gestão de Estacionamento, Lda. um contrato de Subconcessão de Uso Privativo de Parque de Estacionamento na ..., o Contrato n.º 36/16/CM/IPP, nos termos do qual a Autora conferiu à Empresa G... o direito de utilizar, por sua conta e risco, o Parque de Estacionamento sito na ... pertencente ao domínio público ferroviário.

1.3. A referida subconcessão tinha por objeto a exploração e gestão do Parque de Estacionamento automóvel para viaturas ligeiras, englobando ainda as atividades e os serviços complementares, acessórios, preparatórios, adequados, necessários e/ou indispensáveis à execução das atividades e serviços descritos nas Condições Técnicas e Comerciais.

1.4. O referido contrato foi celebrado em 03.06.2016, pelo prazo de 5 (cinco) anos, retroagindo os seus efeitos a 27.04.2016.

1.5. Nos termos da cláusula 5.ª do Contrato, as partes acordaram o pagamento de uma remuneração mensal fixa de € 5.000,00 e uma remuneração mensal variável correspondente a 10% da receita obtida com a exploração do Parque de Estacionamento deduzida da renda mensal fixa [constando, além do mais da citada cláusula que «5 – O SUBCONCESSIONÁRIO obriga-se a enviar à IP PATRIMÓNIO, até ao décimo dia do mês M+1, mapa com a discriminação da receita total (IVA incluído) obtida com os parques de estacionamento, relativa ao mês M» - a parte dentro dos presentes parêntesis retos foi agora acrescentada].

1.6. As partes acordaram ainda na prestação, para garantia do exato e pontual cumprimento das obrigações que a Subconcessionária assumiu com a celebração do referido contrato, de uma caução no valor de € 70.500,00 (setenta mil e quinhentos euros), mediante garantia bancária autónoma e irrevogável, a favor da IP Património – Administração e Gestão Imobiliária, S.A., conforme feito constar da cláusula 7.ª/1 do Contrato.

1.7. A Autora remeteu à Empresa Mediata Gestão de Estacionamento, Lda. uma carta, datada de 03.06.2020, solicitando a regularização, no prazo máximo de 8 dias, de determinada quantia referente a determinadas faturas “em aberto e sem pagamento”.

1.8. Por carta de 14.08.2020, a Subconcessionária forneceu à Autora os mapas com a discriminação das receitas obtidas no mês de Julho de 2020 com a exploração do Parque de Estacionamento.

1.9. Por carta datada de 01.09.2020, a Autora solicitou à Subconcessionária, no prazo máximo de 8 dias, o pagamento não efetuado a que se referia a carta de 3 de junho assim como o referente a faturas emitidas posteriormente, num total de € 130.831,89.

1.10. Por carta remetida à Mediata Gestão de Estacionamento, Lda., datada de 08.10.2020, que foi recebida em 14.10.2020, a Autora declarou que:

“Na sequência das nossas comunicações datadas de 3 de junho de 2020 e 1 de setembro do mesmo ano (…) vimos pela presente notificar V. Exas da resolução do Contrato de Subconcessão (…) por incumprimento culposo e definitivo do mesmo, ao abrigo do nº 2 da sua Cláusula Décima Sexta.

Os efeitos da resolução do Contrato (…) produzem-se 30 (trinta) das após a receção da presente carta (…).

(…)

Sem prejuízo da resolução e desocupação ora notificadas, encontra-se na presente data por liquidar o montante que foi possível calcular nos termos contratuais, na quantia de € 130.831,88 (cento e trinta mil oitocentos e trinta e um euro e oitenta e oito cêntimos), valor este deverá ser liquidado no prazo de 8 (oito) dias após a receção da presente carta, conforme extrato da conta corrente que se anexa.

No mesmo prazo deverão V. Exas remeter a IP Património S.A. as receitas de julho e agosto de 2020, para cálculo dos pagamentos que nos são devidos relativamente aos referidos meses, e caso não o façam, a IP Património procederá à fiscalização da receita, nos termos da Cláusula Sexta do mencionado Contrato de Subconcessão. (…)”.

1.10-A. Por cartas datadas de 10.11.2020, 11.11.2020 e 28.12.2020, a Empresa G... forneceu à Autora os mapas com a discriminação das receitas obtidas em agosto e setembro (carta de 10 de novembro), em outubro (carta de 11 de novembro) e em novembro (carta de 28 de dezembro) de 2020 com o parque de estacionamento.

