Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
756/13.0TVPRT.P2.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: TESTAMENTO
ANULAÇÃO DE TESTAMENTO
FACTOS CONCLUSIVOS
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CAUSA DE PEDIR
ALTERAÇÃO DA CAUSA DE PEDIR
INCAPACIDADE
INCAPACIDADE ACIDENTAL
COAÇÃO MORAL
USURA
NEGÓCIO USURÁRIO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
BONS COSTUMES
NULIDADE
Data do Acordão: 12/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: BAIXA DOS AUTOS À RELAÇÃO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / FALTA E VÍCIOS DA VONTADE / NEGÓCIOS USUÁRIOS – DIREITO DAS SUCESSÕES / SUCESSÃO LEGITIMÁRIA / FALTA E VÍCIOS DA VONTADE.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 682.º, N.º 2.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 257.º, 282.º, N.º 1 E 2199.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 07-05-2015, PROCESSO N.º 9713/05.0TBBRG.G1.S1;
- DE 14-01-2016, PROCESSO N.º 391/13.9TTCBR-C1.S1;
- DE 27-04-2017, PROCESSO N.º 273/14.1TBSCR.L1.S1;
- DE 19-10-2017, PROCESSO N.º 1077/14.7TVLSB.L1.S1;
- DE 18-09-2018, PROCESSO N.º 21852/15.4T8PRT.S1;
- DE 19-12-2018, PROCESSO N.º 857/08.7TVLSB.L1.S2;
- DE 24-01-2019, PROCESSO N.º 948/14.5TVLSB.L1.S1;
- DE 12-09-2019, PROCESSOS N.º 1333/15.7T8LMG.C1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. Saber se determinado enunciado linguístico é adequado a descrever uma factualidade juridicamente relevante reconduz-se a uma questão de direito, pelo que, não obstante o preceituado no nº 2 do art. 682ºdo CPC, cabe ao tribunal de revista ajuizar sobre tal adequação.

II. À questão de saber se realidades de natureza psicológica podem ou não integrar realidades de facto tem a jurisprudência do STJ dado resposta positiva, considerando que “factos são não só os acontecimentos externos, mas também os estados emocionais e os eventos do foro interno, psíquico”.

III. Concluindo-se pela procedência da pretensão da recorrente de manutenção da factualidade tal como fixada pela 1ª instância, devem os presentes autos baixar, de novo, à Relação para conhecer da impugnação da matéria de facto deduzida pela ré em sede de apelação.

IV. De acordo com jurisprudência anterior do STJ,“embora a diferenciação de causas de pedir seja feita, em regra, por via da conjugação da concreta factualidade alegada com o quadro normativo aplicável, casos há em que a mesma factualidade empírica é susceptível de preencher quadros normativos distintos com estatuição de modos de tutela jurídica qualitativamente diversos; nestes casos, tal diferenciação será feita, basicamente, em função do vector normativo da causa de pedir”.

V. No caso dos autos, em que o pedido formulado consiste na anulação do testamento, os factos alegados tanto são susceptíveis de preencher o regime da incapacidade acidental por falta de liberdade no exercício da vontade de testar (segunda parte do art. 2199º do CC), como de se subsumirem ao vício da coacção moral (art. 257º do CC, aplicável ao testamento ex vi art. 2201º do CC).

VI. A possibilidade de subsunção dos factos alegados ao vício de coacção moral não desrespeita o princípio do contraditório, enquanto princípio estruturante do processo civil e enquanto garantia processual fundamental, tanto porque tal subsunção é perfeitamente apreensível pela contraparte como porque, ao longo do processado, teve a mesma contraparte oportunidade de, por diversas vezes, se pronunciar acerca da referida qualificação alternativa, tendo-se efectivamente pronunciado.

VII. Diversamente, no que ao quadro normativo da usura respeita, definido pelo nº 1 do art. 282º do CC, – e independentemente da posição assumida acerca da questão da aplicabilidade de tal regime ao testamento – constata-se que, ainda que tenham sido alegados factos susceptíveis de integrar os pressupostos da existência de uma situação de inferioridade do declarante e da exploração da situação de inferioridade pelo usurário, não foi alegado qualquer facto que possa integrar o pressuposto da promessa ou concessão de benefícios excessivos ou injustificados para o usurário ou terceiro.

VIII. Em conformidade com os pontos anteriores, conclui-se que, após consolidação da factualidade dada como provada, deverá a Relação proceder à apreciação do pedido de anulação do testamento dos autos não apenas com fundamento em incapacidade acidental por falta de liberdade da testadora no exercício da vontade, mas também com fundamento em coacção moral.

IX. Assim como, por ser de conhecimento oficioso, deverá proceder à reapreciação da invocada nulidade por ofensa aos bons costumes.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




1. AA intentou, em 4 de Outubro de 2013, a presente acção declarativa contra Herança Indivisa de BB e CC, por si e em representação da Herança, pedindo que se declare a anulabilidade do testamento outorgado pela sua mãe, BB, em 27 de Agosto de 1999, lavrado no 6º Cartório Notarial …, onde aquela legou, por força da sua quota disponível, à filha e irmã da autora, a R. CC, “a sua propriedade denominada Quinta DD, situada na freguesia de …, concelho de …, com todos os seus pertences”.

Como fundamento do pedido invoca a incapacidade da testadora, entretanto falecida em 5 de Outubro de 2012, para entender o sentido da declaração e por não ter o livre exercício da sua vontade aquando da realização do testamento (cfr. artigos 67 e 68 da p.i.).

Citada, contestou a R. por excepção, invocando a ilegitimidade passiva da Herança Indivisa da falecida testadora e, por impugnação, concluindo pela absolvição da instância quanto àquela R. Herança Indivisa e pela improcedência da acção contra si.

Foi a R. Herança Indivisa da testadora absolvida da instância por despacho de fls. 835, transitado em julgado.

Por sentença de fls. 1112 a acção foi julgada improcedente por falta de prova da incapacidade da testadora para entender o sentido da declaração, tendo a R. CC sido absolvida do pedido. 

Desta sentença foi interposto recurso de apelação pela A., pedindo a reapreciação da decisão de direito, vindo a ser proferido acórdão a fls. 1289 pelo Tribunal da Relação do Porto que confirmou a decisão da 1ª instância.

Tendo a A. interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de fls. 1470, foi determinado “baixar os autos ao tribunal de primeira instância para, com base nos meios de prova já produzidos ou a produzir, eliminar a contradição assinalada entre os factos provados 47 e 48 e o facto não provado nn), no sentido de compatibilizar as respostas dadas, deixando claro em que medida a dependência da testadora em ralação à 2ª R e/ou o autoritarismo desta determinaram a decisão de outorga do testamento nos termos em que a mesma foi feita”.

Em obediência a esta decisão, foi reaberta a audiência de julgamento na 1ª instância com reinquirição das testemunhas EE e FF, tendo ainda o tribunal determinado a tomada de declarações das partes.

Findo o julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção procedente e, em consequência, anulou o testamento com fundamento na existência de “vício volitivo que determina a anulabilidade do acto unilateral, com base no art. 2199° do C.C., que protege o testador quando este não tinha o livre exercício da sua vontade”.

Inconformada, a R. interpôs recurso de apelação, pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

   Por acórdão de fls. 1648 a apelação foi julgada procedente, com revogação da sentença recorrida e absolvição da R. do pedido.


2. Vem a A. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

“1. A decisão recorrida fez errada aplicação e interpretação do disposto nos arts. 2199º, 2201º, 255º, 2003º, 2009º nº 1 alínea b) e 282º, todos do Código Civil e 5º nº 2 e nº3, 580º, 581º, 609º nº 1; 619º nº 1; 636º nº 2, 682º e 683º, todos do CPC, bem como do art. 1525, n.º 1 CPC, n.º 2 do art. 3.º da Lei n.º 38/87, de 23/12, e no actual n.º 2 do art. 4.º da Lei n.º 3/99, de 13/01, bem como no art. 4º, n.º 1, da Lei n.º 21/85 de 30/07.

2. Por efeito do disposto naqueles citados preceitos do art. 682º nº3 e 683º do CPC e das decisões já proferidas no processo, a Relação estava vinculada - no que diz respeito ao conhecimento da matéria de facto - a apenas conhecer do erro de julgamento no que diz respeito aos citados pontos 47, 47-A e 48 da matéria de facto, em observância da impugnação da matéria de facto que a ali Recorrente e aqui Recorrida fez em sede de Recurso, estando-lhe vedado vir agora considerar essa factualidade como não escrita.

3. De facto, está consagrado nas leis de processo e de organização judiciária um dever de acatamento por parte dos tribunais inferiores das decisões proferidas em via de recurso pelos tribunais superiores. Segundo este princípio, os tribunais inferiores ficam subordinados à decisão do tribunal superior no âmbito do processo em que a decisão é proferida (art. 152º, n.º 1 do Código de Processo Civil, n.º 2 do art. 3.º da Lei n.º 38/87, de 23/12, e no actual n.º 2 do art. 4.º da Lei n.º 3/99, de 13/01, bem como no Estatuto dos Magistrados Judiciais, conforme o art. 4º, n.º 1, da Lei n.º 21/85 de 30/07).

4. O anterior acórdão de revista é lapidar na sua decisão, ao circunscrever cirurgicamente a necessidade de reabertura da audiência em primeira instância para “com base nos meios de prova já produzidos ou a produzir, eliminar a contradição assinalada entre os factos 47 e 48 e o facto não provado nn), no sentido de compatibilizar as respostas dadas, deixando claro em que medida a dependência da testadora em relação à 2ª Ré e/ou autoritarismo desta determinaram a decisão de outorga do testamento nos termos em que a mesma foi feita”.

5. Ora, o acórdão recorrido não só não cumpriu com o escopo a que passou a estar limitado o processo por força daquela decisão, como fez tábua rasa da mesma!

6. Aliás, mesmo que se entenda que no presente momento processual seria aplicável na Relação, e por analogia, o disposto no art. 662º nº3 do CPC, sempre chegaríamos à mesma conclusão. É que, nesses casos, “a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições”.

7. Ora, a sentença de primeira instância cumpriu escrupulosamente o mandado que lhe foi conferido... Na verdade, essa sentença é em tudo igual à que anteriormente tinha sido proferida em sede de decisão de matéria de facto e sua fundamentação, tendo a Mma. Juiz de primeira instância esclarecido a contradição mediante a passagem do facto não provado nn) a facto provado 47-A.

