Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1860/08.2T8ABF.E1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL
NULIDADE
ANULABILIDADE
RENOVAÇÃO DA DELIBERAÇÃO
ABSOLVIÇÃO DO PEDIDO
CONDENAÇÃO EM CUSTAS
Data do Acordão: 02/27/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO DAS SOCIEDADES – DELIBERAÇÕES DOS SÓCIOS / DELIBERAÇÕES NULAS / DELIBERAÇÕES ANULÁVEIS / ACÇÃO DE ANULAÇÃO / RENOVAÇÃO DA DELIBERAÇÃO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / ABUSO DE DIREITO.
Doutrina:
-Ferrer Correia, Lições, p. 364;
-Joaquim Taveira da Fonseca, Textos-Sociedades Comerciais- CEJ- CDOA, p. 128;
-Jorge M. Coutinho de Abreu, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Almedina, Reimpressão, 2013, Volume 1, p. 673 a 675;
-Manuel Carneiro da Frada, Renovação de Deliberações Sociais - O artigo 62º do Cód. das Sociedades Comerciais, Boletim da Faculdade de Direito de Lisboa, Volume LXI, 1985, abril de 1987, p. 285 e ss., 297 e ss.;
-Menezes Cordeiro, Manual de Direito Comercial, II Volume, 2001, p. 244 ; Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2009, p. 236;
-Oliveira Ascensão, Direito Comercial, Volume IV, p. 298;
-Oliveira Ascensão, Direito Comercial, Volume IV, Sociedades Comerciais, 1993, p. 291;
-Pedro Maia, Deliberações dos Sócios, em Estudos de Direito das Sociedades, 5ª Edição, 2002, p. 175;
-Pereira de Almeida, Sociedades Comerciais, Coimbra Editora, Coimbra, 4.ª Edição, p. 203;
-Pinto Furtado, Deliberações Sociais, p. 636 e 637;
-Raul Ventura, Sociedade por Quotas, II, p. 296 e 297;
-V. G. Lobo Xavier, Anulação de Deliberações Sociais e Deliberações Conexas, p. 464;
-Vaz Serra, RLJ, Ano 108, p. 244 e 245, anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04-06-1974 ; RLJ, Ano 107, p. 5 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGOS 56.º, N.º 1, ALÍNEAS C) E D), 58.º, N.º 1, ALÍNEA A), 59.º E 62.º, N.º 2.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 615, N.º 1, ALÍNEA C) E 680.º, N.º 1.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 334.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 26-05-1961, IN HTTP://WWW.DGSI.PTJSTJ00004317;
- DE 01-06-1973, IN BMJ 228º, P. 221;
- DE 04-06-1974, IN BMJ 238º, P. 240;
- DE 15-06-1978, IN BMJ 278º, P. 265,
- DE 26-05-1992, IN BMJ, 107º, P. 352;
- DE 16-04-1996, IN CJSTJ, 1996, II, P. 23;
- DE 04-05-1999, PROCESSO N.º 99A333, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 18-05-2006, PROCESSO N.º 06A1106, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 31-10-2006, PROCESSO N.º 06A3446, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 26-02-2009, PROCESSO N.º 07B4311, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:


- DE 24-11-1997, IN CJ 1997-V-205.
Sumário :
I - A deliberação, tomada em assembleia geral da ré sociedade comercial, que renovou ex nunc a deliberação considerada inválida no acórdão recorrido – art. 62.º, n.º 2, do CSC, determina a revogação do acórdão recorrido, a absolvição da ré do pedido e a condenação da ré no pagamento das custas da acção.
Decisão Texto Integral:
Proc. 1860/08.2TBABF.E1.S1

R-641 [1]

Revista


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA e BB propuseram, em 2.8.2008, no Tribunal Judicial da Comarca de Albufeira, contra:

 CC, Lda.

 Acção declarativa constitutiva, tendente à anulação das deliberações tomadas na reunião da Assembleia Geral de 23 de Julho de 2008 da sociedade ré, que aprovaram:

a) A ratificação das remunerações dos gerentes auferidos até 23.07.2008;

b) As remunerações dos gerentes a vigorar a partir de 01.08.2008; e

c) A chamada de prestações suplementares.

Alegaram, em síntese, que:

- são sócios da ré e expressaram, na dita reunião, os seus votos contra;

- da ordem de trabalhos constante da convocatória para a assembleia em causa não fazia parte a ratificação de remunerações anteriormente auferidas pelos gerentes, as concretas remunerações que seriam submetidas à votação, os precisos valores das prestações suplementares e as razões da respectiva necessidade;

- a primeira deliberação visava desresponsabilizar os gerentes pelo facto de se terem auto-atribuído determinadas remunerações e, por isso, não deveriam os sócios-gerentes ter sido admitidos a votar;

- a 3ª deliberação visava repercutir sobre os demais sócios a responsabilidade dos gerentes pela prestação de garantias a terceiros, pelo que os sócios-gerentes não poderiam ter votado;

- a 3ª deliberação também visava possibilitar a futura exclusão dos autores, caso não satisfizessem as prestações suplementares, sendo certo que a situação financeira da sociedade não justificava a exigência dessas prestações.

A ré contestou, invocando, em resumo, que:

- é uma sociedade de cariz bi-familiar, pelo que funcionou sempre de modo informal e sem que das actas das reuniões das assembleias gerais constassem diversas deliberações efectivamente tomadas por unanimidade;

- foi o caso das remunerações dos gerentes, que os autores sempre votaram favoravelmente, que sempre foram incluídas nas contas da ré e que aqueles bem sabiam existir desde há duas décadas; e foi o litígio desencadeado pelos autores que justificou a deliberação de ratificação;

- o sócio-gerente não está impedido de votar a sua própria remuneração e, muito menos, a remuneração do outro sócio-gerente;

- a exigência de prestações suplementares correspondeu a uma efectiva necessidade de liquidez por parte da ré, confrontada com a obrigação de pagamento de um financiamento bancário; a circunstância de, mercê desse pagamento, ficarem os sócios-gerentes libertos das garantias prestadas não os impedia de votar a proposta;

- a convocatória para a reunião da assembleia geral preenche os requisitos legais; mas, ainda que de alguma irregularidade padecesse, a mesma estaria sanada, uma vez que na reunião estiveram presentes todos os sócios, que participaram na votação.

Concluindo pela sua absolvição do pedido, a ré requereu a condenação dos autores como litigantes de má-fé, estimando a indemnização em € 10.000,00 e impugnou o valor da causa, oferecendo, em substituição o de € 252.000,00.

O tribunal fixou o valor da acção em € 828.951,96.

Dispensada a audiência preliminar, o processo foi objecto de saneamento e condensação.


***

Instruída a causa, nomeadamente com prova pericial, e realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que absolveu a ré dos pedidos, mais considerando não terem os autores litigado de má-fé.


***


Os Autores interpuseram recurso de apelação, para o Tribunal da Relação de Évora, que, por Acórdão de 26.1.2017 – fls. 2288 a 2336 – decidiu:

Acordamos em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência:

A) ...ramos a decisão sobre a matéria de facto nos termos descritos em II-C), D) e E);

B) Revogamos a sentença recorrida na parte em que absolve a ré do pedido no tocante à deliberação identificada no ponto 29. a) da matéria de facto, [aprovação/ratificação de todas as remunerações auferidas até à presente data 23.7.2008] ora se anulando tal deliberação;

C) Mantemos, no mais, a sentença recorrida.

Custas, em ambas as instâncias, por autores e ré, na proporção de 2/3 para os primeiros e 1/3 para a segunda.”

Tendo sido, pela Ré, arguida a nulidade do Acórdão, por contradição entre os fundamentos e entre estes e a decisão, foi tirado em conferência o Acórdão, de 28.6.2017 - fls. 2712 a 2713 – que manteve a decisão.


***


Inconformados, os Autores e a Ré interpuseram recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, apenas tendo sido admitido o recurso da Ré, que, alegando, formulou as seguintes conclusões:

1. A decisão de que se recorre é errada, porque não se apercebe que, da matéria de facto provada, resulta que as remunerações dos gerentes foram fixadas pelos sócios, e ainda porque depois de reconhecer que os sócios gerentes podiam votar a fixação das próprias remunerações, só podia ter concluído que também poderiam votar a ratificação dessas mesmas remunerações.

2. É também errada, porque efectuou o “teste da resistência” à deliberação em causa, de forma incorrecta, esquecendo que, cada um dos sócios gerentes sempre poderia votar a ratificação da remuneração do outro, ainda que estivessem (sem conceder) impedidos de votar a ratificação da própria remuneração.

3. É injusta, pois permite a dois sócios que sempre conheceram e aceitaram as remunerações dos sócios gerentes sustentar abusivamente que estes deveriam ter trabalhado gratuitamente, ao longo de quase duas décadas.

4. É, inútil, porque em assembleia geral de 2 de Março de 2017 os sócios da Recorrente renovaram a deliberação em causa, pelo que a suposta invalidade – caso alguma existisse – já se encontraria sanada com a mencionada deliberação de renovação.

5. Antes de tudo o mais, ainda que a fundamentação e decisão do Acórdão recorrido estivessem correctas, o presente recurso deveria ser considerado procedente, porque a Recorrente procedeu à renovação da deliberação anulável mediante outra deliberação que não enferma do suposto vício daquela, conforme expressamente admitido pelo artigo 62.º n.º2, do Código das Sociedades Comerciais.

6. De facto, os sócios da Recorrente reuniram em assembleia universal, - ao abrigo do artigo 54º, nºs 1 e 2, do Código das Sociedades Comerciais – em 2 de Março de 2017, onde deliberaram renovar a deliberação ora anulada, nos termos e para os efeitos do nº2, do artigo 62.° do Código das Sociedades Comerciais sem que os sócios gerentes fossem admitidos a votar a ratificação das respectivas remunerações (cfr. doc. 1).

