Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3159/05.7TBSTS.P2.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
PODERES DA RELAÇÃO
MATÉRIA DE DIREITO
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
Data do Acordão: 11/12/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I - Os poderes do STJ são muito limitados quanto ao julgamento da matéria de facto, cabendo-lhe, fundamentalmente, e salvo situações excepcionais (art. 674.º, n.º 3, in fine, e art. 682.º, n.º 2, do CPC), limitar-se a aplicar o direito aos factos materiais fixados pelas instâncias (682.º, n.º 1, do CPC) e não podendo sindicar o juízo que o tribunal da Relação proferiu em matéria de facto.
II - Contudo, o STJ, como tribunal de revista, pode censurar o modo como a Relação exerceu os poderes de reapreciação da matéria de facto, já que se tal for feito ao arrepio do art. 662.º do CPC, está-se no âmbito da aplicação deste preceito e, por conseguinte, no julgamento de direito.

III - Para além da fundamentação das respostas positivas, o juiz passa a ter de justificar as respostas negativas. A decisão, para além de especificar os fundamentos que foram decisivos para convicção do julgador, tem de proceder à análise crítica das provas.

IV - A fundamentação deve conter, como suporte mínimo, a concretização do meio probatório gerador da convicção do julgador e ainda a indicação, na medida do possível, das razões da credibilidade ou da força decisiva reconhecida a esses meios de prova, a menção das razões justificativas da opção feita pelo julgador entre os meios probatórios de sinal oposto relativos ao mesmo facto.

V - A imposição da fundamentação não impede necessariamente que o tribunal motive em conjunto as respostas a mais do que um facto da base instrutória, quando os factos objecto da motivação se apresentem entre si ligados e sobre eles tenham incidido fundamentalmente os mesmos meios de prova. Essa motivação conjunta pode até ser concretamente aconselhável.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




I - RELATÓRIO 


AA e BB, casados entre si, residentes na Praça ..., nº 4…1, … F, ..., intentaram acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário, contra:

1. CC, divorciada, residente na Rua …, n.º 3…8, …º Dt.º, …;

2. DD e EE, casados entre si, residentes na Rua da …, n.º 3…8, ….º Dt.º, …;

3. FF, viúva, residente na Rua …, n.º 3…8, …º Dt.º, …;

4. GG, viúva, residente na Quinta de …, …, …, …;

5. HH e II, Residentes na Rua de …, …, …;

6. JJ e KK, residentes na R. …, n.º …, ….º andar, …, …, …;

7. LL e MM, residentes na Rua …, n.º 3…8, ….º Dt.º, …;

8. NN e OO, casados, residentes na Av. …, n.º …, …º. Dt.º, …;

9. PP, solteiro, maior, residente na Rua da …, nº. …, apart 1…1, … – …;

10. QQ e RR, casados, residentes na Rua de …, …, …;

11. SS, divorciado, residente na Rua …, 3…8, …º. Dt.º, …;

12. TT, viúva, residente na Rua …, nº. 1…4, …º. Esquerdo, …;

13. UU e VV, casados, residentes na …, nº. …, …, e

14. WW e XX, casados, residentes na Rua …, nº. 3…2, r/c, ….


Pediam os autores a condenação dos réus:

1. A reconhecerem os autores como únicos donos e legítimos proprietários do campo identificado na petição inicial identificado como “…”, por o mesmo fazer parte integrante, na forma, posição e confrontações que apresentam na P.I., do conjunto predial de que são donos e legítimos proprietários;

2. A absterem-se de praticar quaisquer actos que possam perturbar o exercício de tal direito de propriedade;

3. A restituírem aos autores livre de pessoas e bens, o sobredito campo; e

4. No pagamento de custas, condigna procuradoria e o mais na lei.

 

Alegaram, em síntese, que são donos e legítimos proprietários de um conjunto predial formado pelos seguintes imóveis:

a) Prédio rústico, inscrito na respectiva matriz sob o artº. 5…4, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº. 0…3, da freguesia de …; e

b) “Um prédio Urbano composto de casa destinada a habitação, com quintal e anexo, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 3…0 (proveio do artº. 45) descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº. 0…4, da freguesia de …”.

Mais alegaram que tais prédios foram pelos mesmos adquiridos, por escritura pública de compra e venda celebrada em 31.03.1994, a DD e CC.

Invocaram, ainda, a aquisição de tais prédios por usucapião.

Mais alegam que os réus pretendem apossar-se da parcela de terreno conhecida como “Campo …”, atacando, alterando de forma ostensiva, composições, demarcações e confrontações também a propriedade dos autores no que toca à reconstrução que estes efectuaram, de forma correta e de boa fé, no seu prédio urbano. Concretizam que os réus tentam fundamentar a legitimação (constituição) de uma servidão de passagem também à custa dos prédios que eles autores são proprietários.

E tentam fazê-lo “transportando” o logradouro do seu prédio urbano “Casa da …” para o norte do prédio urbano dos autores, “ocupando” o logradouro do prédio urbano destes, conhecido como “Campo …”.

O prédio urbano dos réus “Casa da …” confronta a poente com o prédio urbano dos autores. E a nascente com o prédio rústico dos réus o “Campo da …”.

 

Os réus JJ e mulher KK deduziram contestação a fls. 136 a 142. Defenderam-se por impugnação, alegando que os autores intentaram a presente acção por causa de duas acções que os réus intentaram contra os autores, para assim se defenderem de agravos por eles feitos, em relação ao mesmo prédio e por motivos praticamente coincidentes. Mais alegam que esses factos são o tema das acções intentadas pelos réus contra os autores nos autos de Proc. Nº. 2…6/2002, do …º. Juízo Cível, no qual ambas estão apensadas. Acrescentam que a presente acção respeita às relações físicas entre dois conjuntos de prédios, devidamente representadas na planta topográfica junta aos autos, na qual estão desenhadas três parcelas, que se designaram, para melhor compreensão, por “Parcela A”, “Parcela B” e “Parcela C”. Mais referem que o terreno que os autores dizem pertencer-lhes, e por isso reivindicam nesta acção, é parte integrante dos prédios de que os réus são comproprietários, nos termos e com os fundamentos na contestação e que se dão por integralmente reproduzido.

