Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2985/22.7YRLSB.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
DIVÓRCIO
ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL
PRINCÍPIOS DE ORDEM PÚBLICA PORTUGUESA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
IGUALDADE DAS PARTES
ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
Data do Acordão: 02/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. A lei presume a verificação dos requisitos previstos nas alíneas b) a e) do referido art. 980.º do CPC (correspondente ao anterior art. 1096.º do anterior Código), dispensando o requerente de fazer a respectiva prova, cabendo ao requerido o ónus da prova de que tais requisitos não se verificam, a menos que o tribunal, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nessas alíneas, caso em que, nos termos previstos no art. 984.º, deve negar oficiosamente a confirmação.

II. Sendo certo que o repúdio da mulher portuguesa pelo marido muçulmano (o instituto do talak) é susceptível de violar a ordem pública internacional portuguesa (porque coloca o cônjuge mulher numa situação de inferioridade, não lhe concedendo um direito que é concedido ao cônjuge marido, dessa forma ofendendo, em abstracto, o preceito constitucional que consagra o princípio da igualdade dos cônjuges), casos há em que essa desigualdade não será suficiente para desencadear a actuação da ordem pública internacional.

III. Uma dessas situações é o caso de o cônjuge mulher pedir o reconhecimento da decisão estrangeira de repúdio unilateral, pois está, dessa forma, a manifestar a sua vontade de que a dissolução do casamento seja também reconhecida em Portugal.

IV. Age em abuso do direito, na modalidade do venire contra factum proprium, o requerido ao afirmar que estava no seu direito ao ter intentado a acção de divórcio nos tribunais competentes, tendo de seguida requerido o Talaq, pretendendo com isso salvaguardar “as suas convicções religiosas”, e, simultaneamente, deduzindo oposição ao reconhecimento dessa mesma decisão Talaq.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível


I – RELATÓRIO

AA veio intentar Ação Especial de Revisão/Confirmação de Sentença Estrangeira contra BB, pedindo a revisão e confirmação de sentença de divórcio transitada em julgado proferida pelo Tribunal da Sharia de Sharjah, Emirados Árabes Unidos em 23/03/2015, que confirmou o divórcio operado pela iniciativa unilateral do requerido de se divorciar da requerente, efetuada em 20/03/2015, através do procedimento denominado Talaq, pelo qual o requerido se divorciou da requerente pronunciando as palavras “taliq”.

Juntou certidão da decisão que pretende ver revista e confirmada.

O requerido deduziu oposição na qual não impugnou o alegado pela requerente, dizendo, no entanto, que a decisão em causa, apesar de ter sido proferida a seu pedido, não pode ser revista e confirmada por não ser uma decisão judicial mas antes resultado de uma declaração unilateral, dizendo ainda que “não é pelo facto de a Requerente pretender obter o divórcio que o reconhecimento do Talaq deixa de violar a ordem pública internacional, uma vez que a igualdade de armas e o contraditório não foram assegurados no referido “processo”. Mais alegou existir uma ação de divórcio a correr termos em Portugal, na qual o Tribunal de Família e Menores competente (processo n.º 763/15.9..., ... 2 de Família e Menores do Tribunal Judicial de ...).

A Exmª Procuradora-Geral Adjunta junto do Tribunal da Relação pronunciou-se no sentido da improcedência da pretensão da requerente, dizendo que “à luz da nossa ordem jurídica, não podemos concluir pela existência de um qualquer divórcio entre as partes válido e eficaz em Portugal, dado que não se verifica o pressuposto da alínea e) do artigo 984.º do CPC e o acto revidendo é manifestamente violador dos princípios da ordem pública internacional do Estado Português” por ser baseado na declaração unilateral de repúdio por parte do marido, efetuado ao abrigo da Lei Sharia.

Por Acórdão do Tribunal da Relação, proferido em 6-07-2023, foi decidido conceder a revisão e confirmar a sentença proferida pelo Tribunal da Sharia de Sharjah, Emirados Árabes Unidos, em 23/03/2015, que confirmou o divórcio determinado pela iniciativa unilateral do requerido de se divorciar da requerente, operando dessa forma, por divórcio, a cessação do vínculo matrimonial entre a requerente e o requerido, para que a mesma produza efeitos em Portugal.


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Inconformado com o teor do Acórdão da Relação, veio o réu instaurar o presente recurso de revista, apresentando alegações que remata com as seguintes

CONCLUSÕES

A. Nos termos do artigo 985.º, n.º 1, do CPC, cabe recurso de revista do Acórdão do Tribunal Relação que incida sobre o mérito da causa;

B. O Acórdão recorrido julgou procedente o pedido de revisão e confirmação de sentença proferida pelo Tribunal da Sharia de Sharjah, Emirados Árabes Unidos, em 23/03/2015, por considerar que se encontram verificados os requisitos necessários para a confirmação da decisão nos termos estabelecidos nos artigos 980.º e 984.º do CPC;

C. Porém, não se encontram verificados os requisitos de revisão e confirmação previstos no artigo 980.º do CPC;

D. Nos termos e para os efeitos do artigo 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, vem o Recorrente expor os fundamentos por que interpõe o presente recurso.

E. Efetivamente, no dia 29/04/2021, o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu um acórdão que negou a revisão e confirmação da Decisão inglesa supra referida, de 12/10/2016, por, desde logo, entender não existir nenhum divórcio em Portugal, sem ter chegado sequer a analisar outras questões substantivas. Tal Decisão foi, nesta parte, confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça, a 29/09/2022. No seguimento destas Decisões veio a Recorrida, mais uma vez, tentar fazer ”renascer” a Decisão inglesa, a qual é manifestamente ilegal sob vários primas.

F. Note-se que a Recorrida somente propôs a presente ação de modo a atingir o seu fim último, de conseguir obter os efeitos patrimoniais decorrentes da Decisão dos tribunais ingleses (injustificados, desproporcionais, ilegítimos e violadores dos melhores princípios de direito assegurados em Portugal constitucionalmente), não tendo nunca anteriormente a mesma mostrado qualquer interesse em se divorciar, muito pelo contrário – com efeito, não só se opôs veementemente ao avanço do processo de divórcio em Portugal, como não prosseguiu com o processo de divórcio em Inglaterra, preferindo, por razões agora claras para todos, avançar com os efeitos de um divórcio não decretado neste País. É evidente que o único intuito da Recorrida era manter a qualidade de herdeira do Recorrente, não querendo por isso que a ação civil de divórcio em Portugal prosseguisse.

G. Efetivamente, o divórcio Talaq não pode ser revisto e confirmado na ordem jurídica portuguesa nos termos requeridos, uma vez que existe uma clara violação das alíneas c) e f) do artigo 980.º do CPC.

H. Relativamente à fraude à lei, ou criação fraudulenta dos elementos de conexão, verifica-se no presente caso, uma vez que a Recorrida provocou artificialmente a competência internacional do tribunal inglês. Efetivamente, a Recorrida, para conseguir propor uma ação nos tribunais ingleses, alterou artificialmente a sua residência, com o intuito único de preencher o elemento de conexão. A Recorrida “materializou” a sua pretensão, “mudando-se” para Inglaterra, ainda que somente após a propositura da ação de divórcio neste País (a morada que a mesma indicou na própria Petição Inicial era a da filha, com quem se encontraria a viver, nos Estados Unidos!); porém, tal não concretiza o conceito de domicílio ou de residência nem na aceção dada pela ordem jurídica inglesa, nem na ordem jurídica portuguesa. A Recorrida nem sequer tinha autorização de residência em Inglaterra, pois a ela tinha renunciado há várias décadas atrás, tendo inclusivamente feito uma declaração de permanente mudança de residência para Portugal no Consulado Português de Londres em 1994!