7. Esta deliberação foi aprovada com os votos favoráveis dos sócios DD, EE, FF, SGPS, S.A., GG, SGPS, S.A., e HH, detentores de quotas correspondentes a 100% dos votos admitidos a votar esta deliberação.

8. Tendo o Acórdão recorrido sido proferido em 27 de Janeiro de 2017 e a acta da deliberação de renovação datada de 2 de Março de 2017, é evidente que esta consubstancia um documento superveniente, admitindo-se que o Supremo Tribunal de Justiça tome conhecimento do mesmo, ao abrigo do artigo 680.°, n.°1, do Código de Processo Civil.

9. Uma vez que a renovação/confirmação da deliberação ora anulada preenche os requisitos do artigo 62.°, n.°1, do Código das Sociedades Comerciais, não existem dúvidas, na presente data, sobre a validade da deliberação de ratificação de todas as remunerações auferidas pela gerência da Recorrente até 23.07.2008.

10. A renovação da deliberação anterior faz com que o conteúdo da primeira deliberação seja integrado na nova deliberação que passa a ocupar o lugar daquela, podendo os Autores/Recorridos apenas reagir contra a deliberação renovadora – pois a deliberação renovada deixou de existir – numa nova acção, assente num novo e distinto pedido, e fundado numa diferente causa de pedir.

11. Deixou, assim de ter qualquer sentido útil apreciar a validade da deliberação de ratificação, porquanto, com a sua renovação, aquela deixou de existir, não sendo esta a sede apropriada para apreciar a validade da renovação.

12. Termos em que, a presente acção proposta pelos Recorridos deve ser julgada improcedente também quanto ao pedido de anulação da deliberação de ratificação das deliberações que fixaram as remunerações dos sócios gerentes.

13. Este entendimento foi assumido por este Supremo Tribunal, por Acórdão datado de 31 de Outubro de 2006, ao decidir que: “Se no decurso de uma acção de anulação de deliberações sociais, concretamente após a interposição de recurso, a sociedade Ré vier dar conhecimento ao processo de que as deliberações julgadas nulas foram renovadas, deve o Tribunal recorrido, desde logo, julgar a acção improcedente, muito embora com custas a serem suportadas pela referida Ré”  

14. Em sentido convergente, atente-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 25 de Maio de 2009, bem como os entendimentos perfilhados por Coutinho de Abreu e Pinto Furtado.

15. Termos em que deve a decisão do Tribunal da Relação de Évora, que procedeu à anulação da deliberação de ratificação de todas as remunerações auferidas pela gerência da Recorrente até 23.07.2008, ser revogada e consequentemente ser a Recorrente absolvida do pedido.

16. Não obstante, a deliberação em causa não sofria do vício apontado no Acórdão recorrido, pois da correcta aplicação do teste de resistência, resultaria que a mesma sempre teria sido aprovada, mesmo sem os votos dos sócios gerentes.

17. É que, ainda que os sócios gerentes estivessem impedidos de participar na referida deliberação, - o que supostamente resultaria de a presente situação ter “contornos paralelos” aos impedimentos previstos nas alíneas a) e b), do artigo 251.° do Código das Sociedades Comerciais, no n.°2, do artigo 74.º do Código das Sociedades Comerciais e no n.º3, do artigo 75.° do Código das Sociedades Comerciais – a deliberação ora anulada sempre teria obtido a maioria dos votos.

18. Isto porque, mesmo admitindo que haveria um impedimento de voto, é óbvio que um sócio gerente seria sempre admitido a votar a ratificação da remuneração de outro sócio gerente, pois como é óbvio, o impedimento verificar-se-ia, apenas, em relação à ratificação da sua própria remuneração!

19. Assim, também o potencial impedimento de voto do sócio II, apenas se verificaria quanto à deliberação de ratificação das remunerações auferidas pelo sócio-gerente JJ, que esteve presente na Assembleia Geral de 23.07.2008, enquanto representante do primeiro.

20. Mesmo ficcionando que os sócios-gerentes da Recorrente estavam impedidos de votar deliberação de ratificação da remuneração, a ratificação da remuneração do sócio gerente KK teria sido aprovada, com votos a favor correspondentes a 60% dos votos admitidos; e a do sócio gerente JJ teria sido aprovada com votos a favor correspondentes a 56% dos votos admitidos;

21. Foi esta a conclusão do Tribunal da 1.ª instância que considerou que, uma vez que cada um dos sócios-gerentes podia participar na deliberação de ratificação da remuneração do outro sócio gerente, “existiria sempre maioria para tal deliberação, não se encontrando assim ferida de nulidade ou mesmo de anulabilidade, conforme se pretende invocar, pelo que falece igualmente aqui o peticionado pelos autores.”

22. Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, devendo a decisão do Tribunal da Relação de Évora, que procedeu à anulação da deliberação de ratificação de todas as remunerações auferidas pela gerência da Recorrente até 23.07.2008, ser revogada e consequentemente substituída por decisão que confirme a validade da decisão ora anulada.

23. Acresce que o Acórdão recorrido apresenta uma contradição manifesta entre os fundamentos, e destes com a decisão, incompatível com a prossecução da verdade material.

24. O Tribunal da Relação de Évora só adoptou o entendimento, de que os sócios gerentes estariam impedidos de votar a deliberação, porque concluiu, com base na matéria de facto, que nunca teria sido aprovada qualquer deliberação a fixar a remuneração dos sócios gerentes: - “A tal respeito – e não obstante as declarações do gerente KK a que alude o ponto 31. da matéria de facto [aliás, de sentido oposto as que prestara cerca de um ano antes (ponto 20. da matéria de facto)] – sabemos que não se provou que as remunerações dos gerentes tenham sido fixadas pela unanimidade dos sócios nas assembleias gerais da ré (era esse o teor do quesito 23. °), demonstrando-se apenas o que consta do ponto 35. da matéria de facto, o que, naturalmente, lhes retira a cobertura do artigo 255.º, nº1.”.

25. Uma vez que o artigo 255.°, n.º1, do Código das Sociedades Comerciais dispõe que o “gerente tem direito a uma remuneração, a fixar pelos sócios é evidente que o Acórdão recorrido assume que, no passado, as remunerações dos gerentes não teriam sido fixadas pelos sócios – não teriam, pois a “a cobertura do artigo 255.º, n.º1 do Código das Sociedades Comerciais.

26. O Tribunal entendeu, assim, que, ao não terem a “a cobertura do n.º1 do artigo 255.º”, é concebível um conflito entre a sociedade e os sócios gerentes sobre as remunerações, o que os impediria de votar a deliberação de ratificação dessas remunerações.

27. Sucede que, aquela conclusão de facto está totalmente errada e resulta de o Tribunal recorrido ter tido em consideração apenas o que ficou provado no quesito 35.°, “as remunerações dos gerentes foram faladas pelos sócios nas assembleias gerais da ré.”

28. Com base na matéria de facto, a Relação de Évora não podia ter concluído, como concluiu, que as remunerações dos sócios gerentes não teriam sido fixadas pelos sócios, ou seja, que não teriam “a cobertura do artigo 255.°, n.°1”, condição essencial para afirmar o impedimento de voto.

29. É que, a matéria de facto provada impõe a conclusão contrária, ou seja, que os sócios, de facto, fixaram as remunerações dos sócios gerentes, embora esta atribuição (como tantas outras – cfr. n.°s 4.° (O) e 8.° (19.°) factos provados) não tenha ficado registada em acta.

30. Labora, assim, o Acórdão recorrido em total contradição entre os seus fundamentos e entre estes e a decisão, mais concretamente, entre a matéria de facto provada, que acima se enumerou e a conclusão que as remunerações dos gerentes não teriam sido fixadas pelos sócios, essencial para o Acórdão afirmar o impedimento de voto.

31. Sendo evidente que esta contradição implica a nulidade do Acórdão recorrido, por oposição entre os fundamentos de facto e a decisão, prevista na alínea c) do n.°1. do artigo 615.°, do Código de Processo Civil.

32. Caso assim não se entenda, então em todo o caso, o Acórdão da Relação de Évora está viciado por erro de julgamento, na medida em que da matéria de facto resulta que as remunerações dos sócios gerentes foram, de facto, fixadas pelos sócios.

33. O Acórdão recorrido incorre, ainda, numa outra manifesta contradição, porque não só o Tribunal da Relação Évora reconheceu não existir nenhum impedimento quanto à participação dos sócios gerentes JJ e KK nas deliberações que fixaram as suas remunerações, como também considerou não existir qualquer impedimento em que os mesmos participassem nas deliberações que fixaram as suas remunerações, a partir de Julho de 2008.

34. Mas, quanto à decisão de ratificação da deliberação que fixou as remunerações as estes dois gerentes, até 23.07.2008, o Tribunal já entendeu que se verificaria uma situação de impedimento, razão pela qual decidiu anular esta última deliberação.

35. Como é evidente, se se admite que os sócios gerentes não estavam impedidos de votar as deliberações que fixaram a sua própria remuneração, então, por maioria de razão, terá necessariamente de se concluir que os mesmos não estavam impedidos de votar a deliberação que apenas visa ratificar a remuneração que já lhes foi fixada, mediante uma deliberação na qual aqueles, validamente podiam participar.

36. Trata-se de uma situação de nulidade do Acórdão recorrido, por oposição entre os fundamentos e a decisão, prevista na alínea c), do n.°1, do artigo 688.°, do Código de Processo Civil.

37. A alínea c) do n.º1 do artigo 615.° do Código de Processo Civil dispõe que é nula a sentença (in casu, Acórdão) quando “os fundamentos esteiam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão inteligível”.

38. O raciocínio em que assenta a decisão do Acórdão recorrido, ao considerar perfeitamente válida a participação dos sócios gerentes na deliberação que fixa a sua remuneração dos sócios gerentes, não se compadece com a decisão de anulação da deliberação de ratificação da supra mencionada deliberação, por considerar que os sócios gerentes já estariam impedidos de participar na votação desta última deliberação, pelo que é manifesto que existe uma contradição entre os fundamentos e a decisão uma vez que a fundamentação adoptada pelo Tribunal da Relação de Évora.