Os réus deduziram, ainda, pedido reconvencional no qual peticionam:

A – Seja declarado que os prédios de que os réus são comproprietários têm os limites definidos na planta topográfica anexada nos autos à contestação que apresentaram, na qual se incluem as áreas representadas nessa planta como “Parcela A” e “Parcela B”, bem como a faixa de terreno representada na planta anexada como documento 2 e referida no artº.15º. da sua contestação.

B) – Condenar-se todas as partes desta acção, máxime os autores, a reconhecerem aqueles limites;

C) Condenar-se os autores a fecharem as portas que abriram, de modo a deitarem para o prédio de que os réus são comproprietários.

D) Condenar-se os autores em custas e procuradoria.


*


No decurso do processo faleceram alguns dos réus, tendo sido proferidas sentenças de habilitação de herdeiros (fls. 132/133; 243; 406/407).

 

A acção esteve suspensa a aguardar a decisão a proferir no processo nº 2…6/2002.


 Foi proferida sentença com o seguinte teor decisório:

Pelo exposto, decide-se totalmente improcedente a acção e absolver-se os réus do pedido.

Quanto ao pedido reconvencional, julga-se o mesmo totalmente procedente, e,

A) – Declara-se que os prédios de que os réus são comproprietários têm os limites definidos na planta topográfica anexada nos autos à contestação que apresentaram, na qual se incluem as áreas representadas nessa planta como “Parcela A” e “Parcela B”, bem como a faixa de terreno representada na planta anexada como documento 2 e referida no artº.15º. da sua contestação.

B) – Condena-se todas as partes desta acção, máxime os autores, a reconhecerem aqueles limites;

C) Condena-se os autores a fecharem as portas que abriram, de modo a deitarem para o prédio de que os réus são comproprietários.


Os autores interpuseram recurso e a Relação, por acórdão de 28.04.2020, decidiu nos seguintes termos:

I - Julga-se improcedente a apelação relativamente à absolvição dos réus dos pedidos formulados pelos autores, confirmando-se nessa parte a sentença recorrida.

II. Na parcial procedência da apelação quanto à parte restante da sentença:

A - Declara-se que os prédios de que os réus são comproprietários têm os limites definidos na planta topográfica anexada A fls. 143, na qual se incluem as áreas representadas nessa planta como “Parcela A” e “Parcela B”;

B - Condenam-se todas as partes desta acção, máxime os autores, a reconhecerem aqueles limites.

C - Absolvem-se os autores do pedido reconvencional formulado em A referente à faixa de terreno representada na planta anexada a fls. 144 e referida no artigo 15º da contestação.

D - Absolvem-se os autores do pedido reconvencional formulado em C -condenação dos autores “a fecharem as portas que abriram, de modo a deitarem para o prédio de que os Ddos. são comproprietários”.


Não se conformando com o acórdão da Relação, os réus JJ e mulher KK, recorreram de revista, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:

1ª - Com o intuito de facilitar a compreensão do objecto deste recurso, considere-se aqui a planta de fls. 143 (e também a de fls. 144), de que, da primeira, se junta uma nova cópia, ilustrada a cores, e com menções orientadoras. Nessa planta estão definidos os perímetros de 2 conjuntos de prédios (cada um com 1 prédio urbano e um prédio rústico).

De harmonia com essa planta, nesta acção estavam em causa a composição física da área de cada conjunto.

Na planta em causa determinaram-se: - a parcela A;

- a parcela B; - a parcela C;

- uma faixa de cerca de 120 m2, entre a parcela B e a parcela C;

- um (dito) “caminho estreito” situado a nascente da a parede da construção existente no prédio dos autores/recorridos.

2ª - Na sua acção os recorridos – Autores nesta acção – alegaram ser donos de um “conjunto” de 2 prédios , na freguesia de ... – ..., descritos sob o n.ºs 0…3 (rústicos) e 0…4 (o urbano), que correspondem à parcela C, sustentando que a parcela B e a faixa com 120 m2 e o dito “caminho estrito” integravam esse conjunto predial.

Por seu lado, e em reconvenção, os recorrentes alegaram que eram comproprietários também de um conjunto predial, formado pelo prédio urbano descrito sob o n.º 0…0 e pelo prédio rústico descrito sob o n.º 0…1, também situados no mesmo lugar, e confinando com o “conjunto” predial dos recorridos, e que esse conjunto integrava a parcela A, parcela B e a referida área de 120 m2, e que o aludido “caminho estreito nunca existira.

3ª - Os recorridos não puseram em causa o domínio da parcela A, nem os recorrentes puseram em causa o domínio da parcela C.

4ª - Os recorridos pediram que os recorrentes fossem condenados a reconhecerem que a parcela B (a que chamavam “Campo …”) era parte integrante do conjunto predial de que são donos e legítimos proprietários, e a restituírem-lhes essa parcela de terreno, representada como parcela B na planta de fls. 143.

5ª - Por seu lado, e em reconvenção, os recorridos, com base no que alegaram, pediram que “A Reconvenção (fosse) julgada provada e procedente, e, em consequência:

A - Declarar-se que os prédios de que os Ddos. (os recorrentes) são comproprietários têm os limites definidos na planta topográfica anexada como documento 1 (fls. 143) a esta contestação, na qual se incluem as áreas representada nessa planta como parcela A e parcela B, bem como a faixa de terreno na planta anexada como documento 2, e referida no art.º 15 da contestação;

B - Condenar-se todas as partes desta acção, maxime os Dtes. (ora recorridos) a reconhecerem aqueles limites;

C - Condenar-se os Dtes. a fecharem as portas que abriram, de modo a deitarem para o prédio de que os Ddos. são comproprietários.