I. Recorrida e Recorrente não só são ambos portugueses, como viveram mais de três décadas em Portugal, na casa de morada de família, última residência comum, onde criaram os seus três filhos e partilharam todo o seu dia a dia (repita-se, a Recorrida não tinha sequer autorização de residência em Inglaterra no momento da propositura da ação de divórcio por si em Inglaterra).

J. Assim sendo, os tribunais ingleses eram desde logo incompetentes para julgar a ação de divórcio proposta pela Recorrida em Inglaterra, porque a residência habitual dos cônjuges era em Portugal (tal como a única nacionalidade comum).

K. O reconhecimento civil do Talaq em Portugal, que pode eventualmente levar ao reconhecimento da Decisão judicial inglesa, é manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública conforme se explicará adiante, concretizando-se ainda num fórum shopping inaceitável, sem qualquer elemento de conexão do caso a Inglaterra, num divórcio civil não confirmado por Inglaterra ou Portugal, numa partilha de bens sem divórcio confirmado e na total desconsideração do regime matrimonial de separação de bens entre Recorrida e Recorrente. Acresce ainda uma partilha e imposições de obrigações patrimoniais totalmente desajustadas, especulativas, não fundamentadas e desproporcionais.

L. Além disso, a procedência da pretensão da Recorrida prejudicaria o princípio do privilégio da nacionalidade, que se tem que aplicar ao Recorrente. Ou seja, a aplicação da lei portuguesa garantiria ao Recorrente um resultado substancialmente/materialmente mais favorável, o que constitui fundamento de oposição à confirmação da sentença inglesa, nos termos os disposto do artigo 983.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, o que não foi tido em consideração pelo Tribunal da Relação. Isto porque, de acordo com o direito português, os cônjuges estão casados no regime da separação de bens, não havendo nada a partilhar.

M. A lei portuguesa garantiria um regime mais favorável ao Recorrente, em todas as vertentes, designadamente: (i) Decretação de divórcio e eventual direito de alimentos da Recorrida, na qualidade de futuro ex-cônjuge, ou de qualquer compensação patrimonial; (ii) Determinação de regime matrimonial de bens aplicável (separação de bens).

N. É evidente que o pedido de revisão e confirmação do Talaq tem, por parte da Recorrida, o único e exclusivo propósito de “ressuscitar” a decisão inglesa que atribuiu efeitos patrimoniais ao divórcio, que não poderia ser obtida nos tribunais locais. Este tipo de comportamento, aliado ao facto de a Recorrida pretender com a presente ação de reconhecimento e confirmação de sentença estrangeira, apenas e só, fazer valer a decisão dos tribunais ingleses, constitui uma clara fraude à lei. A conduta adotada pela Recorrida, ainda que diretamente não aparente consubstanciar uma situação de fraude à lei, materialmente o é, pois corresponde a um comportamento incompatível com os princípios de Direito Internacional Privado. Isto porque não pode ser tolerado que a Recorrida pretenda fazer valer o divórcio Talaq do ponto de vista civil em Portugal, de modo a beneficiar dos efeitos patrimoniais concedidos por um tribunal cuja competência foi provocada artificialmente. Recorde-se que o Talaq foi emitido há cerca de 7 anos e só agora, após a decisão do Tribunal português requerendo o reconhecimento do divórcio para que pudesse analisar o pedido de reconhecimento da decisão inglesa, a Recorrida pretendeu reconhecê-lo!

O. Infringe a ordem pública internacional o reconhecimento de qualquer decisão que contrarie de forma inaceitável os princípios fundamentais que norteiam o sistema jurídico português. A lei nacional não apresenta uma definição para o conceito de "ordem pública internacional”, tratando-se de um conceito indeterminado, carecido de preenchimento valorativo na análise casuística. Por conseguinte, o juízo de compatibilidade com a ordem pública internacional do Estado Português terá que ser necessariamente aferido, não pelo conteúdo da decisão e do direito nela aplicado, mas pelo resultado do seu eventual reconhecimento em Portugal, o que implica um “exame global”. Os princípios do contraditório e da igualdade das partes são princípios fundamentais da nossa ordem jurídica, assim como, aliás, de qualquer Estado de direito. No caso dos autos, o divórcio Talaq operou por mera declaração do cônjuge marido, sem ter havido qualquer intervenção do cônjuge mulher, até por a lei Sharia, aplicável ao Talaq, não lhe conceder tal “prerrogativa”. E é irrelevante se o cônjuge mulher queria ou não queria opor-se ao divórcio, defender-se ou atuar de outra forma, pois o que releva é o facto de não existir sequer essa possibilidade, motivo pelo qual a revisão e confirmação do Talaq violaria o artigo 980.º, al. e), do CPC.

P. Ora, só das supra referidas violações dos princípios da igualdade entre os cônjuges, da igualdade de armas, do contraditório e da inexistência de processo, princípios constitucionais da nossa ordem jurídica, decorre a manifesta violação da ordem pública internacional. Atente-se que estes princípios estão mesmo consagrados em vários tratados internacionais, como seja a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal é a sua importância.

Q. O Recorrente não se encontra em abuso de direito, ao pretender que o divórcio Talaq não seja revisto e confirmado. Existe claramente uma errada interpretação dos factos, que consequentemente tem impacto na interpretação e aplicação do instituto do abuso de direito. Desde logo, pois o Recorrente, ao ter intentado uma ação de divórcio nos tribunais portugueses e, de seguida, ter comparecido perante o ... de direito do Tribunal da Sharia, pedindo que o divórcio Talaq fosse confirmado, apenas se encontrava a conciliar a concretização das suas convicções religiosas com o cumprimento das regras legais relacionadas com o divórcio. É na referida ação judicial que corre termos em Portugal que o divórcio deverá ser decretado em Portugal, face ao casamento em causa, religioso, mas não católico, incluindo-se, portanto, na modalidade de casamento civil (ainda que sob forma religiosa islâmica) e como tal registado em Portugal.

R. Além disso, e conforme demonstrado anteriormente, a Recorrida agiu em clara fraude à lei quando intentou uma ação nos tribunais ingleses, manipulando os elementos de conexão de forma a que os tribunais ingleses fossem competentes. Pelo que os tribunais competentes para decretar o divórcio serão sempre os tribunais portugueses. Portanto, se o Recorrente intentou a devida ação de divórcio nos tribunais competentes, tendo de seguida Recorrente o Talaq, não se concebe onde existe algum tipo de abuso de direito quando se opõe à pretensão da Recorrida, fundada em comportamentos censuráveis incompatíveis com os princípios de Direito Internacional Privado, vertida nos presentes autos.

S. Nestes termos, é evidente que, salvo o devido respeito, o Tribunal da Relação não interpretou, nem aplicou corretamente as normas legais aqui em questão, dado que não procedeu a uma análise objetiva e integrada, incluindo todos os aspetos relevantes relativos ao caso concreto na decisão do mérito da causa,

T. Termos em que, deve o Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que indefira o pedido de revisão e confirmação do divórcio Talaq, não possibilitando a concretização da pretensão da Recorrida de revisão e confirmação da sentença inglesa.”.


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A autora contra-alegou, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Nada obsta à apreciação do mérito da revista.

Com efeito, a situação tributária mostra-se regularizada, o requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC). Para além de que tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).

Uma vez que o acórdão recorrido se pronunciou sobre o mérito da causa, o recurso de revista é admitido expressamente pelo disposto no art. 985.º, n.º 1, do CPC, pelo que não se colocam quaisquer obstáculos à admissibilidade do recurso.


