Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
777/07.2TBBCL-F.G1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: AÇÃO EXECUTIVA
PENHORA
BENS IMPENHORÁVEIS
INDEMNIZAÇÃO
DESPEDIMENTO ILÍCITO
Data do Acordão: 11/12/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I. O critério para a aplicação da impenhorabilidade parcial prevista no n.º 1 do artigo 738.º do Código de Processo Civil de 2013 não é o da periodicidade, mas sim o da função da prestação a que o executado tem direito: destinar-se a assegurar a subsistência do executado.

II. A indemnização atribuída ao trabalhador ilicitamente despedido, em substituição da reintegração, tem também essa função, sendo parcialmente impenhorável, os termos do citado n.º 1 do artigo 738.º.

Decisão Texto Integral:

1. No âmbito da execução instaurada pela Cooperativa Agrícola de Barcelos, CRL, contra AA, BB e CC, foi proferida a decisão de fls. 33, na qual o Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo de Execução de …, Juiz …, determinou que “o Sr. Agente de Execução” restituísse “à executada o montante penhorado que excedeu o valor de 1/3: a) Da indemnização líquida de €21.855,00; b) Do valor das retribuições correspondentes ao período que decorreu entre a data do despedimento e o dia 27.11.2006 (um mês depois do início do período de incapacidade para o trabalho), à razão mensal de €690,00+€15,00+€10,00+€4,00”.

Para assim decidir, o tribunal entendeu que cabia no n.º 1 do artigo 738.º do Código de Processo Civil (“Bens parcialmente penhoráveis”, “1. São impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado”), na expressão “prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado”, a indemnização por despedimento, porque “pese embora não tenha natureza de salário, é calculada com base no salário do trabalhador e no lapso temporal em que desempenhou funções para a entidade patronal, e visa compensar o trabalhador pelo despedimento e assegurar-lhe um meio de subsistir economicamente durante algum tempo”. Assim sendo, é-lhe aplicável “o regime de impenhorabilidade previsto no referido artigo 738.º”, o que tem como consequência, “atento o montante das indemnizações fixadas, ainda que ao mesmo acrescentemos o valor auferido pela executada a título de pensão de invalidez (ainda que se desconheça o valor auferido por baixa), o valor do rendimento auferido pela executada nunca seria superior a três vezes o salário mínimo nacional (SMN).

Deste modo, da indemnização líquida de €21.855,00 atribuída à executada/trabalhadora, apenas é possível a penhora de 1/3 desse montante.

Também do valor das retribuições correspondentes ao período que decorreu entre a data do despedimento e o dia 27.11.2006 (um mês depois do início do período de incapacidade para o trabalho), à razão mensal de €690,00+€15,00+€10,00+€4,00, acrescida dos juros de mora a contar da data de vencimento de cada uma dessas prestações, à taxa de 4%, será possível penhorar 1/3 desse montante.

Já o valor recebido a título de indemnização por danos não patrimoniais não cabe no referido preceito de impenhorabilidade”.

O Tribunal da Relação de …, pelo acórdão de fls. 51, concedeu provimento parcial ao recurso de apelação interposto pela exequente, confirmando a decisão recorrida “quanto à impenhorabilidade de 2/3 do direito à indemnização por despedimento ilícito de € 21.855,00, com a consequente restituição à executada do valor respectivo, caso tenha sido apreendido”, e julgando “ineficaz a decisão recorrida de impenhorabilidade de 2/3 do valor das retribuições referidas na al. b) da decisão recorrida e respectivas retribuições, por falta de penhora das mesmas ou do direito de crédito sobre as mesmas”.

Para o que agora releva, considerou igualmente que a indemnização por despedimento ilícito cabe na “nova categoria geral de rendimentos parcialmente impenhoráveis prevista no actual n.º 1 do art. 738.º do CPC como «prestações de qualquer outra natureza que assegurem a subsistência do executado»”, sendo impenhorável “na proporção de 2/3”.

A exequente recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça. Nas alegações que apresentou, formulou as conclusões seguintes:

 «I. A questão a resolver consiste na aplicabilidade à indemnização por substituição da reintegração do regime de impenhorabilidade de 2/3 a que se refere o art. 738º do NCPC.

II. Estabelece o artigo 738º n.º 1 do NCPC que «são impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente e, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado», sendo que nos termos do n.º 3 «a impenhorabilidade prescrita no n.º 1 tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional».

III. A questão que se coloca é a de saber se tal compensação pecuniária é apenas parcialmente penhorável, como pretende a executada, ou totalmente penhorável como defende o Exequente.