6ª - A acção que os recorridos intentaram improcedeu integralmente na sentença proferida no Tribunal de 1.ª Instância e no acórdão proferido pelo TR... – pelo que, quanto a esta parte, há “dupla” conforme de julgados.

7ª - A reconvenção procedeu integralmente.

8ª - No acórdão recorrido foi confirmado que, no “conjunto predial” de que os recorrentes são comproprietários, a parcela de terreno representada pela parcela b na planta de fls. 143 integra esse “conjunto predial”, e que os limites dos prédios são os descritos nessa planta.

9ª - Sob as alíneas C e D do dispositivo do acórdão que proferiu, o TR… absolveu os recorridos dos pedidos relativos quanto à propriedade da ajuizada faixa com cerca de 120 m2, bem como os absolveu e da condenação ao fecho das portas.

10ª - Essa absolvição não tem justo fundamento, pelo que deve ser revogada.

11ª - Nos artigos 33 a 34 da fundamentação de facto foi julgado provado que, “Quando foi feita a partilha da herança dos falecidos PP e mulher (que integrava os 2 “conjuntos prediais”), os limites entre os dois prédios foram definidos pelas partes interessadas” (33). Mas, “De acordo com essa definição, os prédios que os autores ficaram com os limites representados na planta topográfica ora anexada, nas partes que confinam com os prédios de que os Réus (recorrentes) são comproprietários, com exclusão da parte referida no art.º 15 da contestação, que sempre foi parte integrante dos prédios de que os Réus são comproprietários (cf. docs. 1 e 2)”.

12ª - Quanto a esta parte, que é a da absolvição constante da alínea C do dispositivo do acórdão recorrido, o erro é manifesto, pelo que a decisão deverá ser revogada, ficando a valer integralmente a decisão da alínea A da sentença proferida em 1.ª Instância, por força do disposto nos art.ºs 1305.º e 1311.º do C.C e 674.º, 1, a) do C.P.C.

13ª - A decisão decorrente da alínea D do dispositivo do acórdão recorrido também deve ser revogada, de modo que, anulando-se esta decisão, o TR… – tribunal recorrido – reformule a matéria de facto, e para que seja repristinada a decisão da alínea C que integra o dispositivo da sentença proferida pelo tribunal de 1.ª instância, que condenou “autores a fecharem as portas que abriram, de modo a deitarem para o prédio de que os réus são comproprietários”.

14ª - Esta decisão terá cobrado respaldo no facto do TR… ter julgado não provado que “As portas abertas pelos autores foram abertas na linha divisória dos dois prédios”.

O TR… não podia ter julgado não provado tal facto porque:

1º - A delimitação dos prédios está determinada pelo dispositivo da alínea B proferida no tribunal de 1.ª instância, confirmada pela alínea B do dispositivo do acórdão recorrido;

2º – Dessa delimitação decorre que a parede do lado norte da parte urbana do “conjunto predial” dos autores está na linha divisória com a parcela B e a parede do lado nascente está na linha divisória com a parcela A.

3º – Os autores aceitaram que as portas estão junto a essas linhas divisórias nos artigos 42, 72, 74, 75, 76, 83 e 84, mas negavam que essas portas deitassem directamente para o “conjunto predial” de que os recorrentes são comproprietários, porque alegavam a propriedade da parcela de terreno  representada como parcela B, na planta de fls. 143, e de um “caminho estreito” junto à parede do lado nascente da parte urbana do seu “conjunto predial”.

4º – Ficou provado que a parcela B integra os prédios da parcela A, e não foi feita qualquer prova da existência do “caminho estreito”.

15ª - Resulta do descrito na conclusão anterior que o facto do artigo 10.º dos factos julgados não provados é contraditório com o reconhecimento (implícito) dos autores de que as portas estão em linhas divisórias dos dois “conjuntos prediais”, como é contraditório com o facto provado sob o artigo 15 dos factos provados e o dispositivo da alínea B de cada uma das decisões.

16ª - A justa solução deste aspecto – que é a de respeitar a verdade, sem a qual a renegação do que é efectivamente a justiça -, convoca o sentido axiológico-normativo do disposto nos artigos 20.º, 1 e 4 e 202.º, 1 e 2 da Constituição, conjugado com o disposto nos artºs 674.º, 1, b) e 3, 682.º, 3, o n.º 4 do art.º 607.º, (na parte que diz que “o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo”) e art.º 662.º, 2, a) do C.P.C.

17ª - Procedendo a invocada contradição do artigo 10 dos factos não Provados com o artigo 15 dos Factos Provados e os artigos 42, 72, 74, 75, 76, 83 e 84 da

réplica, deve ser revogado a alínea D do dispositivo do TR..., a fim deste Tribunal, não só revogar o facto do artigo 10 dos Factos Não Provados, incluindo-o nos factos provados, como ampliar ainda a matéria dos Factos Provados com a matéria dos artigos 46 a 67 da constestação/reconvenção.

18ª - Caso assim se não entenda, e sendo certo que o facto do artigo 10 dos Factos Não Provados não foi julgado provado porque, efectivamente, essas portas não estivessem nas linhas divisórias dos prédios, mas porque o TR... ficou com dúvidas, então a decisão deverá ser no sentido deste Tribunal, por si ou pelo Tribunal de 1ª instância, remover essa dúvida, através de inspecção ao local, ou por prova pericial, pois a situação em causa postula uma regulação definitiva para pacificar as partes. Doutro modo continua a ser foco de conflitos perpétuos entre as partes, causada por tal indefinição.

Como violou normas invocadas nestas conclusões, a parte da decisão que absolveu os autores deverá ser revogada.