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Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), cumpre in casu aferir se o acórdão do Tribunal da Relação, ao decidir nos termos em que o fez, violou os requisitos de confirmação da sentença revidenda previstos nas alíneas c), e) e f) do artigo 980.º do CPC.

Mais precisamente, perante o teor das aludidas conclusões da apelação, temos, as seguintes questões a decidir:

Se não se encontram verificados os requisitos previstos nas als. e) e f) do art. 980.º do Código de Processo Civil (por, na perspectiva do Recorrente, a declaração do Talaq violar os princípios da igualdade entre os cônjuges, do contraditório, princípios constitucionais de cuja inobservância decorre, na perspetiva do mesmo Recorrente, uma manifesta violação da ordem pública internacional);

• Se estamos perante uma situação de fraude à lei (por, no entender do recorrente, ter a autora despoletado a competência internacional dos tribunais ingleses para o decretamento do divórcio de forma artificial, assim originando a aplicação de uma lei que é mais desfavorável ao ora Recorrente em termos de efeitos patrimoniais decorrentes do divórcio; entendendo o recorrente, a este propósito, que os tribunais ingleses são incompetentes para regular os efeitos patrimoniais do divórcio- imputada violação do art. 980.º, al. c) do CPC);

• Se a existência de ação de divórcio a correr termos num Tribunal português – que, segundo o recorrente é o competente para decretar o divórcio – é (também) um obstáculo à confirmação da decisão estrangeira que decretou o divórcio das partes.

• Se o Recorrente não se encontra em abuso do direito, ao pretender que o divórcio Talaq não seja revisto e confirmado.

III – FUNDAMENTAÇÃO

III. 1. FACTOS PROVADOS

Com base no que se mostra documentalmente demonstrado nos autos, o acórdão recorrido deu como provados os seguintes factos:

1. A requerente e o requerido casaram-se na Mesquita muçulmana de..., no Japão, em ... de ... de 1969.

2. O casamento está transcrito na ordem jurídica portuguesa pelo Assento de Casamento n.º 250-E do ano de 1992 da Conservatória dos Registo Centrais de Lisboa.

3. No dia 20/3/2015, o Requerido declarou divorciar-se da Requerida ao pronunciar: estás “Taliq”, tendo comparecido, no dia 23/3/2015 perante o juiz de direito do Tribunal da Sharia, pedindo que o divórcio fosse confirmado.

4. Nesse mesmo dia 23/3/2015, o Tribunal da Sharia de Sharjah confirmou o divórcio entre as Partes nos seguintes termos:

4. A referida decisão tornou-se definitiva.

5. No dia 6/1/2015, a requerente instaurou contra o requerido, no Reino Unido, uma acção, que correu termos junto da Divisão de Família do High Court of Justice, no âmbito da qual pediu que fosse decretado o divórcio entre as partes.

6. No dia 8/7/2015, a requerente foi notificada, na pessoa do seu mandatário, de que o divórcio Talaq entre as partes havia sido concedido pelo Tribunal da Sharia de Sharjah.

7. No âmbito da acção que corria termos no Reino Unido, a 30/7/2015, o Tribunal, após ter tido conhecimento da Sentença de Divórcio Talaq, afirmou que as partes já estavam divorciadas, não tendo a ora requerida contestado o Talaq, e convidou esta a pedir pedido de assistência financeira ao abrigo da Parte III do Matrimonial and Family Proceedings Act 1984”.

8. A requerente aceitou o convite do Tribunal do Reino Unido e alterou o seu pedido em julho de 2015 e janeiro de 2016, formulando nesta última data um pedido de assistência financeira após divórcio estrangeiro.

9. O Tribunal do Reino Unido proferiu, em 12/10/2016, sentença final que regulou os efeitos patrimoniais do divórcio entre as partes.

10. Em 7/11/2017, a requerente iniciou acção de revisão e confirmação da Sentença do Tribunal do Reino Unido, que correu termos no Tribunal da Relação de Lisboa, ...ª Secção, sob o número 2172/17.6...

11. O Tribunal da Relação julgou improcedente a acção, absolvendo o requerido do pedido.

12. A Requerente interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

13. O Supremo Tribunal de Justiça considerou que a falta de inscrição do divórcio entre as partes no registo civil português era uma condição de procedibilidade do reconhecimento da Sentença do Tribunal do Reino Unido, que consubstanciava uma exceção dilatória.

14. Em consequência, o Supremo Tribunal de Justiça absolveu o requerido da instância, dizendo o seguinte:

O reconhecimento dessa impossibilidade não implica, no entanto, qualquer apreciação dos requisitos de revisibilidade estabelecidos no artigo 980º do CPC, que conduza à improcedência da pretensão da confirmação da decisão revidenda para valer em Portugal. Antes, o que dela decorre é que o tribunal não pode rever a decisão do tribunal estrangeiro sem que o facto pressuponente daquela decisão seja eficaz no ordenamento jurídico português. A falta de inscrição do divórcio no registo civil português surge, desta forma, não como um facto impeditivo, modificativo ou extintivo do efeito jurídico pretendido – a confirmação da sentença para valer em Portugal – mas antes como uma condição de procedibilidade, sem cujo preenchimento o tribunal não pode apreciar a pretensão deduzida na acção de revisão. Trata-se, portanto, de uma excepção dilatória, que dá lugar à absolvição da instância, e não, como foi considerado no acórdão recorrido, de uma excepção peremptória que dá lugar à absolvição do pedido”.

15. No mesmo acórdão, o Supremo Tribunal de Justiça referiu o seguinte:

A circunstância de o ordenamento jurídico português – rectius, o registo civil português – considerar ainda subsistente o matrimónio de Autora e Réu não inviabiliza, no entanto, que possa vir a ser reconhecida a dissolução do mesmo; designadamente através da revisão da sentença dos EAU que decretou o divórcio ‘talaq’, que implicaria a imediata inscrição de tal facto no registo civil português (artigo 7º do Código do Registo Civil)”.

16. Em 04/3/2015 o requerido instaurou ação de divórcio contra a requerente, a qual corre termos com o número de processo 763/15.9..., do Juízo de Família e Menores de ... do Tribunal Judicial da comarca de Lisboa Oeste - Juiz ....

17. Tal processo encontra-se com a instância suspensa com base no decidido no seguinte despacho, datado de 7/1/2019:

Encontra-se pendente, no Tribunal da Relação de Lisboa, ação para reconhecimento de sentença estrangeira relacionada com o objeto dos presentes autos – dissolução do casamento entre Autor e Ré.

Os presentes autos foram suspensos, por despacho judicial, ao abrigo do disposto nos arts. 92, 276, nº 1 – c), 272, nº 1 e 275, todos do C.P.Civil, até que seja proferida decisão final no processo que corre termos do Reino Unido.

Assim sendo e em consequência, indefiro o requerido pela Ré e determino que os autos se mantenham suspensos, como determinado nos autos, até que seja proferida decisão final no processo que corre termos no Reino Unido ou até que se mostre decidido o processo pendente no Tribunal da Relação de Lisboa (reconhecimento de sentença estrangeira)”.


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III. 2. DO MÉRITO DO RECURSO

Analisemos, então, as questões suscitadas na revista.

III.2.1. DA (NÃO) VERIFICAÇÃO DOS REQUISITOS PREVISTOS NAS ALS. E) E F) DO ARTº 980º DO CPC

Não se encontram verificados os requisitos previstos nas als. e) e f) do art. 980.º do Código de Processo Civil – por, na perspectiva do Recorrente, a declaração do Talaq violar os princípios da igualdade entre os cônjuges, do contraditório, princípios constitucionais de cuja inobservância decorre, na perspetiva do mesmo Recorrente, uma manifesta violação da ordem pública internacional?

