Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2445/22.6T8GMR.G1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CURA MARIANO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE GRUPO
CONTRATO DE ADESÃO
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
DEVER DE COMUNICAÇÃO
DEVER DE INFORMAÇÃO
SEGURADORA
BANCO
SEGURADO
LEI APLICÁVEL
LIMITE DA RESPONSABILIDADE DA SEGURADORA
CONTRATO DE MÚTUO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA
REENVIO PREJUDICIAL
DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
FORÇA VINCULATIVA
Data do Acordão: 02/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. Nos termos do artigo 91.º do Regulamento do Processo do Tribunal de Justiça, os acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia, incluindo os proferidos em resposta a reenvio prejudicial, têm força obrigatória desde o dia da sua prolação nos Estados-membros, aplicando-se retroativamente desde o momento da entrada em vigor da norma interpretada.

II. Esta força obrigatória vincula não só o tribunal nacional que procedeu ao reenvio no processo em que o fez, mas a interpretação do direito europeu por ele efetuada passa a vincular os Estados Membros e todos os tribunais nacionais desses Estados, na aplicação futura da legislação objeto de reenvio a casos materialmente idênticos, refletindo o princípio do primado do direito da União Europeia, o qual a nossa Constituição acolhe no seu artigo 8.º, n.º 4.

III. Assim, atento o decidido no acórdão do TJUE no seu acórdão de 20 de Abril de 2023, proferido no Processo C‑263/22, a não comunicação de uma cláusula limitativa da cobertura do risco segurado pelo tomador de um seguro de grupo, a quem incumbia proceder a essa comunicação, pode ser oposta à seguradora no sentido de se considerar tal cláusula excluída do contrato de seguro.

Decisão Texto Integral:

I - Relatório

Os Autores propuserem ação declarativa, com processo comum, contra a Ré, Deutsche Bank Aktiengesellschaft - Sucursal em Portugal, AS (DB), e Abanca Mediación, Operador de Banca - Seguros Vinculado S.L. - Sucursal em Portugal, formulando os seguintes pedidos:

«a. que se considere excluída do contrato de seguro a cláusula constante do artigo 1.º, r) das condições gerais da apólice, na parte em que refere, sob a epígrafe “definições”, “invalidez total e permanente ii. a pessoa segura fique permanentemente impossibilitada de exercer qualquer atividade lucrativa”, por não ter sido comunicada.

b. que se condene a 1.ª Ré “Zurich” a proceder ao pagamento à interveniente principal “Abanca Corp. Bancária, SA, Sucursal em Portugal” do montante de € 47 851,52 em dívida no mútuo celebrado entre os Autores e o 2.º Réu “Deutsche Bank Portugal, SA” identificado no art. 1.º da p.i., mediante efetiva liquidação total do crédito hipotecário.

c. que se condene a 1.ª Ré “Zurich” a proceder ao pagamento aos Autores do remanescente do capital seguro, num total de € 12 148,48, acrescido dos juros de mora à taxa legal em vigor desde a data da participação e até efetivo e integral pagamento.

d. que se condenem os Réus, solidariamente, a restituir aos Autores todas as prestações mensais do empréstimo que estes pagaram ao banco 2.º Réu desde a data do acidente de 29/10/2019 e até à data da liquidação total do empréstimo, que perfazem já um total de € 5 748,60, acrescidas dos juros legais contados desde a data de vencimento de cada prestação até ao seu efetivo reembolso.

e. que se condenem os Réus solidariamente, a restituir aos Autores todos os prémios mensais de seguro pagos desde o acidente de 29/10/2019 até à data da liquidação do empréstimo, que perfazem já um total de € 1 565,48, acrescidos dos juros legais, contados desde a data de pagamento de cada um desses prémios até seu efetivo reembolso.

Para tanto, alegaram, em síntese, o seguinte:

- receberam do demandado Deutsche Bank (DB), no dia 4 de fevereiro de 2010, a quantia de 60.000,00 € para a construção de habitação própria, ficando obrigados a restituir-lhe igual montante, em prestações mensais, ao longo de 40 anos, no âmbito de um contrato de mútuo.

- para garantia da restituição da quantia mutuada, em caso de morte ou invalidez por acidente ou doença de qualquer um dos mutuários, aderiram, na sequência de proposta de um funcionário do DB, a um seguro de grupo do ramo vida, celebrado entre este e a Ré Zurich.

- nesse seguro consta a demandada Abanca Mediación como mediadora.

- no dia 29 de outubro de 2019, o Autor sofreu um acidente de trabalho, do qual resultaram danos físicos que determinam uma incapacidade permanente parcial de 60,00% e uma incapacidade permanente absoluta para a profissão habitual.

- estando assim verificado o sinistro, a Ré Zurich deve entregar à Abanca Corporación Bancaria, S.A., Sucursal em Portugal, que consta da apólice como “beneficiária irrevogável”, a quantia correspondente às prestações que estão obrigados a restituir ao DB em cumprimento do contrato de mútuo.

- a Ré Zurich recusa-se, porém, a cumprir esta obrigação com fundamento na cláusula do 1.ª/1, r), das Condições Gerais da Apólice, nos termos da qual, considera-se invalidez absoluta e permanente a incapacidade total da pessoa segura, com carácter permanente e irreversível e desde que as lesões sofridas, após completa consolidação, correspondam a um grau de desvalorização mínimo de 60%, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais em vigor à data do acidente ou do diagnóstico da doença que esteja na origem desta invalidez, e a pessoa segura fique permanentemente impossibilitada de exercer qualquer atividade lucrativa.

- acontece que, aquando da adesão ao contrato de seguro identificado, o funcionário do DB apenas lhes disse que ficariam com a casa paga em caso de morte ou incapacidade superior a 60% de um deles, pelo que a referida cláusula deve considerar-se excluída do contrato, nos termos do disposto nos artigos. 5.º, 6.º e 8.º do Dec. Lei n.º 486/85, de 25-10.

A Ré contestou, sustentando que o sinistro alegado pelos Autores não cabe no conceito de invalidez absoluta e permanente prevista na identificada cláusula das Condições Gerais da Apólice, cabendo ao tomador do seguro, o demandado DB, o dever de comunicação e informação aos Autores sobre o conteúdo e sentido das cláusulas contratuais gerais do seguro de grupo a que aderiram, pelo que o eventual incumprimento dessa obrigação não lhe é oponível.

Concluiu pela sua absolvição dos pedidos formulados.

Abanca Mediación, arguiu a exceção dilatória da nulidade de todo o processado decorrente da ineptidão da petição inicial por ininteligibilidade da causa de pedir quanto a ela.

DB afirmou que, tendo vendido todo o seu negócio de retalho ao Abanca Corporación Bancaria, não existe qualquer efeito jurídico que possa ser obtido com a presente demanda contra si, pelo que é parte ilegítima.

Os Autores responderam às exceções invocadas pelas demandadas Abanca Mediación e DB, pugnando pela respetiva improcedência.

Em sede de audiência prévia foi proferido despacho saneador a julgar verificada a exceção dilatória da nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição inicial, no que tange a Abanca Mediación, e a exceção dilatória da ilegitimidade passiva do demandado DB, tendo ambos sido absolvidos da instância.

Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença, nos seguintes termos

Decide-se julgar a presente ação procedente e, em consequência:

a) Considerar excluída do contrato de seguro celebrado entre os Autores, AA e BB, e a Ré, Zurich - Companhia de Seguros de Vida, SA, a cláusula constante do art. 1.º, alínea r), das Condições Gerais da apólice na parte em que refere, sob a epígrafe “definições”, “invalidez total e permanente, “ii. a pessoa segura fique permanentemente impossibilitada de exercer qualquer atividade lucrativa”;

b) Condenar a Ré, Zurich - Companhia de Seguros de Vida, SA, a proceder ao pagamento à Abanca Corporación Bancária, SA, Sucursal em Portugal, do montante em dívida no mútuo celebrado entre os Autores, AA e BB, e o Deutsche Bank Portugal, SA, identificado em III.1)1., mediante efetiva liquidação total do crédito hipotecário

c) Condenar a Ré, Zurich - Companhia de Seguros de Vida, SA, a proceder ao pagamento aos Autores, AA e BB, do remanescente do capital seguro, acrescido dos juros de mora, à taxa legal, contados desde 13 de abril de 2021 e até efetivo e integral pagamento;

d) Condenar a ré, Zurich - Companhia de Seguros de Vida, SA, a pagar aos Autores, AA e BB, o montante correspondente às prestações mensais que estes suportaram em cumprimento do contrato de mútuo identificado em III.1).1, desde a data do sinistro até ao presente;

e) Condenar a ré, Zurich - Companhia de Seguros de Vida, SA, a pagar aos Autores, AA e BB, o montante correspondente às prestações mensais que estes venham a suportar em cumprimento do contrato de mútuo identificado em III.1).1, desde a presente data e até ao cumprimento da obrigação prevista em b);

f) Condenar a ré a pagar aos Autores, AA e BB, juros de mora, à taxa legal, contados desde a data de pagamento de cada uma das prestações mensais referidas d) e e) e até ao seu efetivo reembolso;

g) Condenar a ré, Zurich - Companhia de Seguros de Vida, SA, a restituir aos Autores, AA e BB, todos os prémios de seguro pagos desde a data do sinistro (29 de abril de 2019), acrescidos dos juros de mora, à taxa legal, contados desde a data do respetivo pagamento e até à data da sua efetiva restituição.

A Ré recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação que, por acórdão proferido em 21.09.2023, confirmou a sentença recorrida.

A Ré interpôs recurso de revista excecional deste acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo a Formação a que alude o artigo 672.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, admitido o recurso.

A Ré concluiu as suas alegações de recurso do seguinte modo:

(...)

26. A Recorrente mantém o mais profundo inconformismo face ao Acórdão agora proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, entendendo, com todo o respeito por douta opinião em contrário, que continua a afigurar-se desajustada a asserção de, face aos factos em discussão, aplica-se o regime das Cláusulas Contratuais Gerais e faz repercutir na esfera jurídica da Seguradora os efeitos de um incumprimento que a ela não é imputável.

27. E todo este cenário é ainda mais incompreensível uma vez que o efetivo responsável pela comunicação e informação da clausula de invalidez não esteve sequer em juízo, o que por si só invalida e inviabiliza qualquer prova relativamente ao cumprimento do dever de informação e esclarecimento da clausula de invalidez.

28. Na situação analisada, ponderadas as condições apostas no respetivo contrato, é incontroverso que estamos perante um contrato de seguro vida, na modalidade de seguro de grupo, titulado pela apólice n.º .........01, do qual eram beneficiários, em caso de morte ou invalidez permanente, o Banco DB até ao limite do capital emprestado que estivesse em dívida (e, na parte remanescente, a pessoa segura ou o cônjuge não falecido).

29. Quanto à obrigação de informação no caso dos seguros de grupo resulta do art. 78º do DL 72/2008 que é tomador do seguro (Banco) quem tem o dever de informar os segurados sobre as coberturas e exclusões, as obrigações e os direitos em caso de sinistro e as alterações ao contrato e não a seguradora, ora Recorrente.

30. Onde se verifica a discordância entre os Acórdãos – recorrido e fundamento – centra-se na aplicação do regime geral das clausulas contratuais gerais, em concreto do artigo 5.º n.º 1, em simultâneo com o regime específico previsto no artigo 78.º do DL 72/2008, e, em consequência a exclusão da clausula cujo conteúdo se comprove que não foi comunicada ou esclarecida aos Recorridos, prevista na alínea c) do artigo 8.º do RGCCG.

31. Sendo relevante referir que no regime do DL 72/2008 não está prevista a exclusão da clausula em caso de incumprimento do seu artigo 78.º mas sim o apuramento das responsabilidades nos termos da responsabilidade civil, em termos gerais.

32. Ora, conforme o já se deixou dito na contestação e nas alegações de recurso, o entendimento da Recorrente vai no sentido de se recusar a aplicação do RCCG e, bem assim, da oponibilidade à Seguradora dos efeitos de um incumprimento de terceiros – Banco - uma vez que este não é, nem atua, como seu intermediário, auxiliar ou comissário no momento da subscrição das adesões ao clausulado estabelecido.

33. Não havendo qualquer fundamento legal que permita repercutir na esfera jurídica da seguradora o incumprimento do banco, no momento da adesão dos Recorridos ao clausulado do contrato de seguro.

34. Considerando a matéria em discussão e a data da celebração do contrato de seguro entende a Recorrente ser aplicável o regime jurídico do contrato de seguro previsto no DL 72/2008 em concreto do artigo 78.ºque refere no seu n.º 1 “(…) o tomador do seguro deve informar os segurados sobre as coberturas contratadas e as suas exclusões (…);

35. Importa esclarecer que DL n.º 72/2008, de 16-04 veio substituir o DL nº. 176/95, o qual mantém, o ónus do tomador do seguro de informar e esclarecer os aderentes sobre as cláusulas de cobertura e de exclusão do risco assumido.

36. Com efeito, quanto a esta matéria, é entendimento da maioria da jurisprudência que este dever de informação é da responsabilidade do tomador e não da seguradora – vide os acórdãos do STJ de 22 de Janeiro de 2009, proc. no 08B40491, de 20 de Janeiro de 2010, proc. no 294/06.8TBOAZ.P1, de 7 de Outubro de 2010, proc. 651/04.4TBETR.P1.S1, de 12 de Outubro de 2010, proc. no 646/05.0TBAMR.G1.S1, de 13 de Janeiro de 2011, proc. nº 1443/04.6TBGDM.P1.S1, de 29 de Maio de 2012, proc. nº 7615/06.1TBVNG.P1.S1, de 21 de Fevereiro de 2013, proc. no 267/10.6TBBCL.G1.S1, de 27 de Março de 2014, proc. no 2971/12.5TBBRG.G1.S1, de 9 de Julho de 2014, proc. n.º 841/10.0TVPRT.L1.S1 ou de 18 de Setembro de 2014, proc. no 2334/10.7TBCDM.P1.S1.

37. E, em todos esses acórdãos, se decidiu no sentido de que resultava expressamente do nº 1 do citado artigo 4º - e que neste caso é o n.º 1 do artigo 78.º do RJCS - que era ao tomador que incumbia o dever de informação dos segurados (no mesmo sentido, cfr. o acórdão de 30 de Maio de 2019, www.dgsi.pt., proc. n.o 532/17.1T8VIS.C1.S2, que todavia aplicou o regime decorrente da Lei do Contrato de Seguro aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/2008 à informação sobre cláusulas de exclusão, por terem sido posteriores), quanto às “coberturas e exclusões contratadas”, cabendo-lhe igualmente o ónus da prova “de ter fornecido estas informações”, como refere no n.º 3.

38. Resulta igualmente dos referidos acórdãos que a imposição do dever de informação ao tomador do seguro, por um lado, está de acordo com a configuração do contrato de seguro de grupo e, por outro, impede o tratamento do tomador do seguro, neste caso o DB, como um representante ou intermediário da seguradora; e que, não criando a lei nenhuma responsabilidade objetiva da seguradora, pelo incumprimento do Banco tomador do seguro, tal incumprimento não lhe é oponível, não implicando portanto a eliminação das cláusulas de exclusão de riscos – vide neste sentido o Acórdão do STJ de 18.02.2021 ( processo 418/19.5T8FLG.P1.S1), disponível in www.dgsi.pt

39. Ou seja, não só o dever de informação recai sobre o Tomador (Banco) como o seu incumprimento não é oponível à Seguradora, ora Recorrente, motivo pelo qual será de repudiar a eliminação da clausula que define o conceito de Invalidez-

40. E nem se poderia admitir outra solução uma vez que do artigo 79.º do RJCS resulta que a sanção para o caso de incumprimento do dever de informar no caso dos seguros de grupo, não é o da exclusão da cláusula não comunicada, mas sim a responsabilidade civil, nos termos gerais.