Os autores contra-alegaram, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido e ainda pelo indeferimento da pretendida inspecção ou perícia.


Colhidos os vistos, cumpre decidir.


II - FUNDAMENTAÇÃO


A) Fundamentação de facto


Mostram-se provados os seguintes factos:

1. Encontra-se inscrito a favor dos autores um conjunto predial formado pelos seguintes imóveis:

a) "Prédio rústico, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 5…4, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.° 0…3, da freguesia de ..." (Doc. 1 e 10), e

b) "Um prédio urbano composto de casa destinada a habitação, com quintal e anexo, inscrito na respectiva matriz, sob o artigo 3…0 (proveio art. 45) descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o 0…4, da freguesia de ..." (Doc. 1 e 10).

2. Tais prédios foram adquiridos, pelos aqui AA., por escritura pública de compra e venda celebrada em 31/03/1994, a DD e CC (aqui las e 2 R. s), conforme Doc. 2;

3. Que tinham adquirido tais prédios, por doação que receberam de seus pais, FF e YY (Doc. 3);

4. Que por sua vez os tinham adquirido por aqueles lhes terem sido adjudicados (verbas 44 em processo de inventário facultativo que correu termos no …° Juízo, deste Tribunal sob o n.º 26/90 (Doc. 4) no referido inventário de 26/90, constava uma verba, a n° 68, de que faziam parte quatro áreas distintas de terreno agrícola, sendo uma delas o " Campo … " (doc. 4).

5. E à data desse mesmo inventário, o prédio urbano dos AA, referido supra em 1- b), ". Casa … ", encontrava-se inscrito na matriz sob o n.º …, com área coberta de 75 m2 tendo constituído a verba 44 nesse inventário (Doc. 4),

6. Verba 44 essa que conjuntamente com a verba 11.0 43 dos aqui RR. foram dadas como pertencentes à descrição predial com o n.º 1…4 da Cons. Registo Predial de ...,

7. E ao qual (1…4) pertencia ainda um prédio urbano (verba 45) pertencente, hoje aos Réus, (Doc. s 5, 6 e 7).

8. As verbas 43 e 44 no que toca às respectivas áreas descobertas estavam omissas às Finanças (Doc.s 5 e 6),

9. Estando os prédios rústicos dos autores e réus omissos na Conservatória do Registo Predial.

10. Contudo em 21/07/1992, FF, deu entrada do mod. 129, declaração para inscrição ou alteração de inscrições de prédios urbanos na matriz, relativa ao art. 45,

11. Com a justificação de que "se encontravam desactualizadas as confrontações do prédio, bem como da respectiva matriz não constar a área descoberta" (Doc. 8).

12. Fez então menção das seguintes confrontações:

- Norte com Estrada;

- Sul com FF; - Poente com caminho; e

- Nascente com … (prédio urbano inscrito na matriz sob o art. …).

13. Ao prédio urbano foi atribuindo um novo artigo, o art. 3…0, tendo agora para além de 75 m2 de área coberta, 1.100 m2 de área descoberta.

14. A aquisição dos autores foi inscrita a seu favor na Conservatória do Registo Predial de ... em …/04/1994, conforme Doc. 1.

15. Os prédios dos autores estão confinados ao perímetro representado na planta topográfica anexa a fls. 143 dos autos.

16. Os réus são comproprietários de dois prédios, que mais não são que um prédio misto, os quais correspondem às "PARCELAS A" e "PARCELA B", representadas na aludida planta topográfica (doc. 1).

17. Os réus são donos e legítimos possuidores de 4/9 indivisos, por isso comproprietários, da raiz ou nua propriedade, dos prédios seguintes:

a) Prédio destinado a habitação, sito no lugar de … ou …, freguesia de ..., concelho de ..., a confrontar do norte com o caminho, e dos demais lados, e de harmonia com o registo, com o prédio a seguir identificado, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n°. 0…0 e inscrito na matriz no artigo …;

b) .Campo da …, sito no lugar de ... ou …, freguesia da ..., concelho de ..., a confrontar do norte com Dr. …, herdeiros, e de sul, nascente e poente com …, herdeiros, e conforme consta do registo, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o 0…1 e inscrito na matriz no artigo 5…2.

18. Esses dois prédios estão funcionalmente unificados como prédio misto, ou seja, são fruídos e usados conjuntamente (cf. doc.1 junto com a contestação).

19. Os réus JJ e KK, adquiriram os referidos prédios por

contrato de compra e venda (doc. 3).

20. Os réus, por si e antepossuidores, compossuem esse prédio desde há mais de 10, 15, 20 e 30 anos, com título, de boa fé, pública, pacífica e ininterruptamente, com exclusão de outrem.

21. Com a convicção de que não lesavam nem lesam o direito ou interesse de outrem.

22. Durante o alegado tempo, tem-no habitado, dado de arrendamento, cultivado,

feito obras, colhido frutos, recebido rendas e pago impostos.

23. Sempre assim agiram perante e aos olhos de toda a gente.

24. Sem a oposição de ninguém.

25. Por todos aceites como donos (comproprietários) desses prédios.

26. E sem qualquer interrupção de tempo ou hiato temporal.

27. Os réus têm agido, no modo e pelo tempo descritos, em relação aos identificados prédios, com a convicção e vontade de que exercem direito próprio.

28. Os autores compraram os prédios, cuja propriedade invocam na petição, aos demandados DD e marido EE e CC, que, por sua vez, os teriam adquirido de seus pais YY e mulher FF (Docs. 2 e 3 juntos à petição).

29. Quer os prédios dos autores, quer os que os réus são comproprietários, pertenceram à herança aberta por morte de PP e mulher … (doc. 4 junto à petição).