Nos termos do disposto no art. 978.º, n.º 1, do CPC, “sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada.”

No caso dos autos, estando em causa a revisão e confirmação de uma sentença dos Emirados Árabes Unidos não existe tratado ou convenção internacional que esteja em vigor e que regule a matéria em causa nos autos, pelo que se aplica somente o nosso regime interno, previsto nos arts. 978.º e segs. do CPC.

Dispõe o art. 980.º, do CPC, que, para que a sentença seja confirmada é necessário:

a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;

b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;

c) Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;

d) Que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;

e) Que o réu tenha sido regularmente citado para ação nos termos da lei do país do tribunal de origem e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;

f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado português”.

De acordo com o disposto no art. 983.º, n.º 1, do CPC, “o pedido só pode ser impugnado com fundamento na falta de qualquer dos requisitos mencionados no artigo 980.º ou por se verificar algum dos casos de revisão especificados nas alíneas a), c) e g) do artigo 696.º.”

E se a sentença tiver sido proferida contra pessoa singular ou colectiva de nacionalidade portuguesa, a impugnação pode ainda fundar-se em que o resultado da acção lhe teria sido mais favorável se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este devesse ser resolvida a questão segundo as normas de conflitos da lei portuguesa (n.º 2 do mesmo preceito legal). Este n.º 2 consagra, assim, o denominado privilégio da nacionalidade e estabelece um fundamento autónomo de dedução de impugnação. “Este regime implica um controlo de mérito, cabendo ao Trib. da Relação apreciar os factos dados como provados na sentença revidenda e o direito aplicável, sem que isso signifique proceder a um novo julgamento”1.

A propósito da aplicação do preceito previsto neste n.º 2 do art. 983.º do CPC tem-se entendido que a mesma pressupõe que existe uma parte vencida. É isso que decorre da posição de LIMA PINHEIRO, quando escreve que nos casos de divórcio por mútuo consentimento, a decisão não é proferida “contra” nenhuma das partes e, por conseguinte, não é aplicável o referido normativo legal.2

Por sua vez, de acordo com o disposto no art. 984.º do CPC, “o tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 980.º; e também nega oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito.”.

A jurisprudência do STJ tem considerado de forma consistente que a lei presume a verificação dos requisitos previstos nas alíneas b) a e) do referido art. 980.º (correspondente ao anterior art. 1096.º do anterior Código), dispensando o requerente de fazer a respectiva prova, cabendo ao requerido o ónus da prova de que tais requisitos não se verificam, a menos que o tribunal, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nessas alíneas, caso em que, nos termos previstos no art. 984.º acima citado, deve negar oficiosamente a confirmação3.

Vejamos.

Concretamente, quanto à questão suscitada relativamente à falta de verificação dos requisitos previstos nas als. e) e f) do art. 980.º do Código de Processo Civil, porquanto entende o recorrente que a declaração do Talaq viola os princípios da igualdade entre os cônjuges, da igualdade de armas, do contraditório, princípios constitucionais de cuja inobservância decorre uma manifesta violação da ordem pública internacional, segue-se de perto o entendimento propugnado pelo acórdão recorrido que enquadra, quanto a nós, a problemática sob a perspectiva mais correcta. Fá-lo, apelando à posição firmada da autora no processo, suportada esta em jurisprudência e doutrina, nos seguintes termos:

Vejamos agora a outra questão suscitada relativa à violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes e aos princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

Neste aspeto, concordamos, na íntegra, com o afirmado nas doutas alegações apresentadas pela requerente nos termos do artº 982º/1 do CPC, e que é o seguinte:

“54. Realce-se ainda que, ao contrário da alínea f), a alínea e) do artigo 980.º do CPC não é de conhecimento oficioso.

55. Bem se compreende que assim seja, já que a recusa de reconhecimento em caso de violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes visa preservar os direitos fundamentais de defesa do réu.

56. Assim, apenas o cônjuge prejudicado pela violação de tais princípios pode invocar este requisito de confirmação enquanto fundamento de impugnação do pedido de reconhecimento da decisão estrangeira (Cfr. Luís de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado. Reconhecimento de decisões estrangeiras, III, tomo II, pág. 227).

57. Ou seja, o Requerido não tinha sequer legitimidade para invocar o preceito em questão, sendo certo que a Requerente, que teria essa legitimidade, não pretende fazê-lo neste contexto.

58. Quanto ao requisito previsto na alínea f) do artigo 980.º do CPC, refira-se que apesar de o divórcio Talaq poder ser, em abstrato, contrário à ordem pública internacional do Estado Português, designadamente por violação do princípio da igualdade, há que realizar uma análise concreta antes de extrair daí consequências.

59. Neste contexto, atente-se nos ensinamentos de FERRER CORREIA:

“O repúdio da mulher portuguesa pelo marido muçulmano ofende o preceito constitucional que consagra o princípio da igualdade dos cônjuges. Mas se a mulher deu o seu assentimento ao repúdio – ou no próprio acto ou mesmo posteriormente – não se descortinam razões para fazer apelo à ordem pública; isto no caso de o repúdio ter sido realizado no estrangeiro, nos termos do art.º 31.º, n.º 2 do Cód. Civ.. O mesmo se diga se é a mulher quem pede em Portugal o reconhecimento dos efeitos do repúdio, v. gr., porque pretende contrair segundo casamento” (Cfr. A. Ferrer Correia, Lições de Direito Internacional Privado, vol. I, 2000, Almedina, Coimbra, págs. 415-416).

60. Ainda na doutrina veja-se, por exemplo, o entendimento de MARIANA SILVA DIAS:

“(…) Como mencionámos anteriormente, a apreciação destas situações tem de ser feita caso a caso e não abstratamente, por isso pode haver variantes a este entendimento, nomeadamente, quando é a mulher a intentar a ação de reconhecimento, ou, no caso de ser o homem, esta não se opuser e der o seu consentimento tácito ou expresso” (Cfr. Mariana Madeira da Silva Dias, “O Reconhecimento do Repúdio Islâmico pelo Ordenamento Jurídico Português: a exceção de ordem pública internacional”, in Julgar, n.º 23, 2014, Coimbra Editora, Coimbra, pág. 313).

61. No mesmo sentido, veja-se a posição de JOÃO GOMES DE ALMEIDA:

“O mero facto de o talak constituir um modo de dissolução do casamento com fundamento apenas na vontade de um dos cônjuges não é suficiente para violar a ordem pública internacional portuguesa. O instituto do talak é suscetível de violar a ordem pública internacional portuguesa porque coloca o cônjuge mulher numa situação de inferioridade, não lhe concedendo um direito que é concedido ao cônjuge marido. Porém, há que ter presente que, por força da conceção aposteriorística da ordem pública internacional, podem existir casos concretos em que essa desigualdade não será suficiente para desencadear a atuação da ordem pública internacional. Uma dessas situações é a prevista no caso sob análise, pois é o cônjuge mulher que pede o reconhecimento da decisão estrangeira de repúdio unilateral. Ao pedir o reconhecimento da decisão estrangeira, o cônjuge mulher está a manifestar a sua vontade de que a dissolução do casamento seja também reconhecida em Portugal. Dito de outro modo, está a demonstrar que também quer que o casamento seja considerado como dissolvido. Deste modo, a desigualdade existente em abstrato no instituto, não suscita problemas de ordem pública internacional no caso concreto, uma vez que ambos os cônjuges (ainda que o cônjuge mulher possa ter manifestado essa vontade apenas posteriormente) pretendem que o casamento termine e a ordem pública internacional portuguesa não se opõe a que um determinado casamento cesse por vontade de ambos os cônjuges. Entendo, por isso, que o reconhecimento desta decisão estrangeira não conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português” (Cfr. João Gomes de Almeida, “Casos práticos de divórcio transnacional”, in Direito Internacional da Família, Formação Contínua (Lisboa: Centro de Estudos Judiciários, 2019), págs. 57–89, http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/familia/eb_DireitoI_Familia.pdf, tópicos de resolução do caso prático n.º 4, págs. 87 e seguintes).