39. A contradição entre os fundamentos e a decisão consubstancia uma nulidade que deve ser arguida em sede de recurso – conforme dispõe o número 4.°, do artigo 615.° do Código de Processo Civil -, sempre que o recurso ordinário, tal como o presente recurso de revista, seja admissível, pelo que este Tribunal se encontra devidamente habilitado para conhecer desta nulidade que ora se argui.

40. Em face do exposto, deve ser declarada a nulidade da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Évora, na parte em que decidiu anular a deliberação de ratificação das remunerações auferidas pela gerência da Recorrente até 23.07.2008, nos termos e para os efeitos dos artigos 615°, n.°1 al. c) e n.°4, do Código de Processo Civil, sendo a mesma revogada e, bem assim, substituída por outra que declare a validade daquela deliberação.

41. Ainda que assim não se entenda, sempre haverá um erro de julgamento, mais concretamente um erro de aplicação do direito pois é evidente que se podiam votar a fixação das suas remunerações, então os sócios gerentes também podiam votar a ratificação dessas remunerações.

42. Em todo o caso, a pretensão dos Autores/Recorridos de anulação da deliberação de ratificação das remunerações auferidas pela gerência da Recorrente até Julho de 2008, sempre seria de considerar ilegítima e abusiva, sendo, nomeadamente, lesiva dos ditames da boa fé e dos bons costumes.

43. Os Autores/Recorridos que sempre aceitaram a informalidade subjacente à vida societária da Recorrente, nomeadamente quanto às suas assembleias gerais, respectivas deliberações e elaboração de actas (cfr. factos n.ºs 4. (O) a 10. (21.°)), não podem vir alegar que foram os sócios gerentes a “auto-atribuir-se” uma remuneração, que desconheciam os critérios utilizados, etc., quando toda a sua conduta ao longo período da gerência daqueles sócios foi de permanente conhecimento e aceitação da retribuição auferida pelos sócios gerentes, conforme resulta da matéria de facto provada.

44. Os Autores/Recorridos sempre souberam que os sócios gerentes eram remunerados, qual a sua remuneração, bem como os critérios utilizados para a fixação da mesma (cfr. factos n.ºs 37. (25.°) e 38.° (26.°)), constando, inclusivamente, a remuneração dos sócios gerentes das contas da Recorrente, que foram sempre aprovadas pelos sócios (cfr. facto n.°39. (27.°)).

45. Os Autores/Recorridos sabem que sempre votaram favoravelmente as remunerações dos sócios gerentes, que sempre conheceram o montante dessas remunerações e que, inclusivamente, conheciam (e conhecem) o critério adoptado para a fixação da remuneração do sócio gerente seu irmão, (cfr. factos n.ºs 10. (21.°, 35. (23.°), 37. (25.°) e 38. (26.°)), uma vez que era igual à remuneração auferida pelo Autor/Recorrido, enquanto gerente da sociedade Cª LL., sendo até os carros atribuídos aos gerentes (os Irmãos AA e KK) iguais, e substituídos na mesma altura!

46. Os Autores/Recorridos participaram nas deliberações em que os sócios fixaram as remunerações dos sócios gerentes, tendo, igualmente, sempre tido conhecimento da existência das remunerações e dos critérios para a sua atribuição, porém, agora, no quadro do conflito que moveram contra a Recorrente e os restantes sócios, vêm afirmar que essas decisões dos sócios não existiriam, aproveitando o facto de as mesmas não terem sido reduzidas a escrito, na respectiva acta (cfr. facto n.°8 (19.°)).

47. Foi este comportamento inaceitável dos Autores/Recorridos que exigiu que os restantes sócios renovassem/ratificassem aquelas deliberações, o que fizeram por maioria qualificada de dois terços dos votos.

48. Assim, num comportamento contraditório e abusivo, os Autores/Recorridos vêm agora pôr em causa as remunerações dos sócios gerentes, que sempre conheceram e aceitaram, procurando anular a deliberação de ratificação dessas remunerações.

49. Os Autores/Recorridos ao procurarem pôr em causa a validade da deliberação de atribuição de remuneração aos sócios gerentes da Recorrente, bem como da deliberação de ratificação da mesma, quando sempre conheceram, aprovaram e anuíram a remuneração atribuída aos sócios gerentes, tendo esta mesma aceitação sido repetidamente confirmada, exercício após exercício, com a aprovação das contas da Recorrente “onde constavam tais remunerações”, incorreram em manifesto abuso de direito, de acordo com o artigo 334.° do Código Civil.

50. A postura dos Autores/Recorridos de anuência e aceitação da remuneração dos sócios gerentes, pela sua duração (quase duas décadas!) e efeitos, é totalmente contraditória com a pretensão anulatória dos Autores/Recorridos, relativamente às mencionadas deliberações, consubstanciando um abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, que os impede de vir alegar quaisquer irregularidades/invalidades, no que respeita às deliberações em crise nos presentes autos.

51. Estão, assim, preenchidos os requisitos essenciais da tutela da confiança, ou seja, (i) a situação de confiança, (ii) a justificação, (iii) o investimento da confiança e a (iv) imputação de confiança ao titular.

52. O claro abuso de direito em que os Autores/Recorridos laboram, paralisa o seu direito obter a anulação da deliberação em causa, visto que sempre aceitaram a remuneração dos gerentes.

53. Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, devendo a decisão do Tribunal da Relação de Évora, que procedeu à anulação da deliberação de ratificação de todas as remunerações auferidas pela gerência da Recorrente até 23.07.2008, ser revogada e consequentemente substituída por uma decisão que confirme a validade da decisão ora anulada.

54. Finalmente, a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Évora, já foi objecto de duas decisões judiciais distintas, tendo-se o Tribunal Judicial de Albufeira (actual instância central de Albufeira do Tribunal da Comarca de Faro), pronunciado duas vezes sobre a deliberação de ratificação das remunerações auferidas pelos sócios gerentes.

55. A primeira das quais, no procedimento cautelar em que decidiu considerar a deliberação válida e julgar improcedente a providência cautelar de suspensão de deliberações sociais e, posteriormente, na presente acção principal, em que foi proferida sentença que entendeu não se verificar a invalidade da deliberação de ratificação das remunerações auferidas pelos sócios gestores até Julho de 2008, absolvendo-se a Recorrente de todos os pedidos.

56. Em face de tudo o exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente, devendo a decisão do Tribunal da Relação de Évora, que procedeu à anulação da deliberação de ratificação de todas as remunerações auferidas pela gerência da Recorrente até 23.07.2008, ser revogada e consequentemente substituída por decisão que confirme a validade da decisão ora anulada.

Com as alegações, a Ré/recorrente juntou, a fls. 2431 a 241, um documento “Ata número 57”, datada de 2 de Março de 2017 do seguinte teor:

 “No dia 2 de março de 2017, os sócios da CC, LDA., sociedade por quotas com o NIPC …, decidiram por unanimidade, nos termos previstos no artigo 54º, n°1, do Código das Sociedades Comerciais, que a assembleia geral da sociedade reunisse em assembleia geral universal, sem observância de quaisquer formalidades prévias e que deliberasse sobre o seguinte assunto: deliberar sobre a renovação da deliberação aprovada na assembleia geral da sociedade de 23 07 2008, de “aprovação/ratificação de todas as remunerações auferidas pela gerência até à presente data”.

Presidiu à assembleia o sócio-gerente Eng. MM. Tomou a palavra o sócio-gerente da sociedade HH, que explicou o seguinte:

Por Acórdão de 26 de Janeiro de 2017, o Tribunal da Relação de Évora decidiu anular a deliberação da Assembleia Geral da Sociedade de 23 07 2008, que decidira a “aprovação/ratificação de todas as remunerações auferidas pela gerência até à presente data”.

O Tribunal da Relação de Évora considerou que a referida deliberação seria inválida porque os gerentes à época, Engs. MM e NN, estariam impedidos de a votar. Considerou ainda o Tribunal, que com a exclusão dos votos dos gerentes, a referida deliberação não teria sido aprovada pela necessária maioria, pelo que a mesma seria inválida.

Sem prejuízo de a gerência não concordar com esta decisão e de a sociedade ir interpor recurso da mesma para o Supremo Tribunal de Justiça, entre outros motivos, por se entender que o denominado “teste da resistência” não foi feito correctamente, pela Relação de Évora, visto que o gerente KK podia votar a ratificação das remunerações auferidas pelos gerente JJ e o gerente JJ podia votar a ratificação das remunerações auferidas pelo gerente KK, coloca-se a questão da renovação da deliberação.

Assim, em face daquela decisão judicial e tendo em conta o disposto no artigo 62°, n°2, do Código das Sociedades Comerciais – “A anulabilidade cessa quando os sócios renovem a deliberação anulável mediante outra deliberação, desde que esta não enferme do vício da precedente” -, a sócia FF propôs que os sócios deliberassem renovar a deliberação aprovada na assembleia geral de 23 07 2008, de “aprovação/ratificação de todas as remunerações auferidas pela gerência até à presente data”.

Na votação da referida deliberação, não participaram o sócio Eng. KK, titular de uma quota com o valor nominal de € 41.566,50, e os sócios OO, PP e QQ, sucessores hereditários na quota do Eng. JJ, com o valor nominal de € 20.783,25.

Submetida a votação, foi esta deliberação aprovada com os votos favoráveis dos sócios DD, titular de uma quota com o valor nominal de € 41.566,50, EE Mexia, titular de uma quota com o valor nominal de € 20.783,25, FF, SGPS, S.A., representada por Miguel de Melo Mardel TT, titular de uma quota com o valor nominal de € 41.566,50, GG, SGPS, S.A., representada por Miguel Beltrão Ribeiro Ferreira, titular de duas quotas com o valor nominal de € 41.566,50, cada uma, e HH, titular de uma quota com o valor nominal de € 10.391,63, detentores de quotas correspondentes a 100% dos votos admitidos a votar esta deliberação.