30. Atentas as suas características físicas, esses prédios integravam uma exploração agrícola.

31. O conjunto desses quatro prédios tinham várias zonas de comunicação entre si, nomeadamente portas, um caminho deligação entre a parte rústica da" PARCELA A" com o caminho público existente do lado nascente que passava pela "PARCELA C", sendo até certo que, em grande parte, nem havia muros de vedação, mas apenas alguns desníveis entre cotas de superfície (doc. 1).

32. Por isso, em algumas zonas de fronteira, os limites não estavam bens definidos.

33. Quando foi feita a partilha da herança dos falecidos … e mulher, os limites entre os dois prédios foram definidos pelas partes interessadas.

34. De acordo com essa definição, os prédios dos autores ficaram com os limites representados na planta topográfica ora anexada, nas partes em que confinam com os prédios de que os réus são comproprietários, com exclusão da parte referida no art°. 15 da contestação, que sempre foi parte integrante dos prédios de que os réus são comproprietários (cf. docs. 1 e 2).

35. Aquando da partilha referida, a parte urbana do prédio dos autores era o local onde se encontrava o alambique da exploração agrícola dos autores da sucessão referida na petição inicial e na contestação.

36. Na parede dessa construção, do lado representado como "PARCELA B", na planta anexada, havia uma porta pela qual se fazia a ligação entre os dois prédios (doc. 1),

37. E, a cerca de 6 metros da parede do lado oposto dessa construção, havia outra porta para se fazer o acesso entre as partes rústicas dos dois prédios (doc. 1).

38. As negociações de venda dos prédios que dos autores foram levadas a cabo pela FF e marido, com o conhecimento dos réus DD e marido e CC.

39. Nessas negociações foi dado conhecimento aos autores dos limites que tinham os prédios que estes pretendiam adquirir, dos lados em que estes confinam com aqueles de que os réus são comproprietários.

40. Os limites desses prédios são os definidos na planta topográfica anexada a fls. 143.

41. A "PARCELA B" da planta anexada, integra o prédio dos réus.

42. Os autores, tendo celebrado o contrato de compra e venda há mais de 20 anos, nunca ocuparam a parcela de terreno representada como "PARCELA B" na planta anexada.

43. Ao contrário do que têm feito em todo o restante prédio, quer na parte rústica quer na parte urbana, onde têm feito avultadas obras de transformação.


Factos não provados:

1. Os autores tenham adquirido, por força da referida escritura de compra e venda, um conjunto predial em que se incluía uma área denominada "Campo … ";

2. Por força da declaração de alterações (num processo análogo a um destaque) aludida supra nos factos provados, passou a fazer parte integrante do seu prédio urbano.

3. O conjunto predial dos autores tenha ficado assim, constituído, para além do prédio rústico, por campos de cultivo, celeiro, eira e caminho rústico, por um prédio urbano, com habitação conhecida por "Casa … " e com anexo de rés-do-chão e 1° andar onde se situam também palheiros e currais.

4. Conjunto demarcado em todo o seu perímetro por muros de pedra que o delimitam dos demais prédios que com ele confinam bem como da via pública,

5. Sendo que tal confrontação do prédio urbano está perfeitamente delimitado a nascente, relativamente ao prédio urbano dos réus por um muro de cerca de meio metro de altura onde estão cravadas estacas de suporte de arames para vinha,

6. E ainda uma cancela em ferro dos autores que demarca o recuo efectuado pelos mesmos da parede e muros do lado nascente do seu prédio.

7. Os prédios dos autores estão confinados ao perímetro representado na planta topográfica anexa a fls. 143 dos autos, com exclusão de uma faixa de terreno, com cerca de 30 metros de extensão por 4 metros de largura, cuja área é de cerca de 120 m, a qual se situa do lado sul dos prédios dos Autores, junta à designada (na planta topográfica junta a fls. 143) por "PARCELA B".

8. Quando as partes fizeram a definição dos limites dos dois prédios, também ficou assente que os adquirentes dos prédios dos autores, FF e marido, deixavam de poder usar essas portas, e que as deveriam fechar, quando isso lhes fosse exigido.

9. Nas negociações de venda dos prédios dos autores foi dado conhecimento a estes da extinção de qualquer eventual direito de utilização da porta referida no facto nº 36.

10. As portas abertas pelos autores foram abertas na linha divisória dos dois prédios.


B) Fundamentação de direito 


As questões colocadas e que este tribunal deve decidir, nos termos dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do novo Código de Processo Civil, são as seguintes:

 - Erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa;

- A questão de direito.

Previamente à solução das questões que importam resolver, diremos que as conclusões 1ª a 10ª constituem um simples relatório sintético do desenvolvimento processual dos autos e, por isso, não assumem qualquer relevo para a boa decisão da causa.


As conclusões 11ª e 12ª têm importância para a questão de direito a que se respeitam.

As restantes conclusões 13ª a 18ª referem-se ao erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, nos termos do disposto no artigo 674º nº 3 do Código de Processo Civil.


ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS E NA FIXAÇÃO DOS FACTOS MATERIAIS DA CAUSA

Alegam os apelantes que o tribunal recorrido deve proceder à reformulação da matéria de facto a fim de revogar a alínea D) do dispositivo do acórdão recorrido e repristinar a decisão contida na alínea C) da sentença da primeira instância

O Tribunal da Relação deu como não provado no nº 10 que “as portas abertas pelos autores foram abertas na linha divisória dos dois prédios”.

O mesmo tribunal não podia ter julgado não provado tal facto.


Além disso, o facto não provado nº 10 é contraditório com o reconhecimento (implícito) dos autores de que as portas estão em linhas divisórias dos dois “conjuntos prediais”, como é contraditório com o facto provado sob o artigo 15 dos factos provados e o dispositivo da alínea B de cada uma das decisões.