41. Pelo que mesmo que se entendesse que o incumprimento era oponível à Recorrente, o que não se aceita, a consequência não era a exclusão da clausula, mas sim a responsabilidade civil nos termos gerais.

42. O que também contraria a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães.

43. É nosso entendimento, estribado nos arestos supra citados, que o regime especifico do RJCS afastará a aplicabilidade do regime geral das clausulas contratuais gerais.

44. E, bem assim a exclusão da clausula, uma vez que tal exclusão não está prevista no Regime Jurídico do contrato de seguro que, confirme resulta do exposto supra, afasta a aplicabilidade do Decreto-Lei no 446/85.

45. Do RJCS, aplicável em especial aos seguros de grupo, resulta de forme inequívoca sobre quem recai o ónus da obrigação de comunicar as clausulas e a consequência desse incumprimento, sendo manifesto que o Acórdão recorrido faz tábua rasa do que está definido por esta lei especial.

46. Motivo pelo qual o Tribunal a quo andado mal ao concluir não só a aplicar o regime das CCG a esse incumprimento, como, e em particular, em dar como excluída a clausula de invalidez.

47. Ora, não podendo a clausula ser excluída e não tendo o Tribunal a quo dado como provado o preenchimento dos pressupostos da clausula – em concreto da impossibilidade para o exercício de toda e qualquer atividade remunerada do Recorrido marido – não podia ter condenado a Recorrente ao cumprimento de todos os pedidos formulados pelos Recorridos.

48. Pelo que deverá aquela decisão ser substituída por uma outra que determine que não sendo de excluir a clausula o contato mantém-se nos termos inicialmente contratados,

49. Acresce que não tendo ficado provado os pressupostos para o acionamento do contrato de seguro, em concreto da incapacidade do Recorrido marido para o exercício de toda e qualquer actividade remunerada, devem os pedidos formulados improceder.

Não foi apresentada resposta às alegações.

*

II – Do objeto do recurso

Tendo em consideração as conclusões das alegações de recurso e o conteúdo do acórdão recorrido neste recurso cumpre apreciar se não é oponível à Ré a falta de comunicação das clausulas do contrato de seguro grupo aos Autores.

*

III – Os factos

Neste processo encontram-se provados os seguintes factos:

1. Por escritura pública de 2 de fevereiro de 2010, lavrada no Cartório da Notária CC, os Autores, como primeiros outorgantes, e DD, na qualidade de procuradora, em nome e representação do Deutsche Bank (Portugal), SA, como segunda outorgante, declararam que: O DB concede aos primeiros outorgantes mutuários, um empréstimo no montante de € 60.000,00, destinado ao financiamento de construção de habitação própria e permanente dos mutuários. (…) os primeiros outorgantes, desde já, se confessam devedores, ao DB Portugal, da totalidade da quantia mutuada, juros e demais encargos resultantes da presente escritura e do contrato obrigando-se a aplicar o referido empréstimo na construção de habitação própria e permanente do imóvel abaixo identificado (…).

2. Em documento complementar à referida escritura, as mesmas partes declararam [art. 7.º, § 3.º] que “enquanto se mantiver em vigor o presente contrato, os mutuários [primeiros outorgantes] obrigam-se a (…) “d) subscrever, em condições e valor a indicar pelo DB Portugal, um seguro de vida para cada mutuário; e) inscrever o DB Portugal nas apólices referidas nas alíneas c), d) supra como beneficiário e credor preferente dos seguros, com direito a receber as indemnizações devidas em caso de sinistro, devendo os mutuários pagar e ter em dia os prémios relativos às referidas apólice e apresentar ao DB Portugal, quando solicitado, os comprovativos dos pagamentos efetuados”, tudo conforme documento 5 apresentado com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.

3. Com vista ao cumprimento do previsto na cláusula transcrita no ponto anterior, no balcão do DB de ..., no dia 11 de novembro de 2009, os Autores apuseram as suas assinaturas, na qualidade de 1.ª e 2.ª pessoas seguras, num formulário denominado “Solução Crédito Vida Zurich”, em que foi indicado como beneficiário o DB.

4. Esse formulário tem o seguinte teor na epígrafe “Coberturas”:

Principal

Complementares:

Invalidez total e definitiva

Invalidez absoluta e permanente

Invalidez total e permanente.

(…)

Declarações

(…)

O tomador de seguro declara ter tomado conhecimento e recebido, as Condições Gerais aplicáveis ao presente contrato, tendo sido devidamente esclarecido quanto ao seu âmbito e em particular quanto às suas garantias e exclusões das coberturas contratadas.

5. Na quadrícula em frente a “Principal”, foi manuscrito “€ 60 000,00” e, na quadrícula em frente a “Invalidez absoluta e permanente” foi colocado um “x”.

6. Nos espaços destinados à indicação do ramo de atividade e da profissão do Autor, foi manuscrito, respetivamente, “construção civil” e “motorista.”

7. O referido formulário foi preenchido, nos termos referidos, no balcão de ... do DB, por funcionário deste, que o deu a assinar aos Autores.

8. Com data de 4.03.2010, a Ré Zurich emitiu “Certificado individual de adesão” do seguinte teor:

Modalidade: S. Crédito Vida Zurich Grupo V2

Cliente n.º: .......69

Apólice n.º .........91

Prémio total periódico: (…)

Data de início: 0 horas de 2010-02-04

Data de termo: 24 horas de 2050-02-03

Duração: 40 anos

Pessoa segura 1: BB - Data de nascimento: 1969-...-...

Pessoa segura 2: AA - Data de nascimento: 1976-...-...

(…)

Beneficiários - Cláusula beneficiária irrevogável a favor de:

Morte - Deutsche Bank (Portugal), SA

Até ao montante em dívida no valor máximo do capital seguro e o remanescente será pago a herdeiros legais da pessoa segura.

Invalidez - Deutsche Bank (Portugal), SA

Até ao montante em dívida no valor máximo do capital seguro e o remanescente será pago à pessoa segura.

Garantias e valores seguros

Seguro principal: S. Crédito Vida Zurich Grupo 2V - Capital ou renda anual: € 12 000,00 - Início: 20100204 - Duração: 40

Seguros complementares: Invalidez absoluta permanente - Capital ou renda anual: € 12 000,00 - Início: 20100204 - Duração: 28.

9. Nos termos das Condições Gerais da apólice do referido contrato de seguro, celebrado entre a Ré Zurich e o DB:

Art. 1.º Definições

1. Para efeitos do presente contrato, entende-se por: (…)

n) acidente - Acontecimento devido a causa súbita, externa e alheia à vontade do Tomador do seguro, da Pessoa Segura e do Beneficiário que produza lesões corporais clínica e objetivamente comprovadas; (…)

q) invalidez total e definitiva - A incapacidade total da Pessoa Segura para o exercício de qualquer atividade necessitando do recurso à assistência de uma terceira pessoa para os atos ordinários da vida, encontrando-se num estado similar à morte;

r) Invalidez Absoluta e Permanente - A incapacidade total da Pessoa Segura, com caráter permanente e irreversível, e desde que cumulativamente: i. As lesões sofridas, após completa consolidação, tenham caráter irreversível e correspondam a um mínimo de 60% de depreciação de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais em vigor à data do Acidente ou do diagnóstico da Doença que esteja na origem da Invalidez Absoluta e Permanente; ii. A pessoa segura fique permanentemente impossibilitada de exercer qualquer atividade lucrativa.

s) Invalidez Total e Permanente - A incapacidade total da Pessoa Segura, com caráter permanente e irreversível, e desde que cumulativamente: i) As lesões sofridas, após completa consolidação, tenham caráter permanente irreversível e correspondam a um grau de desvalorização mínimo de 60% de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais em vigor à data do Acidente ou do diagnóstico da Doença que esteja na origem da Invalidez Total e Permanente; ii. A Pessoa Segura fique total e permanentemente impossibilitada de exercer a profissão indicada na proposta de seguro ou a que, posteriormente, venha a ser comunicada por escrito à Zurich, e desde que efetivamente exercida à data do acidente ou constatação da doença ou qualquer outra atividade lucrativa compatível com as suas capacidades, conhecimentos e aptidões.