8. Atento o esclarecimento cabalmente produzido pela primeira instância, que assim eliminou a contradição apontada por este STJ, cabia à Relação unicamente a função de sindicar aquela decisão da matéria de facto, substituindo a mesma por outra, caso encontrasse evidência de erro na apreciação da prova produzida.

9. Tal não tendo sido feito, agiu a Relação à revelia dos poderes que lhe estavam acometidos.

10. O caso julgado formal tem como fundamento a disciplina da tramitação processual. Seria caótico e dificilmente atingiria os seus objetivos o processo cujas decisões interlocutórias não se fixassem com o seu trânsito, permitindo sempre uma reapreciação pelo mesmo tribunal....

11. Em suma, o caso julgado formal tem força obrigatória apenas dentro do processo, obstando a que o juiz (ou os juízes subsequentes) possa(m), na mesma ação, alterar a decisão proferida (tendo, assim, uma função de criação ou de manutenção da coerência interna, obrigando a que o processo se desenvolva), mas não impedindo que, noutra ação, a mesma questão processual concreta seja decidida em termos diferentes pelo mesmo tribunal, ou por outro entretanto chamado a apreciar a causa.

12. Ora, é evidente e manifesto que a Relação estava abrangida pelo caso julgado formal e obrigada a respeitar a decisão de que os factos dos pontos 47, 47-A e 48 são factos e não quaisquer conclusões.

13. Caso contrário, o STJ não teria mandado o processo baixar para eliminar as contradições entre esses factos e teria de imediato concluído, como a Relação, que não haveria lugar à necessidade de esclarecer qualquer contradição entre esses factos, porque de factos não se tratava!

14. Mas, ainda que assim não fosse, como é, sempre se diga que aquela alegação contém em si mesmo um mínimo de factualidade que haveria de ditar, pelo menos que, a haver algum vício de alegação - o que não se concede - sempre esse vício seria o de falta de concretização da matéria de facto alegada, essencial à procedência da causa.

15. Ora, a assim ser, estava o Tribunal vinculado ao poder-dever previsto no art. 590º nº 4 do CPC e, portanto, deveria o Tribunal ter obrigatoriamente convidado a aqui Recorrente a concretizar melhor aquela matéria de facto, sob pena de incorrer em nulidade, o que aqui - à cautela - subsidiária, mas expressamente, se invoca.

16. Como acima vimos, por sentença data de 08.02.2017, e ao que aqui nos cumpre realçar, foram dados como provados 52 factos essenciais (Factos n.ºs 1 a 52) e 1 facto instrumental (facto n.º 53). Foram, ainda, dados como não provados 44 factos (a) a tt)).

17. Desta sentença foi interposto, pela aqui Recorrente, Recurso de Apelação para o Tribunal da Relação do Porto, em que não se impugnou a decisão sobre a matéria de facto.

18. A ali (e aqui) Recorrida contra-alegou, contudo, também não ampliou o objecto do recurso, impugnando à cautela a decisão sobre a matéria de facto, nos termos do art. 636º nº 2 do CPC, apesar de o poder fazer.

19. A Relação confirmou a decisão de 1.ª instância.

20. E com essa decisão, a matéria de facto sedimentou-se definitivamente no processo, por ausência de impugnação oportuna de qualquer uma das partes.

21. Sucede que, conforme foi já referido, desta segunda decisão, recorreu ainda a aqui Recorrente para o Supremo Tribunal de Justiça que, como vimos, proferiu Acórdão onde ordenou “baixar os autos ao tribunal de primeira instância para, com base nos meios de prova já produzidos ou a produzir, eliminar a contradição assinalada entre os factos provados 47 e 48 e o facto não provado nn), no sentido de compatibilizar as repostas dadas, deixando claro em que medida a dependência da testadora em relação à 2.ª R e/ou o autoritarismo desta determinaram a decisão de outorga do testamento nos termos em que a mesma foi feita.” (sublinhado nosso).

22. Ou seja, a sedimentação ocasionada pelo trânsito em julgado da matéria de facto - por ausência de impugnação de ambas as partes -, apenas foi excepcionada no presente caso, em virtude da existência da aludida contradição.

23. Sendo que a reabertura do julgamento visa apenas cirurgicamente eliminar essa contradição e não proceder a um novo e total julgamento!

24. Ora, posteriormente, e tendo sido reaberto o julgamento, tendo em vista exclusivamente eliminar a aludida contradição, foi proferida nova sentença que julgou provados exatamente os mesmos factos nos termos em que o fizera na 1.ª sentença (e como aliás tinha que ser!). Foi aditado aos factos provados, contudo, um facto (47-A), que era o facto anteriormente constante da alínea nn) dos factos não provados, sendo os referidos factos 47 e 48 mantidos na sua integralidade.

25. E assim foi eliminado a contradição identificada pelo STJ!

26. Por fim, e surpreendentemente, a Relação, alterando (mal!) a matéria de facto a seu “bel prazer”, e entre outras vicissitudes que em sede própria nos debruçaremos, decide, em sede de matéria de facto: “Sendo a matéria do artigo 114 totalmente conclusiva e não factual, não pode ser objecto de prova e ficar a constar como facto provado da sentença, de acordo com o disposto no art. 607.º, n.º 3 e 4, NCPC, como ficou no ponto 47). Também a matéria vaga e conclusiva do ponto 48) - “BB fazia sempre por obedecer à 2.ª R. e cumpria sempre a vontade desta”, deve ser retirada dos factos provados. Mais ficou a constar como provado na sentença agora recorrida o ponto 47-A) - “BB só outorgou o testamento para obedecer à ré”, matéria dada como não provada na sentença anterior de 08.02.2017. Tal matéria não é factual, antes é uma afirmação conclusiva não suportada em factos concretos que a revelem. (...) Pela mesma razão deve ser retirada a expressão “sentia-se dependente” do ponto 46) dos factos provados e a expressão “porque se sentia dependente física e psicologicamente da 2.ª ré”. Ainda, ao abrigo daquele poder-dever conferido a esta Relação, impõe-se harmonizar a factualidade provada no ponto 46), por forma que não haja contradições entre factos dados como provados, nos termos em que constam dos números 9), 37) e 38), que não foram impugnados em recurso. Assim, altera-se a redação no facto provado 46) nestes moldes: “BB passou a viver com a filha CC na casa desta referida em 38) e receava que esta a abandonasse caso não lhe fizesse a vontade de lhe deixar a Quinta DD, sita em … .”

27. Ora, do que vem expendido, resulta que a Relação, num atropelo absoluto por aquele que é o instituto do caso julgado formal que acima referimos, e escudada num (putativo) poder-dever alterou factos que não podia alterar, por já estarem consolidados no processo!

28. E falamos, concretamente, do facto 46).

29. De facto, quanto ao ponto 46 constante da matéria de facto provada na sentença, não houve (mais) qualquer tipo de produção de prova, pelo que não houve qualquer (nova) imediação nem (novo) contraditório, o que sempre nos levará à conclusão de que os mesmos formaram caso julgado formal quanto ao seu teor, tornando-se neste processo imutáveis.

30. E o mesmo raciocínio se aplica – diga-se a talhe de foice – à impugnação da matéria de facto que a Recorrida abusivamente fez quanto aos pontos 50, 51 e 52, que a Relação nem chegou a conhecer, mas cujo conhecimento sempre estaria condenado ao fracasso por estas mesmas exactas razões.

31. A Recorrente censura no presente recurso de revista a atuação da Relação na fixação dos factos (provados e não provados), invocando a violação do artigo 5.º, n.º 2 do CPC.

32. Assim, esta violação pode ser apreciada pelo S.T.J., uma vez que se integra no âmbito da violação ou errada aplicação da lei de processo, nos termos e para os efeitos do art. 674º nº1 alínea b) do CPC.

33. De facto não está vedado ao S.T.J. avaliar a bondade da decisão de considerar determinada matéria alegada um facto ou, pelo contrário, uma mera conclusão. Esse é um juízo de direito que pode e deve ser sindicado por este Tribunal de recurso!

34. Na realidade, não pode deixar de impressionar a forma dantesca e leviana como a Relação eliminou aqueles decisivos pontos 47, 47-A e 48 da matéria de facto.

35. E esse atropelo é tanto mais grave se atentarmos à forma como o mesmo foi feito, já que a Relação não cuidou sequer de fundamentar ou fazer o mínimo esforço para convencer dos seus argumentos, que diga-se inexistem, por parecer que são considerados apodíticos pelo Tribunal.

36. Citando as palavras vertidas no Acórdão quanto à justificação para tal modificação, o mesmo queda-se com formulações abstratas, sem qualquer tipo de concretização. Por um lado, denominando apenas a matéria do artigo 114 da Petição Inicial como “totalmente conclusiva e não factual”, e como tal não poderia ficar provada como ficou na sentença, no ponto 47). Quanto ao ponto 48), um lapidar “matéria vaga e conclusiva”, devendo ser retirado dos factos provados. No que concerne ao ponto 47-A), novamente um refinado “...tal matéria não é factual, antes uma afirmação conclusiva não suportada em factos concretos que a revelem”. Note-se que, como acima dissemos, estas alterações, e a forma como foram feitas, contrariam ostensivamente o que pareceu ser o entendimento ínsito do próprio Acórdão do S.T.J. que, não apodando tais factos como “matéria conclusiva e/ou vaga”, considerou mesmo relevante determinar em que “medida a dependência da testadora em relação à 2.ª R e/ou o autoritarismo desta determinaram a decisão de outorga do testamento nos termos em que a mesma foi feita”.

37. Facto jurídico é todo o acontecimento, natural ou humano, capaz de criar, conservar, modificar, ou extinguir relações ou situações jurídicas.

38. Já no que toca à qualificação como “matérias conclusivas” torna-se patente que o julgamento da matéria de facto implica quase sempre que o julgador formule juízos conclusivos, obrigando-o a sintetizar ou a separar os materiais que lhe são apresentados através das provas. Insiste-se: o que a lei veda ao julgador da matéria de facto é a formulação de juízos sobre questões de direito, sancionando a infração desta proibição com o considerar tal tipo de juízos como não escritos. Aliás, não pode perder-se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo inteleto dos homens, não deve aceitar-se que uma pretensa ortodoxia na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstrações (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. E quem diz quesitação diz também, logicamente, estabelecimento da resposta, isto é, incorporação do correspondente facto no processo através da exteriorização da convicção do julgador, formada sobre a livre apreciação das provas produzidas”.

39. Assim, do que vimos de expender, podemos afirmar com meridiana clareza que, qualquer uma da matéria de facto elencada naqueles pontos alterados 47, 47-A e 48, corresponde a um verdadeiro facto, só não o sendo na ótica do Acórdão...