Procedendo a invocada contradição do artigo 10 dos factos não provados com o artigo 15 dos factos provados e os artigos 42, 72, 74, 75, 76, 83 e 84 da réplica, deve ser revogado a alínea D do dispositivo do TR..., a fim deste tribunal, não só revogar o facto do artigo 10 dos factos não provados, incluindo-o nos factos provados, como ampliar ainda a matéria dos factos provados com a matéria dos artigos 46 a 67 da contestação/reconvenção.

 Caso assim se não entenda, e sendo certo que o facto do artigo 10 dos Factos Não Provados não foi julgado provado porque, efectivamente, essas portas não estivessem nas linhas divisórias dos prédios, mas porque o TR... ficou com dúvidas, então a decisão deverá ser no sentido deste tribunal, por si ou pelo tribunal de 1ª instância, remover essa dúvida, através de inspecção ao local, ou por prova pericial, pois a situação em causa postula uma regulação definitiva para pacificar as partes.  


A parte contrária pronunciou-se no sentido de que o Supremo Tribunal de Justiça não pode interferir na matéria de facto já assente, sob pena de violação do disposto no artigo 674º nº 3 do CPC. Concluem os recorridos pela inadmissibilidade do recurso de revista.


Cumpre decidir.

Como é sabido, os poderes do Supremo Tribunal de Justiça são muito limitados quanto ao julgamento da matéria de facto, cabendo-lhe, fundamentalmente, e salvo situações excepcionais (artigo 674º nº 3 in fine e artigo 682º nº 2 do CPC), limitar-se a aplicar o direito aos factos materiais fixados pelas instâncias (682º nº 1 do CPC) e não podendo sindicar o juízo que o Tribunal da Relação proferiu em matéria de facto.


Efectivamente, preceitua o nº 3 do artigo 674º do CPC que “o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

Contudo, o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, pode censurar o modo como a Relação exerceu os poderes de reapreciação da matéria de facto, já que se tal for feito ao arrepio do artigo 662º do Código do Processo Civil, está-se no âmbito da aplicação deste preceito e, por conseguinte, no julgamento de direito[1].

Ou seja, e nas palavras do acórdão do STJ de 06/07/2011[2], “se a este Supremo Tribunal de Justiça lhe é vedado sindicar o uso feito pela Relação dos seus poderes de modificação da matéria de facto, já lhe é, todavia, possível verificar se, ao usar tais poderes, agiu ela dentro dos limites traçados pela lei”.

Trata-se, por conseguinte, de verificar se o Tribunal da Relação, ao usar os seus poderes, respeitou a lei processual, o que é inequivocamente, e como também destaca o Acórdão do STJ de 06/07/2011, matéria de direito[3].


Ocorre agora questionar se houve erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa.


Isso reporta-nos à fundamentação da matéria de facto e à análise crítica da prova.

Se se exige que o Tribunal da Relação forme livremente a sua própria convicção, ainda que a mesma porventura possa coincidir com a (também ela livre) convicção do julgador de 1ª instância, a fundamentação da decisão deve, de modo transparente, mostrar o caminho próprio que o Tribunal da Relação seguiu ao formar essa convicção e ao decidir da matéria de facto.


Nas palavras do Acórdão do STJ de 08.06.2011[4], “motivar é justificar a decisão de modo a que possa ser controlada, desde logo, pelo tribunal e, naturalmente, pelos sujeitos processuais e pelas instâncias de recurso”.

Assim, da fundamentação deve resultar, com clareza, o caminho próprio que o Tribunal da Relação seguiu para formar a sua própria convicção, não podendo ser suficiente uma remissão ou concordância genérica com a fundamentação da 1ª instância, como destacou, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/09/2013[5], anotado em sentido concordante por Miguel Teixeira de Sousa[6], e em que se afirma inequivocamente que “a reapreciação das provas não pode traduzir-se em meras considerações genéricas, sem qualquer densidade ou individualidade que as referencie ao caso concreto”.


Sobre esta matéria prescreve o artigo 607º nº 4 do C.P.Civil o seguinte:

“Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”.


As grandes diferenças no novo regime de fundamentação da sentença ou do acórdão sobre matéria de facto consistem no seguinte:

(i) para além da fundamentação das respostas positivas, o juiz passa a ter de justificar as respostas negativas;

(ii) a decisão, para além de especificar os fundamentos que foram decisivos para convicção do julgador, tem de proceder à análise crítica das provas.


Isto significa que o juiz deve esclarecer quais as provas que o levaram a formar a sua convicção, como acontecia no regime anterior, mas deve ainda analisar criticamente as provas produzidas explicando os motivos que o levaram a optar por uma determinada resposta.


Para Antunes Varela,[7] “além do mínimo traduzido na menção especificada dos meios de prova geradores da convicção do julgador, deve este ainda, para plena consecução do fim almejado pela lei, referir, na medida do possível, as razões da credibilidade ou da força decisiva reconhecida a esses meios de prova”.


Miguel Teixeira de Sousa[8] refere que “o tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado. A exigência da motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz passa de convencido a convincente”.


Em anotação ao artigo 653º nº 2 (a que corresponde o actual 607º nº 4), Lopes do Rego[9] escreveu: “… a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, provada e não provada, deverá fazer-se por indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, o que compreenderá não só a especificação dos concretos meios de prova, mas também a enunciação das razões ou motivos substanciais por que eles relevaram ou obtiveram credibilidade no espírito do julgador – só assim se realizando verdadeiramente uma “análise critica das provas”. Tal circunstância determinou a alteração do preceituado no nº 5 do artigo 712º do CPC, podendo ter lugar a remessa do processo à 1ª instância para fundamentação da decisão proferida sobre a matéria de facto sempre que ela se não mostre “devidamente fundamentada” (e não apenas quando omita a menção dos concretos meios de prova que a suportaram)


Segundo o acórdão nº 55/85 do Tribunal Constitucional[10], a fundamentação das decisões jurisdicionais cumpre, em geral, duas funções:

a) Uma, de ordem endoprocessual, que visa essencialmente impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão, permitindo às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação e ainda colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente com o decidido;

b) Outra, de ordem extraprocessual, já não dirigida essencialmente às partes e ao juiz “ad quem”, que procura, acima de tudo, tornar possível o controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão – e que visa garantir, em última análise, a “transparência” do processo e da decisão.