(…)

Art. 20.º - Formalidades para liquidação das importâncias seguras

1. A liquidação das importâncias seguras, sempre que a ela haja direito, far-se-á aos Beneficiários das respetivas garantias, após o envio de todos os documentos necessários à sua regularização.

2. São considerados imprescindíveis à análise e pagamento de qualquer importância segura ao abrigo do presente contrato, os seguintes documentos: (…) d) Em caso de invalidez da Pessoa Segura: i. Participação à Zurich do estado d invalidez da Pessoa Segura; ii. Relatório médico no qual se especifique a causa, antecedentes e circunstâncias em que a invalidez ocorreram, e, se possível, a data previsível da recuperação”, conforme documento 3 com a contestação da Ré Zurich, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.

10. Em 2011, foi solicitada a atualização do capital seguro para € 60 000,00, tendo a Ré Zurich emitido novo boletim de adesão, datado de 7 de outubro de 2011, indicando, como “capital ou renda anual” para efeitos das duas coberturas aquela quantia.

11. O DB alienou o seu segmento de banca de retalho (clientes particulares, micro, pequenas e médias empresas) em Portugal ao Abanca Corporación Bancaria, SA, em 9 de junho de 2019, ficando esta a beneficiar de todas as garantias (reais e outras) prestadas em benefício daquele.

12. No dia 23 de agosto de 2019, num balcão da Abanca, o Autor pediu a alteração da sua morada associada ao seguro titulado pela apólice supra identificada

13. Na sequência, a Ré Zurich emitiu novo boletim de adesão.

14. No dia 29 de outubro de 2019, pelas 14.30 horas, enquanto trabalhava como operário da construção civil, o Autor foi atingido, no seu pé esquerdo, por uma viga que caiu da grua que a estava a levantar.

15. Disso resultou a fratura dos 1.º, 2.º e 3.º metatarsianos, edema circunferencial do terço distal da perna esquerda, tornozelo e dorso do retropé, associado a edema por contusão dos coneiformes medial, intermédio e lateral, bem como do cuboide e 2.º metatarso, edema dos músculos interósseos adjacentes ao 2.º, 3.º e 4.º metatarsos e derrame nas articulações matatarsofalângicas do 2.º ao 5.º dedos cm edema das cabeças metatársicas respetivas.

16. No processo que correu termos pelo Juízo do Trabalho de ... sob o n.º 2310/20.1..., na tentativa de conciliação realizada a 2 de fevereiro de 2021, na sequência de acordo com a Fidelidade, Companhia de Seguros, SA, foi-lhe atribuída uma IPP de 60%, mas com incapacidade absoluta para o trabalho habitual, com alta médica em 14 de maio de 2020.

17. Esse acordo foi homologado por sentença de 9 de fevereiro de 2021, transitada em julgado.

18. Em 30 de Março de 2021, o Autor, através de ilustre advogada, comunicou à Ré Zurich o sinistro ocorrido em 29 de outubro de 2019, com os seguintes documentos: a) Auto de tentativa de Conciliação do processo n.º 2310/20.1...; b) Sentença proferida no âmbito daquele processo.

19. A Ré, em 01 de abril de 2021, solicitou à referida advogada o envio dos relatórios médicos que serviram de base à decisão do Tribunal de Trabalho, bem como do Cartão de Cidadão do Autor e o preenchimento da Autorização de Tratamento de dados, tendo adiantado que, numa primeira análise, entendia não estarem preenchidos os pressupostos do seguro complementar contratado.

20. Em 13 de abril de 2021, a advogada do Autor enviou a seguinte documentação à Ré: a) Cartão de Cidadão do Autor; b) Documento de Tratamento de dados assinado pelo Autor; c) Documentação clínica do Autor.

21. Por carta de 21 de abril de 2021, a Ré comunicou ao Autor que conforme já referida à V. mandatária, a título preambular, e para que sobrevenha enquadramento contratual e respetiva liquidação do capital seguro, segundo as Condições gerais do contrato subscrito, considera-se Invalidez Absoluta e Permanente a incapacidade total da pessoa segura, com caráter permanente e irreversível, e desde que cumulativamente: i. As lesões sofridas, após completa consolidação, correspondam a um grau de desvalorização mínimo de 60%, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais em vigor à data do Acidente ou diagnóstico da Doença que esteja na origem desta Invalidez; ii. A pessoa segura fique permanentemente impossibilitada de exercer qualquer atividade lucrativa.

Reforçamos que a cobertura contratada implica a inaptidão para o exercício de qualquer atividade lucrativa e não a atividade exercida aquando da subscrição ou posteriormente declarada pelo que, e de acordo com a perícia médica do tribunal, conclui-se que V. Exa. encontra-se numa situação de Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho Habitual (IPATH), por traumatismo com sequelas dolorosas ao nível do pé esquerdo, contexto que não se contextualiza com a premissa da incapacidade para o exercício de qualquer atividade lucrativa.

Face ao exposto é N/ convicção que a Invalidez atual, não compreende os pressupostos exigidos contratualmente para provimento do pagamento do capital seguro, considerando a caraterização da incapacidade atribuída por sentença judicial.

22. O Autor nasceu a ... de ... de 1969.

23. Tem como habilitações literárias o 6.º ano de escolaridade.

24. Começou a trabalhar na construção civil, como operário, quando tinha vinte anos de idade.

25. Desde então, não exerceu qualquer outra atividade profissional.

26. Não exerce, desde 29 de outubro de 2019, qualquer atividade profissional.

27. Está inscrito no Centro de Emprego, tendo respondido a ofertas de emprego como empregado de mesa e balcão, sem sucesso.

28. Tem dificuldades em caminhar, fazendo-o com o apoio de uma muleta, e em permanecer em pé.

29. Toma regularmente medicamentos para as dores.

30. É acompanhado em consultas médicas regulares.

31. Realiza fisioterapia três vezes por semana.

32. Em 10 de março de 2022, o montante em dívida no âmbito do contrato de mútuo referido em 1. era de € 47 851,52.

33. Entre 29 de outubro de 2019 e a data da apresentação da petição inicial (6 de maio de 2022), os Autores pagaram as prestações bancárias que se foram vencendo no contrato de mútuo referido em 1., num total de € 5 748,60, conforme se discrimina: € 176,75 - Out/2019; € 176,75 - Nov/ 2019; € 176,75 - Dez/2019; € 176,75 - Jan/2020; €176,75 - Fev/2020; € 176,75 - Março/2020; € 132,49 - Abril/2020; € 177,98 - Maio/2020; € 177,98 - Junho/2020; € 177,83 - Julho/2020; € 177,98 - Agosto/2020; € 177,98 - Set/ 2020; € 174,08 - Out/2020; € 176,10 - Nov/2020; € 176,10 - Dez/2020; € 176,10 - Jan/2021; € 176,10 - Fev/2021; € 176,10 - Março/2021; € 174,02 - Abril/2021; € 174,02 - Maio/2021; € 174,02 - Junho/2021; € 174,02 - Julho/2021; € 174,02 - Agosto/2021; € 174,02 - Set/ 2021; € 173,88 - Out/2021; € 173,88 -Nov/2021; € 173,88 - Dez/2021; € 173,88 - Jan/2022; € 173,88 - Fev/2022; € 173,88 -Março/2022; € 173,88 - Abril/2022; € 173,88 - Maio /2022.