40. Repare-se que, tais factos alterados, nem sequer se reconduzem a puros conceitos normativos. Se devidamente interpretados, densificam e concretizam uma realidade de facto, em concreto revelam a incapacidade de a BB (mãe das Recorrente e Recorrida) por não ter o livre exercício da sua vontade.

41. Não se verifica, pois, qualquer anomalia já que as respostas resultam da interligação dos factos alegados e de um simples raciocínio lógico-dedutivo. Acresce que o julgador dentro do elenco dos factos essenciais pode e deve correlacioná-los, fazer a interpretação factual que considerar mais adequada e concluir com as respostas que daí resultem.

42. Como afirma o art. 5º nº 3 do CPC, o julgador não está sujeito à alegação das partes no que concerne à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.

43. Mesmo tratando-se de questão ou de exceção que não seja de conhecimento oficioso, o importante é que sejam alegados os respetivos factos essenciais com o objetivo de alcançar o correspondente efeito jurídico, cabendo ao tribunal exercer os poderes (e deveres) oficiosos atinentes à sua correta integração jurídica, nos termos do artigo 5º, nº 3, do CPC.

44. Relativamente à correta qualificação jurídica dos factos não existe qualquer efeito preclusivo decorrente da atuação ou inação das partes, devendo ser adotada em cada momento aquela que o órgão jurisdicional considerar mais ajustada, atribuindo relevo à materialidade dos factos alegados e provados - vide, neste sentido, o Acórdão do S.T.J., Proc. N.º 31/13.0TBCDN-A.C2.S2, de 19-12-2018.

45. A interpretação do pedido não deve, assim, cingir-se aos estritos dizeres da formulação do petitório, devendo antes ser conjugada com o sentido e alcance resultantes dos fundamentos da pretensão.

46. Pretensão essa que deve ser identificada como o fim último visado pelo Autor.

47. Basta que as partes tenham conhecimento do efeito prático que pretendam alcançar, embora careçam da representação do efeito jurídico. Por outras palavras, o que interessará não é o efeito jurídico que as partes formulem, mas sim o efeito prático que pretendem alcançar; o objeto mediato deve entender-se como o efeito prático que o autor pretende obter e não como a qualificação jurídica que dá à sua pretensão”.

48. Nessa linha, o pedido não deve ser interpretado na simples expressão literal em que se mostra formulado no petitório, mas com o alcance substancial resultante da sua conjugação como os fundamentos da pretensão deduzida, em ordem a surpreender o modo específico de tutela jurídica visado.

49. Por isso mesmo, compete ao tribunal proceder a essa interpretação semântica, na latitude cognitiva que lhe é conferida, em matéria de direito, pelo artigo 5.º, n.º 3, e nos limites estabelecidos no artigo 609.º, n.º 1, ambos do CPC, podendo assim obviar-se a erros de mera qualificação jurídica em que a parte tenha incorrido nessa sede.

50. Por sua vez, a causa de pedir, legalmente definida (artigo 581.º, n.º 4, do CPC) como facto jurídico de que procede a pretensão deduzida, consubstancia-se numa factualidade alegada como fundamento do efeito prático-jurídico pretendido, factualidade esta que não deve ser destituída de qualquer valoração jurídica, mas sim relevante no quadro das soluções de direito plausíveis a que o tribunal deva atender ao abrigo do artigo 5.º, n.º 3, e nos limites do artigo 609.º, n.º 1, do CPC, independentemente da coloração jurídica dada pelo autor. É o que se designa por princípio da causa de pedir aberta.

51. Destarte, parece-nos estar completamente ultrapassada a questão formalista que a Relação levanta, pois o que interessa não é a concreta menção a um dispositivo legal no pedido da acção, mas sim a existência de matéria de facto necessária e suficiente para dar respaldo à procedência da acção, segundo a solução jurídica que o Tribunal bem entenda, desde que o efeito prático dessa procedência se circunscreva e de identifique com objectivo último que o Autor visou com a interposição do processo.

52. Ora, como é bom de ver do que vimos de afirmar, o que interessa é que seja intentada a acção concreta em que se alegue factos necessários e suficientes à procedência do pedido de anulação do testamento, pedido esse que até pode ter mais que um fundamento (como é o caso), não ficando o tribunal vinculado ao concreto fundamento jurídico invocado, pois a causa de pedir nas acções de anulação não é só a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido, pois o legislador estabeleceu também como alternativa a circunstância da causa de pedir se poder estribar num facto concreto, independentemente da invocação dessa nulidade específica (art. 581º nº 3 do CPC).

53. É feliz a declaração de voto do Exmo. Sr. Desembargador GG ao cindir a análise do art. 2199º do CC em duas hipóteses legais e ao concluir que nos termos da segunda parte daquele citado preceito “podemos considerar que não detém o livre exercício da vontade de testar toda a pessoa que, por qualquer causa exógena relevante, esteja condicionada na sua capacidade volitiva, mormente quem se encontre numa posição de vulnerabilidade.”

54. Por essa razão, entendemos ser a matéria de facto provada suficiente para, como bem afirmou a sentença de 1ª instância, determinar a anulação do testamento outorgado pela testadora nos termos do art. 2199º do CC.

55. A matéria de facto provada permite também subsumir o quadro que presidiu à elaboração do testamento à coação moral.

56. São pressupostos da coação moral que:

a. exista a ameaça de um mal;

b. a ilicitude da ameaça;

c. e a intencionalidade da ameaça;

d. bem como, que essa ameaça seja determinante da declaração prestada.

57. E, a este propósito, ganha particular relevância a matéria provada dos arts. 46 a 48, já supra transcrita.

58. Destes factos resulta evidente que a testadora tinha receio de ser abandonada pela sua filha, aqui Ré, e que foi isso que determinou a sua vontade. E, agora, com a inclusão do ponto 47-A no elenco dos factos provados, até ficamos esclarecidos quanto à circunstância do móbil exclusivo da testadora para fazer o testamento ter sido o de apenas obedecer à Ré, já que desse facto consta expressamente que: “A BB só outorgou o testamento para obedecer à Ré”.

59. Num testamento não há interesses de terceiros ou declaratários que sejam merecedores de tutela jurídica de monta, no momento da sua outorga.

60. Ao invés, parece-nos que o bem jurídico fundamental que haverá que proteger e prevalecer é o da correcta e sã vontade do testador.

61. Por isso, a circunstância do declarante se sentir ameaçado quando exara o seu testamento, ganha uma maior relevância, retirando importância à verificação do pressuposto da necessidade de existência de uma ameaça.

62. De facto, a regra do art. 255º está concebida a pensar nos negócios jurídicos bilaterais e também como forma de punir o declaratário que extorquiu a declaração através de coação moral. Porém, num testamento isso não é o mais importante...

63. Num testamento o mais importante não é que alguém tenha ameaçado o testador... O mais importante (e que há que proteger e acautelar) é que o testador se tenha sentido ameaçado e isso tenha determinado a sua vontade de testar!

64. Mas, ainda que assim não fosse, diz-nos a experiência comum que a existência de um tal receio de abandono é normalmente reflexo de uma ameaça, ameaça essa que pode muito bem ser latente e até não verbalizada, mas que se sente e infere de um conjunto de outros dados e factos...

65. E isso mesmo resulta da compaginação do facto nº 53 com os factos provados nº 12 a 17. Ou seja, há aqui uma actuação da Ré que indicia a existência da sua vontade inquebrantável de ficar com a Quinta DD, custe o que custar e sem olhar a meios!

66. E é natural e até expectável que a Ré - que se deu a estes trabalhos e requintes de malvadez e ilegalidade para atingir estes seus desideratos - tenha também contribuído activamente para que a sua decessa Mãe se tivesse sentido ameaçada e assolada por aquele receio de abandono que determinou a sua vontade na elaboração do testamento.

67. De facto, não se afigura qualquer motivação razoável que justifique a actuação da decessa na outorga de um negócio abertamente simulado, que não seja o receio de ser abandonada, como certamente lhe foi incutido pela Ré nesse momento, tal como havia já - com toda a certeza! - sucedido aquando da outorga do testamento.

68. Parece-nos por isso pouco acertado alinhar qualquer tese que pretenda exigir que conste dos factos provados um ponto com a ameaça de abandono concretamente proferida e verbalizada pela aqui Ré à sua Mãe, com requintes de precisão quanto ao tempo, ao modo e ao local...

69. A ameaça da Ré de abandonar a sua Mãe é ademais ilícita, atendendo às obrigações legais dos arts. 2003º e art. 2009º nº 1 alínea b), ambos do C.C.

70. Acrescentando-se ainda que resulta claro o móbil da ameaça e a intenção da Ré ao fazê-la sentir à testadora, que era, ao fim e ao cabo, conseguir a Quinta DD em deixa testamentária, por conta da quota disponível, conforme conseguiu...

71. Resulta também evidente que, se não fosse essa ameaça, essa dependência da testadora face à Ré e esse autoritarismo e ascendência desta face àquela, e tal testamento não teria sido outorgado na forma como o foi, pois o mesmo foi apenas outorgado para obedecer à vontade da Ré!

72. Assim, é para a Recorrente evidente que o testamento tem que ser declarado anulado, por via da coação moral que a Ré exerceu sobre a testadora.

73. Mas, ainda que considere que não merece aqui aplicação o disposto nos arts. 2201º e 255º do C.C., sempre teríamos aqui que lançar mão do disposto nos arts. 282º do C.C., quanto ao negócio usurário.

74. A possibilidade de aplicação do regime do negócio usurário aos testamentos tem vindo a ser sustentada pelo Supremo Tribunal de Justiça, com base em argumentação à qual aqui aderimos.

75. São elementos do negócio usurário previsto no art. 282º do C.C.:

a. a situação de inferioridade do declarante;

b. a obtenção de benefícios excessivos ou injustificados;

c. e a  intenção ou consciência do usurário de explorar aquela situação de inferioridade.

76. Ora, a situação de inferioridade da testadora resulta à saciedade da matéria provada, devendo ser feita particular chamada de atenção para os pontos 46 a 48, já supra transcritos, sem também esquecer os seguintes factos provados:

“7-A partir da data da morte do seu marido a referida BB, não mais quis ficar sozinha à noite na casa que era de ambos;

(...)