Não sendo satisfatoriamente cumprida, quanto a algum facto essencial, a exigência de fundamentação emergente do estatuído no nº 2 do artigo 653º, pode a parte prejudicada requerer que o tribunal de 1ª instância supra a nulidade, procedendo à fundamentação adequada. Face à actual relevância – constitucional e legal – da exigência de fundamentação, temos como duvidosa a solução consistente em considerar que a lei não estabelece qualquer sanção para a falta de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto: o que, a nosso ver, decorre do nº 5 deste artigo 712º é que a nulidade cometida, quando reclamada adequadamente pela parte, deve, na medida do possível, ser sempre suprida pela 1ª instância; mas, se tal suprimento for impossível, não nos parece excluída a possibilidade de a Relação anular o julgamento com base numa omissão essencial e relevante de fundamentação[11] (sublinhado nosso) .


A fundamentação deve conter, como suporte mínimo, a concretização do meio probatório gerador da convicção do julgador e ainda a indicação, na medida do possível, das razões da credibilidade ou da força decisiva reconhecida a esses meios de prova, a menção das razões justificativas da opção feita pelo julgador entre os meios probatórios de sinal oposto relativos ao mesmo facto[12] .


“Quando a prova é gravada, a sua análise crítica constitui complemento fundamental da gravação; indo, nomeadamente, além do mero significado das palavras do depoente (registadas em audiência e depois transcritas), evidencia a importância do modo como ele depôs, as suas reacções, as suas hesitações e, de um modo geral, todo o comportamento que rodeou o depoimento”[13] .


A análise crítica das provas prevista para o julgamento referido na primeira parte do nº 4 do artigo 607º do Código de Processo Civil não difere funcionalmente do exame pressuposto no julgamento regulado na segunda parte deste número: ambos visam concluir se a prova produzida é, em concreto, bastante para a demonstração do facto. O modo como se chega a tal conclusão é, no entanto, profundamente diferente, o que se reflecte na motivação da convicção.

Na motivação da decisão sobre os factos julgados de acordo com a norma constante da primeira parte do nº 4, o juiz explica por que razão, de acordo com a sua livre convicção (primeira parte do nº 5), o meio é idóneo, em abstracto e em concreto, à prova do facto; na motivação do julgamento feito no contexto da segunda norma, o juiz partindo da certeza e afirmando que o meio é, em abstracto, idóneo (v.g. um documento), esclarece por que razão se extrai dele (ou não) o facto a provar (segunda parte do nº 5).

Num caso, o juízo de conformidade entre os factos alegados e a realidade histórica estriba-se na prudente convicção do julgador; noutro, este juízo funda-se, em especial, no valor que a lei atribui a determinados meios de prova[14] .


Entrando mais directamente no caso dos autos, lendo o acórdão da Relação sobre a fundamentação das respostas à matéria de facto (fls. 1336 a 1345), verificamos que a mesma, apreciou livremente as provas, fazendo o seu próprio juízo com total autonomia e, quase de forma exaustiva, analisou criticamente as provas, especificou, de forma racional, coerente e lógica os fundamentos que foram decisivos para a respectiva convicção e com respeito pela prova testemunhal e documental produzida.

O acórdão chegou mesmo a alterar a matéria de facto, eliminando, esclarecendo ou aditando factos – Cfr fls 1345.

Para concluir, acrescentaremos apenas que a metodologia das instâncias no que toca à fundamentação e análise crítica da prova, não tem de ser exaustiva, bastando que sejam claros e suficientes os motivos que levaram o julgador a decidir em determinado sentido e não noutro.


Formalmente, a notável extensão, quer da fundamentação, quer da análise crítica das provas, leva-nos à conclusão que tal desiderato adjectivo foi conseguido, quer na 1ª instância, quer na Relação, não se exigindo que a motivação e análise crítica seja do tipo “facto a facto, ponto por ponto”.

Efectivamente, a imposição da fundamentação não impede necessariamente que o tribunal motive em conjunto as respostas a mais do que um facto da base instrutória, quando os factos objecto da motivação se apresentem entre si ligados e sobre eles tenham incidido fundamentalmente os mesmos meios de prova. Essa motivação conjunta pode até ser concretamente aconselhável[15].


Concluímos, pois, que a Relação seguiu um processo lógico e racional de apreciação da prova, ou seja, o acórdão da Relação não se mostra ilógica, arbitrária ou notoriamente violadoras das regras da experiência comum.


Nesta conformidade, improcedem as conclusões das alegações dos recorrentes, confirmando-se, nesta parte, o acórdão da Relação, por não haver “ deficiência formal da apreciação das provas e da fixação dos factos materiais em causa”.


Quanto à inspecção judicial ao local ou à realização da prova pericial a que se refere a conclusão 18ª das alegações dos recorrentes, a mesma destina-se a carrear elementos para a prova do nº 10 dos factos não provados.


Segundo o disposto  no nº 2 do artigo 608º nº 2 do Código de Processo Civil, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.


Ora, face à decisão acabada de tomar quanto à matéria de facto, a apreciação da questão relativa à inspecção judicial e à prova pericial fica prejudicada conforme o nº 2 do mencionado artigo 608º do CPC.


Por conseguinte, improcedem as conclusões 13ª a 18ª.

A QUESTÃO DE DIREITO


A única questão de direito trazida pelos recorrentes está plasmada nas conclusões 11ª e 12ª.

Ali se refere que a alínea C) do dispositivo do acórdão recorrido contém um erro manifesto, devendo ser revogada, ficando a valer integralmente a decisão da alínea A) da sentença da 1ª instância, por força do disposto nos artigos 1305º e 1311º do Código Civil e 674º nº 1 alª a) do CPC.