34. No mesmo período, os Autores pagaram, a título de prémios de seguro, o montante global de € 1 565,48, assim discriminado: € 42,60 - Out/2019; € 42,60 - Nov/2019; € 42,60 -Dez/2019; € 42,60 - Jan/2020; € 46,69 - Fev/2020; € 46,69 - Março/2020; € 46,69 -Abril/2020; € 46,69 - Maio/2020; € 46,69 - Junho/2020; € 46,69 - Julho/2020; € 46,69 -Agosto/2020; € 46,69 - Set/2020; € 46,69 - Out/2020; € 46,69 - Nov/2020; € 46,69 -Dez/2020; € 46,69 - Jan/2021; € 51,14 - Fev/2021; € 51,14 - Março/2021; € 51,14 -Abril/2021; € 51,14 - Maio/2021; € 51,14 -– Junho/2021; € 51,14 – Julho/2021; € 51,14 – Agosto/2021; € 51,14 - Set/2021; € 51,14 - Out/2021; € 51,14 - Nov/2021; € 51,14 -Dez/2021; € 51,14 - Jan/2022; € 55,28 - Fev/2022; € 55,28 - Março/2022; € 55,28 -Abril/2022; € 55,28 - Maio/2022.

Não se provaram os seguintes factos;

a) Aquando do referido em 3., o funcionário do DB disse aos Autores que ficariam com a casa paga em caso de morte ou incapacidade superior a 60% de um deles.

b) O mesmo funcionário disse aos Autores que podiam optar entre as coberturas complementares de Invalidez Absoluta e Permanente, Invalidez Total e Permanente e Invalidez Total e Definitiva.

c) E explicou-lhes as diferenças entre as referidas coberturas complementares.

*

IV – O direito aplicável

Os Autores, em complemento e no cumprimento do clausulado num contrato de mútuo para construção de habitação própria, celebrado com o DB, através do qual esta entidade bancária lhes emprestou € 60.000,00, aderiram a um seguro de grupo contributivo, outorgado entre a Ré e DB, em que a Ré era a seguradora e DB o beneficiário, o qual cobria os riscos de morte e invalidez absoluta e permanente dos aderentes ao contrato de seguro até ao montante que na altura se encontrasse em dívida, relativo aos contratos de mútuo outorgados com os clientes de DB, no valor máximo do capital seguro.

Nos termos da cláusula 1.ª das Condições Gerais da apólice do referido contrato de seguro, a invalidez absoluta e permanente correspondia à incapacidade total da Pessoa Segura, com caráter permanente e irreversível, e desde que cumulativamente: i. As lesões sofridas, após completa consolidação, tenham caráter irreversível e correspondam a um mínimo de 60% de depreciação de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais em vigor à data do Acidente ou do diagnóstico da Doença que esteja na origem da Invalidez Absoluta e Permanente; ii. A pessoa segura fique permanentemente impossibilitada de exercer qualquer atividade lucrativa.

No dia 29 de outubro de 2019, pelas 14.30 horas, enquanto trabalhava como operário da construção civil, o Autor foi atingido, no seu pé esquerdo, por uma viga que caiu da grua que a estava a levantar, tendo daí resultado a fratura dos 1.º, 2.º e 3.º metatarsianos, edema circunferencial do terço distal da perna esquerda, tornozelo e dorso do retropé, associado a edema por contusão dos coneiformes medial, intermédio e lateral, bem como do cuboide e 2.º metatarso, edema dos músculos interósseos adjacentes ao 2.º, 3.º e 4.º metatarsos e derrame nas articulações matatarsofalângicas do 2.º ao 5.º dedos cm edema das cabeças metatársicas respetivas.

No processo que correu termos pelo Juízo do Trabalho de ... sob o n.º 2310/20.1..., na tentativa de conciliação realizada a 2 de fevereiro de 2021, na sequência de acordo com a Fidelidade, Companhia de Seguros, SA, foi-lhe atribuída uma IPP de 60%, mas com incapacidade absoluta para o trabalho habitual, com alta médica em 14 de maio de 2020.

Esse acordo foi homologado por sentença de 9 de fevereiro de 2021, transitada em julgado.

No entanto, a Ré recusou-se a pagar as prestações acordadas no contrato de mútuo que na altura do acidente se encontravam em dívida, assim como o remanescente do capital seguro, por não se encontrar demonstrado que o Autor tivesse ficado permanentemente impossibilitado de exercer qualquer atividade lucrativa, pelo que a sua situação não preenchia o risco seguro, uma vez que o estado físico do Autor não correspondia ao conceito de invalidez absoluta permanente, na definição constante da cláusula 1.ª do contrato de seguro de grupo a que este havia aderido.

Proposta a presente ação pelos Autores, as instâncias decidiram que, por não ter sido alegado e consequentemente demonstrado que no momento da adesão dos Autores ao contrato de seguro de grupo lhes tivesse sido comunicada a referida definição contratual do conceito de invalidez absoluta permanente, tal cláusula deveria considerar-se excluída do contrato, nos termos do artigo 8.º da LCCG, sendo essa exclusão oponível à Ré, tendo-se concluído de acordo com as regras gerais de interpretação e integração dos contratos que o evento participado preenche os requisitos da cobertura de invalidez absoluta e permanente, o que impõe se considere abrangido pelo seguro o referido sinistro, com a inerente responsabilidade da ré/seguradora, que permanece obrigada à sua contraprestação.

Com o presente recurso de revista excecional a Ré apenas pretende discutir que o vício da falta de comunicação da cláusula em causa afete a aplicabilidade integral do clausulado no contrato de seguro, defendendo que a esse vício é aplicável a consequência específica prevista no artigo 78.º da Lei do Contrato Seguro e não o regime da LCCG, aprovado pelo Decreto-lei n.º 446/85, de 25 de outubro, pelo que deve o tomador do seguro de grupo (inicialmente o DB), a quem competia efetuar a comunicação em falta, ser responsabilizado por esse incumprimento, sem que isso afete os termos do contrato de seguro, o qual foi validamente celebrado, devendo, pois, manter-se operante a cláusula em causa, a qual exclui a situação do Autor do âmbito dos riscos cobertos pelo contrato de seguro.

A questão colocada neste recurso está longe de ser inédita na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, o qual já se pronunciou por diversas vezes sobre esta problemática. Se, inicialmente, a posição dominante se orientou no sentido aqui defendido pela Recorrente, na jurisprudência mais recente consolidou-se a posição contrária, a qual foi seguida pelas instâncias neste processo 1.

Entre estes últimos arestos releva o acórdão proferido em 25.05.2023, o qual foi aprovado após nele se terem sido suscitadas, em reenvio prejudicial, perante o Tribunal de Justiça da União Europeia, nos termos do artigo 267.º, § 1.º, alínea b), e § 3.º, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, as seguintes questões:

1ª) O artigo 5.º da Diretiva 93/13/CEE, ao exigir que «as cláusulas propostas ao consumidor estejam (…) sempre redigidas de forma clara e compreensível», deve interpretar-se, de acordo com o Considerando 20 da Diretiva, no sentido de exigir que o consumidor tenha sempre oportunidade de tomar conhecimento de todas as cláusulas?

2ª) O artigo 4.º, n.º 2, da Diretiva 93/13/CEE, ao exigir, como requisito para a exclusão do controlo das cláusulas relativas ao objeto principal do contrato, que «essas cláusulas se encontrem redigidas de maneira clara e compreensível», deve interpretar-se no sentido de exigir que o consumidor tenha sempre oportunidade de tomar conhecimento de tais cláusulas?

3ª) No quadro de uma legislação nacional que autoriza o controlo jurisdicional do carácter abusivo das cláusulas que não tenham sido objeto de negociação individual relativas à definição do objeto principal do contrato: (i) O artigo 3.º, n.º 1, da Diretiva 93/13/CEE, interpretado de acordo com a alínea i) da lista indicativa referida no n.º 3 do mesmo artigo, opõe-se a que, num contrato de seguro de grupo contributivo, a seguradora possa opor à pessoa segurada uma cláusula de exclusão ou de limitação do risco segurado que não lhe tenha sido comunicada e que, em consequência, a pessoa segurada não tenha tido oportunidade de conhecer; (ii) ainda que, simultaneamente, a legislação nacional responsabilize o tomador do seguro pela violação do dever de comunicação/informação das cláusulas pelos danos causados à pessoa segurada, responsabilidade essa, porém, que, em regra, não permite colocar a pessoa segurada na situação em que estaria se a cobertura do seguro tivesse funcionado?