Em todo o caso, os sócios deixaram expresso o seu entendimento de que o sócio Eng. KK sempre poderia ter votado a aprovação/ratificação de todas as remunerações auferidas pelo gerente Eng. JJ, até ao dia 23 07 2008, e que os sócios OO, PP e QQ, sucessores hereditários na quota do Eng. JJ, sempre poderiam ter votado a aprovação/ratificação de todas as remunerações auferidas pelo gerente Eng. KK, até ao dia 23 07 2008.

Nada mais havendo a tratar, deu-se por encerrada a assembleia, dela se lavrando a presente acta, que vai ser assinada pelos sócios presentes.”

Não houve contra-alegações. Os Autores/recorridos tão pouco se pronunciaram sobre o documento junto com as alegações.


***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos[2]:

           1.(F) A ré é uma sociedade que tem como actividade a produção e comercialização de plantas ou quaisquer outros produtos agrícolas, construção e manutenção de viveiros, parques e jardins, e prestação de serviços conexos.

           2.(H) A sociedade requerida tem como seus principais estabelecimentos:

            - um viveiro em ..., com cerca de 12 ha, onde está instalada uma estufa, que conjuntamente com outras áreas de sombra cobrem cerca de 5 ha;

            - a Quinta do ..., sita em ..., com uma zona de produção de cerca de 22 ha, e também com vastas áreas de estufas e de sombra;

            - um ponto de venda ao público no ..., com cerca de 1 ha; a

            - um ponto de venda ao público no ..., Algarve, junto à N .., entrada para ....

           3.(N) A ré foi juridicamente constituída em 13 de Junho de 1988, data da respectiva inscrição no registo comercial, com o capital social de 6.000.000$00, dividido pelos seguintes sócios:

- BB, titular de uma quota de 1.000.000$00;

- MM, titular de uma quota de 1.000.000$00;

- AA, titular de uma quota de 1.000.000$00;

- “Sociedade RR, Lda.”, titular de uma quota de 3.000.000$00.

           4.(O) A ré era uma sociedade familiar, tendo como sócios membros da família SS e da família TT.

           5.(G)(R) A gerência da sociedade foi inicialmente confiada ao sócio UU, por deliberação unânime, e, desde 1993, também ao sócio VV, por maioria de 4/6 do capital social.

           6.(17º) As relações entre os sócios e o funcionamento dos órgãos sociais sempre foram muito próximos, cordiais e informais, próprio das relações familiares.

            7.(18º) As assembleias gerais da ré eram verdadeiros encontros familiares ou sociais, em que os sócios discutiam os diversos assuntos relativos à actividade da sociedade.

           8.(19º) Apesar da informalidade, eram lavradas actas das assembleias gerais de sócios, nas quais se incluíam apenas as deliberações mais relevantes, sendo que nem todas as decisões eram lavradas no livro de actas.

           9.(20º) Normalmente, as actas só eram elaboradas uns dias ou meses após a assembleia geral e eram assinadas quando os sócios tinham disponibilidade.

           10.(21º) Até à reunião da assembleia geral de 11.7.07, as deliberações sobre os diversos assuntos foram sempre aprovadas por consenso dos sócios.

            11.(22º) E as informações sobre a actividade da sociedade eram prestadas verbalmente nesses encontros familiares.

           12.(S) Na Assembleia Geral de 18 de Junho de 1999, foi aprovada por unanimidade uma deliberação em que autorizaram os gerentes “para em nome da empresa negociar e assinar quaisquer contratos de crédito ou outros quaisquer e de qualquer montante em qualquer instituição de crédito nacional ou estrangeira, ou de qualquer instituição de crédito nacional ou estrangeira ou qualquer outra instituição pública ou privada, nos termos que bem entenderem”.

           13.(P) Na Assembleia Geral de 31 de Maio de 2004, a “Sociedade RR, Lda.” dividiu a sua quota em quatro novas quotas, que cedeu aos actuais sócios: NN, XX, II e FF, SGPS, S.A..

           14.(Q)(A) Nessa mesma Assembleia Geral, foi deliberado “por unanimidade, aumentar o capital da sociedade de vinte e nove mil, novecentos e vinte e sete euros e oitenta cêntimos para duzentos e quarenta e nove mil, trezentos e noventa e nove”, ficando o capital social dividido nas seguintes quotas:

- BB, titular de uma quota de € 41.566,50;

- MM, titular de uma quota de € 41.566,50;

- AA, titular de uma quota de € 41.566,50;

- NN, titular de uma quota de € 20.783,25;

- XX, titular de uma quota de € 20.783,25;

- II, titular de uma quota de € 41.566,50;

- FF, SGPS, S.A., titular de uma quota de € 41.566,50.

           15.(BB)(AA) Na assembleia geral de 31 de Maio de 2004, os autores votaram favoravelmente a nova redacção do artigo “Quarto, Dois” dos estatutos da ré, que estabeleceu que: “Por deliberação da Assembleia Geral poderão ser exigidas prestações suplementares de capital até ao montante global equivalente a vinte vezes o capital social”.

           16.(CC) «(…) os sócios deliberaram, por unanimidade, proceder à chamada de prestações suplementares do capital no montante total de duzentos e cinquenta mil euros e dois cêntimos a dividir pelos sócios na proporção das suas quotas e assim discriminados; ZZ valor de 41.666,67 euros; UU valor 41.666,67 euros (…). Estas prestações devem dar entrada nos cofres da sociedade no prazo de dez dias».

           17.(U) Consta da acta da assembleia geral de 01.07.2005, na qual os autores se encontravam presentes e na qual deliberaram que «quanto ao ponto um da ordem de trabalhos, foi deliberado por unanimidade autorizar a sociedade a constituir-se devedora do ... B…, por empréstimo a conceder por este banco até ao valor de 500.000 Euros.

Passando-se ao segundo ponto da Ordem do Dia, foi deliberado por unanimidade autorizar a sociedade a garantir o pagamento do dito empréstimo por hipoteca dos bens imóveis sitos (…). Mais foi deliberado nomear o gerente MM por negociar as condições do dito empréstimo, outorgar na respectiva escritura, levar a efeito os registos provisórios de hipoteca relativamente a todos os prédios sitos nos concelhos de … e …, pertencentes à sociedade, e bem assim tudo o que se mostrar necessário para atingir os indicados fins».

           18.(V) Consta da acta da assembleia geral de 12.04.2006, da qual os autores constam como presentes e tendo deliberado, que «entrando-se no segundo ponto da ordem de trabalhos os sócios deliberaram, ainda por unanimidade, conferir poderes ao gerente desta sociedade, Exmo. Sr. MM, para sozinho e em representação da sociedade outorgar uma procuração a favor do Exmo. Sr. AAA (…), conferindo-lhe poderes para, em nome e representação desta sociedade, constituir uma sociedade comercial anónima, de responsabilidade limitada, que irá adoptar a firma BBB-…, S.A. e terá a sua sede social sita em Coimbra e o capital social de seis milhões de euros, subscrevendo para o seu representado uma participação social no valor nominal de quinze mil euros podendo convencionar e aceitar todas as cláusulas e condições que julgar convenientes para o respectivo pacto constitutivo, outorgando e assinando tudo quanto for necessário ao indicado fim (…)».

            19.(1º) Os autores, desde 2007, questionavam os dois gerentes da sociedade sobre o volume de negócios da sociedade e o modo como a mesma estava organizada, nomeadamente em termos administrativos, contabilísticos e comerciais.

           20.(FF) Na acta da Assembleia Geral da requerida de 11 de Julho de 2007 ficou a constar que o sócio AA solicitou à gerência esclarecimentos, designadamente “(…) perguntou como eram fixados os salários da gerência, tendo o gerente MM respondido que eram estabelecidos por eles próprios”.

           21.(T) Consta da acta da assembleia geral realizada em 11.07.2007 que «procedeu-se à votação do ponto um da ordem de trabalhos, tendo o relatório de gestão, o balanço e a conta de resultados referente ao exercício findo em trinta e um de Dezembro de 2006 sido aprovados por maioria (…) com uma abstenção por parte da sócia BB, tendo o sócio AA votado contra pelo facto de o relatório e as contas não estarem suficientemente explícitas e completas para poder ter uma opinião, faltando nomeadamente os anexos ao balanço e a demonstração de resultados, bem como um orçamento e um plano de actividades para o ano de 2008, não estando o relatório de gestão apresentado em consonância com uma empresa de dimensão da CC».

           22.(I) Por carta de 2 de Abril de 2008, os autores solicitaram, por escrito, informação à gerência da ré sobre as condições especiais do contrato estabelecido com a empresa “CC, Lda.”, o respectivo volume de vendas à mesma nos últimos três anos, facturadas ou por facturar, e sobre os mecanismos de controlo de verificação das existências e saídas dos produtos da sociedade, a fim de averiguar a legalidade dos negócios da sociedade.

           23.(L) Na Assembleia Geral de 9 de Abril de 2008, foram aprovadas as contas relativas ao exercício de 2007 da ré, que teve um resultado líquido positivo, de acordo com aquelas, de € 348.231,39 (trezentos e quarenta e oito mil duzentos e trinta e um euros e trinta e nove cêntimos).

           24.(M) Nessa Assembleia, os autores voltaram a colocar a questão da falta de deliberação dos sócios para a remuneração da gerência e votaram contra a aprovação das contas do exercício de 2007.

            25.(J) Por carta de 19 de Maio de 2008, os autores solicitaram, por escrito, informação à gerência da ré sobre os métodos e critérios objectivos seguidos pela sociedade no que se reporta à contabilização das existências produzidas pela própria empresa, facto que ficou por esclarecer na Assembleia Geral de Sócios de 9.04.2008 e que foi qualificado como reserva na certificação legal de contas da sociedade e, reiterando o pedido de informação efectuado a 2 de Abril de 2008, quanto aos mecanismos de controlo de verificação das existência e saídas dos produtos da sociedade.