1.11. A Autora emitiu, em 18/11/2020, as faturas nº ZFP3 1/...05, nº ZFP3 1/...06, nº ZFP3 1/...07 e nº ZFP3 1/...08, com os valores de €16.736,52, €17.701,29, €19.162,91 e €18.474,80, respetivamente, todas com vencimento em 18/12/2020, referentes aos meses de julho, agosto, setembro e outubro de 2020, respetivamente; e, em 31/12/2020, emitiu a fatura nº ZFP3 1/...68, com vencimento em 30/01/2021, no valor de €16.036,85, referente ao mês de novembro de 2020.

1.12. Nos termos da “Garantia Bancária à Primeira Solicitação Nº...7-1, datada de 15/11/2016, emitida pela aqui Ré, em nome e a pedido da M..., S.A. a favor da Autora, “por força desta garantia, obriga-se a CEMG a pagar à primeira solicitação da IP Património, sem interferência da garantida e observando o montante acima estabelecido sem que a IP Património, tenha de justificar o pedido e sem que a CEMG possa invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com o contrato acima identificado ou com o cumprimento das obrigações que a garantia assume com a celebração do contrato, as importâncias que a IP Património, lhe solicite, sendo-lhe vedado deixar de o fazer sob qualquer pretexto ou fundamento, bem como a responder, respeitando o mesmo montante, pelas despesas decorrentes da medida judicial a que aquela entidade porventura se veja obrigada a recorrer para demandar a observância dos seus direitos.

A CEMG deverá pagar, à primeira solicitação, no prazo máximo de 10 (dez) dias úteis, contados da data da receção do pedido formulado por escrito, enviado por carta registada com aviso de receção para a CEMG, até ao montante garantido identificado, quaisquer verbas que a IP Património solicite, sem que caiba à CEMG saber do fundamento ou ilegitimidade de tal pretensão, ainda que se verifique qualquer objeção da garantia. (…)

A presente garantia poderá ser acionada, parcialmente, por uma ou mais vezes, permanecendo sempre em vigor até atingir o seu montante máximo ou até ao final do respetivo prazo (…).

O pedido por escrito deverá ser apresentado, por carta registada com aviso de receção, pela IP Património no prazo máximo de 15 (quinze) dias contados da ocorrência do incumprimento das obrigações assumidas pela garantida perante a IP Património, prazo além do qual a reclamação não poderá ser aceite pela CEMG”.

1.13. A Autora enviou à ora Ré uma carta, datada de 22/12/2020, recebida por esta em 28/12/2020, com o pedido de acionamento da dita Garantia Bancária, pelo montante máximo garantido, invocando a falta de pagamento por parte da M..., S.A. no prazo de vencimento (18/12/2020) das faturas supra referidas (n.ºs ZFP3 1/...05, ZFP3 1/...06, ZFP3 1/...07 e ZFP3 1/...08), num total de € 72.075,52.

1.14. A Ré respondeu, por comunicação datada de 19/01/2021, referindo que “Nos termos da garantia bancária (…) deve V. Exa apresentar, no prazo máximo de 15 (quinze) após a data da verificação do incumprimento das obrigações assumidas pelo Ordenador e nosso cliente, o respetivo pedido de acionamento.

Nestes termos, solicitamos que nos informem a data do incumprimento das obrigações do Ordenador (…)”.

1.15. Em 01/02/2021, a Autora enviou nova carta para a Ré, transmitindo que o incumprimento das obrigações contratuais por parte do Ordenador data do dia 18 de dezembro de 2020.

1.16. No dia 09/02/2021, a Ré comunicou à Autora que “é necessário que nos informe e remeta informações e documentação sobre a data de incumprimento das obrigações”.

1.17. Em 25/02/2021, a Autora enviou nova carta para a Ré, transmitindo que “V. Exas encontram-se em mora”.

1.18. A Autora recebeu uma carta, datada de 30/03/2021, da Ré, com o seguinte teor: “(…) notamos que V. Exas não respondem ao solicitado nas nossas missivas anteriores, ou seja, não informam ou documentam a data de incumprimento pela M..., Lda. De facto, a M..., Lda. (M...) remeteu à CEMG cópia de V. carta datada de 2020-10-08 em que V. Exas comunicam a esta a resolução do contrato de subconcessão nº 36..., com efeitos 30 dias após a receção da mesma. (…) Assim sendo e pelo exposto, mantém a CEMG dúvidas quanto ao cumprimento por V. Exas do prazo de 15 dias para acionamento da garantia bancária, como contratualmente previsto. (…)”.