20-O súbito falecimento do marido de BB, HH, ocorrido em … de Janeiro de[em] 1999 abalou profundamente BB, que se viu despojada do seu companheiro de uma vida;

21 - Essa perda, aos seus 79 anos de idade fez com que BB sofresse um grande choque e ficasse deprimida;

22 - Sofreu, em consequência uma quebra na sua condição física e psíquica;

23 - BB após a morte do marido passava a maior parte do dia sentada no sofá;

24 - BB deixou de fazer as compras necessárias à sua vida corrente e de gerir a vida da casa e de dar ordens para a compra das coisas necessárias;

25 - Por vezes confundia datas, ou confundia eventos do presente com eventos do passado;

26 - Confundia por vezes nomes e pessoas;

27 - falava no seu marido como se ele ainda estivesse vivo;

28 - esquecia-se das coisas com facilidade;

29 - BB perdia facilmente a atenção do que lhe era dito.

30 - Por vezes não retinha aquilo que lhe era dito.

31 - Confundia por vezes os dias da semana;

32 - Tinha dificuldade em saber o valor do dinheiro e o que o mesmo permitiaou não comprar;

33 - Tinha alterações de humor;

34 - Estava muitas vezes triste, deprimida e chorosa;

(...)

37 - A partir do falecimento do marido, passou a viver em casa da 2ª R. que era a filha cuja residência ficava mais próxima da casa do casal, tendo alguns meses depois passado a viver num apartamento duplex (que era já de sua propriedade) situado em frente ao apartamento da 2ª R, no mesmo prédio, onde vivia sozinha com uma empregada de dia e outra que aí com ela pernoitava.”

77. Todo este quadro gizado na matéria de facto provada é consentâneo e reconduzível ao estado de necessidade e de dependência a que se refere o artigo 282º do C.C.

78. E não se diga que a dependência evidenciada pela decessa na matéria de facto provada é consentânea e normal e própria da situação de viúvez de alguém na idade da decessa.

79. De facto, se é normal que alguém como a decessa, que fique viúva aos 79 anos de idade, passe a contar com a ajuda de terceiros para viver, não é já normal (nem saudável!) que a decessa se subjugue à vontade da filha, obedecendo-lhe cegamente e testando, não por vontade própria (que “até morreu arrependida do testamento que fez”, como disse a sua empregada e testemunha EE), mas sim em obediência única e exclusiva à vontade da sua filha e para cumprir um capricho desta, que sempre quis ficar com o bem mais valioso da herança, que era a Quinta DD.

80. Na realidade, não é normal que alguém teste, por se sentir dependente de uma filha, com receio que esta a abandone e apenas para lhe fazer a vontade não a contrariar!

81. Esta situação configura claramente o estado de necessidade e dependência de que fala o art. 282º do C.C.

82. Aliás, diga-se até que esse estado de necessidade foi potenciado pela aqui Ré, que cercou a Testadora e dificultou o seu contacto com a aqui Autora, arredando esta até do controlo da gestão patrimonial que a Ré fazia do pecúlio da Mãe, como resultou provado dos pontos 49 a 52 da matéria de facto provado, onde se diz que:

“49 - A 2ª R. dificultou, chegando mesmo a impedir algumas vezes o acesso da A. à Mãe, reduzindo-lhe a possibilidade de visitas em sua casa ou até mesmo proibindo as mesmas.

50 - E chamou a si toda a gestão do património da mãe;

51 - Apresentando os factos consumados, sem que à A. lhe fosse dada qualquer hipótese de decidir o que quer que seja;

52 - Como sucedeu como a venda da Quinta II, em que a A. apenas soube do negócio depois do mesmo estar concluído.”

83. E não se diga que em 19/09/2005 a testadora ainda sabia bem o que queria e o que não queria, pois outorgou procuração a ambas as suas filhas para que EM COMUM E CONJUNTAMENTE gerissem todo o seu património. É que, nesta data de 2005, como resulta também dos factos provados (veja-se ponto 39 dos factos provados vertidos no acórdão recorrido), já havia sido diagnosticado ALZHEIMER à testadora e, naturalmente, a procuração foi uma medida de cautela para futuro, em que as condições de vinculação da testadora foram fixadas pelas herdeiras e não pela decessa, que então já estava francamente debilitada.

84. Esta situação de inferioridade e o aproveitamento que a Ré da mesma fez redundou na outorga do testamento de fls (ponto 7 da matéria de facto provada), em 27/08/1999, em que a Mãe da Autora legou à sua irmã e aqui Ré, por força da QUOTA DISPONÍVEL, a Quinta DD.

85. Tal negócio configura a obtenção pela Ré de um benefício excessivo ou injustificado.

86. A excessividade ou injustificação do benefício há-de ser vista à luz do que era a normal pretensão da testadora e de um homem/mulher comum. A este respeito, diz-nos a experiência que a intenção dos pais é tratarem os filhos igualmente e que o seu intuito há-de ser, por definição, que os mesmos sejam igualados na partilha do património, à morte dos seus ascendentes. A preterição de um filho em favor de outro há-de ser circunstância excepcional que há-de ter uma razão de ser perfeitamente identificável e susceptível de ser perceptível com evidência por todos.

87. Porém, no caso dos presentes autos assim não sucede...

88. De facto, o que ressalta dos pontos 10 e 11 da matéria de facto provada é que a preocupação dos pais de Autora e Ré sempre foi a de dividirem o seu património irmãmente entre ambas. Tal asserção sai aliás também reforçada se atentarmos na exegese que supra fizemos quanto aos seis testamentos que a testadora anteriormente fizera e em que se denota uma preocupação de tratar ambas as filhas de igual maneira.

89. E não se diga que, naqueles anos finais da vida da testadora, houve um qualquer afastamento da testadora em relação à sua filha aqui Autora, que motivasse de forma evidente a forma como a agravou em benefício da sua outra filha aqui Ré. É que, como bem justificou a sentença (ao considerar como não provados os pontos pp) a ss) da sentença), esses factos são “contrariados pelos depoimentos prestados pelas testemunhas FF e JJ, EE, que nos dão conta de ser a A. uma filha extremamente carinhosa com a mãe, que não a abandonou mesmo depois de saber que a mãe ia beneficiar a sua irmã no testamento, continuando a visitá-la diariamente, e bem assim dos médicos KK, LL, que conheciam a A. por ser a filha que acompanhava a testadora às consultas médicas.”

90. Aliás, da compaginação do ponto pp) (da matéria de facto não provada) com os pontos 46 a 48 (da matéria de facto provada) resulta que o legado foi feito por medo e dependência física e psicológica da testadora face à Ré e apenas para lhe fazer a vontade e não propriamente por qualquer gratidão daquela para com esta!

91. Assim, não há causa justificativa que permita perceber a razão pela qual a aqui Autora deveria ser tão prejudicada em relação à Ré!

92. É que, o que está aqui em causa não é um testamento que beneficia a Ré em relação à Autora... O que está aqui em causa é um testamento que prejudica aberta e deliberadamente a Autora, em benefício exclusivo da Ré!

93. Denuncia o benefício excessivo ou injustificado que aproveita à Ré, o facto provado no ponto 13 que diz que a Quinta legada valia em 2005 mais de € 1.000.000,00 (um milhão de euros).

94. Tal facto tem que ser visto em conjunto com os documentos de fls 1057 e ss., designadamente, a relação de bens apresentada por óbito da testadora. De acordo com o que aí consta, os restantes bens imóveis da testadora somam apenas € 231.890,00...

95. De referir ainda - porque impressiona - o facto da Quinta II (referida no ponto 19 da matéria de facto provado) ter sido vendida em 2001 pelo valor de €1.075.000,00 e de não ter sido vislumbrado rasto desse dinheiro nas contas bancárias da decessa, à sua morte...

96. Na verdade, por força daquele Processo Crime da Quinta II (referido no Ponto 19 da matéria de facto provada) foi possível à Autora aperceber-se da precipitação da Ré CC em fazer um negócio que lhe possibilitasse locupletar-se com parte do preço da referida Quinta II, sem que a aqui A. de nada soubesse...

97. Porém, por força daquele processo crime referido em 19 da matéria de facto provada, soube a A. que pelo menos 50 mil contos (sensivelmente € 250.000,00) foram entregues à Ré (cfr. doc. Nº 11 e 12 da P.I.) que os recebeu.

98. Tendo sido também esse o destino do produto de várias aplicações financeiras que a decessa detinha junto da Companhia de Seguros MM e depois Companhia de Seguros NN (cfr. doc. 13 e 14 juntas à P.I.) no valor total de cerca de € 300.000,00 (trezentos mil euros).

99. E é de levar em conta, igualmente, que parte do preço da casa onde a Ré actualmente habita (na Rua … nº …, conforme consta do ponto 18 da matéria de facto provada), no valor de 20 mil contos (€100.000,00, cem mil euros), foi suportado pela decessa (cfr.doc. nº 15 e 16 juntos à P.I.).

100. Por estas razões, a herança é apenas composta por esses bens imóveis e por mais 4 direitos de crédito da herança sobre a Ré, no valor de € 598.557,48, por se tratarem de valores que a Ré se apoderou (em alguns casos sacando ela própria o cheque!)...

101. Mas, ainda que se dê de barato que tais valores foram doados pela decessa à Autora, como esta própria alega, então verificamos que a putativa vontade da decessa foi doar-lhe mais de € 600.000,00 (seiscentos mil euros em dinheiro, fora o resto que não foi possível localizar) e deixar-lhe ainda um legado de uma quinta no valor de mais de € 1.000.000,00 (um milhão de euros).

102. Sobrando para repartir, per capita, entre Autora e Ré, imóveis no diminuto valor de € 231.890,00...

103. Ou seja, o legado ultrapassa em mais de 4 vezes o valor remanescente da herança! Fora as doações feitas em dinheiro e em vida pela testadora à Ré!

104. É por isso tal legado manifestamente excessivo e injustificado!

105. E para este juízo não intervém sequer a regra da redução por inoficiosidade do legado, já que, em primeiro lugar, tal mecanismo funciona a posteriori, no inventário, e o juízo do excesso tem que ser visto aquando da outorga do negócio usurário – v.g. do testamento – e, em segundo lugar porque essa redução está dependente de invocação pelos herdeiros afectados (art. 2169º do C.C.), o que também permite que se conclua que o excesso verificado aquando da outorga do negócio usurário está sedimentado e tem que ser aferido enquanto tal, até que seja porventura invocada essa redução.

106. E parece-nos manifesto que o requisito da intenção ou consciência do usurário de explorar aquela situação de inferioridade está abundantemente preenchido, tal qual resulta da matéria de facto provada e da demais prova constante dos autos.