           26.(K) Por carta de 19 de Maio de 2008, dirigida a DDD & Associados, com conhecimento à gerência da ré, os autores solicitaram, por escrito, informação ao ROC sobre a sua declaração de voto na Assembleia Geral de 9.04.2008, com o seguinte conteúdo: “compete apenas aos sócios atribuírem as remunerações aos gerentes não tendo o revisor oficial de contas que opinar sobre esta matéria de acordo com a lei. Na minha opinião, não tenho que emitir qualquer reserva às contas sobre esta questão”.

          27.(B) Os autores foram notificados por carta registada com aviso de recepção, expedida em 4.07.2008, para comparecerem numa Assembleia Geral da requerida marcada para as 9:00 do dia 23.07.2008, da qual constava apenas a seguinte ordem de trabalhos:

            Ponto Um – Remuneração dos Gerentes da Sociedade;

            Ponto Dois – Realização de prestações suplementares.

            28.(C) No dia, local e hora marcados, os autores compareceram e participaram na Assembleia Geral da requerida.

           29.(D) Na referida Assembleia Geral, foram tomadas as seguintes deliberações:

           a)“…aprovação/ratificação de todas as remunerações auferidas pela gerência até à presente data”;

            b) que “a remuneração dos gerentes, com efeitos a partir do mês de Agosto do corrente ano, seja a seguinte: para o gerente MM, remuneração mensal base ilíquida de € 5.112,00, com os respectivos subsídios de férias e de Natal, e subsídio de alimentação diária no valor de € 6,17; atribuição de um veículo automóvel marca …, modelo …, ou outro equivalente, incluindo as despesas de utilização e manutenção do mesmo; para o gerente NN, remuneração mensal ilíquida de € 2 631,97, com os respectivos subsídios de férias e de Natal, e subsídio de alimentação diário no montante de € 6,17”;

           c) “…tornar exigíveis a realização, parcial, de prestações suplementares, no montante global de € 252.000,00 (duzentos e cinquenta e dois mil euros) a satisfazer por todos os sócios, proporcionalmente ao valor das quotas detidas, ou seja: pela sócia UU a quantia de € 42.000,00; pelo sócio AA, a quantia de € 42.000,00; pelo sócio MM, a quantia de € 42.000,00; pelo sócio II, a quantia de € 42.000,00; pelo sócio NN, a quantia de € 21.000,00; pela sócia EE, a quantia de € 21.000,00, e, pela sócia FF, SGPS, S.A., a quantia de € 42.000,00 (…) as prestações suplementares serão prestadas à sociedade até às 15 horas do dia 15 de Setembro do corrente ano, mediante depósito/transferência a efectuar para a conta da sociedade aberta no Banco …, balcão de …, com o n.º …”.

           30.(E) As deliberações referidas em D) foram aprovadas, por maioria, com os votos a favor dos sócios EE, FF, SGPS, SA, II e dos sócios gerentes MM e NN, com os votos contra dos autores.

           31.(W) Da acta da Assembleia Geral de 23 de Julho de 2008 ficou a constar o seguinte, a título de esclarecimentos prestados pelo sócio gerente KK:“ (…) desde aquelas datas [1989 e 1993] a remuneração da gerência tem vindo, sucessivamente, a ser estabelecida por deliberação dos sócios reunidos em assembleia geral; no entanto, porque ao longo dos anos houve o hábito de elaborar actas sumárias das reuniões, não foram traduzidas no livro as deliberações dos sócios sobre a remuneração da gerência”.

            32.(DD) Consta da acta da assembleia de 23.07.2008 que:

           “(…) No âmbito do ponto dois da ordem de trabalhos, tomou a palavra o gerente MM. No uso da mesma prosseguiu informando todos os sócios que até ao próximo dia 15 de Setembro do corrente ano, a sociedade terá que liquidar um empréstimo anteriormente contraído junto do Banco B…, no valor de € 250.000,00, o qual se encontra avalizado por ambos os gerentes. Este empréstimo foi contraído pela sociedade por forma a fazer face a compromissos financeiros de curto prazo, para os quais, há data, a sociedade não dispunha de recursos próprios.

           Actualmente a sociedade não dispõe dessa quantia para proceder à liquidação do empréstimo, e os gerentes não pretendem continuar fiadores do pagamento daquele, pelo que é necessário encontrar uma alternativa.

            Ponderando a actual situação económica da sociedade, bem como o facto de, nas actuais condições de mercado, conforme contactos efectuados pela gerência, não ser vantajoso o recurso, de novo a crédito bancário, será de considerar o recurso à realização de prestações suplementares dos sócios, para, assim, proceder à liquidação do empréstimo ao B…”.

            33.(8º) A deliberação referida em D)–c) dos factos assentes foi tomada também no sentido de libertar os sócios gerentes de responsabilidades que assumiram perante terceiros, através de avales, fazendo nelas participar, também, os outros sócios.

           34.(EE) A 29 de Setembro de 2008, os requerentes votaram favoravelmente uma deliberação que autoriza a requerida a contrair um empréstimo de médio/longo prazo, no montante de € 500.000,00 junto do Banco B….

           35.(23º) As remunerações dos gerentes foram faladas pelos sócios nas assembleias gerais da ré.

           36.(24º) Apesar de não terem ficado a constar das respectivas actas.

            37.(25º) Os autores sabiam de tais remunerações dos gerentes.

           38.(26º) Os autores conheciam inclusivamente o critério adoptado para a fixação da remuneração da gerência.

            39.(27º) Os autores aprovaram as contas da sociedade relativas ao exercício de 2003 e aos exercícios anteriores, onde constavam tais remunerações.

            40.(X) Foram emitidos os recibos das remunerações dos sócios gerentes em Junho de 2004, Julho de 2005, 2006 e 2007 e Maio de 2008, referentes ao sócio gerente KK e em Setembro 2004, Junho de 2005, 2006 e 2007 e Maio de 2008 referente ao sócio JJ.

           41.(Z) Os vencimentos da gerência eram declarados à Administração Fiscal e à Segurança Social.

           42.(15º) A sociedade ré sempre teve resultados positivos e tem uma estrutura de capitais sólida.

           43.(3º) Desde 11.7.07, os autores deixaram de aprovar as contas da sociedade.

44.(14º) As contas dos três últimos exercícios foram aprovadas sem os votos favoráveis dos autores.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber:

- se a deliberação societária considerada nula foi validamente renovada, pela assembleia geral universal da Ré, de 2.4.2017, posterior à decisão do Acórdão recorrido;

- se a decisão recorrida é nula por contradição entre os fundamentos e a decisão;

- se a deliberação anulada de ratificação de todas as remunerações auferidas pelos gerentes até 23.7.2008 foi validamente tomada apesar da votação em que intervieram os sócios gerentes da Ré;

- se a pretensão dos Autores é abusiva do direito.

Os Autores/recorridos, enquanto sócios da Ré, pretenderam anular as deliberações da assembleia geral da Ré, de 23 de Julho de 2008 que aprovou: a) a ratificação das remunerações dos gerentes auferidas até 23.07.2008; b) as remunerações dos gerentes a vigorar a partir de 01.08.2008 c) a chamada de prestações suplementares.

O Acórdão recorrido revogou a sentença apelada, no que respeita à deliberação de aprovação/ratificação de todas as remunerações auferidas pela gerência da Ré até à 23.7.2008.

Vejamos a fundamentação da decisão no que à questão concerne.

“A quarta questão a resolver refere-se aos vícios dos votos emitidos.

A) Os apelantes sustentam que os sócios-gerentes estavam impedidos de votar as deliberações que foram aprovadas, porquanto qualquer delas envolvia um interesse pessoal e directo daqueles.

B) Prevê a alínea a) do nº 1 do artigo 58º a possibilidade de anular a deliberação que viole disposições legais, quando ao caso não caiba a nulidade [os vícios de formação ou procedimento previstos no artigo 56º cabem nas respectivas alíneas a) e b), que ao caso não se aplicam].

Uma dessas disposições é a que impede um sócio de votar quando, relativamente à matéria da deliberação, se encontre numa situação de conflito de interesses com a sociedade (artigo 251º). Sem definir precisamente o que tal conceito significa, a lei enuncia, nas alíneas de tal artigo, alguns casos em que considera que tal conflito se verifica.

No § 3º do artigo 39º da LSQ, previa-se que o sócio não poderia votar sobre assuntos que lhe dissessem directamente respeito.

O Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 26.5.61 (http://www.dgsi.ptJSTJ00004317) estabeleceu, então com valor de assento, que o sócio só estava impedido de votar sobre os assuntos em que tivesse um interesse imediatamente pessoal, individual, oposto ao da sociedade.

Nesse aresto se escreveu:

Sob pena de se paralisar a vida das sociedades por quotas, pela impossibilidade prática de se tomarem deliberações, não pode dar-se a esta disposição legal a interpretação ampla que o recorrente pretende.

Cada sócio tem sempre um interesse ligado à vida da sociedade, e consequentemente a toda e qualquer das deliberações nela tomadas. Seja qual for o assunto sobre que recaia uma deliberação, sempre ele, porque respeita à sociedade, também interessa ao sócio, como tal. O sócio não pode deixar de ser admitido a votar, porque só assim se forma a vontade social. O seu interesse identifica-se com o da sociedade.

É possível, porém, que determinado assunto, pela sua especial natureza, importe também para o sócio um interesse meramente pessoal, individual, a sobrelevar o que ele tem na qualidade de sócio; interesse oposto, portanto, ao da sociedade. Colocado nessa dúplice posição, o sócio não está em condições de ajudar a formar a verdadeira e correcta vontade social. Na realidade, o seu voto não representaria a vontade do sócio propriamente dito, do componente da sociedade, mas sim, e exclusivamente, a do particular, do indivíduo. Só formalmente ele expressaria a vontade do sócio. Em tal caso não deve ser admitido a votar.