IV. A fundamentação jurídica da decisão recorrida estriba-se inteiramente no entendimento que a compensação pecuniária pela cessação do contrato de trabalho está abrangida pela parte final do disposto no citado art. 738º, nº 1, ou seja, pelo segmento “ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado”. Entendimento que, contudo não acolhemos.

V. Na verdade, começa logo por notar-se que o texto da lei não faz qualquer referência à indemnização por despedimento, mas apenas e tão-só à indemnização por acidente. Depois, também se evidencia que a indemnização por despedimento devida ao executado se destinou a ser paga, de uma só vez, sem carácter de periodicidade.

VI. Igualmente é de sublinhar que aparentemente a indemnização por despedimento não visou assegurar a subsistência da executada, porquanto, a mesma já se encontra reformada, auferindo uma pensão por invalidez através do Centro Nacional de Pensões.

VII. Por fim a letra do artigo 738º, nº 1, do NCPC ao empregar explicitamente a locução “prestações periódicas”, aponta no sentido de que tudo o que for pago a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente e, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado tem de revestir carácter periódico, o que não acontece com a indemnização/compensação paga por uma só vez (ainda que fracionadamente).

VIII. E, sendo assim como é, só as prestações periódicas é que se destinam à satisfação das necessidades do executado.

IX. Neste sentido defendem Lebre de Freitas e A. Ribeiro Mendes que a impenhorabilidade parcial aí prevista apenas abrange “as prestações periódicas” em princípio destinadas à satisfação das necessidades do executado, não estando, designadamente, abrangidas as indemnizações por acidentes pagas por uma só vez ou fracionadas, mas só as que dão lugar, como é regra nos acidentes de trabalho, a prestações periódicas ou de trato sucessivo, por isso que o preceito não abrange as regalias sociais, subsídios, prestações de indemnização por acidente de trabalho e produto da sua aplicação, cuja concessão seja independente de qualquer periodicidade. (vide Código de Processo Civil Anotado, V. 3º, anotação ao artigo 824º, pág. 357).

X. Não cabe, pois, no último segmento legal referido, como foi entendido na decisão recorrida aquele tipo de indemnização/compensação.

XI. Por conseguinte, os limites à penhora previstos no art. 738º do NCPC não se aplicam à situação dos presentes autos em que não está em causa aquilo que o executado recebe como salário, mas antes um crédito que tem origem em indemnização recebida pela cessação do contrato de trabalho.

XII. Neste sentido veja-se acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Processo 3234/13.4TBLRA-A.C1: "A indemnização por despedimento não está abrangida pelo disposto no art. 738º, nº 1, do NCPC, designadamente pelo segmento final “ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado”.

XIII. E ainda acórdão do STJ de 20 de Março de 2018, Revista n.º 034/10.2TBLSD-E.P1.S2 - 6.ª Secção: "Uma indemnização proveniente da cessação do exercício da actividade profissional do Executado, não obstante o respetivo cálculo tenha tido apoio no vencimento mensal então auferido, não poderá ser considerada como um lugar paralelo equivalente a «prestação periódica» e por isso não está o seu montante sujeito às limitações do n.º 1 do art. 738.º do CPC, podendo ser penhorado na sua totalidade."

XIV.  Partindo da natureza remuneratória/retributiva, ou não, das importâncias devidas ao trabalhador executado e visto o enquadramento normativo traçado pelo art.º 738º, n.º 1 do CPC, é de admitir   a penhorabilidade relativa de todos os valores pagos a título de salários/remunerações (valor base e acréscimos remuneratórios, pouco importando a natureza, o carácter ou a forma da remuneração), férias e subsídios de férias e de Natal, mas nenhuma limitação da penhorabilidade deverá existir no tocante ao montante atribuído como indemnização de antiguidade.

XV. Entendimento contrário, cremos, não levará em devida conta que as situações de impenhorabilidade devem já ser consideradas em geral absolutamente excecionais, quer por poderem originar um amolecimento ósseo das obrigações civis, quer por serem possíveis fontes de flagrante injustiça relativa, e que ainda mais excecionais terão de ser os casos em que a garantia da dignidade humana, como valor no qual se funda a República Portuguesa, impõe a consagração de uma impenhorabilidade.

Termos em que se conclui que desse o douto acórdão proferido ser revogado, não sendo aplicáveis os limites à penhora previstos no artigo 738.º do NCPC, sendo totalmente penhorável a indemnização devida por despedimento ilícito (…)».