62. Esse é também o entendimento da jurisprudência, podendo indicar-se, por exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7/4/2020:

“(…) em abstracto, o divórcio muçulmano decorrente da vontade unilateral do marido não é aceitável segundo a OPI (do Estado português), por violação do princípio da igualdade. Os autores chamam, no entanto, a atenção para que a questão não deve ser apreciada em abstracto, mas em concreto, e que a ofensa aos princípios da ordem pública internacional do Estado só deve levar a que não se aceite o resultado da aplicação do direito estrangeiro que esteja em causa, quando a situação jurídica, que foi por ele regulada, tenha uma conexão muito próxima com o Estado português; não a tendo, o tribunal português não se deve imiscuir na questão. Para além de não o dever fazer quando é a própria mulher que vem pedir o reconhecimento da sentença estrangeira” (Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7/4/2020, proc. 405/19.3YRLSB-2, in www.dgsi.pt).

63. Como se pode concluir, se for a mulher a pretender prevalecer-se do divórcio Talaq, a ordem pública internacional portuguesa não deverá intervir”.

Tal argumentação é correta, pertinente e completa, pelo que se adere integralmente à mesma.”.

Ainda na doutrina, e neste mesmo o sentido, escreve MARÍA DOLORES CERVILLA GARZÓN – ainda que no âmbito do ordenamento jurídico espanhol:

43.- Es de observar que los Tribunales tienen en cuenta como indicio favorable al reconocimiento de efectos a las sentencias de disolución del vínculo el hecho de que sea la esposa la que tome la iniciativa en el ex aequator. Pues ello pone de manifiesto que desea la eficacia de la resolución judicial del Tribunal marroquí, es decir, que el divorcio despliegue sus efectos y sea reconocido en nuestro país (lo cual la desliga del vínculo matrimonial). Negársela y obligarla, por tanto, a estar unida con un marido al que ya no quiere sobre la base de un análisis formal y estricto del ordenamiento jurídico que sirvió de fundamento a la resolución judicial, es perjudicial a sus intereses y supone un vulneración a su dignidade como persona. En este sentido, es muy significativo el Auto del Tribunal Supremo de 21 de abril 1998, en el que el Tribunal considera que el divorcio por el ejercicio del repudio de su esposo pasa el filtro del orden público entre otros motivos por ser la esposa que inicia el procedimiento de exequatur.

Se aboga, pues, por una interpretación filexible para aquellos supuestos que existe una voluntad de la mujer, (…), o bien al ser ella la que demanda el reconocimento de efectos al repudio que ha sufrido por parte de su esposo.”4.

É este, de resto, o sentido decisório do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa 7-04-2020 (processo n.º 405/19.3YRLSB-2)5, citado pela recorrida, em cujo sumário pode ler-se: “É irrelevante, no caso concreto, que se saiba que no processo onde foi proferida a decisão (pelo cônjuge marido), não foram observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes (o que se declara tendo em vista o disposto no art. 980/-e do CPC). Já que a mulher, embora se encontrasse presente, se limitou a ouvir o divórcio pronunciado pelo marido, sem se poder opor ao mesmo.

É que o divórcio que resulta de uma declaração unilateral não pressupõe, logicamente, o contraditório ou a igualdade das partes. Daí que seja discutível a sua revisibilidade em abstracto. Mas, admitido que possa ser confirmado, como se viu que no caso pode ser, não se pode voltar ao início e pô-lo em causa por não haver contraditório ou igualdade das partes. Assim, o estudo citado de María Dolores Cervilla Garzón, ponto 42, nota 33, lembra que o facto de não existir motivo para oposição à pretensão de dissolução tão pouco é algo estranho para o ordenamento jurídico espanhol, pois desde a reforma de 2005 é possível o divórcio ou separação por simples vontade unilateral de uma das partes, sem que a outra tenha possibilidade de opor-se à dita pretensão; veja-se acima o que também se disse sobre o direito português, relativamente ao divórcio por separação de facto ou por ruptura definitiva do casamento (…).”.

Com idêntica argumentação, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18-10-2007 (processo n.º 10602/2005-2)6, que segue de perto a posição de Ferrer Correia7 quando atende à posição manifestada pela mulher repudiada pelo marido: “O repúdio da mulher portuguesa pelo marido muçulmano ofende o preceito constitucional que consagra o princípio da igualdade dos cônjuges. Mas se a mulher deu o seu assentimento ao repúdio – ou no próprio acto ou mesmo posteriormente – não se descortinam razões para fazer apelo à ordem pública; isto no caso de o repúdio ter sido realizado no estrangeiro, ao abrigo da lei do domicílio comum das partes, competente nos termos do art. 31º, nº 2 do Código Civil. O mesmo se diga se é a mulher quem pede em Portugal o reconhecimento dos efeitos do repúdio, v.g., porque pretende contrair segundo casamento”.

Também assim no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4-05-2022 (processo n.º 2916/21.1YRLSB-2)8, em cujo sumário se escreve o seguinte:

I – O fundamento de divórcio da Lei da Família do Qatar consistente na conversão da mulher ao Islão sem que o marido, no prazo dado pelo tribunal, também se converta ao Islão, viola o princípio da igualdade de ordem pública internacional do Estado português.

II – Mas esta violação não é suficiente para que a sentença do Tribunal do Qatar não seja confirmada, pois que para isso seria necessário que o reconhecimento conduzisse a um resultado manifestamente incompatível com aquele princípio e tal não acontece, entre outras hipóteses, quando o outro cônjuge aceita o divórcio e já o tinha pedido antes num tribunal português entretanto declarado internacionalmente incompetente.

III – Ou seja, “ambos os cônjuges […] pretendem que o casamento termine e a ordem pública internacional portuguesa não se opõe a que um determinado casamento cesse por vontade de ambos os cônjuges.”

É esta a posição também firmada por JOÃO GOMES DE ALMEIDA9 que, a propósito de um outro fundamento de divórcio que vai contra a ordem pública internacional do Estado Português por violação do princípio da igualdade, que é o repúdio da mulher pelo marido, quer no direito muçulmano quer no direito judaico, escreve o seguinte:

Pense-se, por exemplo, nos casos em que é o cônjuge mulher que pede o reconhecimento da decisão estrangeira de repúdio unilateral. Ao pedir o reconhecimento da decisão estrangeira, o cônjuge mulher está a manifestar a sua vontade de que a dissolução do casamento seja também reconhecida em Portugal. Dito de outro modo, está a demonstrar que também quer que o casamento seja considerado como dissolvido. Deste modo, a desigualdade existente em abstracto no instituto, não suscita problemas de ordem pública internacional no caso concreto, uma vez que ambos os cônjuges (ainda que o cônjuge mulher possa ter manifestado essa vontade apenas posteriormente) pretendem que o casamento termine e a ordem pública internacional portuguesa não se opõe a que um determinado casamento cesse por vontade de ambos os cônjuges (Cf., no mesmo sentido, FERRER CORREIA, 2000: 459. Afirmar-se-á, em termos mais gerais, que é necessário que o cônjuge mulher manifeste livremente, de forma expressa ou tácita, mas em termos inequívocos, a sua vontade em aceitar a dissolução do casamento. Não se considera, contudo, como manifestação tácita de vontade suficiente a não oposição ao pedido de reconhecimento de decisão estrangeira de talak apresentado juntos dos tribunais portugueses pelo cônjuge marido […].”.