A colocação destas questões resultou das dúvidas que a solução que aqui é defendida pelo Recorrente suscitava face ao efeito útil da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de Abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, tendo em conta, designadamente, os acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) de 10 de Maio de 2001 (processo C-144/99) em ação da Comissão das Comunidades Europeias versus Reino dos Países Baixos, por incumprimento da obrigação de transposição da Diretiva 93/13/CEE; de 3 de Junho de 2010 (processo C-484/08) em pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal Supremo de Espanha, no processo Caja de Ahorros y Monte de Piedad de Madrid versus Asociación de Usurarios de Servicios Bancarios (Ausbanc); e de 21 de Março de 2013 (processo C-92/11) em pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Bundesgerichtshof (Alemanha), no processo RWE Vertrieb AG versus Verbraucherzentrale Nordrhein‑Westfalen e.V.

Por acórdão de 20 de Abril de 2023, proferido no Processo C‑263/22, o Tribunal de Justiça da União Europeia respondeu à primeira e à segunda questões suscitadas em sede de reenvio prejudicial da seguinte forma:

O artigo 4.º, n.º 2, e o artigo 5.º da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, lidos à luz do vigésimo considerando desta diretiva, devem ser interpretados no sentido de que: um consumidor deve ter sempre a possibilidade de tomar conhecimento, antes da celebração de um contrato, de todas as cláusulas que este contém.

E respondeu à decisiva terceira questão prejudicial nos seguintes termos:

O artigo 3.º, n.º 1, e os artigos 4.º a 6.º da Diretiva 93/13 devem ser interpretados no sentido de que: quando uma cláusula de um contrato de seguro relativa à exclusão ou à limitação da cobertura do risco segurado, da qual o consumidor em causa não pôde tomar conhecimento antes da celebração desse contrato, é qualificada de abusiva pelo juiz nacional, este tem de afastar a aplicação dessa cláusula a fim de que não produza efeitos vinculativos relativamente a esse consumidor.

Da leitura da fundamentação desta última resposta 2 é possível verificar qual foi a interpretação que o Tribunal de Justiça da União Europeia efetuou daqueles preceitos da Diretiva 93/13, relativamente à questão colocada no presente recurso.

Lê-se nos parágrafos 35 a 56, desse acórdão:

35 Segundo jurisprudência constante, no âmbito da cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça instituída pelo artigo 267.º TFUE, compete a este dar ao órgão jurisdicional nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, compete ao Tribunal de Justiça, se necessário, reformular as questões que lhe foram apresentadas e, nesse contexto, interpretar todas as disposições do direito da União de que os órgãos jurisdicionais nacionais necessitem para decidir dos litígios que lhes são submetidos, ainda que essas disposições não sejam expressamente referidas nas questões que lhe são apresentadas por esses órgãos jurisdicionais (v., nomeadamente, Acórdão de 4 de outubro de 2018, Kamenova, C‑105/17, EU:C:2018:808, n.º 21 e jurisprudência referida).

36 A este respeito, há que constatar, em primeiro lugar, que, com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio se interroga sobre a interpretação do artigo 3.º, n.os 1 e 3, da Diretiva 93/13, lido em conjugação com o anexo, n.º 1, alínea i), desta, e sobre as consequências dessa interpretação para a oponibilidade, por uma companhia de seguros em relação a um consumidor, no âmbito de um contrato de seguro de grupo, de uma cláusula de exclusão ou de limitação da cobertura do risco segurado que esse consumidor não teve oportunidade de conhecer antes da celebração desse contrato. Embora resulte do pedido de decisão prejudicial que, no caso em apreço, o consumidor não pôde tomar conhecimento das cláusulas em causa antes da celebração do contrato de seguro em causa no processo principal, esse órgão jurisdicional não refere que este contrato contém uma cláusula que, como enuncia esse anexo, n.º 1, alínea i), tem por objeto ou efeito «[d]eclarar verificada, de forma irrefragável, a adesão do consumidor a cláusulas que este não teve efetivamente oportunidade de conhecer antes da celebração do contrato». Daqui resulta que não é necessário apreciar esta questão à luz do artigo 3.º, n.º 3, desta diretiva nem do referido anexo.

37 Em segundo lugar, resulta do pedido de decisão prejudicial que, com essa questão, o referido órgão jurisdicional pretende saber, por um lado, quais são as consequências da não tomada de conhecimento, antes da celebração de um contrato, de cláusulas relativas ao objeto principal desse contrato, como as cláusulas relativas à exclusão ou à limitação da cobertura do risco segurado, sobre a apreciação do caráter abusivo dessas cláusulas, bem como, por outro, se essas cláusulas, quando não tiverem sido objeto de uma comunicação prévia ao consumidor, lhe são oponíveis quando este não tenha podido tomar conhecimento delas e se o facto de o tomador do seguro poder ser considerado responsável por essa não tomada de conhecimento constitui um fator que deve ser tido em conta para efeitos dessa apreciação.

38 Por conseguinte, há que considerar que, com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 3.º, n.º 1, e os artigos 4.º a 6.º da Diretiva 93/13 devem ser interpretados no sentido de que uma cláusula de um contrato de seguro relativa à exclusão ou à limitação da cobertura do risco segurado, da qual o consumidor não pôde tomar conhecimento antes da celebração desse contrato, pode ser oposta a esse consumidor, mesmo quando o tomador do seguro possa ser considerado responsável por essa não tomada de conhecimento e ainda que tal responsabilidade não coloque o referido consumidor na situação em que estaria se essa cobertura tivesse funcionado.

39 Segundo jurisprudência constante, a competência do Tribunal de Justiça relativa ao exame do caráter eventualmente abusivo de uma cláusula contratual, na aceção do artigo 3.º, n.º 1, da Diretiva 93/13, abrange a interpretação dos critérios que o órgão jurisdicional nacional pode ou deve aplicar no exame dessa cláusula à luz das disposições desta diretiva. Não obstante, compete ao referido órgão jurisdicional pronunciar‑se, tendo em conta esses critérios, sobre a qualificação concreta de uma determinada cláusula contratual em função das circunstâncias próprias do caso em apreço. Daqui resulta que o Tribunal de Justiça se deve limitar a fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio as indicações que este deve ter em conta para apreciar o caráter abusivo da cláusula em causa (v., neste sentido, Acórdão de 3 de setembro de 2020, Profi Credit Polska, C‑84/19, C‑222/19 e C‑252/19, EU:C:2020:631, n.° 91 e jurisprudência referida).

40 A este respeito, importa recordar, em primeiro lugar, que, no que respeita ao artigo 5.° da Diretiva 93/13, o caráter transparente de uma cláusula contratual constitui um dos elementos a ter em conta no âmbito da avaliação do caráter abusivo dessa cláusula que cabe ao juiz nacional efetuar nos termos do artigo 3.°, n.° 1, desta diretiva [Acórdão de 12 de janeiro de 2023, D.V. (Honorários de advogado — Princípio do valor por hora), C‑395/21, EU:C:2023:14, n.º 47 e jurisprudência referida].

41 Ora, se o caráter não transparente de uma cláusula contratual, devido à sua falta de clareza ou de compreensibilidade, pode constituir um elemento a ter em conta no âmbito da avaliação do caráter abusivo dessa cláusula, a falta de transparência, devido à impossibilidade de o consumidor tomar conhecimento da referida cláusula antes da celebração do contrato em causa, pode, por maioria de razão, constituir um elemento dessa natureza.