É para esta última situação que a lei provê com a restrição contida no parágrafo 3, do artigo 39. A proibição de votar refere-se aos assuntos que directamente digam respeito ao sócio. Esses assuntos são unicamente aqueles que envolvem um interesse directo, imediato, do sócio considerado como pessoa particular, como simples indivíduo, e só mediatamente interessam ao sócio, própria e rigorosamente nesta qualidade. São assuntos que, desse modo, provocam um interesse do sócio oposto ao da sociedade.

Mas não estão nessas condições os problemas em que o sócio, votando, actua caracterizadamente nessa qualidade de sócio, para criar a real vontade social - ainda que da deliberação possa vir a resultar para ele, de modo mediato, algum proveito pessoal. Não havendo divergência entre o interesse da sociedade e o do sócio, o assunto respeita imediata e directamente à sociedade, só mediata e indirectamente ao sócio.”.

Continuam tais fundamentos a evidenciar relevo em sede de interpretação restritiva da noção de “conflito de interesses” (Ac. STJ de 18.5.06, in http://www.dgsi.pt Proc. nº 06A1106), como o atesta a gravidade dos exemplos enunciados nas várias alíneas do nº 1 do artigo 251º.

Como refere Pereira de Almeida (Sociedades Comerciais, Coimbra Editora, Coimbra, 4ª edição:203), “não basta que o sócio tenha interesse pessoal na deliberação para ficar impedido, senão estaria impossibilitado de votar, por exemplo na deliberação sobre distribuição de dividendos, o que seria um absurdo”.

Também o Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 15.6.78 (BMJ 278º-265) se pronuncia no sentido de que qualquer voto envolve reflexamente um interesse pessoal, pelo que o impedimento de voto apenas existe quando esse interesse seja antagónico ao da sociedade, irrelevando que seja contrário ao de outros sócios.

O projecto que antecedeu o Código das Sociedades Comerciais previa que o sócio estava impedido de votar a sua remuneração enquanto gerente (Menezes Cordeiro, obra citada: 662). Tal limitação não foi, porém, transposta para o texto legal, o que indicia que se pretendeu excluir tal matéria do artigo 251º. A não ser assim, a estabilidade das deliberações sociais aconselharia (tão frequentes são as sociedades por quotas geridas por um ou mais sócios) que aquela situação (e, bem assim, a atinente à eleição do gerente, quando este é um dos sócios) fosse expressamente contemplada na lei.

[Repare-se que da alínea f) do nº 1 do artigo 251º decorre que o sócio não está impedido de votar a sua destituição da gerência – desde que não esteja fundada em justa causa. E, se com o seu voto contra pode, eventualmente, obstar à formação da maioria necessária à aprovação da proposta de destituição, não encontramos sentido em vedar-lhe o voto quando se trata de eleição e da – em regra, consequente remuneração.

No sentido de que ao sócio-gerente não está vedado votar a sua própria remuneração, pronunciaram-se o referido Ac. STJ de 15.6.78, os Ac. STJ de 4.6.74 (BMJ 238º-240) e de 1.6.73 (BMJ 228º-221), o Ac. RP de 24.11.97 (CJ 1997-V-205) e Vaz Serra (RLJ Ano 108º-245).

C) Chegados à conclusão de que os sócios-gerentes da ré não estavam impedidos de votar a proposta que deu origem à deliberação referida no ponto 29. b) da matéria de facto, podiam, porém, exercer esse direito relativamente às remunerações até então auferidas, sem suporte deliberativo em qualquer acta das reuniões da assembleia geral?

A tal respeito – e não obstante as declarações do gerente KK a que alude o ponto 31. da matéria de facto [aliás, de sentido oposto às que prestara cerca de um ano antes (ponto 20. da matéria de facto)] - sabemos que não se provou que as remunerações dos gerentes tenham sido fixadas pela unanimidade dos sócios nas assembleias gerais da ré (era esse o teor do quesito 23º), demonstrando-se apenas o que consta do ponto 35. da matéria de facto.

O que, naturalmente, lhes retira a cobertura do nº 1 do artigo 255º. Não podemos, assim, deixar de conceber (independentemente das hipóteses de efectivo sucesso, que nesta sede não cabe analisar) a possibilidade de os gerentes serem demandados e responsabilizados solidariamente pela sociedade ou por algum sócio ao abrigo do disposto nos artigos 72º e seguintes.

Saliente-se que não está em causa a legitimidade da assembleia geral para aprovar a posteriori/ratificar as remunerações que os gerentes vêm auferindo desde 1987 e 1993.

O que não podem é ser os gerentes admitidos a votar tal deliberação, dada a existência de um potencial conflito entre eles e a sociedade em situação de contornos paralelos às contempladas nas alíneas a) e b) do artigo 251º, 74º nº 2 e 75º nº 3.

Relativamente à deliberação a que alude o ponto 29. c) da matéria de facto – e que se cinge à chamada de prestações suplementares (a eventual motivação do voto não releva para efeitos do artigo 251º, mas, eventualmente, para a problemática dos denominados votos abusivos) – não vemos que possa equacionar-se o conflito que aquele preceito pressupõe.

D) Uma vez que considerámos que os gerentes não podiam votar a deliberação referida no ponto 29. a) da matéria de facto, importa submetê-la à chamada prova de resistência.

Com efeito, é pacífico que aquela deliberação só deve ser anulada se, excluídos os votos que não deviam ter sido aceites, não obtenha a maioria necessária.

A apelada contabiliza, para tal efeito, os votos favoráveis de EE, FF e II, a cada um dos quais atribui a titularidade de uma quota no valor de € 41.566,50. E, se assim fosse, a deliberação teria sido aprovada, não obstante os votos contra dos autores.

Sucede que nem a quota da sócia EE é de € 41.566,50 (mas de metade desse valor), nem deve ser contabilizado o voto de II.

É que, como decorre da acta da reunião da assembleia geral de 23.7.08, o sócio II não compareceu à reunião, antes se fazendo representar pelo sócio JJ. E, também enquanto representante (artigo 251º), não podia este exercer o direito de voto.

Em consequência, a deliberação referida no ponto 29. a) da matéria de facto não foi aprovada, assim se impondo a sua anulação.”   

Vejamos:

Pese embora a Recorrente assacar ao Acórdão recorrido nulidade por alegada contradição entre a decisão e os fundamentos – art. 615º, nº1, c) do Código de Processo Civil – designadamente por considerar que os sócios gerentes podiam votar na assembleia geral destinada também a aprovar os seus vencimentos, ponto 29 b) da matéria de facto, e a remuneração dos gerentes a partir de 1.8.2008 – mas já não poderiam votar a deliberação relativa à aprovação/ratificação de todas as auferidas pela gerência até à data da AG” – 23.7.2008 – e terem, ainda, pugnado pela revogação do Acórdão recorrido, por considerarem que enferma de erro de julgamento sendo abusiva do direito a pretensão dos Autores, crucial é considerar que pedem que se considere validamente renovada a deliberação que o Acórdão considerou nula revogando nessa parte a sentença da 1ª Instância, pelo que importa analisar se a deliberação renovatória superveniente é válida.

De referir que a Recorrente juntou a acta de tal deliberação com as alegações de recurso de revista, e que a os Recorridos, que não contra-alegaram, não questionaram a admissibilidade do documento superveniente em relação ao Acórdão recorrido, nem questionaram a validade da deliberação renovadora, pelo que apreciaremos de imediato essa pretensão e, apenas no caso de não se considerar válida a renovação, se apreciarão as questões elencadas como sendo objecto do recurso de revista.

Antes de mais, e como pressuposto lógico da apreciação da deliberação da Ré tomada na assembleia geral de 2 de Março de 2017, importa saber se é admissível a junção do documento da acta a que se refere a deliberação societária.

Sendo o documento a acta relativa à assembleia geral da Ré, posterior à data do acórdão recorrido e tendo sido junta com as alegações do recurso de revista, é patente a superveniência do documento e a sua novidade sendo óbvio que, pelo facto que documenta e os efeitos que a parte visa produzir, se admite a respectiva junção, nos termos do art. 680º, nº1, do Código de Processo Civil, a que não foi oposta nenhuma objecção.

O art. 62º do Código das Sociedades Comerciais dispõe:

1. Uma deliberação nula por força das alíneas a) e b) do nº1 do artigo 56.º pode ser renovada por outra deliberação e a esta pode ser atribuída eficácia retroactiva, ressalvados os direitos de terceiros.

2. A anulabilidade cessa quando os sócios renovem a deliberação anulável mediante outra deliberação, desde que esta não enferme do vício da precedente. O sócio, porém, que nisso tiver um interesse atendível pode obter anulação da primeira deliberação, relativamente ao período anterior à deliberação renovatória.

3. O tribunal em que tenha sido impugnada uma deliberação pode conceder prazo à sociedade, a requerimento desta, para renovar a deliberação.

Porque as deliberações sociais, pelo seu objecto e conteúdo, podem contender com a estrita legalidade ou, meramente, com os estatutos societários, o Código das Sociedades Comerciais (CSC) distingue as que são nulas – art. 56º - das que são anuláveis – art. 58º.

No Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 4.5.1999, Relator Torres Paulo, no Proc. 99A333, in www.dgsi.pt, pode ler-se:

“Para distinguir os vícios que determinam a nulidade ou a anulação de uma deliberação viciada, há que surpreender se eles dizem respeito ao conteúdo (alíneas c) e d) do n.º1 do artigo 56º do Código das Sociedades Comerciais), ou ao processo de formação (alíneas a) e b) do mesmo artigo) da deliberação.