1.19. A Autora remeteu à Ré uma carta, datada de 20/04/2021, por via da qual insistiu, uma vez mais, para que esta procedesse ao pagamento do montante máximo garantido por referência às faturas emitidas em 18/11/2020.

1.20. Por carta de 04/05/2021, a Ré enviou nova carta para a Autora, transmitindo que mantém as dúvidas quanto ao cumprimento do prazo de 15 dias para acionamento da garantia já que desconhece a data de recebimento pela M... da carta de resolução do contrato, “data essa que se comprova pelo competente aviso de receção”.

2. A questão objeto do recurso é assim uma só: saber se a garantia bancária foi acionada dentro dos prazos e se devia ser honrada.

Para responder a esta questão o Acórdão recorrido analisou a relação estabelecida entre as partes, dizendo:

“A relação discutida nos autos respeita a uma garantia bancária autónoma.

A qualificação jurídica não constituiu matéria controvertida entre as partes.

A emissão de uma garantia autónoma pressupõe três negócios jurídicos distintos:

a) o contrato principal (também dito contrato subjacente ou contrato-base), do qual emergem as obrigações garantidas, e que é celebrado entre o credor garantido e o devedor, ordenante no contrato seguinte;

b) o contrato entre o devedor e o garante (contrato de cobertura), pelo qual este, mediante retribuição (comissão), se obriga a prestar a garantia autónoma; e

c) o contrato unilateral (assim o entende a doutrina maioritária, mas havendo também quem coloque a hipótese de negócio jurídico unilateral) de garantia autónoma, celebrado entre o garante e o credor, garantido, contrato de garantia propriamente dito (sobre a garantia autónoma e a estrutura negocial envolvente, v. entre outras obras adiante citadas L. Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias, 2.ª ed., Almedina, 2015, pp. 125-43.

In casu:

i. o contrato principal, subjacente ou contrato-base foi um contrato de subconcessão de exploração de um parque de estacionamento, celebrado entre a credora garantida – a ora autora IP Património – e a devedora (ordenante no contrato seguinte) – a sociedade M..., terceira nesta ação;

b) o contrato de cobertura celebrou-se entre a devedora M... e a garante Montepio, pelo qual esta se obrigou a prestar a garantia autónoma; e

c) o contrato de garantia propriamente dito, no caso, um contrato unilateral de garantia autónoma, foi celebrado entre a garante Montepio e a credora garantida IP Património.”

E passou a explicitar o que é uma garantia bancária autónoma e seu regime, com ajuda de posições doutrinárias, para, em seguida, aplicar o Direito aos factos provados:

“Resulta cristalinamente do facto 12 que estamos perante uma garantia bancária autónoma automática ou à primeira solicitação, também dita «on first demand» na expressão inglesa de uso generalizado.

Lê-se, entre o mais, no facto 12 que as partes intitularam o título de garantia como «Garantia Bancária à Primeira Solicitação Nº ...7-1», que pela mesma a CEMG obrigou-se «a pagar à primeira solicitação da IP Património, sem interferência da garantida e (…) sem que a IP Património, tenha de justificar o pedido e sem que a CEMG possa invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com o contrato acima identificado ou com o cumprimento das obrigações que a garantia assume com a celebração do contrato, as importâncias que a IP Património, lhe solicite, sendo-lhe vedado deixar de o fazer sob qualquer pretexto ou fundamento»; e que «A CEMG deverá pagar, à primeira solicitação, no prazo máximo de 10 (dez) dias úteis, contados da data da receção do pedido formulado por escrito, (…) sem que caiba à CEMG saber do fundamento ou ilegitimidade de tal pretensão, ainda que se verifique qualquer objeção da garantia

A discordância entre as partes, que permanece neste recurso, reporta-se à tempestividade do acionamento da garantia, pois o tribunal a quo julgou extemporânea essa demanda, ou seja, entendeu caducado o direito de acionar a garantia, com o que a autora, aqui recorrente, não se conforma, e bem.