Com as alegações, a recorrente juntou cópia do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Março de 2018, proc. n.º 1034/10.2TBLSD-E.P1.S2.

A fls. 77, v.º, a executada apresentou requerimento sustentando a inadmissibilidade do recurso de revista, com o fundamento em que “o decaimento para a Cooperativa” tinha sido de € 14.570,00, sendo irrecorrível o acórdão recorrido.

A exequente opôs-se à admissibilidade deste requerimento, por não se tratar de uma contra-alegação (n.º 6 do artigo 638.º do Código de Processo Civil), requerendo o respectivo desentranhamento; e observou que a decisão da Relação lhe havia sido totalmente desfavorável (em €21.855.00) e que, em caso de dúvida sobre o montante da sucumbência, deveria relevar apenas o valor da causa (€421.888,04).

Acrescentou que, de qualquer forma, sempre o recurso seria admissível, por haver contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proc. n.º 3234/13.4TBLRA-A.C1, e ainda com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Março de 2018.


2. O recurso foi admitido pelo despacho de fls. 84, por se verificarem os pressupostos de admissibilidade da revista; nomeadamente, porque o valor da alçada aplicável é de € 14.963,94, uma vez que “a acção executiva na qual foi deduzido nos próprios autos o incidente (…) foi instaurada em 15.02.2007” (n.º 1 do artigo 24.º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro e n.º 3 do artigo 44.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto.) e que o valor fixado ao incidente foi de € 17.656,90 (despacho de fls. 84).

Não obstante ser exacto que, “na sua alegação, o recorrido” possa “impugnar a admissibilidade do recurso” (n.º 6 do artigo 638.º do Código de Processo Civil), e não se poder considerar o requerimento de fls. 77, v.º, como uma contra-alegação, não se determina o respectivo desentranhamento por ser inútil, já que a admissibilidade do recurso sempre teria de ser oficiosamente verificada.

Entende-se que foi invocada a contradição com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, tendo sido junta com a alegação de recurso a respectiva cópia (cfr. n.º 2 do artigo 637.º do Código de Processo Civil).


3. O presente recurso não se enquadra em nenhuma das hipóteses previstas no artigo 854.º do Código de Processo Civil, relativo à admissibilidade de revista em processo executivo; o que desde logo permite considerar preenchido um dos requisitos da al. d) do n.º 2 do artigo 629.º do Código de Processo Civil – não caber recurso ordinário do acórdão recorrido, “por motivo estranho à alçada do tribunal ”, sendo certo que não foi uniformizada jurisprudência sobre a matéria.

   Apesar de a al. d) do n.º 2 do artigo 629.º apenas prever a contradição com um acórdão de um tribunal da Relação, admite-se a alegação de contradição com um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, por ser essa a interpretação maioritária neste colectivo.


  4. Vem provado o seguinte (transcreve-se do acórdão recorrido):

 “1. Por auto de penhora, datado de 07-08-2017, foi penhorado pelo senhor AE o crédito que a executada AA detém em consequência da indemnização que venha a receber nos autos de processo 735/07.7…, que corre termos no Tribunal da Comarca de … - … - Inst. Central - …Secção Trabalho – J….

2. No âmbito do processo nº 735/07.7… foi proferida a sentença, cuja cópia se encontra junta aos autos e cujo teor se dá aqui reproduzido, que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência:

1) Julgou ilícito o despedimento da autora AA, ocorrido por decisão proferida em procedimento disciplinar a …….2006, levado a cabo pela ré entidade empregadora “Cooperativa Agrícola de Barcelos, C.R.L.”.

2) Condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 21.855,00 a título de indemnização em substituição da reintegração, acrescida de juros a contar da data da presente decisão, à taxa de 4%.

3) Condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 2.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros a contar da data da presente decisão, à taxa de 4%.  

4) Condenou a ré a pagar à autora as retribuições correspondentes ao período que decorreu entre a data do despedimento e o dia ….11.2006 (um mês depois do início do período de incapacidade para o trabalho), à razão mensal de € 690,00 + € 15,00 + € 10,00 + € 4,00, acrescida dos juros de mora a contar da data de vencimento de cada uma dessas prestações, à taxa de 4%, cujo apuramento se relega para incidente de liquidação de sentença.

3. Resulta provado da sentença referida em 2 que:

i) A ali autora, atenta a sua doença depressiva, iniciou, em …-10-2006, período de baixa médica, ininterruptamente.

ii) A partir de …-12-2011, a autora passou a receber pensão por invalidez através do Centro Nacional de Pensões, no valor de € 431,01.”