Cumpre decidir.


Na alínea A) do dispositivo da sentença da 1ª instância consta o seguinte:

“A - Declara-se que os prédios de que os réus são comproprietários têm os limites definidos na planta topográfica anexada nos autos à contestação que apresentaram, na qual se incluem as áreas representadas nessa planta como “Parcela A” e “Parcela B”, bem como a faixa de terreno representada na planta anexada como documento 2 e referida no artº.15º. da sua contestação.


Esta alínea A) corresponde à alínea A) do pedido formulado na reconvenção (Volume I fls 142 e vº).


Na alínea C) do dispositivo do acórdão da Relação ficou assim decidido:

“C- Absolvem-se os autores do pedido reconvencional formulado em A) referente à faixa de terreno representada na planta anexada a fls. 144 e referida no artigo 15º da contestação”.


Portanto, o acórdão da Relação revogou a alínea A) do dispositivo da sentença da 1ª instância, pois não se provou que o prédio dos réus vá para além dos limites da “PARCELA A” e da “PARCELA B”, pelo que não poderá proceder o pedido reconvencional na parte em que pretende que se declare que os prédios dos réus incluem, além das mencionadas parcelas “A” e “B”, uma faixa de terreno representada na planta junta a fls. 144 e referida no artigo 15º da contestação.


Nesse artigo 15º da contestação (I volume, fls 138), alegam os réus JJ e mulher KK o seguinte:

Os prédios, cuja propriedade os demandantes invocam, estão confinados ao perímetro representado na planta topográfica anexa, com exclusão de uma faixa de terreno com cerca de 30 metros de extensão por 4 metros de largura, cuja área é de cerca de 120 m2, a qual se situa do lado sul dos prédios que os demandantes dizem pertencer-lhes, junto à designada (na planta topográfica ora anexada) por “PARCELA B” (Docs 1 e 2)” – fls 143 e 144.

 

Tal matéria não ficou provada, tal como consta do nº 7 dos factos não provados  


Invocando a respectiva fundamentação do acórdão (fls 1344 dos autos e pág. 36 do acórdão), ali se considerou que; “sobre a mencionada faixa de 120 m2 os depoimentos não foram de molde a aceitar que a mesma integrasse a parcela que na planta junta a fls. 143 se designa por “Parcela B”.


Nesta conformidade e sem necessidade de maiores considerações, improcedem as conclusões 13ª a 18ª.


SUMÁRIO

1 - Os poderes do Supremo Tribunal de Justiça são muito limitados quanto ao julgamento da matéria de facto, cabendo-lhe, fundamentalmente, e salvo situações excepcionais (artigo 674º nº 3 in fine e artigo 682º nº 2 do CPC), limitar-se a aplicar o direito aos factos materiais fixados pelas instâncias (682º nº 1 do CPC) e não podendo sindicar o juízo que o Tribunal da Relação proferiu em matéria de facto.

2 - Contudo, o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, pode censurar o modo como a Relação exerceu os poderes de reapreciação da matéria de facto, já que se tal for feito ao arrepio do artigo 662º do Código do Processo Civil, está-se no âmbito da aplicação deste preceito e, por conseguinte, no julgamento de direito.

3 - Para além da fundamentação das respostas positivas, o juiz passa a ter de justificar as respostas negativas. A decisão, para além de especificar os fundamentos que foram decisivos para convicção do julgador, tem de proceder à análise crítica das provas.

4 - A fundamentação deve conter, como suporte mínimo, a concretização do meio probatório gerador da convicção do julgador e ainda a indicação, na medida do possível, das razões da credibilidade ou da força decisiva reconhecida a esses meios de prova, a menção das razões justificativas da opção feita pelo julgador entre os meios probatórios de sinal oposto relativos ao mesmo facto.

5 - A imposição da fundamentação não impede necessariamente que o tribunal motive em conjunto as respostas a mais do que um facto da base instrutória, quando os factos objecto da motivação se apresentem entre si ligados e sobre eles tenham incidido fundamentalmente os mesmos meios de prova. Essa motivação conjunta pode até ser concretamente aconselhável.


III - DECISÃO

Atento o exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.


Lisboa, 12.11.2020


Ilídio Sacarrão Martins (Relator)

Nuno Manuel Pinto Oliveira

Ferreira Lopes

________

[1] Ac STJ de 13/11/2012, in www.dgsi.pt Proc.º nº 10/08.0TBVVD.G1.S1/jstj
[2] Proc.º nº 645/05.2TBVCD.P1.S1, in www.dgsi.pt/jstj
[3] Proc.º nº 8609/03.4TVLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt/jstj
[4] Proc.º nº 350/98.4TAOLH.S1, in www.dgsi.pt/jstj
[5] Proc.º nº 1965/04.9TBSTB.E1.S1, in www.dgsi.pt/ jstj
[6] Prova, poderes da Relação e convicção: a lição da epistemologia, Cadernos de Direito Privado nº 44, Outubro/Dezembro de 2013, pp. 29 e ss.
[7] Manual de Processo Civil, 2ª ed. pág. 653.
[8] Estudos sobre o novo Processo Civil, pág. 348
[9] Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2ª edição, 2004, pág. 545.
[10] BMJ 360 (Suplemento), pág. 195, citado por Lopes do Rego, loc e ob cit.
[11] Lopes do Rego, ob cit, em anotação ao artigo 712º, pág. 610.
[12] Antunes Varela, ob cit pág. 653 a 655.
[13] Lebre de Freitas,  Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 2ª edição, pág. 660.
[14] Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro “Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil- Os Artigos da Reforma”, 2014, 2ª Edição, Vol I, Almedina, pág588 e 589.
[15] Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, vol 2º, 2ª ed, 2008, págs. 661 a 662.