Conforme resulta ainda do facto 12, em transcrição do título de garantia:

- a CEMG deveria pagar, à primeira solicitação, no prazo máximo de 10 (dez) dias úteis, contados da data da receção do pedido formulado por escrito, sem que lhe coubesse saber do fundamento ou ilegitimidade de tal pretensão;

- o pedido por escrito deveria ser apresentado, por carta registada com aviso de receção, pela IP Património no prazo máximo de 15 (quinze) dias contados da ocorrência do incumprimento das obrigações assumidas;

- a garantia podia ser acionada, parcialmente, por uma ou mais vezes, permanecendo sempre em vigor até atingir o seu montante máximo ou até ao final do respetivo prazo;

- a garantia era válida pelo prazo de 5 (cinco) anos a contar da data da sua emissão, salvo denúncia da CEMG, comunicada à IP Património mediante carta registada com aviso de receção ou por fax que deveria ser efetuada com uma antecedência de 30 (trinta) dias sobre o prazo em que se pretendia que a denúncia produzisse efeitos.

Como é sabido o contrato de subconcessão tinha uma remuneração fixa e uma remuneração variável. Esta só poderia ser calculada após a subconcessionária enviar à ora autora o mapa com a discriminação da receita total obtida com os parques de estacionamento, relativa a cada mês, o que tinha o dever de fazer até ao dia 10 do mês seguinte (facto 5).

A subconcessionária forneceu à autora o mapa com a discriminação das receitas obtidas em julho por carta de 14/08/2020 (facto 8); os mapas com a discriminação das receitas obtidas em agosto e setembro por carta de 10/11/2020; o mapa com a discriminação das receitas obtidas em outubro, por carta de 11/11/2020; e o mapa com a discriminação das receitas obtidas em novembro, por carta de 28/12/2020 (facto 10-A).

Nessa sequência, a autora emitiu, em 18/11/2020, as faturas nº ZFP3 1/...05, nº ZFP3 1/...06, nº ZFP3 1/...07 e nº ZFP3 1/...08, com os valores de €16.736,52, €17.701,29, €19.162,91 e €18.474,80, respetivamente, todas com vencimento em 18/12/2020, referentes aos meses de julho, agosto, setembro e outubro de 2020, respetivamente; e, em 31/12/2020, emitiu a fatura nº ZFP3 1/...68, com vencimento em 30/01/2021, no valor de €16.036,85, referente ao mês de novembro de 2020 (facto 11).

E, por carta datada de 22/12/2020, recebida pela ré em 28/12/2020, a autora acionou a Garantia Bancária, pelo montante máximo garantido, invocando a falta de pagamento por parte da M..., S.A. no prazo de vencimento (18/12/2020) das faturas supra referidas (n.ºs ZFP3 1/...05, ZFP3 1/...06, ZFP3 1/...07 e ZFP3 1/...08), num total de € 72.075,52 (facto 13).

A ré apenas tinha de pagar e não o fez. Por comunicação datada de 19/01/2021, a ré pediu que a autora informasse a data do incumprimento das obrigações da ordenadora (facto 14). Em 01/02/2021, a autora enviou nova carta para a ré, transmitindo que o incumprimento das obrigações contratuais por parte do ordenador data do dia 18 de dezembro de 2020 (facto 13).

Havia incumprimentos anteriores ao não pagamento das faturas ZFP3 1/...05, ZFP3 1/...06, ZFP3 1/...07 e ZFP3 1/...08. Incumprimentos que inclusivamente conduziram à resolução do contrato de concessão. Porém, as faturas em questão respeitam a obrigações da subconcessionária assumidas no contrato subjacente à garantia e abrangidas pela garantia. O facto de se terem vencido apenas após a cessação daquele contrato não exclui a sua natureza de obrigações emergentes daquele contrato-base.

O valor dos incumprimentos que fundamentaram o acionamento da garantia é superior ao montante máximo desta; e nada impedia a autora de acionar a garantia por eles (mesmo não a tendo acionada por incumprimentos anteriores).

Por tudo quanto se expôs, a ré devia ter pago quando interpelada pela autora, sendo o presente recurso totalmente procedente.”

A Recorrente entende que a decisão está eivada de erro de julgamento, porque o contrato base foi resolvido e já não existe base de acionamento da garantia bancária, por via do artigo 432.º do Código Civil.

A posição advogada não tem qualquer base de sustentação na relação garantia bancária autónoma (à primeira solicitação) que é a causa de pedir na presente ação.