 As “nulidades” resultantes dos vícios de formação (alíneas a) e b) do n.º1 do artigo 56º) são sanáveis nos termos do n.º3 do mesmo artigo, pelo que estamos perante uma invalidade mista.

Se a deliberação colidir com normas dispositivas ou do pacto social - na disponibilidade dos sócios -, ela será só anulável (artigo 59º).

A dicotomia normas imperativas e dispositivas só têm relevância quando o vício ataca o conteúdo da deliberação; se ele ataca o processo de formação de deliberação, a consequência é a sua anulabilidade.

 A alínea a) do n.º1 do artigo 58º do Código das Sociedades Comerciais é uma norma residual: residual por exclusão de partes, na medida em que abarca as hipóteses em que a deliberação continua a contrariar a lei em área não prevista no artigo 56º.

O n.º2 do artigo 62º do Código das Sociedades Comerciais acolheu a doutrina que se pronunciava pela admissibilidade da renovação de deliberação nula por vício de formação e nunca quando ela se circunscrevia ao cerne do conteúdo.”

Atento o caso em apreço, do elenco das nulidades previstas no art. 56º, nº1, do Código das Sociedades Comerciais, vejamos a que, em princípio, poderá estar em causa afectando as deliberações tomadas.

 É ela a da alínea a) que fulmina com anulabilidade as deliberações sociais que:

Sejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos”.

 

 “São anuláveis as deliberações sociais que sejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios conseguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiro, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios.”- Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 16.4.1996, in CJSTJ. 1996, II, 23.

Ao contrário do regime previsto no Código Civil, onde a regra tendencial é a de considerar a nulidade dos actos que violem a lei – art. 280º do Código Civil – no Código das Sociedades Comerciais o regime-regra é mais benévolo, é o da anulabilidade.

Tal regime deve-se à intenção de “dinamizar a vida das sociedades comerciais, que ficaria embaraçada com uma multiplicação de situações de nulidade.” – Menezes Cordeiro, in “Manual de Direito Comercial”, II Volume, 2001, pág. 244.

            A deliberação societária abusiva exprime um acto disfuncional, porquanto não visa a função de servir a sociedade mas, ao invés, é estranha a essa finalidade do ponto em que apenas se relaciona com o interesse egoísta de sócio ou sócios que assim, através do voto, colhe(m) para si, ou para terceiros, vantagens que lesam a sociedade ou outros sócio(s). 

            Se com tal prática houver prejuízo para a sociedade ou outros sócios “a consequência é a anulabilidade”- cfr. Professor Oliveira Ascensão, in “Direito Comercial”, Vol. IV, Sociedades Comerciais”, 1993, pág.291.

        “No fundo e em síntese, parece-nos não ser incorrecto reconhecer, apesar das reservas que alguns colocam ao entendimento que o critério decisivo para distinguir as deliberações nulas das anuláveis é o da imperatividade e interesse de ordem pública das deliberações viciadas. Sempre que esteja em causa a violação de normas do contrato de sociedade ou normas legais destinadas a integrar apenas a vontade dos associados na falta de regulamentação nos estatutos, a sanção será, por conseguinte, em princípio, a mera anulabilidade”- cfr. “Textos-Sociedades Comerciais- CEJ- CDOA”, pág. 128, Estudo da autoria do Dr. Joaquim Taveira da Fonseca.

Tendo os sócios gerentes direito a remuneração, nos termos do art. 255º, nº1, do Código das Sociedades Comerciais, e sendo reconhecido que não estão impedidos de votar a deliberação que os aprove, a menos que ela exprima um interesse directo colidente com os interesses da sociedade, ou seja, que haja conflito de interesses.

Este entendimento que era já o acolhido na vigência da lei de sociedades por Quotas, em face do art. 39º § 3º, preceito que foi interpretado pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 26.5.1992 - BMJ. 107-352, doutrinando que “O sócio está impedido de votar sobre os assuntos em que tenha um interesse imediatamente pessoal, individual, oposto ao da sociedade”.

 Vaz Serra, in RLJ, Ano 108-244, em anotação favorável ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 4.6.1974, escrevia:

 “O parágrafo 3º, do art. 39º, falando em assuntos que lhe digam directamente respeito, e o assento, em assuntos em que tenha um interesse pessoal, individual, oposto ao da sociedade, mostram não bastar, para o sócio estar impedido de votar, um qualquer interesse seu, certo como é que ele tem sempre ou quase sempre algum interesse, embora indirecto ou mediato, na deliberação: é, pois, necessário para excluir a possibilidade de votação do sócio, que este tenha na deliberação um interesse directo, imediato, oposto ao da sociedade, isto é, tal que a boa fé e os bons costumes o inibam de votar.”

  Raul Ventura, in “Sociedade por Quotas”, II, 296 e 297, refere que há conflito de interessesquando estes são opostos, de tal modo que um deles não possa ser satisfeito sem sacrifício do outro ou quando existe possibilidade de a deliberação satisfazer o interesse particular do sócio em detrimento comum.”

           

Mas será que a deliberação declarada nula, visou interesses pessoais dos gerentes que votaram e ratificaram (a sua própria remuneração) causando prejuízo à sociedade ou aos Autores/recorridos?

Sê-lo-iam se fossem integradoras de abuso do direito.

A figura do abuso do direito, regulada no art. 334º do Código Civil, tem largo campo de aplicação no direito societário.

“...Não basta, pois, o ter-se determinado o sócio, por motivos extra-sociais; nem releva, só por si, o prejuízo da sociedade ou dos outros sócios.

Mas estas duas circunstâncias conjugadas definem o abuso do direito de voto.

Esta solução é aceite, por todas as doutrinas que, por diferentes vias, procuram estabelecer um limite ao poder da maioria, nos termos referidos” – Professor Ferrer Correia, in “Lições”, pág.364.

Para o Professor Vaz Serra - “O abuso do direito em deliberações sociais verifica-se, quando a deliberação, em vez de prosseguir, um fim social, isto é, de ser tomada no interesse da sociedade, o é em proveito exclusivo dos sócios que a aprovam ou de terceiros, conferindo vantagens especiais a eles ou aos terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios”.

 [...] O direito de voto é atribuído aos sócios para a realização do fim ou objecto social, pelo que se for exercido, não para esse fim, ou objecto, mas para a obtenção de vantagens especiais dos votantes ou de terceiros, em prejuízo da sociedade ou dos outros sócios, existe abuso do direito - art. 334º do Código Civil- e, portanto, violação da lei, sendo anulável a deliberação” – cfr. RLJ, Ano 107, págs. 5 e segs.

A questionada deliberação social, para que pudesse ser considerada abusiva do direito dos votantes, importaria que, pelo seu teor e conteúdo, totalmente estranhos ao escopo societário, fosse escandalosamente ofensiva do sentido ético-jurídico e da funcionalidade do voto enquanto elemento intrínseco à formação da vontade societária.

 

 “No fundo e em síntese, parece-nos não ser incorrecto reconhecer, apesar das reservas que alguns colocam ao entendimento que o critério decisivo para distinguir as deliberações nulas das anuláveis é o da imperatividade e interesse de ordem pública das deliberações viciadas. Sempre que esteja em causa a violação de normas do contrato de sociedade ou normas legais destinadas a integrar apenas a vontade dos associados na falta de regulamentação nos estatutos, a sanção será, por conseguinte, em princípio, a mera anulabilidade”- cfr. “Textos-Sociedades Comerciais- CEJ- CDOA”, pág. 128, Estudo da autoria do Dr. Joaquim Taveira da Fonseca.

Importa saber qual a natureza do vício de que enferma a deliberação social em apreciação. Com efeito, a doutrina e a jurisprudência, distinguindo entre vícios de procedimento e de conteúdo, consoante estejam em causa violações de carácter formal ou de substância das deliberações, assim considera ou não, a possibilidade de renovação ao abrigo do art. 62º do Código das Sociedades Comerciais.

No “Código das Sociedades Comerciais em Comentário”, coordenado por Jorge M. Coutinho de Abreu, Almedina, Reimpressão, 2013, Volume 1, págs. 673 a 675, pode ler-se:

 “ […] Importa sublinhar que nem todos os vícios de procedimento provocam a anulabilidade das respectivas deliberações. Apesar de o art.º 58º, 1, a) e c), não fazer distinções (todas as deliberações ilegais, quando não sejam nulas, seriam anuláveis), há que atender à teleologia das normas procedimentalmente ofendidas e às consequências das ofensas. Em concreto, há vícios relevantes e vícios irrelevantes para efeitos de anulação das deliberações. Sobre isto, porém, pouco tem ponderado a jurisprudência portuguesa. Em tese geral, diremos que são vícios de procedimento relevantes quer os que determinam um apuramento irregular ou inexacto do resultado da votação e, consequentemente, uma deliberação não correspondente à maioria dos votos exigida, quer os ocorridos antes ou no decurso da assembleia que ofendem de modo essencial o direito de participação livre e informada de sócios nas deliberações.”

Em anotação ao art. 62º, na obra citada, Coutinho de Abreu, depois de afirmar que a renovação de uma deliberação, “consiste, pois, na substituição desta por outra de conteúdo idêntico mas sem os vícios (de procedimento), reais ou supostos, que tomam aquela inválida ou de validade duvidosa”, considera: “É possível renovar deliberações nulas. Mas só quando a nulidade resulte de vícios de procedimento: não convocação de assembleia geral (art. 56º, 1, a), 2), não exercício do direito de votar por escrito por falta de convite para tal (art. 56º, 1, b)). As deliberações nulas por vícios de conteúdo não são renováveis. A renovação implica que a deliberação renovadora não enferme dos vícios da renovada mantendo (no essencial) o conteúdo desta. Ora, uma (pretensa) deliberação renovadora de uma nula por vício de conteúdo, para não repetir o vício, teria de apresentar conteúdo diverso, regulamentação diferente (seria uma deliberação substituta, mas não substituta-renovadora).”