42 Em segundo lugar, no âmbito da apreciação do caráter abusivo de uma cláusula contratual, que cabe ao órgão jurisdicional nacional efetuar nos termos do artigo 3.º, n.º 1, da Diretiva 93/13, incumbe a esse órgão jurisdicional avaliar, num primeiro momento, o possível desrespeito da exigência de boa‑fé e, num segundo momento, a existência de um eventual desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, na aceção desta última disposição (v., neste sentido, Acórdão de 3 de outubro de 2019, Kiss e CIB Bank, C‑621/17, EU:C:2019:820, n.° 49 e jurisprudência referida). De acordo com o artigo 4.º, n.º 1, dessa diretiva, o referido órgão jurisdicional deve efetuar essa apreciação tomando como referência, nomeadamente, o momento da celebração do contrato e todas as circunstâncias que rodearam a sua celebração.

43 No que respeita, por um lado, à exigência de boa‑fé, importa salientar que, como resulta do décimo sexto considerando da Diretiva 93/13, no âmbito da apreciação da boa‑fé, há que ter em conta, nomeadamente, a força das respetivas posições de negociação das partes e a questão de saber se o consumidor foi de alguma forma incentivado a manifestar o seu acordo com a cláusula em questão.

44 No caso em apreço, sem prejuízo das verificações que caberá ao órgão jurisdicional de reenvio efetuar, LP alegou a este respeito, nas suas observações escritas, que a ela e ao seu marido foi «exigido» que celebrassem um contrato de seguro a fim de obterem o mútuo bancário em causa para a compra de um bem. Nessa ocasião, unicamente assinaram a proposta de adesão a esse contrato que lhes foi apresentada pelo banco, nunca tendo sido informados de todo o seu conteúdo. Essa proposta de adesão foi preenchida pelo empregado do banco que lhes apresentou o referido contrato para ser outorgado. LP subscreveu a referida proposta, sem que lhe tenha sido lida qualquer cláusula de exclusão da cobertura do risco segurado.

45 Por outro lado, quanto à questão de saber se, a despeito da exigência de boa‑fé, uma cláusula contratual dá origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e as obrigações das partes no contrato decorrentes deste último, o juiz nacional deve verificar se o profissional, ao negociar de forma leal e equitativa com o consumidor, podia razoavelmente esperar que este aceitasse essa cláusula, na sequência da negociação individual (v., nomeadamente, Acórdãos de 3 de setembro de 2020, Profi Credit Polska, C‑84/19, C‑222/19 e C‑252/19, EU:C:2020:631, n.º 93 e jurisprudência referida, e de 10 de junho de 2021, BNP Paribas Personal Finance, C‑776/19 a C‑782/19, EU:C:2021:470, n.º 98 e jurisprudência referida).

46 Por conseguinte, para apreciar se as cláusulas de um contrato, como as que estão em causa no processo principal, dão origem a esse desequilíbrio em detrimento do consumidor, há que ter em conta todas as circunstâncias de que o profissional ou o seu representante podiam ter conhecimento no momento da celebração desse contrato e que fossem suscetíveis de influenciar a execução posterior do referido contrato. Assim, o órgão jurisdicional nacional deverá determinar se o consumidor recebeu todas as informações suscetíveis de ter incidência no alcance das obrigações que lhe incumbem por força do mesmo contrato e que lhe permitissem avaliar, nomeadamente, as consequências decorrentes deste último.

47 A este respeito, a circunstância de o consumidor não ter podido tomar conhecimento de uma cláusula contratual antes da celebração do contrato em causa constitui um elemento essencial na apreciação do eventual caráter abusivo dessa cláusula, uma vez que essa circunstância poderia levar o consumidor a assumir obrigações que de outro modo não teria aceitado e, por conseguinte, poderia ser suscetível de dar origem a um desequilíbrio significativo entre as obrigações mútuas das partes nesse contrato.

48 No caso em apreço, LP não teve a oportunidade de tomar conhecimento das cláusulas do contrato de seguro relativas à exclusão ou à limitação da cobertura do risco segurado nem de informar a Ocidental do seu estado de saúde no momento da celebração desse contrato, uma vez que não preencheu nenhum questionário relativo ao seu estado de saúde no momento da adesão ao referido contrato.

49 Nestas circunstâncias, que devem ser objeto de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, a aplicação de tais cláusulas de exclusão ou de limitação da cobertura do risco segurado leva a que o consumidor deixe de beneficiar dessa cobertura em caso de materialização desse risco e a que, em princípio, a partir da data da verificação de uma incapacidade permanente resultante de um problema de saúde previamente existente, que não comunicou à seguradora por falta de oportunidade, tenha de pagar ele mesmo as prestações do mútuo em dívida. Eventualmente, terá de pagar pelo menos uma parte destas, quando, por força de uma regulamentação nacional aplicável como a que está em causa no processo principal, o banco for considerado responsável pelo dano causado pela falta de comunicação dessas cláusulas, sem, no entanto, colocar esse consumidor na situação em que estaria se essa cobertura tivesse funcionado. O referido consumidor pode, assim, ver‑se confrontado com uma situação em que, devido a uma perda de rendimentos resultante da sua incapacidade permanente, lhe é difícil ou mesmo impossível reembolsar essas prestações, apesar de ter sido precisamente contra este risco que se pretendeu proteger com a adesão a um contrato de seguro, como o que está em causa no processo principal.

50 Assim, ao não permitir ao consumidor em causa tomar conhecimento, antes da celebração desse contrato, da informação relativa às referidas cláusulas contratuais e a todas as consequências da celebração do referido contrato, o profissional faz esse risco, decorrente de uma eventual incapacidade permanente, recair totalmente, ou pelo menos parcialmente, sobre esse consumidor.

51 Se o órgão jurisdicional de reenvio vier a considerar, após apreciação das circunstâncias específicas do caso concreto, que, no processo principal, a despeito da exigência de boa‑fé, a Ocidental não podia razoavelmente esperar, respeitando a exigência de transparência em relação a LP, que esta última aceitasse, na sequência de uma negociação individual, as cláusulas contratuais em causa, esse órgão jurisdicional deverá concluir que estas têm um caráter abusivo.

52 Segundo jurisprudência constante, depois de uma cláusula ser declarada abusiva e, consequentemente, nula, incumbe ao juiz nacional, em conformidade com o artigo 6.º, n.º 1, da Diretiva 93/13, abster‑se de aplicar a referida cláusula para que a mesma não produza efeitos vinculativos para o consumidor, salvo se este último a isso se opuser (Acórdão de 16 de julho de 2020, Caixabank e Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, C‑224/19 e C‑259/19, EU:C:2020:578, n.º 50).

53 No caso em apreço, daí resultaria que a cláusula de exclusão ou de limitação da cobertura do risco segurado não poderia ser oponível a LP. Esta conclusão não pode ser posta em causa por uma regulamentação nacional, como a referida pelo órgão jurisdicional de reenvio, nos termos da qual um tomador de seguro que não tenha cumprido o dever de comunicação das cláusulas contratuais, que lhe incumbe por força dessa regulamentação, pode ter de indemnizar pelo dano resultante dessa falta de comunicação sem permitir, no entanto, restabelecer a situação de direito e de facto em que o consumidor estaria se tivesse beneficiado dessa cobertura. A referida regulamentação, que é relativa às consequências, em matéria de responsabilidade civil, dessa falta de comunicação, não pode influenciar a inoponibilidade de uma cláusula contratual qualificada de abusiva em relação ao consumidor, em aplicação da Diretiva 93/13.

54 De resto, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a declaração do caráter abusivo de uma cláusula constante de um contrato deve permitir restabelecer a situação de direito e de facto em que o consumidor se encontraria na falta dessa cláusula [Acórdão de 12 de janeiro de 2023, D.V. (Honorários de advogado — Princípio do valor por hora), C‑395/21, EU:C:2023:14, n.º 54 e jurisprudência referida].

55 Contudo, a inoponibilidade dessa cláusula contratual qualificada de abusiva em relação ao consumidor não prejudica as eventuais consequências, em matéria de responsabilidade civil do tomador do seguro perante a seguradora, da falta de comunicação dessa cláusula ao consumidor pelo tomador do seguro.