107. De facto, a intenção da Ré de se aproveitar do Testamento e a ânsia de ficar com a Quinta só para si – que era a autêntica Jóia da Coroa da herança – era de tal maneira que, como consta da fundamentação da sentença (aderindo ao que foi referido pela testemunha EE em julgamento), quando a testadora contou à aqui Ré que a Autora a tinha abordado com vista a revogar o testamento, a Ré “ficou irritada e insultou a sua irmã”.

108. E tratou de imediato de fazer negócio simulado referido nos factos dados como provados nos pontos 12, 13, 14, 15 e 16:

“12 - No dia … de Agosto de 2005, a decessa BB outorgou escritura pública de compra e venda mediante a qual declarou vender a Quinta DD (que havia legado à 2ª Ré no testamento supra referido em 4) e ainda o prédio rústico denominado Campos …, o prédio rústico Campo … e prédio rústico denominado .. do …, (todos melhor identificados na escritura pública junta a fls. 84 e ss) a OO (que era caseiro da mesma), pelo preço global de € 165.000,00 (cento e sessenta e cinco mil euros);

13 - Isto, quando é certo que a referida quinta valia, na altura, mais de € 1.000.000,00 (um milhão de euros);

14 - No mesmo dia, o referido OO prometeu vender e a 2ª Ré prometeu comprar a referida Quinta DD, pelo preço declarado integralmente pago nessa data de € 190.000,00 (cento e noventa mil euros);

15 - E, nesse mesmo dia, o referido OO e mulher habilitaram a Ré com Procuração bastante que lhe permitia celebrar o negócio prometido quando esta bem entendesse;

16 - Tal qual consta da decisão proferida no processo 3856/07.2T… do … Juízo Cível de … (e integralmente confirmada pela Relação em acórdão já transitado em julgado), em processo judicial para o efeito intentado pela aqui A. “dúvidas não restam, em face da matéria de facto dada como provada e acabada de referir, que as declarações de compra e venda constantes da escritura pública aludida no ponto 7 não correspondem à vontade real das partes, pois que a 1ª Ré não quis fazer qualquer venda ao 2º R., nem este lhe quis efetuar qualquer compra. O que se verifica é que a 1ª R. quis criar a aparência de que tais prédios já não faziam parte do seu património, para que estes não fossem tidos em conta em sede de futura partilha pelo seu falecimento, podendo reverter apenas para a sua filha CC, sem colação ou redução por inoficiosidade, em detrimento da sua outra filha, a ora A., e o 2º R. acedeu a participar na criação de tal aparência, porque tal assim lhe foi pedido pela 1ª R. e pela filha CC e atentas as relações de amizade e de trabalho que os unem.”;

109. Ou seja, a Ré tratou de simular um negócio que, não só impedia que a testadora pudesse de facto vir a revogar o testamento (a Mãe já não sendo proprietária, a questão nem se colocava até à data da sua morte), como também até possibilitando à Ré ficar com a Quinta, sem ficar exposta à possibilidade do legado vir a ser reduzido por inoficioso!

110. Ora, verificados todos estes pressupostos, tem necessariamente este Tribunal que concluir pela anulabilidade do testamento impugnado por usura!

111. Mas, caso assim não se entenda, terá este venerando Tribunal que apreciar ainda se o testamento e o contexto que presidiu à sua elaboração não inquinam o negócio de nulidade, por se tratar de um negócio contrário aos bons costumes.

112. De facto, ainda que se entenda que a Ré não ameaçou que abandonava a sua Mãe, sobre ela incidia um imperativo dever moral de auxílio, que desmistificasse essa ideia e confortasse a sua Mãe.

113. Porém, ao invés de assim agir, a Ré contribuiu activamente para que essa ideia se sedimentasse no espírito da testadora, como forma e contrapartida de lhe proporcionar o benefício por si almejado.

114. Esta actuação da Ré – contrária aos bons costumes – feriu de nulidade o testamento aqui em crise, nos termos do art. 280º nº 2 do C.C., o que deve ser declarado.

115. Como é bom de ver, não é pressuposto da nulidade por ofensa dos bons costumes que o beneficiário da vantagem apenas tenha agido com esse fito.

116. O que tem que ser visto, medido e aferido é se o comportamento da Ré foi e é ou não ofensivo da Moral, enquando “constelação dos valores que, ao nível de cada pessoa, constituem os critérios do bem e do mal, os guias do agir correcto”.

117. Ora, tendo em conta tudo quanto vimos de dizer, parece-nos manifesto que a actuação da Ré é ofensiva das “regras éticas aceites pelas pessoas honestas, correctas e de boa fé”, pois o aproveitamento que esta fez da dependência da sua Mãe e do seu receio de abandono, para conseguir um testamento que prejudica a sua irmã e a beneficia excessivamente não é consentâneo com as regras axiológicas vigentes na nossa sociedade.

118. Tal conduta eticamente censurável, na medida em que foi determinante para a elaboração do testamento, acaba por ferir de nulidade o testamento, tornando o seu objecto contrário aos bons costumes.”

Termina pedindo a revogação do acórdão recorrido e a declaração da invalidade do testamento dos autos.


   A Recorrida contra-alegou, estruturando integralmente as suas contra-alegações em 244 pontos, sem conclusões, os quais, no que ora releva, assim se sintetizam:

- Tendo sido realizado novo julgamento, em obediência ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que determinou a ampliação da matéria de facto, foi reaberta a discussão da matéria de facto em toda a sua extensão, devendo assim a impugnação da mesma feita na apelação da R. ser conhecida na sua totalidade;

- Está vedado ao STJ conhecer da alegada violação dos poderes da Relação ao ter alterado a matéria de facto por considerar que os pontos 47, 47-A e 48 são conclusivos;

- Com o acórdão do STJ de fls. 1470não se formou caso julgado formal a respeito dos pontos 47, 47-A e 48 como sendo factos e não conclusões;

- Tampouco se formou caso julgado formal que impeça a Relação de alterar o ponto 46, alteração que é legalmente permitida para se eliminarem contradições (cfr. art. 662º, nº 3, alínea c), do CPC);

- Do mesmo modo, não se formou caso julgado formal sobre o objecto do processo, o qual ficou delimitado pela causa de pedir (a incapacidade da testadora no momento da realização do testamento), não podendo o pedido ser apreciado com fundamento em vício distinto (cfr. art. 581º, nº 4, do CPC) sob pena de se desrespeitarem princípios estruturantes do processo civil e garantias processuais fundamentais;

- Não está provada a incapacidade da testadora por falta de liberdade de exercício da vontade;

- Se se entender que o pedido pode ser apreciado com fundamento em coacção moral ou em usura, sempre se terá de concluir não estarem verificados os respectivos pressupostos;

- Não estão também preenchidos os pressupostos da nulidade por ofensa aos bons costumes.

     Termina, pugnando pela improcedência do recurso.


     Cumpre apreciar e decidir.


3. Vem provado o seguinte (mantêm-se a identificação e a redacção das instâncias):


1 - BB nasceu no dia … .8.1920 e faleceu em … de Outubro de 2012, com 92 (noventa e dois) anos de idade no estado de viúva de HH;

2 - A A e a Ré CC são as únicas filhas de BB e suas únicas herdeiras;

3 - HH, pai da A e da R faleceu em 09 de Janeiro de 1999;

4 - Em 27 de Agosto de 1999 a decessa BB outorgou testamento no Sexto Cartório Notarial … onde, por força da sua quota disponível, legou à 2ª R., sua filha - CC - "a sua propriedade denominada Quinta DD, situada na freguesia de …, concelho de …, com todos os seus pertences. "

5 - Mais então ficou consignado que "este é o segundo testamento que faz e que, por ele, revoga inteiramente o anteriormente feito em data e cartório que não se recorda ";

6 - A decessa BB outorgou em 19 de Setembro de 2005, procuração dando plenos poderes para que as suas filhas (aqui A. e R.) "SEMPRE EM COMUM E CONJUNTAMENTE" regessem todo o seu património, praticando todos os atos, efetuando todos os negócios e outorgando contratos para o efeito necessários, conforme enumeração exaustiva constante do documento n° 5 junto com a p.i;

7 - A partir da data da morte do seu marido a referida BB, não mais quis ficar sozinha à noite na casa que era de ambos;

8 - BB ficou acamada desde … de Fevereiro de 2007 altura em que foi internada na Casa de Saúde …;

9 - Tendo vivido desde Julho de 2009 e até á sua morte (05/10/2012) nas Residências de 3ª Idade …, nesta cidade;

10 - O casal HH e BB construíram um prédio na esquina da Rua …, …, com a Rua …, …, do qual reverteram 3 frações para cada um dos filhos da A. (PP, QQ e RR) e 3 idênticas frações para a estirpe da 2ª R. (a saber, uma fração para a própria, uma fração para a sua filha SS e uma fração para a sua filha JJ).

11 - E nas ocasiões festivas, quando os pais de A. e da R. agraciavam alguma das filhas com qualquer quantia em dinheiro, tinham sempre o cuidado de presentear a outra com igual quantia;

12 - No dia 04 de Agosto de 2005, a decessa BB outorgou escritura pública de compra e venda mediante a qual declarou vender a Quinta DD (que havia legado à 2ª Ré no testamento supra referido em 4) e ainda o prédio rústico denominado Campos …, o prédio rústico Campo … e prédio rústico denominado …, (todos melhor identificados na escritura pública junta a fls. 84 e ss) a OO (que era caseiro da mesma), pelo preço global de € 165.000,00 (cento e sessenta e cinco mil euros);

13 - Isto, quando é certo que a referida quinta valia, na altura, mais de € 1.000.000,00 (um milhão de euros);

14 - No mesmo dia, o referido OO prometeu vender e a 2ª Ré prometeu comprar a referida Quinta DD, pelo preço declarado integralmente pago nessa data de € 190.000,00 (cento e noventa mil euros);

15 - E, nesse mesmo dia, o referido OO e mulher habilitaram a Ré com Procuração bastante que lhe permitia celebrar o negócio prometido quando esta bem entendesse;

16 - Tal qual consta da decisão proferida no processo 3856/07.2T… do … Juízo Cível de … (e integralmente confirmada pela Relação em acórdão já transitado em julgado), em processo judicial para o efeito intentado pela aqui A. "dúvidas não restam, em face da matéria de facto dada como provada e acabada de referir, que as declarações de compra e venda constantes da escritura pública aludida no ponto 7 não correspondem à vontade real das partes, pois que a 1ª Ré não quis fazer qualquer venda ao 2º R., nem este lhe quis efetuar qualquer compra.