Acionada uma garantia bancária autónoma (on first demand) o garante não pode recusar o seu pagamento indicando que a relação entre as partes deixou de existir, por via da resolução do contrato que conduziu à prestação da garantia, porque essa relação é totalmente estranha ao garante; a garantia é autónoma em relação a esse contrato base, que deve ser discutido entre os seus intervenientes, ainda que o mesmo tenha sido resolvido e existam acertos a efetuar na relação entre as partes, resultantes da resolução ou do tempo da sua vigência.

Não se verifica, na situação dos autos, nenhuma das situações de exceção ao cumprimento da garantia bancária autónoma à primeira solicitação reconhecidamente aceites, como em caso de fraude manifesta ou abuso evidente – Acórdão do STJ, de 21/03/2023 (processo 5007/21.1T8FNC-A.L1.S1):

“A autonomia da garantia, em contraponto com o contrato base, e que justifica que impõe que a entrega pelo garante da quantia garantida ao beneficiário dependa exclusivamente da verificação das condições definidas no contrato de garantia. “Não há, em princípio, interferência da convenção que liga o dador da ordem ao beneficiário da garantia. Assim, e segundo a doutrina maioritária, o garante não se pode furtar a entregar ao beneficiário a quantia pecuniária fixada alegando: a nulidade do contrato base resultante da violação de regras imperativas do ordenamento a que pertence o devedor; a sobrevinda impossibilidade de cumprimento do contrato; a compensação invocada pelo devedor perante o credor; o direito de retenção que assiste ao devedor face ao credor, etc” - Mónica Jardim, A Garantia Autónoma, Almedina, 2002, pp. 115-116.

A recusa de pagamento pode no entanto se exercida com base em elementos constantes do próprio contrato porque estes não são exteriores ao contrato de garantia mas firmam antes a sua regularidade e, ainda, quando o garante excecione o dolo, a má fé ou o abuso de direito verificados no recurso à garantia pelo beneficiário – a recusa de pagamento com esta motivação pode ter lugar desde que o garante prova de um comportamento abusivo do beneficiário – ac. STJ de 5.7.2012, 219/06, 219/06, www.colectaneade jurisprudencia.com. A interpretação inclusiva das regras da boa-fé ou do abuso de direito tem por respaldo a necessidade de evitar benefícios decorrentes de factos ilícitos, envolvendo fraudes ou falsificação de documentos e por exigência uma demonstração dos factos necessários assentes em prova sólida e irrefutável, não bastando a formulação de meros juízos de verosimilhança sobre a ocorrência dos respetivos requisitos substanciais.

A jurisprudência tem firmado a aceitação da recusa do garante quando seja patente o manifesta a má-fé decorrente com toda a segurança da prova documental em poder do garante; quando exista manifesta fraude ou evidente abuso por parte do beneficiário; quando o contrato garantido ofenda a ordem pública ou os bons costumes; sempre que exista prova irrefutável de que o contrato-base foi cumprido – vd. acs. STJ de 27-5-10, de 13-4-11, de 20-3-12 e 17.6.2021 proc. 15932/16, todos in www.dgsi.pt e ainda Ferrer Correia, “Notas para o estudo da garantia bancária”, in Temas de direito comercial e direito internacional privado, Coimbra, 1989, p. 22.”

Como já se afirmou em acórdão deste STJ, em que o atual relator foi primeiro adjunto – Acórdão, de 19/10/2021 (processo n.º1883/19.6T8FNC-A.L1.S1):

“As garantias autónomas caraterizam-se pelo primado da eficiência e da celeridade no pagamento ao credor beneficiário e só permitem ao Banco recusar o pagamento nos casos expressamente previstos, por escrito, no contrato de garantia. Estas garantias visam afastar o risco do incumprimento e da insolvência do ordenante, promovendo, assim, o crescimento da economia na medida em que acabam por se realizar transações e negócios que de outro modo não se realizariam. Para que esta finalidade seja cumprida, a formulação contratual de exceções tem de estar expressamente prevista de forma clara e precisa. O garante só poderá opor ao beneficiário as excecões literais, que constem do texto da garantia (cfr. Menezes Cordeiro, Direito Bancário, 6.ª edição, Almedina, Coimbra, 2016, p. 850)”

Ou ainda - Acórdão do STJ, de 21/04/2010 (processo n.º 458/09.2YFLSB) onde se considerou que “a interpretação literal reveste-se de particular relevância quando se pretende fixar o sentido com que um contrato de garantia autónoma deve ser interpretado, maxime de uma garantia autónoma à primeira solicitação. Ao ser-lhe exigido que satisfaça a garantia autónoma e à primeira solicitação a que se vinculou, o garante não pode, por princípio, recusar a execução da garantia opondo exceções fundadas, seja na relação entre o credor (beneficiário) e o devedor (garantido) da relação principal, seja na relação (de mandato) entre o garante e aquele devedor.”