Com base nas considerações acabadas de citar, entende-se que a violação do princípio da igualdade e contraditório que está na base do fundamento do divórcio concedido não implica, no caso, em que também a mulher repudiada, ora autora, pretende que a cessação do casamento produza efeitos, um impedimento no reconhecimento da sentença estrangeira.

Veja-se que o réu, ora recorrente, também pretende a cessação do casamento, tendo sido, de resto, este a despoletar o divórcio mediante prolação de declaração unilateral contra a autora, ora recorrida. Assim, não se vê que o reconhecimento da sentença conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública.

Atente-se que uma das caraterísticas fundamentais da cláusula de ordem pública internacional consiste na sua excecionalidade, pelo que esta cláusula só deve intervir como limite à aplicação do direito estrangeiro, “quando a solução dada ao caso for não apenas divergente da que resultaria da aplicação do Direito Português, mas também manifestamente intolerável.”.10 No caso em que nos movemos, torna-se evidente que, pretendendo ambas as partes o divórcio, o reconhecimento pretendido da decisão do Tribunal da Sharia não se mostra manifestamente incompatível com as normas e princípios fundamentais da ordem pública internacional.

Veja-se que, tal como sucede a propósito do caso apreciado no citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18-10-2007, a apreciação da violação da ordem pública internacional deve ser aferida em concreto. Assim, se não subsistem dúvidas de que o repúdio, em abstrato, viola o princípio da igualdade tal como consagrado na nossa Constituição, no caso concreto isso acaba por não obstar ao reconhecimento da sentença revidenda, porquanto é agora a cônjuge mulher que pretende prevalecer-se das consequências desse mesmo repúdio. Seguindo-se, pois, aqui a posição firmada no Acórdão do Tribunal da Relação de 4-05-2022, constata-se que ambos os cônjuges pretendem que o casamento termine e a ordem pública internacional portuguesa não se opõe a que um determinado casamento cesse por vontade de ambos os cônjuges.11

Por outro lado, partindo do princípio de que a recusa de reconhecimento em caso de violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes visa preservar os direitos fundamentais de defesa do cônjuge prejudicado pela violação de tais princípios, deve entender-se que só este cônjuge tem legitimidade para invocar este requisito enquanto fundamento de impugnação do pedido de reconhecimento da decisão estrangeira.12

Quanto à jurisprudência invocada pelo recorrente, é manifesto que a mesma não infirma o entendimento acabado de plasmar, já que a mesma se refere a um caso em que é o marido a pretender reconhecer o Talaq em Portugal contra a vontade da mulher13.

Assim improcede esta questão.

III.2.2. DA FRAUDE À LEI

Estamos perante uma situação de fraude à lei – por, no entender do recorrente, ter a autora despoletado a competência internacional dos tribunais ingleses para o decretamento do divórcio de forma artificial, assim originando a aplicação de uma lei que é mais desfavorável ao ora Recorrente em termos de efeitos patrimoniais decorrentes do divórcio; entendendo o recorrente, a este propósito, que os tribunais ingleses são incompetentes para regular os efeitos patrimoniais do divórcio- imputada violação do art. 980.º, al. c) do CPC?

Invoca, ainda, o Recorrente a ocorrência de fraude à lei por parte da recorrida, por ter esta alegadamente despoletado a competência internacional dos tribunais ingleses para o decretamento do divórcio de forma artificial, assim originando a aplicação de uma lei que é mais desfavorável ao ora recorrente em termos de efeitos patrimoniais decorrentes do divórcio.

A este propósito, o acórdão recorrido discorreu nos seguintes termos: “É evidente que a requerente, ao pretender prevalecer-se da decisão proferida pelos tribunais do Reino Unido que lhe concedeu direitos patrimoniais em consequência do divórcio, está a exercer um direito perfeitamente legítimo e se houver algum fundamento para que o requerido deduza uma legítima oposição ao reconhecimento dessa decisão, terá oportunidade de o fazer no competente processo, que não é este.”.

Adere-se integralmente à posição assim assumida pelo Tribunal da Relação.

Em primeiro lugar, importa salientar o facto de a presente ação especial não ter por objecto o reconhecimento ou revisão da sentença do Tribunal do Reino Unido, mas sim a decisão judicial que confirmou o divórcio das partes, proferida esta em 23-03-2015 pelo Tribunal da Sharia de Sharjah, Emirados Árabes Unidos.

Não é, pois, objeto de discussão nos presentes autos, a decisão que regulou os efeitos patrimoniais do divórcio decretado entre as partes e que o Tribunal do Reino Unido considerou perfetibilizado na sua ordem jurídica por via da sentença proferida pelo Tribunal da Sharia de Sharjah.

Nesta medida, qualquer questão que urja invocar relativamente a essa mesma decisão (como a que o recorrente suscita a propósito do reconhecimento que aí é feito do divórcio decretado nos EAU ou a propósito da incompetência dos Tribunais do Reino Unido para regularem tal matéria) deve ser suscitada no respetivo processo e não na sede em que nos movemos.

Não é, por isso, suscetível de conhecimento, na presente ação, nada do que o recorrente alega a propósito da violação de normativos da legislação inglesa a propósito da regulação patrimonial decorrente do divórcio e do reconhecimento que aí terá sido feito da decisão proferida pelo Tribunal da Sharia de Sharjah.

De igual modo, a alusão que é feita, pelo recorrente, ao disposto no art. 983.º, n.º 2 do CPC, sobre ser a legislação portuguesa a mais favorável para regular os efeitos do divórcio, designadamente a partilha do património conjugal, também não tem cabimento na ação especial sob escrutínio, sendo, antes, uma questão a apreciar, ou no processo que corre termos no Tribunal do Reino Unido ou numa eventual acção de revisão e confirmação da sentença aí proferida. Com efeito, a invocação desse fundamento específico, a propósito do eventual direito a alimentos devidos à recorrida e à determinação do regime matrimonial de bens aplicável, apenas poderá obstaculizar o pedido de revisão da sentença proferida pelos tribunais ingleses, sendo que tais temáticas não são objeto da decisão proferida pelo tribunal da Sharia, que se limitou a confirmar o divórcio pretendido pelo ora recorrente.

Identificada a decisão judicial cuja revisão e confirmação se requer com a presente acção, nunca a alegação feita pelo recorrente, no sentido de imputar à recorrida uma conduta contrária ao direito por ter recorrido ao Tribunal do Reino Unido posteriormente à declaração de divórcio, seria suscetível de obstaculizar a revisão e confirmação da sentença proferida pelos Emirados Árabes Unidos.

Acresce que a requerente iniciou a presente ação na decorrência da prolação de Acórdão do STJ proferido no processo n.º 2172/17.6YRLSB, nos termos do qual foi expressamente enquadrada a possibilidade de a ora recorrida suscitar a revisão da sentença dos EAU que decretou o divórcio entre as partes como forma de a mesma lograr obter a inscrição de tal facto no registo civil português, condição de procedibilidade, sem cujo preenchimento o tribunal considerou não poder apreciar a pretensão de revisão e confirmação da sentença proferida posteriormente no Tribunal do Reino Unido, que regulou os efeitos patrimoniais decorrentes do divórcio.