O que se verifica é que a Ia R. quis criar a aparência de que tais prédios já não faziam parte do seu património, para que estes não fossem tidos em conta em sede de futura partilha pelo seu falecimento, podendo reverter apenas para a sua filha CC, sem colação ou redução por inoficiosidade, em detrimento da sua outra filha, a ora A., e o 2º R. acedeu a participar na criação de tal aparência, porque tal assim lhe foi pedido pela Ia R. e pela filha CC e atentas as relações de amizade e de trabalho que os unem";

17 - Conforme certidão predial junta a fls. 850 e ss referente ao imóvel descrito na Competente Conservatória do Registo Predial sob o n° 14…24, denominado prédio rústico situado no Lugar … ou DD, da freguesia de …, encontra-se registada através da AP 2094 de 2013/10/17 o seguinte: "Declarado nulo o negócio jurídico de compra e venda titulado por escritura outorgado em 4 de Agosto de 2005, de fls. 87 a 89 do Livro de Escrituras diversas n° 17-A do Cartório do Dr. TT, em … e consequentemente ordenado o cancelamento do registo predial de aquisição a favor de OO e mulher UU, constante da inscrição G-l, emergente da Ap 16 de 2005/11/24;

18 - Conforme escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca celebrada em 29.5.2002, …, a aqui 2o Ré CC declarou comprar pelo preço de 274338,84 cêntimos, o prédio urbano composto de cave e rés-do-chão, andar e quintal sito na Rua … n° … e …, anteriormente com o n° … da freguesia de …, concelho …;

19 - Dá-se aqui por reproduzida a decisão proferida no âmbito do processo 18082/05.4T… do Círculo Judicial de …, junta a fls. 557 e ss e do Tribunal da Relação do Porto de fls. 906 e ss;

20 - O súbito falecimento do marido de BB, HH, ocorrido em 09 de Janeiro de em 1999, abalou profundamente BB, que se viu despojada do seu companheiro de uma vida;

21 - Essa perda, aos seus 79 anos de idade fez com que BB sofresse um grande choque e ficasse deprimida;

22 - Sofreu, em consequência uma quebra na sua condição física e psíquica;

23 - BB após a morte do marido passava a maior parte do dia sentada no sofá;

24 - BB deixou de fazer as compras necessárias à sua vida corrente e de gerir a vida da casa e de dar ordens para a compra das coisas necessárias;

25 - Por vezes confundia datas, ou confundia eventos do presente com eventos do passado;

26 - Confundia, por vezes, nomes e pessoas;

27 - Falava no seu marido como se ele ainda estivesse vivo;

28 - Esquecia-se das coisas com facilidade;

29 - BB perdia facilmente a atenção do que lhe era dito.

30 - Por vezes não retinha aquilo que lhe era dito.

31 - Confundia, por vezes, os dias da semana;

32 - Tinha dificuldade em saber o valor do dinheiro e o que o mesmo permitia ou não comprar;

33 - Tinha alterações de humor;

34 - Estava muitas vezes triste, deprimida e chorosa;

35 - Após a morte do marido BB continuou a gozar férias em família, instalando-se para o efeito, quer em …, juntamente com familiares, quer com a 2ª Ré no …;

36 - Continuou a ir ao cabeleireiro, como fazia habitualmente;

37 - A partir do falecimento do marido, passou a viver em casa da 2ª R., que era a filha cuja residência ficava mais próxima da casa do casal, tendo alguns meses depois passado a viver num apartamento duplex (que era já de sua propriedade) situado em frente ao apartamento da 2ª R, no mesmo prédio, onde vivia sozinha com uma empregada de dia e outra que aí com ela pernoitava;

38 - Após a aquisição pela 2ª R da casa sita na Rua … n° … e …, …, em 29.5.2002, BB passou a viver com a filha, aqui R, na referida casa;

39 - Em 19.7.2005 veio a ser diagnosticado a BB "Alzheimer";

40 - A doença de "Alzheimer" é uma demência degenerativa, progressiva e irreversível que provoca uma deterioração global das funções cognitivas, designadamente da memória, atenção, concentração, linguagem e pensamento;

41 - Por força dessa doença, o estado de saúde de BB foi-se progressivamente agravando, com alterações da sua função cognitiva;

42 - Vindo a ficar incapaz de reger a sua pessoa e bens;

43 - Em 2006, a BB estava já perfeita e permanentemente alheada de tudo e de todos;

44 - Em 19 de Fevereiro de 2007 a BB foi internada na Casa de Saúde … e operada a uma "Tromboflebite";

45 - Contrariamente ao afirmado por BB, no testamento outorgado em 27.8.1999, esse não era o seu segundo testamento, mas sim o seu sétimo testamento, pois outorgara anteriormente 6 testamentos, respetivamente em 17.4.1972; 19.5.1988; 14.2.1989; 7.6.1991; 24.11.1992 e 26.10.1994;

46 - BB passou a viver com a filha CC na casa desta referida em 38) e receava que esta a abandonasse caso não lhe fizesse a vontade de lhe deixar a Quinta DD, sita em …;[alterado pela Relação]

[teor da redacção do ponto 46 tal como fixado pela sentença: BB sentia-se dependente da 2ª R., a filha com quem passou a viver após a morte do marido e receava que esta a abandonasse caso não lhe fizesse a vontade de lhe deixar a quinta DD, sita em …]

47 - BB outorgou o aludido testamento, nos moldes em que o fez, porque se sentia dependente física e psicologicamente da 2ª R e não a queria contrariar, com medo da sua reacção; [eliminado pela Relação, que, simultaneamente, decidiu pela alteração da redacção eliminando a passagem “porque se sentia dependente física e psicologicamente da 2ª R” por, por lapso, considerar que essa passagem integrava o ponto 46 da matéria de facto e não o ponto 47]

47 a) - BB só outorgou o testamento para obedecer á Ré; [eliminado pela Relação]

48 - BB fazia sempre por obedecer à 2ª R. e cumpria sempre a vontade desta; [eliminado pela Relação]

49 - A 2ª R. dificultou, chegando mesmo a impedir algumas vezes o acesso da A. à Mãe, reduzindo-lhe a possibilidade de visitas em sua casa ou até mesmo proibindo as mesmas.

50 - E chamou a si toda a gestão do património da mãe;

51 - Apresentando os factos consumados, sem que à A. lhe fosse dada qualquer hipótese de decidir o que quer que seja;

52 - Como sucedeu com a venda da Quinta II, em que a A. apenas soube do negócio depois do mesmo estar concluído;

Mais se provou o seguinte facto instrumental resultante da instrução da causa:

53 - A aqui A, em Julho de 2005 chegou a confrontar diretamente a sua mãe BB, com o conteúdo do testamento supra referido em 4 e com o facto de se se sentir injustamente prejudicada em favor da irmã, mais informando a mãe que sempre poderia revogar aquele testamento.


Foram dados como não provados os seguintes factos:

a) - que o marido tivesse ascendência sobre a BB,

b) - que, em consequência da morte do marido, BB tenha ficado apática e sem reação;

c) - que tenha sofrido uma quebra abruta de lucidez;

d) - que tenha havido agravamento exponencial de sintomas que já se vinham fazendo notar e que todos atribuíam à idade;

e) - que passasse a maior parte do tempo deitada na cama;

f) - que, poucos meses volvidos da morte do marido, a BB já não se vestia sozinha;

g) - que já não se lavava a não ser com a ajuda de terceiros,

h) - que tinha muitas dificuldades em andar,

i) - que andava apoiada em terceiros ou com a ajuda de uma bengala;

j) - que se desequilibrasse com facilidade;

k) - que se cansasse muito;

l) - que se repetisse no seu discurso;

m) - que tivesse, após a morte do marido, dificuldades em coordenar os seus movimentos;

n) - que, quando frequentava festas e convívios com familiares ou com pessoas, não esboçasse qualquer reação ao humor que lhe dirigiam para que se animasse;

o) - que pouco falava e notava-se que preferia não o fazer;

p) - que quando falava, o que raramente sucedia, a Ludovina Rosa era incapaz de manter uma conversação com nexo e princípio, meio e fim;

q) - que quando porventura o conseguia fazer, faltavam-lhe as palavras e tinha dificuldade em articulá-las;

r) - que não reconhecia as pessoas próximas;

s) - que ficasse completamente apática e distante;

t) - que perdesse muitas vezes a noção do sítio onde estava;

u) - que já não conhecesse o dinheiro;

v) - que não sabia dizer o que ainda tinha e o que já tinha vendido ou doado.

w) - que não conhecia o seu património;

x) nem por ele se interessava.

y) - que não tivesse vontade própria;

z) - que tivesse um discurso à base de frases soltas;

aa) - que nessa altura BB sofresse de ALZHEIMER;

bb) - que o agravado estado de saúde mental da BB em 27 de Agosto de 1999 não lhe permitisse recordar todos aqueles outros seis testamentos anteriores;

cc) - que em 27 de Agosto de 1999, a BB estava incapacitada de entender o sentido da declaração que prestou naquele seu testamento;

dd) - que nessa data BB se encontrasse incapacitada de entender o sentido da sua declaração;

gg) - BB limitou-se a anuir ao que lhe foi lido e explicado, sem porém compreender e atentar no que lhe era dito;

hh) - que tenha sido a 2ª R. quem marcou a realização do testamento no notário;

ii) - que tenha sido a 2ª R. quem forneceu os documentos para as mesmas;

jj) - que tenha sido a 2ª R. quem deu instruções sobre o sentido em que o testamento iria ser lavrado;

kk) - que tenha sido a 2ª R. quem arranjou as testemunhas e quem lhes solicitou que testemunhassem nesse ato;

ll) - que tenha sido a 2ª R. quem conduziu todos ao Cartório;

mm) - que tenha sido a 2ª R. quem pagou os emolumentos devidos pelos atos notariais;

nn) - que a decessa BB, sempre tenha feito saber à A. e a todos com quem se relacionavam, que à sua morte, as partilhas entre ambas as suas filhas fossem feitas irmãmente e em partes iguais, para que nenhuma ficasse favorecida em relação à outra;

oo) - que quando ainda lúcida, a BB sentia e dizia que a 2ª R. não gostava da Mãe, gostava antes do património da Mãe;

pp) - que a Mãe da Autora e Ré não se coibia, perante quem quer que fosse, de manifestar a sua gratidão perante a sua filha CC, a aqui contestante, expressando também o seu agravo perante a ausência e abandono da sua filha AA, seus netos e genro;

qq) - que a A jamais tenha acompanhado os pais, abandonando-os;

rr) - que durante o referido internamento, na … tenha recebido visitas diárias da 2ª R e que só esporadicamente fosse visitada pela A;

ss) - que a 2ª Ré só tenha tido conhecimento do testamento, muito posteriormente à elaboração do mesmo, por intermédio de um casal amigo.