Sendo ainda de evidenciar a diferença entre uma garantia autónoma de outra não autónoma, tantas vazes explicitada pela jurisprudência, nomeadamente no Acórdão do STJ, de 14/01/2021 (processo 15265/14.2T8PRT-A.P1.S1), onde consta o sumário:

“Garantia autónoma é aquela que é prestada pessoalmente pelo garante a favor do credor-beneficiário e que se assume na responsabilidade pelo pagamento de uma obrigação própria, sem possibilidade de invocar excepções decorrentes da relação jurídica garantida.

Como garantias autónomas existem as simples que são aquelas em que o beneficiário ao accioná-las tem de justificar a sua pretensão com o incumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação a que o devedor estava vinculado e, comporta também as de “à primeira solicitação”, em que o beneficiário está dispensado da prova do incumprimento contratual.”

Tomando por referência estes elementos e os factos provados 1.6 e 1.12 – que são do seguinte teor: 1.6. “As partes acordaram ainda na prestação, para garantia do exato e pontual cumprimento das obrigações que a Subconcessionária assumiu com a celebração do referido contrato, de uma caução no valor de € 70.500,00 (setenta mil e quinhentos euros), mediante garantia bancária autónoma e irrevogável, a favor da IP Património – Administração e Gestão Imobiliária, S.A., conforme feito constar da cláusula 7.ª/1 do Contrato.” e 1.12. “Nos termos da “Garantia Bancária à Primeira Solicitação Nº 085- 43.010297-1, datada de 15/11/2016, emitida pela aqui Ré, em nome e a pedido da M..., S.A. a favor da Autora, “por força desta garantia, obriga-se a CEMG a pagar à primeira solicitação da IP Património, sem interferência da garantida e observando o montante acima estabelecido sem que a IP Património, tenha de justificar o pedido e sem que a CEMG possa invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com o contrato acima identificado ou com o cumprimento das obrigações que a garantia assume com a celebração do contrato, as importâncias que a IP Património, lhe solicite, sendo-lhe vedado deixar de o fazer sob qualquer pretexto ou fundamento, bem como a responder, respeitando o mesmo montante, pelas despesas decorrentes da medida judicial a que aquela entidade porventura se veja obrigada a recorrer para demandar a observância dos seus direitos.

A CEMG deverá pagar, à primeira solicitação, no prazo máximo de 10 (dez) dias úteis, contados da data da receção do pedido formulado por escrito, enviado por carta registada com aviso de receção para a CEMG, até ao montante garantido identificado, quaisquer verbas que a IP Património solicite, sem que caiba à CEMG saber do fundamento ou ilegitimidade de tal pretensão, ainda que se verifique qualquer objeção da garantia. (…)

A presente garantia poderá ser acionada, parcialmente, por uma ou mais vezes, permanecendo sempre em vigor até atingir o seu montante máximo ou até ao final do respetivo prazo (…).

O pedido por escrito deverá ser apresentado, por carta registada com aviso de receção, pela IP Património no prazo máximo de 15 (quinze) dias contados da ocorrência do incumprimento das obrigações assumidas pela garantida perante a IP Património, prazo além do qual a reclamação não poderá ser aceite pela CEMG” – e ainda as considerações realizadas pelo Tribunal recorrido sobre as datas em que os pagamentos ao garante foram realizados, a decisão recorrida não merece qualquer reparo quando diz:

Conforme resulta ainda do facto 12, em transcrição do título de garantia:

- a CEMG deveria pagar, à primeira solicitação, no prazo máximo de 10 (dez) dias úteis, contados da data da receção do pedido formulado por escrito, sem que lhe coubesse saber do fundamento ou ilegitimidade de tal pretensão;

- o pedido por escrito deveria ser apresentado, por carta registada com aviso de receção, pela IP Património no prazo máximo de 15 (quinze) dias contados da ocorrência do incumprimento das obrigações assumidas;

- a garantia podia ser acionada, parcialmente, por uma ou mais vezes, permanecendo sempre em vigor até atingir o seu montante máximo ou até ao final do respetivo prazo;

- a garantia era válida pelo prazo de 5 (cinco) anos a contar da data da sua emissão, salvo denúncia da CEMG, comunicada à IP Património mediante carta registada com aviso de receção ou por fax que deveria ser efetuada com uma antecedência de 30 (trinta) dias sobre o prazo em que se pretendia que a denúncia produzisse efeitos.