Da lição de Manuel Carneiro da Frada, in “Renovação de Deliberações Sociais - O artigo 62º do Cód. das Sociedades Comerciais”, Boletim da Faculdade de Direito de Lisboa, vol. LXI, 1985, publicado em Abril de 1987, págs. 285 e segs., decorre que não são só as deliberações nulas, por força das alíneas a) e b) do artº 56º do Código das Sociedades Comerciais, que podem ser renovadas. Com efeito, “a esta questão responde o artigo 62º, dizendo que o objecto da renovação podem ser deliberações nulas por força das alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 56º e deliberações anuláveis” (…), págs. 297 e segs.

Menezes Cordeiro, in “Código das Sociedades Comerciais Anotado”, 2009, em nota ao art. 62º, pág. 236:´

 “Deliberações nulas. O 62.°/1 admite a renovação apenas das deliberações nulas por vícios de procedimento – os contemplados no 56.°/l, d) e 6): desde que removidos os vícios em causa. A contrario e pela natureza das coisas, não é possível a renovação de deliberações nulas por vícios de fundo – 56.°/1, c) e d): a remoção do vício implicaria já deliberações diferentes. É viável a renovação de uma deliberação declarada nula com trânsito em julgado: desde que sem o vício.

 Não é logicamente possível a renovação de deliberação inexistente (e isso para quem admita tal vício).

 Deliberações anuláveis são sempre renováveis, desde que afastado o vício. Em rigor, se o vício for material, a nova deliberação já terá um conteúdo diferente, não sendo puramente renovatória.”

A deliberação em causa é anulável, cabendo na previsão do art. 58º, nº1, b) do Código das Sociedades Comerciais. Os autores consideraram que a aprovação dos vencimentos dos gerentes visava satisfazer interesses próprios e não da sociedade.

Reitera-se que, não estando um sócio e gerente impedido de votar a deliberação referente à sua remuneração, excepto se o seu voto for motivado por imediato e directo interesse pessoal colidente com os interesses da sociedade, tal deliberação padecerá de anulabilidade porque se o voto foi determinado por ostensivo interesse egoísta, extra-societário.

Se pode votar uma tal deliberação poderá votar a renovação, caso se coloquem dúvidas de legalidade procedimental, pelo que a deliberação é passível de renovação, nos termos do art. 62º, nº2, do Código das Sociedades Comerciais, desde que “esta não enferme do vício da precedente”, ou seja, da deliberação que se pretende substituir.

Como se alcança da acta junta com as alegações da revista, a Ré, antes do trânsito em julgado do Acórdão recorrido, em assembleia universal – art. 54º do Código das Sociedades Comerciais[3] – diremos cautelarmente, expressando o seu desacordo com a decisão, renovou a deliberação que o Acórdão considerou inválida.

Não tendo intervindo em tal votação os sócios gerentes, assim acatando a Ré o entendimento do Acórdão recorrido de 26.1.2017, tem, pois, que se considerar que tal renovação expurga o vício considerado invalidante da deliberação, já que na votação da deliberação renovatória da “aprovação/ratificação de todas as remunerações auferidas pela gerência até à data” (da assembleia geral da Ré que a votou: 23.7.2008), não participaram o sócio gerente KK, nem os sucessores do outro sócio, então gerente, JJ.

Voltando ao ensino de Carneiro da Frada, obra citada, pág. 298 – “Uma deliberação nula por vícios na sua formação (cf. art. 56° a) e b) ou uma deliberação anulável pode ser renovada por outra que não enferme do vício da precedente, mesmo após ter sido declarada judicialmente nula, ou anulada por sentença (vid. V. G. Lobo Xavier, “Anulação de Deliberações Sociais e Deliberações Conexas”, pág. 464, nota 108).

O que já não pode é renovar-se uma deliberação inexistente de facto, ou seja, algo nem sequer em termos factuais chegou a ocorrer: “Consistindo a renovação no “fazer de novo” uma deliberação anteriormente tomada, ela é impensável quando não verdadeiramente há verdadeiramente nenhuma deliberação precedente a renovar, por falta de todo em todo duma factualidade anterior correspondente.”

Não consta da acta que à deliberação renovatória tivesse sido atribuída eficácia retroactiva, ressalvados os direitos de terceiro, como prevê o nº1 do citado art. 62º.

Não tendo sido atribuída à deliberação renovatória eficácia retroactiva, tem ela efeito ex nunc, pelo que não determina a inutilidade superveniente da lide, mas antes determina a improcedência da acção.

Neste sentido o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 31.10.2006 – Proc.06A3446 – Relator Urbano Dias – in www.dgsi.pt – “Se no decurso de uma acção de anulação de deliberações sociais, concretamente após a interposição de recurso, a sociedade Ré vier dar conhecimento ao processo de que as deliberações julgadas nulas foram renovadas, deve o Tribunal recorrido, desde logo, julgar a acção improcedente, mui embora com custas a serem suportadas pela referida Ré”. Na fundamentação da decisão pode ler-se “...Em caso de renovação, estamos em presença de uma nova e distinta deliberação, que substitui a primeira e assim inutiliza o pedido e a causa de pedir duma acção que tinha sido dirigida exclusivamente contra a deliberação primitiva. A oposição que pretenda agora mover-se contra a deliberação renovadora envolve um novo e distinto pedido, voltado unicamente para esta e fundado, evidentemente, numa específica e diferente causa de pedir.

Ora, extinta a instância decorrente até aí (por impossibilidade do pedido, como se viu), não restará ao autor outra via que não seja, se para isso tiver fundamento, propor outra acção com esse objectivo” – Pinto Furtado, in “Deliberações Sociais”, pág. 636 e 637).

Segundo Oliveira Ascensão, a renovação difere da confirmação por haver uma nova deliberação, o que significa “que o título precedente é substituído, pois os efeitos serão fundados na nova deliberação” (in “Direito Comercial”, Volume IV, pág. 298) […]. Constituindo a renovação uma impossibilidade de procedência do pedido, mais do que uma inutilidade da lide, deve conduzir, não à absolvição da instância, mas “à absolvição do pedido, por facto extintivo posterior à propositura, nos termos do art. 663º-1 Código de Processo Civil e com a disciplina de custas do nº3 do mesmo preceito (pág. 635).”

Também o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 26.2.2009 – Relatora Maria dos Prazeres Beleza, Proc. 07B4311, in www.dgsi.pt – considerou que existindo válida deliberação social renovatória, as custas ficam a cargo da Ré sociedade demandada na acção de onde dimana o recurso.

Assim, considerando válida a deliberação tomada na assembleia geral da Ré de 2 de Março de 2017 – “Ata número 57” – que renovou a deliberação considerada inválida no Acórdão recorrido, tal renovação acarreta a revogação do Acórdão recorrido e a absolvição da Ré do pedido relativo à apreciação da deliberação a que se reporta a deliberação sobre a deliberação da Assembleia Geral da Sociedade de 23.07.2008, que decidira nula a deliberação de “aprovação/ratificação de todas as remunerações auferidas pela gerência até apresente data”.

Ante esta decisão, prejudicada fica a apreciação das demais questões suscitadas pela Recorrente.

Decisão:  

Nestes termos, face à validade da deliberação tomada na assembleia geral, da Ré/recorrente, de 2 de Março de 2017, que renovou a deliberação da Assembleia Geral da Sociedade de 23.07.2008, que decidira ser nula a “aprovação/ratificação de todas as remunerações auferidas pela gerência até apresente data”, identificada no ponto 29.a) da matéria de facto - concede-se a revista, revogando-se o Acórdão recorrido e absolvendo a Ré do pedido.

Custas pela Ré/recorrente por ter dado causa à improcedência.

                

Supremo Tribunal de Justiça, 27 de Fevereiro de 2018

Fonseca Ramos (Relator)

Ana Paula Boularot

Pinto de Almeida

_____________
[1] Relator – Fonseca Ramos
Ex.mos Adjuntos:
Conselheira Ana Paula Boularot
Conselheiro Pinto de Almeida
[2] Transcrição integral do Acórdão recorrido, estando já contemplada a alteração da matéria de facto a que se procedeu em sede de apelação.
[3] O preceito estatui. “1. Podem os sócios, em qualquer tipo de sociedade, tomar deliberações unânimes por escrito, e bem assim reunir-se em assembleia geral, sem observância de formalidades prévias, desde que todos estejam presentes e todos manifestem a vontade de que a assembleia se constitua e delibere sobre determinado assunto. 2. Na hipótese prevista na parte final do número anterior, uma vez manifestada por todos os sócios a vontade de deliberar, aplicam-se todos os preceitos legais e contratuais relativos ao funcionamento da assembleia, a qual, porém, só pode deliberar sobre os assuntos consentidos por todos os sócios. 3. O representante de um sócio só pode votar em deliberações tomadas nos termos do nº1 se para o efeito estiver expressamente autorizado.”
3. “Só ocorre uma assembleia universal mediante a verificação cumulativa de três pressupostos: (1) presença de todos os sócios — basta que esteja ausente um sócio para que a assembleia já não possa ser considerada universal; (2) assentimento de todos os sócios em que a assembleia se constitua — o encontro ocasional de todos os sócios não é, só por si, uma assembleia universal, porque falta a vontade destes de se constituírem em assembleia, assim como não se trata de uma assembleia universal a reunião de todos os sócios se algum ou alguns deles não quiserem que a assembleia se constitua; (3) vontade também unânime de que a assembleia a constituir delibere sobre determinado assunto — todos os sócios terão de concordar em que se delibere sobre determinado assunto; porém, uma vez decidido por unanimidade que a assembleia deliberará sobre tal assunto, a deliberação a tomar considerar-se-á aprovada quando reúna os votos necessários para o efeito nos termos gerais (que pode não ser — e não é em regra — a unanimidade) (art. 54.°, n.°2) ” – Pedro Maia, in “Deliberações dos Sócios, em Estudos de Direito das Sociedades”, 5ª Ed., 2002, pág. 175.