4. Tendo em conta o disposto no nº 4 do art. 635º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões. Assim, o presente recurso tem como objecto as seguintes questões:

- Ofensa de caso julgado formal ao ter a Relação eliminado os pontos 47, 47-A e 48 da matéria de facto dada como provada pela 1ª instância;

- Erro de julgamento do acórdão recorrido ao eliminar, por serem vagos e conclusivos, os referidos pontos 47, 47-A e 48 da matéria de facto e ao alterar, em conformidade, o ponto 46;

- Subsidiariamente, nulidade processual por falta de convite da A. a, nos termos do nº 4 do art. 590º do CPC, vir melhorar a concretização da matéria de facto alegada;

- Verificação dos pressupostos para anulação do testamento dos autos com base no regime do art. 2199º, segunda parte, do Código Civil, de acordo com a orientação seguida na sentença da 1ª instância;

- Subsidiariamente, anulação do testamento com base na verificação dos pressupostos da coacção moral (arts. 255º e 256º do CC, ex vi art. 2201º do mesmo Código);

- Subsidiariamente, anulação do testamento por configurar negócio usurário (art. 282º do CC);

- Subsidiariamente, nulidade do testamento por ofensa aos bons costumes (art. 280º, nº 2, do CC).


Desde já se esclareça que, se alguma das pretensões da Recorrente relativas ao juízo relativo à decisão de facto realizado pela Relação (primeira e segunda questões objecto do presente recurso) for julgada procedente, os autos terão de baixar de novo ao tribunal a quo para conhecer da impugnação da matéria de facto apresentada na apelação da R., aqui Recorrida, cuja apreciação ficou prejudicada pelo sobredito juízo.


5. Considera-se necessário começar por realizar o enquadramento das questões a apreciar, tendo em conta a tramitação da presente acção e, em especial, os termos em que as instâncias se pronunciaram após a prolação do acórdão deste Supremo Tribunal que determinou a ampliação da matéria de facto.

         Sintetizando:

- A A. peticionou a anulação do testamento dos autos com fundamento em incapacidade acidental da testadora para entender o sentido da declaração e por não ter o livre exercício da sua vontade aquando da realização do testamento (artigos 67 e 68 da p.i.);

- A sentença da 1ª instância julgou a acção improcedente, absolvendo a R. do pedido por falta de prova da incapacidade da A. para entender o sentido da declaração na data da outorga do testamento;

- A A. interpôs recurso de apelação, pedindo a reapreciação da decisão de direito e invocando que os factos provados conduzem à anulação do testamento por coacção moral ou por usura;

- O acórdão da Relação confirmou a decisão da 1ª instância com os seguintes fundamentos:

i. A matéria de facto não permite dar como provada a incapacidade da testadora na data da outorga do testamento;

ii. Não se verificam os pressupostos da coacção moral;

iii. Tampouco se verificam os pressupostos da usura;

iv. Oficiosamente conheceu ainda da eventual nulidade do testamento por ofensa aos bons costumes, concluindo em sentido negativo;

- A A. interpôs recurso de revista, pedindo a reapreciação de todos os fundamentos de invalidade considerados pela Relação;

- O Supremo Tribunal de Justiça veio a proferir acórdão, mandando “baixar os autos ao tribunal de primeira instância para, com base nos meios de prova já produzidos ou a produzir, eliminar a contradição assinalada entre os factos provados 47 e 48 e o facto não provado nn), no sentido de compatibilizar as respostas dadas, deixando claro em que medida a dependência da testadora em ralação à 2ª R e/ou o autoritarismo desta determinaram a decisão de outorga do testamento nos termos em que a mesma foi feita”;

- Reaberta a audiência de julgamento na 1ª instância, foi proferida sentença que julgou a acção procedente e, em consequência, anulou o testamento, considerando:

i. Não estar provada a incapacidade da testadora, à data da outorga do testamento, para entender o sentido da declaração negocial;

ii. Diversamente, estar provado o“vício volitivo que determina a anulabilidade do acto unilateral, com base no art. 2199° do C.C., que protege o testador quando este não tinha o livre exercício da sua vontade”;

- A R. interpôs recurso de apelação, pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito, invocando:

i. Não estar provada a incapacidade da testadora no momento da outorga do testamento por falta de liberdade no exercício da vontade;

ii. Não estarem provados os pressupostos da coacção moral;

iii. Não estarem também provados os pressupostos da usura;

iv. Nem tampouco existir base factual para aplicação do regime da nulidade por ofensa aos bons costumes;

- Por acórdão, ora recorrido, a Relação julgou procedente a apelação, revogando a sentença recorrida e absolvendo a R. do pedido com a seguinte fundamentação:

i. Tendo a presente acção sido interposta com fundamento em anulabilidade por incapacidade da testadora, não podeo tribunal conhecer da anulabilidade com fundamento em coacção moral ou em usura;

ii. Considerando que os pontos 47, 47-A e 48 são vagos e conclusivos, eliminou-os da matéria de facto e, em conformidade, alterou a redacção do ponto 46, que passou a ser a seguinte: “BB passou a viver com a filha CC na casa desta referida em 38) e receava que esta a abandonasse caso não lhe fizesse a vontade de lhe deixar a Quinta DD, sita em …”;

iii. Em consequência da alteração da matéria de facto, deu como não provada a incapacidade acidental por falta de liberdade da testadora no exercício da vontade (segunda parte do art. 2199º do CC);

iv. Assim alterada, entendeu que a matéria de facto também não permite dar como provado o vício da vontade por coacção moral.


Tendo presente a tramitação processual aqui sumariada, passemos de seguida a conhecer de cada uma das questões objecto do presente recurso.


6. Independentemente do juízo acerca do âmbito do caso julgado formado com o acórdão deste Supremo Tribunal que determinou a baixa dos autos e a produção de prova de modo a expurgar a decisão relativa à matéria de facto da assinalada contradição, a resolução de tal questão ficará prejudicada se se vier a concluir pela existência de erro de julgamento ao ter a Relação eliminado, por serem vagos e conclusivos, os pontos 47, 47-A e 48 da matéria de facto e ao ter alterado, em conformidade, o ponto 46.

   A resolução desta última questão implica que se esclareçam previamente quer os termos em que a mesma questão se deve colocar quer a questão da competência deste Supremo Tribunal para a reapreciar. Socorremo-nos, a este respeito, das palavras do acórdão de 27/04/2017 (proc. nº 273/14.1TBSCR.L1.S1), votado como adjunta pela aqui relatora e disponível em www.dgsi.pt:

“[O] artigo 646.º, n.º 4, do CPC, na redação anterior à reforma introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26/06, determinava que se tivessem por não escritas as respostas dadas, em sede de julgamento de facto, sobre questões de direito, o que implicava, nomeadamente, ajuizar sobre o préstimo do teor dessas respostas para enunciar juízos de facto. 

É certo que tal disposição não foi transposta para a atual versão do CPC, mas ainda assim deve manter-se o entendimento de que a questão de saber se determinado enunciado linguístico é adequado a descrever uma factualidade juridicamente relevante reconduz-se a uma questão de direito, de cuja solução dependerá o atendimento ou não, como espécie factual, da matéria ali vertida, nos termos do disposto no artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável aos acórdãos dos tribunais superiores por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º todos do CPC.

Nessa medida, não obstante o preceituado no n.º 2 do artigo 682.ºdo mesmo Código, cabe ao tribunal de revista ajuizar sobre tal adequação e, nessa conformidade, decidir se o enunciado em causa deve ou não ser considerado como matéria de facto.[sublinhado nosso]


 No mesmo sentido, cfr. os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 07/05/2015 (proc. nº 9713/05.0TBBRG.G1.S1), de 14/01/2016 (proc. nº 391/13.9TTCBR-C1.S1), 19/10/2017 (proc. nº 1077/14.7TVLSB.L1.S1), 19/12/2018 (proc. nº 857/08.7TVLSB.L1.S2) e de 12/09/2019 (proc. nº 1333/15.7T8LMG.C1.S1), disponíveis em www.dgsi.pt.

Cabe pois a este Supremo Tribunal reapreciar se os pontos 47, 47-A e 48 da factualidade dada como provada pela 1ª instância revestem a natureza de enunciados de facto ou de direito.

A este propósito convoca-se novamente a fundamentação do acórdão deste Supremo Tribunal de 27/04/2017:

“Como é sobejamente reconhecido, nem sempre se mostra, na prática, tarefa fácil fazer a destrinça entre um juízo de facto e um juízo de direito, tanto mais que os próprios juízos probatórios integram categorias lógicas sinteticamente representativas de uma realidade concreta em que concorrem múltiplas vicissitudes que seria difícil descrever até ao ínfimo pormenor.

Ora, no respeitante à formação do juízo probatório, já longe vão os tempos da tradição empírico-narrativista, em que dominava o lema de que factos são factos e não necessitam de ser argumentados. Com efeito, a verdade judicial é fruto de um raciocínio problemático, sustentado na razão prática mediante a análise crítica dos dados de facto veiculados pela atividade probatória, em regra, mediante inferências indutivas ou analógicas pautadas pelas regras da experiência comum colhidas da normalidade social. Daí resulta que os juízos probatórios incluam, por vezes, segmentos de pendor conclusivo ou elementos categoriais compreensivos da realidade em análise.”[sublinhado nosso]



Quer isto dizer que não é, por si só, a feição conclusiva de um enunciado que permite excluí-lo da factualidade dada como provada, antes sendo de ajuizar se determinados enunciados linguísticos correspondem ou não à descrição de realidades factuais.

No caso dos autos, estão em crise os seguintes pontos da matéria de facto:

47 - BB outorgou o aludido testamento, nos moldes em que o fez, porque se sentia dependente física e psicologicamente da 2ª R e não a queria contrariar, com medo da sua reacção;

47- a) - BB só outorgou o testamento para obedecer á Ré;

48 - BB fazia sempre por obedecer à 2ª R. e cumpria sempre a vontade desta.

Afinal do que se trata, concretamente, é de considerar se realidades de natureza psicológica podem ou não integrar realidades de facto. A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem dado resposta positiva a esta dúvida em termos que encontramos explanados no já indicado acórdão de 07/05/2015 (proc. nº 9713/05.0TBBRG.G1.S1), cuja fundamentação aqui transcrevemos na parte relevante:

“Na formulação de Alberto dos Reis, «a) É questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior; b) É questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei» (Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 4.ª ed., Coimbra Editora, 1985, págs. 206-207).