Como é sabido o contrato de subconcessão tinha uma remuneração fixa e uma remuneração variável. Esta só poderia ser calculada após a subconcessionária enviar à ora autora o mapa com a discriminação da receita total obtida com os parques de estacionamento, relativa a cada mês, o que tinha o dever de fazer até ao dia 10 do mês seguinte (facto 5).

A subconcessionária forneceu à autora o mapa com a discriminação das receitas obtidas em julho por carta de 14/08/2020 (facto 8); os mapas com a discriminação das receitas obtidas em agosto e setembro por carta de 10/11/2020; o mapa com a discriminação das receitas obtidas em outubro, por carta de 11/11/2020; e o mapa com a discriminação das receitas obtidas em novembro, por carta de 28/12/2020 (facto 10-A).

Nessa sequência, a autora emitiu, em 18/11/2020, as faturas nº ZFP3 1/...05, nº ZFP3 1/...06, nº ZFP3 1/...07 e nº ZFP3 1/...08, com os valores de €16.736,52, €17.701,29, €19.162,91 e €18.474,80, respetivamente, todas com vencimento em 18/12/2020, referentes aos meses de julho, agosto, setembro e outubro de 2020, respetivamente; e, em 31/12/2020, emitiu a fatura nº ZFP3 1/...68, com vencimento em 30/01/2021, no valor de €16.036,85, referente ao mês de novembro de 2020 (facto 11).

E, por carta datada de 22/12/2020, recebida pela ré em 28/12/2020, a autora acionou a Garantia Bancária, pelo montante máximo garantido, invocando a falta de pagamento por parte da M..., S.A. no prazo de vencimento (18/12/2020) das faturas supra referidas (n.ºs ZFP3 1/...05, ZFP3 1/...06, ZFP3 1/...07 e ZFP3 1/...08), num total de € 72.075,52 (facto 13).

A ré apenas tinha de pagar e não o fez.”

E ainda:

“Porém, as faturas em questão respeitam a obrigações da subconcessionária assumidas no contrato subjacente à garantia e abrangidas pela garantia. O facto de se terem vencido apenas após a cessação daquele contrato não exclui a sua natureza de obrigações emergentes daquele contrato-base.”

O teor da garantia prestada não exclui estes pagamentos do âmbito da obrigação de garantia.

Nem os mesmos foram pedidos fora do prazo abarcado pela garantia, conforme se verifica pela análise do prazo de vencimento e apresentação a pagamento (assim explicitado no Acórdão recorrido – “Por comunicação datada de 19/01/2021, a ré pediu que a autora informasse a data do incumprimento das obrigações da ordenadora (facto 14). Em 01/02/2021, a autora enviou nova carta para a ré, transmitindo que o incumprimento das obrigações contratuais por parte do ordenador data do dia 18 de dezembro de 2020 (facto 13). Havia incumprimentos anteriores ao não pagamento das faturas ZFP3 1/...05, ZFP3 1/...06, ZFP3 1/...07 e ZFP3 1/...08. Incumprimentos que inclusivamente conduziram à resolução do contrato de concessão. Porém, as faturas em questão respeitam a obrigações da subconcessionária assumidas no contrato subjacente à garantia e abrangidas pela garantia. O facto de se terem vencido apenas após a cessação daquele contrato não exclui a sua natureza de obrigações emergentes daquele contrato-base. O valor dos incumprimentos que fundamentaram o acionamento da garantia é superior ao montante máximo desta; e nada impedia a autora de acionar a garantia por eles (mesmo não a tendo acionada por incumprimentos anteriores)”.

Por isso, o recurso tem de improceder.

IV. Decisão

Posto o que precede, acorda-se em negar a revista, e, consequentemente, em manter o Acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 12 de março de 2024

Pedro de Lima Gonçalves (Relator)

Manuel Aguiar Pereira

Jorge Leal