5. Está apenas em causa neste recurso saber se a indemnização atribuída à executada por despedimento ilícito e em substituição da reintegração é totalmente penhorável ou se, por estar abrangida pelo n.º 1 do artigo 738.º do Código de Processo Civil, é parcialmente impenhorável.

Com efeito, afastando a regra de que pelos créditos respondem “todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios” (artigo 601.º do Código Civil), o n.º 1 do artigo 738.º consagra uma impenhorabilidade parcial de certos bens do executado: de “dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia ou prestação de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado”, com os limites máximo e mínimo previstos no n.º 3 do mesmo artigo 738.º, definidos por referência ao salário mínimo nacional – assim, o acórdão do Tribunal  Constitucional n.º 177/02, de 23 de Junho de 2020, que, generalizando os julgamentos de inconstitucionalidade proferidos pelo acórdão n.º 318/99 e pelas decisões sumárias n.ºs 120/01 e 165/01,  declarou “a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma que resulta da conjugação do disposto na alínea b) do nº 1 e no nº 2 do artigo 824º do Código de Processo Civil, na parte em que permite a penhora até 1/3 das prestações periódicas, pagas ao executado que não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, a título de regalia social ou de pensão, cujo valor global não seja superior ao salário mínimo nacional, por violação do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito, e que resulta das disposições conjugadas do artigo 1º, da alínea a) do nº 2 do artigo 59º e dos n.ºs 1 e 3 do artigo 63º da Constituição) ou  o acórdão n.º 96/04, de 11 de Fevereiro de 2004, que estendeu o juízo de inconstitucionalidade à normas que permitiam “a penhora de uma parcela do salário do executado, que não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, e na medida em que priva o executado da disponibilidade de rendimento mensal correspondente ao salário mínimo nacional”.

Conjugando o n.º 1 com os demais n.ºs do artigo 738.º, e dando especial atenção ao poder conferido ao juiz de reduzir ou isentar de penhora durante um certo período de tempo “a parte penhorável dos rendimentos”, ponderando “o montante e a natureza do crédito exequendo, bem como as necessidades do executado e do seu agregado familiar”, conclui-se facilmente que o objectivo da redução prevista no n.º 1 é a protecção da subsistência do executado (cfr. a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII, correspondente ao Código de Processo Civil de 2013), em aplicação do princípio fundamental da dignidade humana (artigo 2.º da Constituição). Na medida da impenhorabilidade, o legislador faz prevalecer este princípio sobre os interesses do credor, cuja consistência é prosseguida pela possibilidade de cobrança coerciva dos seus créditos, através do processo executivo, protegendo o executado.

Estão em causa direitos do executado que, na sua maioria, se materializam em prestações periódicas,  característica exigida pelas duas alíneas do n.º 1 do artigo 824.º do Código de Processo Civil anterior, como observam Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, em Código de Processo Civil Anotado, vol 3,º, Coimbra, 2003, anotação ao artigo 824.º: “Trata-se, pois, em ambos os casos, de prestações periódicas, em princípio destinadas a proporcionar a satisfação das necessidades do executado. Não estão, designadamente, abrangidas as indemnizações por acidente pagas por uma só vez ou fraccionadas, mas só as que dão lugar, como é regra nos acidentes de trabalho, a prestações periódicas ou de trato sucessivo (…). Por isso, o preceito não abrange as regalias sociais, subsídio, prestações de indemnização por acidentes de trabalho e produto da sua aplicação, cuja concessão seja independente de qualquer periodicidade” (pág. 357).

No entanto, tal exigência da periodicidade foi afastada pelo artigo 738.º do Código de Processo Civil de 2013, que tomou como critério a função da prestação a que o executado tem direito: destinarem-se a assegurar a subsistência do executado. “O que é decisivo é, portanto, a função da prestação e não a sua periodicidade”, escreve Rui Pinto, A Acção Executiva, Lisboa, 2018, pág. 491; “o critério que releva é o da natureza dessas prestações e não o facto de as mesmas serem disponibilizadas ao trabalhador de forma integral ou faseada” (Marco Carvalho Gonçalves, “Lições de Processo Executivo”, 4.ª ed., Coimbra, 2020, pág. 330.