Neste contexto, torna-se por demais evidente que nenhum fundamento válido existe para considerar que a recorrida, mediante a propositura da presente acção, atuou de má-fé ou de forma contrária à lei. Pelo contrário, aquela fez legitimamente uso do único meio judicial ao seu dispor para obter a inscrição do divórcio decretado por um tribunal estrangeiro no registo civil português e fê-lo ao abrigo de decisão judicial prévia, onde se deixou expressamente escrito que: “A circunstância de o ordenamento jurídico português – rectius, o registo civil português – considerar ainda subsistente o matrimónio de Autora e Réu não inviabiliza, no entanto, que possa vir a ser reconhecida a dissolução do mesmo; designadamente através da revisão da sentença dos EAU que decretou o divórcio ‘talaq’, que implicaria a imediata inscrição de tal facto no registo civil português (artigo 7º do Código do Registo Civil)”.

O objectivo assim pretendido alcançar pela recorrida, o de registar civilmente em Portugal o divórcio decretado entre as partes, é legítimo e, além disso, condição essencial para que a mesma possa suscitar a revisão da decisão proferida nos tribunais ingleses. Saber se essa revisão é procedente e conforme aos princípios do ordenamento jurídico português é questão diferente, que, extravasando o objecto do presente processo, deverá, assim o pretendam as partes, ser suscitada na sede própria e no momento oportuno para o efeito.

Assim improcede esta questão.

III.2.3. DA EXISTÊNCIA DE ACÇÃO DE DIVÓRCIO A CORRER TERMOS NUM TRIBUNAL PORTUGUÊS

Segundo o Recorrente, a existência dessa acção – que foi por si intentada, sendo, segundo ele, o tribunal português o competente para decretar o divórcio – é obstáculo à confirmação da decisão estrangeira que decretou o divórcio das partes?

Esta concreta questão foi expressamente, e de forma exaustiva, apreciada pelo Tribunal da Relação em termos que, pela sua relevância e completude, aqui se reproduzem:

Tal questão da litispendência relativa à ação que pende no Juízo de Família e Menores de Cascais tem de ser reportada, desde logo, à ação pendente nos tribunais do Reino Unido. Isto porque à data da instauração dessas duas ações, estava ainda em vigor na ordem jurídica do Reino Unido o Regulamento (CE) n° 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental.

O artº 19º desse Regulamento estabelece, no nº 1, que “Quando os processos de divórcio, separação ou anulação do casamento entre as mesmas partes são instaurados em tribunais de Estados-Membros diferentes, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar suspende oficiosamente a instância até que seja estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar”. Por sua vez, o nº 3 estatui que “quando estiver estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar declarar-se incompetente a favor daquele”. Como se constata, o Regulamento tem uma específica noção de litispendência, pois, diferentemente do que se verifica no nosso direito, é irrelevante a causa de pedir. Basta que pendam em tribunais de diferentes Estados ações visando a obtenção do divórcio entre as partes. Verificando-se essa situação, está-se perante a exceção de litispendência, na aceção do mencionado Regulamento, e há, de imediato, lugar à suspensão da instância. É isso que resulta do nº 1 do preceito.

De acordo com o nosso direito processual, se estiverem pendentes duas ações de divórcio, naturalmente com identidade de sujeitos, mas em que as causa de pedir sejam distintas, não se verifica a exceção de litispendência por não existir a referida tríplice identidade. Nesse caso, aplica-se o disposto no artº 272º/1 do CPC, podendo o tribunal onde pende a ação instaurada em segundo lugar ordenar a suspensão da instância até à decisão final da ação instaurada em primeiro lugar. Aplica-se também o disposto no artº 267º do CPC, podendo ser ordenada a apensação das ações.

No regime estabelecido no Regulamento prevê-se como consequência da litispendência, numa primeira fase, a imediata suspensão da instância. E, após, a declaração de incompetência a favor do tribunal onde a ação foi instaurada em primeiro lugar, o que ocorre quando estiver estabelecida a competência deste tribunal.

Como decorre dos factos provados, o tribunal do Reino Unido havia prevenido a jurisdição, pois a ação que aí correu termos foi instaurada antes daquela que pende no Juízo de Família e Menores de Cascais. Aliás, por causa disso este Juízo suspendeu a instância. Para que o tribunal onde a ação foi instaurada em segundo lugar se declare incompetente nem sequer é necessário que a decisão do primeiro tribunal transite em julgado. Basta que este tribunal se declare competente. Ora, foi isso que aconteceu no caso em apreço, de tal forma que o tribunal do Reino Unido passou de imediato à regulação dos efeitos patrimoniais do divórcio após reconhecer eficácia à decisão proferida pelo tribunal da Sharia. Por isso a pendência da ação do Juízo de Família e Menores de Cascais é algo que já nem devia ocorrer.

A isto acresce que entre esta ação de reconhecimento de sentença estrangeira e a ação que pende no Juízo de Família e Menores de Cascais não existe litispendência. Ao caso aplicam-se as regras do CPC, pois em causa está uma decisão de um Estado que não pertence à União Europeia. Conforme acima se expôs, a exceção de litispendência pressupõe a tríplice identidade quanto aos sujeitos, pedido e causa de pedir. A falta de qualquer um deles impede a verificação da exceção. No caso temos que falta a identidade de causa de pedir, pois a decisão aqui em apreço funda-se na vontade unilateral de um dos cônjuges, diferente, portanto da causa de pedir invocada na ação que pende no Juízo de Família e Menores de Cascais.

Deste modo, temos de concluir que não se verifica a exceção de litispendência.”.

Adere-se integralmente à fundamentação assim expendida pelo tribunal recorrido, sendo certo que também não existe, entre a presente acção, e aqueloutra instaurada pelo recorrente, qualquer relação de litispendência, porquanto falha o pressuposto relativo à identidade da causa de pedir em ambas as ações, à semelhança da conclusão alcançada nesta matéria pelo tribunal recorrido.

Vamos, porém, mais longe.

Não suscita dúvidas de que a confirmação do Talaq pela autoridade religiosa competente constitui decisão suscetível de revisão e confirmação pelo Estado português. Veja-se que MARIANA MADEIRA DA SILVA DIAS, com assento na definição de “decisão” dada por LIMA PINHEIRO14 – tida como qualquer acto público que, segundo a ordem jurídica do Estado de origem, tenha força de caso julgado – considera que as decisões provenientes de ordenamentos jurídicos que, como é o caso dos autos, reconhecem força de caso julgado aos actos emitidos pelas autoridades religiosas neles sedeadas, podem ser alvo de revisão e confirmação quanto se suscite o seu reconhecimento perante o Estado português.15, 16.

Se assim é, e se entre a acção de divórcio instaurada pelo recorrente e a presente não existe qualquer relação de litispendência e se aqueloutra se mostra, além disso, suspensa a aguardar a decisão definitiva proferida pelos tribunais ingleses, não se descortina nenhum fundamento processual válido que obstaculize o prosseguimento da presente ação.

Acresce que a questão, tal como se mostra suscitada pelo recorrente – no sentido de ser o tribunal português o competente para decretar o divórcio entre as partes, atendendo aos elementos de conexão existentes entre os cônjuges, ambos de nacionalidade portuguesa, residentes em Portugal durante mais de três décadas – só relevaria, para efeitos da aplicação da al. c) do art. 980.º do CPC, se se concluísse que, em virtude daquele circunstancialismo fáctico, o decretamento do divórcio constituiria matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses (afastada que está a hipótese de a competência do Tribunal da Sharia ter sido provocada em fraude à lei). Não é, porém, o caso, dado que a matéria relativa às relações pessoais e familiares não se mostra incluída no elenco previsto no art. 63.º do Código de Processo Civil.