56 Resulta de todas estas considerações que o artigo 3.º, n.º 1, e os artigos 4.º a 6.º da Diretiva 93/13 devem ser interpretados no sentido de que, quando uma cláusula de um contrato de seguro relativa à exclusão ou à limitação da cobertura do risco segurado, da qual o consumidor em causa não pôde tomar conhecimento antes da celebração desse contrato, é qualificada de abusiva pelo juiz nacional, este tem de afastar a aplicação dessa cláusula a fim de que não produza efeitos vinculativos relativamente a esse consumidor.

Quanto à questão que constitui o único objeto do presente recurso, que é a de saber se a não comunicação de uma cláusula limitativa da cobertura do risco segurado pelo tomador de um seguro de grupo, a quem incumbia proceder a essa comunicação, pode ser oposta à seguradora no sentido de se considerar tal cláusula excluída do contrato de seguro, o Tribunal de Justiça da União Europeia foi bem claro quando nos parágrafos 52 e 53 do seu acórdão afirmou perentoriamente que essa conclusão não pode ser posta em causa por uma regulamentação nacional, como a referida pelo órgão jurisdicional de reenvio, nos termos da qual um tomador de seguro que não tenha cumprido o dever de comunicação das cláusulas contratuais, que lhe incumbe por força dessa regulamentação, pode ter de indemnizar pelo dano resultante dessa falta de comunicação sem permitir, no entanto, restabelecer a situação de direito e de facto em que o consumidor estaria se tivesse beneficiado dessa cobertura. A referida regulamentação, que é relativa às consequências, em matéria de responsabilidade civil, dessa falta de comunicação, não pode influenciar a inoponibilidade de uma cláusula contratual qualificada de abusiva em relação ao consumidor, em aplicação da Diretiva 93/13.

Sendo certo que, conforme mais à frente se afirma (parágrafo 55), a inoponibilidade dessa cláusula contratual qualificada de abusiva em relação ao consumidor não prejudica as eventuais consequências, em matéria de responsabilidade civil do tomador do seguro perante a seguradora, da falta de comunicação dessa cláusula ao consumidor pelo tomador do seguro.

Nos termos do artigo 91.º do Regulamento do Processo do Tribunal de Justiça, os acórdãos desse Tribunal, incluindo os proferidos em resposta a reenvio prejudicial, têm força obrigatória desde o dia da sua prolação nos Estados-membros, aplicando-se retroativamente desde o momento da entrada em vigor da norma interpretada.

Esta força obrigatória vincula não só o tribunal nacional que procedeu ao reenvio no processo em que o fez, mas a interpretação do direito europeu por ele efetuada passa a vincular os Estados Membros e todos os tribunais nacionais desses Estados na aplicação futura da legislação objeto de reenvio a casos materialmente idênticos, refletindo o princípio do primado do direito da União Europeia, o qual a nossa Constituição acolhe no seu artigo 8.º, n.º 4 3.

A autoridade interpretativa da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia justifica-se à luz do objetivo primordial da garantia de uniformidade da interpretação e aplicação do Direito da União Europeia no conjunto das ordens jurídicas dos Estados-membros, correspondendo à função atribuída ao Tribunal de Justiça pelo artigo 267.º b), do Tratado sobre o funcionamento da União Europeia.

Estando o Supremo Tribunal de Justiça vinculado à interpretação efetuada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia das normas do direito europeu, resta apenas aplicar no presente recurso a interpretação normativa enunciada no referido acórdão desse Tribunal, de 20 de Abril de 2023, proferido no Processo C‑263/22, que sufraga a posição assumida pelo acórdão recorrido, devendo, por isso, o recurso ser julgado improcedente.


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Decisão

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto pela Ré, confirmando-se a decisão recorrida.


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Custas do recurso pela Ré.

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Notifique.

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Lisboa, 29 de fevereiro de 2024

João Cura Mariano

Afonso Henrique

Emídio Santos

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1. Decidiram pela inoponibilidade à seguradora da falta de comunicação pelo tomador das cláusulas do contrato de seguro de grupo, por considerarem o disposto no artigo 78.º da Lei do Contrato de Seguro, uma norma especial face ao regime das Cláusulas Contratuais gerais, os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça:

  - de 22.01.2009, Proc. 08B4049 (Rel. Custódio Montes);

  - de 17.06.2010, Proc. 51/04 (Rel. Alves Velho);

  - de 12.10.2010, Proc. 646/05 (Rel. Sebastião Póvoas);

  - de 13.01.2011, Proc. 1443/04 (Rel. Serra Baptista);

  - de 29.05.2012, Proc. 7615/06 (Rel. Garcia calejo);

  - de 25.06.2013, Proc. 267/10 (Rel. Silva Gonçalves);

  - de 25.06.2013, Proc. 24/10 (Rel. Lopes do Rego);

  - de 27.03.2014, Proc. 2971/10 (Rel. Moreira Alves);

  - de 11.02.2015, Proc. 2045/08 (Rel. Tomé Gomes), inédito;

  - de 15.04.2015, proc. 385/12 (Rel. Maria dos Prazeres Beleza);

  - de 05.04.2016, Proc. 36/12 (Rel. José Raínho);

  - de 05.05.2016, Proc. 690/13 (Rel. Sebastião Póvoas);

  - de 17.01.2017, Proc. 317/14 (Rel. José Raínho);

  - de 03.03.2017, Proc. 4267/12 (Rel. João Trindade);

  - de 30.11.2017, Proc. 608/14 (Rel. Maria do Rosário Morgado);

  - de 08.03.2018, Proc. 2330/13 (Rel. João Camilo), inédito;

  - de 12.07.2018, Proc. 3016/15 (Rel. Paulo Sá);

  - de 30.05.2019, Proc. 532/17 (Rel. Rosa Tching);

  - de 18.02.2019, Proc. 418/19 (Rel. Maria dos Prazeres Beleza), todos acessíveis em www.dgsi.pt., com exceção dos que se referem como inéditos.

  Pelo contrário, sustentaram a oponibilidade à seguradora da falta de comunicação pelo tomador das cláusulas do contrato de seguro de grupo, nos termos da LCCG, com a consequente exclusão do contrato de cláusulas não comunicadas, os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça:

  - de 11.03.2010, Proc. 1860/07 (Rel. Santos Bernardino);

  - de 14.04.2015, Proc. 294/2002 (Rel. Maria Clara Sottomayor);

  - de 29.11.2016, Proc. 1274/15 (Rel. Fonseca Ramos);

  - de 10.05.2018, Proc. 261/15 (Rel. Henrique Araújo);

- de 18.09.2018, proc. 839/15 (Rel. Fonseca Ramos);

  - de 09.03.2021, Proc. 1197/16 (Rel. Maria João Tomé);

  - de 25.05.2023, Proc. 2224/14 (Rel. Maria da Graça Trigo);

  - de 31.01.2024, Proc. 23306/16 (Rel. Ana Resende), todos acessíveis em www.dgsi.pt.

  No acórdão de 29.05.2015, Proc. 17/13 (Rel. Tomé Gomes), apesar de se afirmar a fidelidade à primeira tese, julgou-se excluída a cláusula em causa, por se ter considerado que o dever de informação do tomador do seguro para com o aderente tem como base um espécimen contratual elaborado pela seguradora, pelo que esta é também pessoalmente responsável pelos vícios ou insuficiências do mesmo e que determinem causalmente o cumprimento deficiente do referido dever de informação, por parte do tomador, podendo assumir então a qualidade de coautora do facto lesivo imputável à mesma.

2. Sobre a extensão da força vinculativa dos acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia, em processo de reenvio, à sua fundamentação, ANA GUERRA MARTINS, Manual de Direito da União Europeia, Almedina, 2012, p. 568.

3. ANA GUERRA MARTINS, ob. cit., p. 567-569, e MIGUEL GORJÃO-HENRIQUES, Direito da União, 7.ª ed., Almedina, 2014, p. 482-483.