No caso presente, portanto, saber se a indemnização paga ao trabalhador em substituição da sua reintegração, em caso de despedimento ilícito (artigo 439.º do Código do Trabalho de 2003, aqui aplicável, correspondente ao artigo 391.º do Código de 2009), está ou não abrangida pela impenhorabilidade parcial prevista no n.º 1 do artigo 738.º do Código de Processo Civil implica determinar se essa indemnização tem (também) por função assegurar a subsistência do trabalhador/executado.


6. É habitual reconhecer à indemnização atribuída em substituição de reintegração, em caso de despedimento ilícito, uma dupla função, ressarcitória e punitiva; essa dupla função reflecte-se desde logo nos critérios de cálculo – o valor da retribuição e o grau de ilicitude do despedimento (assim, a título de exemplo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Maio de 2006, www.dgsi.pt, proc. n.º 06S291). “A indemnização substitutiva da reintegração decorre da realização de um acto extintivo ilícito, ou seja, do despedimento ilícito efectuado pelo empregador”, “que está na base da cessação do contrato, ainda que esta venha a ser decidida pelo trabalhador ou pelo tribunal ” (Pedro Furtado Martins, Cessação do Contrato de Trabalho, 4.ª ed., Lisboa, 2017, pág. 540); no mesmo sentido, por exemplo, Júlio Gomes, Direito do Trabalho, vol. I, Coimbra 2007, pág. 1033-1034, que observa que a indemnização “parece ter um sentido parcialmente punitivo: a indemnização será devida em substituição da reintegração, mesmo que o trabalhador tenha no dia seguinte conseguido um emprego melhor”.

Essa dupla função, todavia, não exclui a finalidade de prover à subsistência do trabalhador. Na verdade, a indemnização em substituição da reintegração é uma “indemnização sucedânea” da restauração natural (a reintegração), como recorda Pedro Romano Martínez na anotação ao (actual) artigo 391.º do Código do Trabalho (Código do Trabalho Anotado, 13.ª ed., Coimbra, 2020, pág. 912) e se observa, por exemplo, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Fevereiro de 2006, www.dgsi.pt, proc. n.º 05S3639, o que demonstra, em nosso entender, a função de “prestação alimentícia”, ou seja, de prestação que assegura “a manutenção da vida financeira básica do executado”, embora não assuma a natureza de rendimento periódico (Rui Pinto, A Acção Executiva cit, pág. 490-491); essa mesma função resulta ainda de o seu cálculo ter em conta o montante das retribuições auferidas, dispondo o juiz de uma margem de decisão que lhe permite adequar o valor da indemnização à situação concreta do trabalhador, adaptando-o ao dano que a perda da retribuição, decorrente da extinção do contrato de trabalho, lhe pode trazer: “os nossos tribunais dispõem hoje” (desde o Código do Trabalho de 2003) “de uma margem de manobra bastante dilatada no que toca à fixação, em concreto, do quantum indemnizatório”, escreve João Leal Amado, que por exemplo lhes permite fixar uma indemnização mais elevada quando as retribuições eram mais baixas e vice-versa –“Contrato de Trabalho”, 4.ª ed., Coimbra, 2014, págs. 429-430.

A relevância do montante das retribuições no cômputo da indemnização mostra a função substitutiva da remuneração que desempenha.

Já Marco Carvalho Gonçalves, Lições cit., págs. 330-331, por exemplo, entende que a indemnização em substituição da reintegração “não revest(…)[e] a natureza de crédito(…) salaria(…)[l] ou remuneratório(…) – e, consequentemente, não se destina(…) a garantir a subsistência do executado”.

À conclusão a que se chega não obsta a consagração do direito à percepção das retribuições intercalares, que “é independente, quer do direito à indemnização (…), quer do direito do trabalhador à reintegração, se for esta a sua opção” (Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, 6.ª ed., Coimbra, 2016, pág. 867). Na realidade, “os salários intercalares não [são] tanto uma indemnização, mas sim a consequência da mora do credor”(Júlio Gomes, Direito do Trabalho cit., pág. 1025).

Reconhecendo tratar-se de uma questão controvertida, quer na jurisprudência, quer na doutrina, entende-se que a indemnização atribuída em substituição da reintegração do trabalhador se deve considerar abrangida pelo n.º 1 do artigo 738.º do Código de Processo Civil, sendo parcialmente impenhorável, atenta a função que desempenha.

7. Assim, nega-se provimento ao recurso.

Custas pela recorrente.


A relatora atesta que os adjuntos, Conselheiro Olindo dos Santos Geraldes e Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado, votaram favoravelmente este acórdão, não o assinando porque a sessão de julgamento decorreu em videoconferência.


Lisboa, 12-11-20

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)