Decorre do exposto que, sempre se concluiria, como o fez o acórdão recorrido, no sentido da manifesta inviabilidade da impugnação feita a este propósito pelo recorrente.

Assim improcede também esta questão.

III.2.4. DO ABUSO DO DIREITO DO AUTOR/RECORRENTE

Ao pretender que o divórcio Talaq seja revisto e confirmado, não se encontra o Recorrente em abuso do direito?

Pese embora não se reconheça a procedência de nenhuma das objeções invocadas pelo recorrente à confirmação da sentença revidenda, procedem, quanto a nós, todas as considerações tecidas no acórdão recorrido a propósito da actuação abusiva por parte do recorrente ao procurar obstaculizar o reconhecimento de uma sentença que confirmou o “Talaq”, que foi por si mesmo requerido, actuação que obviamente pressupõe que o réu reconhece autoridade àquela autoridade e à decisão de divórcio consequentemente proferida.

A este propósito, escreve-se no acórdão recorrido: “E é também evidente que o requerido, ao afirmar que estava no seu direito “ao ter intentado a ação de divórcio nos tribunais competentes, tendo de seguida requerido o Talaq”, pretendendo com isso salvaguardar “as suas convicções religiosas”, e, simultaneamente, deduzindo oposição ao reconhecimento dessa mesma decisão Talaq, está a agir em gritante abuso de direito, constituindo a sua atuação aquilo que se designa por venire contra factum proprium.”.

Perfilhando idêntico raciocínio jurídico, ainda que este Tribunal viesse a considerar que o recorrente poderia invocar formal e validamente – o que, como vimos, não se verifica in casu - alguma objeção à confirmação da sentença revidenda, essa invocação sempre deveria, à luz do caso concreto, ser considerada abusiva, nos termos do artigo 334.º do Código Civil. Com efeito, como se conclui no acórdão recorrido “pretendendo o requerido obstaculizar ao reconhecimento do divórcio que ele próprio tomou a iniciativa de requerer, a forma de impedir que obtenha sucesso por via da sua atuação ilícita é conceder o reconhecimento pretendido pela requerente.”.

É, para nós, certo que assim será, sendo que, à luz do que acima se disse a propósito da autoridade conferida à decisão cuja revisão e confirmação se pretende obter, não assume qualquer relevância a circunstância de o divórcio ter sido decretado por uma entidade religiosa, com fundamento num direito que a religião professada pelo recorrente lhe concede, pois que tal não impede, como vimos, o reconhecimento da decisão que valida ou confirma esse mesmo direito. Permitir, ao arrepio do que prevê o regime previsto nos arts. 980.º e 984.º do CPC, que o recorrente pudesse também inviabilizar o reconhecimento do divórcio que foi por si requerido apenas com base na circunstância de ser aquele um divórcio fundado em normativos da religião por si professada conduziria à possibilidade de, sobre uma mesma situação jurídica (in casu, o divórcio), puderem vir a coexistir decisões contraditórias em ordenamentos jurídicos diferentes, o que é, como vimos, o que o procedimento de reconhecimento de decisões estrangeiras visa, além do mais, evitar.

Atente-se, por último, que obstaculizar o reconhecimento da sentença revidenda nos termos pretendidos pelo recorrente poderia vir a criar um impasse processual difícil de ultrapassar, dado que a requerente não consegue obter a revisão e confirmação da sentença dos tribunais ingleses sem previamente inscrever o divórcio no registo civil português; por sua vez, estando suspensa a ação de divórcio a correr termos em Portugal até que se mostre definitivamente decidido o processo nos tribunais ingleses, a consequência é a de que, sem obter o reconhecimento da decisão do Tribunal da Sharia, a recorrida vai esbarrar na impossibilidade, por tempo indeterminado, de registar o divórcio – que ambas as partes oponentes querem ver validado – no nosso país. Esta solução, de tão iníqua, deve ser, quanto a nós, afastada.

Assim também improcede esta questão.


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Perante tudo o que fica exposto, entendemos que não pode proceder a argumentação do Recorrente que, assim, deve soçobrar na totalidade.

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IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, negar a revista, mantendo-se o decidido no Acórdão da Relação.

Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 29 de fevereiro de 2024

Fernando Baptista de Oliveira (Juiz Conselheiro Relator)

Emídio Santos (Juiz Conselheiro 1º adjunto)

Catarina Serra. (Juíza Conselheira 2º Adjunto)

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1. cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, in Código de Processo Civil anotado, Vol. II, 2020, pág. 432.

2. LUÍS DE LIMA PINHEIRO, in Direito Internacional Privado, Volume III, Tomo II, Reconhecimento de Decisões Estrangeiras, 2019, AAFDL, pág. 233

3. Neste sentido, vejam-se os acórdãos do STJ de 22-04-2021 (Revista n.º 78/19.3YRLSB.S1), de 21-02-2006 (Revista n.º 4168/05), de 12-07-2005 (Revista n.º 1880/05), todos publicados em www.dgsi.pt, e ainda os acórdãos do STJ de 16-09-2015 (Revista n.º 85/14.2YRPRT.S1) e de 08-09-2009 (Revista n.º 57/09.9YFLSB), não publicados na DGSI, mas cujo sumário se encontra publicado em www.stj.pt.

4. Cfr. MARÍA DOLORES CERVILLA GARZÓN, “La aplicabilidad de las normas del Código de Familia marroquí (la Mudawana) que regulan el divorcio en España: el filtro constitucional”, in Cuadernos de Derecho Trans-nacional, n.º1, 2018, Área de Derecho Internacional Privado de la Universidad Carlos III de Madrid, disponível em https://doi.org/10.20318/cdt.2018.4119, pág. 154.

5. Disponível em www.dgsi.pt.

  Texto integral disponível em www.dgsi.pt.

6. Disponível em www.dgsi.pt.

7. In Lições de Direito Internacional Privado I, Almedina, 2000, páginas 415 e 416.

8. Texto integral disponível em www.dgsi.pt

9. InO Divórcio em Direito Internacional Privado”, Almedina, 2017, pág. 627.

10. Cf. LUÍS DE LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado, Vol. I, 2014, 3.ª edição, pág. 668.

11. Veja-se, porém, a posição mitigada de MARIANA MADEIRA DA SILVA, in O reconhecimento do repúdio islâmico pelo ordenamento jurídico português, Revista Julgar, n.º 23, pág. 312 a 315, nos termos da qual esta autora tende, em regra, a rejeitar o repúdio, “apenas o aceitando quando foi proferido num Estado que o admita e prévio à vinda de alguma das partes para Portugal, estando cientes de que, no entanto, cabe ao julgador, no caso concreto, apreciar qual a contradição da decisão face à ordem jurídica internacional portuguesa.”.

12. Neste sentido, LUÍS DE LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado, Reconhecimento de decisões estrangeiras, III, tomo II, pág. 227.

13. Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19-11-2019, proc. n.º 1378/18.YRLSB-7, disponível em www.dgsi.pt e citado pelo recorrente.

14. InDireito Internacional Privado – Reconhecimento de decisões estrangeiras”, Vol. III, Tomo II, 3.ª edição, Lisboa, 2019, págs. 201 e segs.

15. In “O Reconhecimento do repúdio islâmico pelo ordenamento jurídico português: a exceção de ordem pública internacional”, Revista Julgar n.º 23, 2014, pág. 298 e segs.↩︎

16. Como é salientado pelos dois autores citados, veja-se ainda que estes atos podem ser reconhecidos como divórcios dentro do âmbito da Convenção de Haia de 1970, reconhecidos que estejam os pressupostos aí elencados.