Para Miguel Teixeira de Sousa, «A selecção da matéria de facto não pode conter qualquer apreciação de direito, isto é, qualquer valoração segundo a interpretação ou aplicação da lei ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica» (Estudos sobre o Processo Civil, Lex, p. 312).

Na expressão de A. Varela, M Bezerra e Sampaio e Nora, factos são as ocorrências concretas da vida real, os acontecimentos concretos da realidade (Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1985, p.406). 

Como faz notar Anselmo de Castro, para o efeito de distinguir facto e direito “é indiferente a natureza do facto: são factos não só os acontecimentos externos, como os internos ou psíquicos, e tanto os factos reais, como os simplesmente hipotéticos. Do conteúdo que deve revestir decidirá apenas a norma legal” (Direito processual Civil Declaratório, vol. III, Almedina 1982, p. 268).

Também a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem considerando que a intenção, o convencimento, enquanto realidades do mundo psicológico, fazem parte das realidades de facto.

Como se assinala no Acórdão deste Supremo Tribunal de 16.10.2012, Proc. nº 649/04.2TBPDL.L1.S1, (acessível em www.dgsi.pt/jstj) «já no Assento de 19-10-1954 se escrevia que “averiguar a intenção dos outorgantes ou do testador é averiguar um fenómeno psicológico o que, à evidência, não constitui matéria de direito, mas pura matéria de facto” (R.L.J., Ano 87º, n.º 3035, pág. 224); assim se entendeu no Ac. do S.T.J. de 4-10-2001 (Simões Freire), revista n.º 2485/01- 2ª secção [2] que "são quesitáveis os actos de foro interno e os juízos de facto, entendidos estes como dirigidos ao "ser", ontologicamente concebido, e não ao dever ser normativo" e, no âmbito de acção de simulação, considerou -se no Ac. do S.T.J. de 7-3-2002 (Ferreira de Almeida), revista n.º 4129/01- 2ª secção que "a determinação da intenção dos contraentes, designadamente do animus decipiendi, integra matéria de facto cujo apuramento é apanágio exclusivo das instâncias e cujo ónus de dedução e de prova impende sobre o demandante - arguente". De igual modo se considerou no Ac. do S.T.J. de 18-12-2003 (Ferreira de Almeida) P. 3794/2003 que a determinação da intenção dos contraentes, designadamente o intuito de enganar terceiros, bem como a questão de saber se o declaratário conhecia a vontade real do declarante constitui matéria de facto cujo apuramento é da exclusiva competência das instâncias, satisfeitos que sejam - é claro - o ónus da alegação e da prova da banda do demandante. O Supremo, como tribunal de revista, só conhece, em princípio, de matéria de direito, limitando-se a aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido». 

Factos são não só os acontecimentos externos, mas também os estados emocionais, os eventos do foro interno, psíquico. Realidades como dores, sofrimento moral, conhecimento da vontade real do declarante ou a intenção do testador integram o conceito de matéria de facto processualmente relevante, sendo passíveis de prova.”[sublinhados nossos]


Aplicando esta orientação ao caso dos autos, considera-se que os enunciados relativos ao estado de ânimo da testadora (“BB outorgou o aludido testamento, nos moldes em que o fez, porque se sentia dependente física e psicologicamente da 2ª R”), assim como relativos às razões que a levaram a outorgar o testamento (“BB… não a queria contrariar, com medo da sua reacção”; “BB só outorgou o testamento para obedecer á Ré”;“BB fazia sempre por obedecer à 2ª R. e cumpria sempre a vontade desta”) revestem a natureza de proposições de facto, integrantes de factos essenciais ou nucleares, em conformidade com o segundo tema da prova (“Liberdade e vontade de emissão por parte da testadora da declaração contida no testamento outorgado por si em 27.08.1999 – vide o alegado em 69.º, 70.º, 73.º, 76.º a 81.º e 114.º a 117.º da P.I.”).

Forçoso é, pois, concluir pela ocorrência de erro de julgamento ao ter o acórdão recorrido eliminado os pontos 47, 47-A e 48 da matéria de facto e ao ter alterado, em conformidade, o ponto 46.

Isto dito, admite-se que o enunciado do ponto 47-A (“BB só outorgou o testamento para obedecer á Ré”), sendo, como se disse, um enunciado de facto, se encontra eivado de certa ambiguidade, uma vez que a expressão “para obedecer à Ré” tanto pode ter o significado de obedecer a ordem (ou ordens) da R. como o significado, não inteiramente coincidente, de não querer contrariar a R., dispondo a Relação de poderes para esclarecer o exacto significado do sobredito enunciado.


Assim, conclui-se pela procedência da pretensão da Recorrente no sentido de se manter a factualidade tal como fixada pela 1ª instância, sendo que – como se assinalou supra – os autos terão de baixar, de novo, à Relação para conhecer da impugnação da matéria de facto deduzida pela R., aqui Recorrida, em sede de apelação, circunscrita porém à impugnação dos referidos pontos 47, 47-A e 48.

Com efeito, compulsado recurso de apelação da R., verifica-se ter esta procedido à impugnação dos pontos 47 a 52 da decisão de facto da sentença. Ora, nos termos do art. 662º, nº 3, alínea c) do CPC, “Se for determinada a ampliação da matéria de facto, a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições”.

Deste modo, uma vez que, no caso dos autos, a repetição do julgamento realizada para dar cumprimento ao acórdão deste Supremo Tribunal que mandou “eliminar a contradição assinalada entre os factos provados 47 e 48 e o facto não provado nn) [correspondente ao actual ponto 47-A], no sentido de compatibilizar as respostas dadas”, apenas esses factos se encontram abrangidos pelo novo julgamento, tanto em 1ª instância como em sede de reapreciação da matéria de facto pela Relação, salvo no que se refere à necessidade de, para evitar contradições, apreciar outros pontos da factualidade provada.


7. Fica, pois, prejudicado o conhecimento da questão subsidiária da alegada nulidade processual por falta de convite da A. a, nos termos do nº 4 do art. 590º do CPC, vir melhorar a concretização da matéria de facto alegada


8. Aqui chegados, constata-se que só após a estabilização da decisão relativa à matéria de facto será possível tomar posição quanto à solução de direito, o que deverá ser feito, em primeira linha, pela Relação.

Porém, tendo no presente recurso de revista sido retomados, na totalidade, os fundamentos de invalidade do testamento considerados pelo acórdão recorrido (incapacidade acidental por falta de liberdade da testadora no exercício da vontade; coacção moral; usura; ofensa aos bons costumes) importa tomar posição acerca da questão de saber se todos e cada um destes fundamentos deverá ser apreciados pela Relação.

A resposta é naturalmente afirmativa no que se refere à apreciação do fundamento da alegada incapacidade acidental por falta de liberdade da testadora no exercício da vontade (segunda parte do art. 2199º do CC), uma vez que integra a causa de pedir da presente acção.

No que se refere ao fundamento da ofensa aos bons costumes (nº 2 do art. 280º do CC) a resposta é também afirmativa, na medida em que, sendo gerador de nulidade, é de conhecimento oficioso.

Porém, no que respeita aos fundamentos da coacção moral (arts. 255º e 256º do CC, ex vi art. 2201º do mesmo Código) e da usura (art. 282º do CC), recorde-se que o acórdão recorrido considerou que, tendo a acção sido interposta com fundamento em anulabilidade por incapacidade da testadora, não podia ser apreciada a anulabilidade com fundamento no vício de coacção moral ou na aplicação do regime da usura, por tal configurar uma alteração da causa de pedir.

   Importa, assim, tomar posição sobre a questão da determinação da causa de pedir da presente acção cuja resolução condiciona os termos em que a decisão de mérito deverá ser reapreciada pela Relação, após a necessária consolidação da decisão de facto.


    Para o efeito, socorremo-nos do teor da fundamentação – a todos os títulos paradigmática – do acórdão deste Supremo Tribunal de 18/09/2018 (proc. nº21852/15.4T8PRT.S1)[1], votado como adjunta pela aqui relatora e disponível em www.dgsi.pt:

“[A] causa de pedir, legalmente definida (art.º 581.º, n.º 4, do CPC) como facto jurídico de que procede a pretensão deduzida, consubstancia-se numa factualidade alegada como fundamento do efeito prático-jurídico pretendido, factualidade esta que não deve ser destituída de qualquer valoração jurídica, mas sim relevante no quadro das soluções de direito plausíveis a que o tribunal deva atender ao abrigo do art.º 5.º, n.º 3, e nos limites do art.º 609.º, n.º 1, do CPC, independentemente da coloração jurídica dada pelo autor.É o que se designa por princípio da causa de pedir aberta.   

Nessa conformidade, a causa de pedir pode ser, analiticamente, configurada por dois vetores complementares: 

a) – o seu perfil normativo, que a doutrina designa por causa de pedir próxima[nota 3: Vide, MILTON PAULO DE CARVALHO, Do Pedido no Processo Civil, FIEO – Fundação Instituto de Ensino para Osasco, Porto Alegre, 1992, p. 93], traçado não em função da qualificação jurídica dada pelo autor, mas à luz do quadro das soluções de direito plausíveis que ao tribunal cumpre, a final, convocar, em função do efeito prático-jurídico pretendido;

b) – o seu substrato factológico, também designado por causa de pedir remota[nota 4: MILTON PAULO DE CARVALHO, ob. cit. p. 93], o qual é preenchido, segundo um critério empírico-normativo, em função do tipo de factualidade desenhada, em abstrato, na factis species aplicável, tendo ainda em conta os critérios de repartição do ónus da prova formulados a partir do sobredito efeito prático-jurídico.

Sem necessidade de nos embrenharmos aqui nas conhecidas teorias da substanciação, da individuação e até da mais recente teoria da individuação aperfeiçoada [nota 5: Para uma análise desenvolvida sobre as diversas orientações doutrinárias, vide a Professora Doutora MARIANA FRANÇA GOUVEIA, A causa de Pedir na Acção Declarativa, Colecção Teses, Almedina, 2004, pp. 37-96], a orientação corrente vai no sentido de que o artigo 581.º, n.º 4, do CPC acolhe a doutrina da substanciação, segundo a qual a causa de pedir deve ser preenchida com os factos essenciais causantes do efeito jurídico pretendido.  

Sintetizando tal orientação Abrantes Geraldes [nota 6: In Temas da Reforma de Processo Civil, Vol. I, Almedina, 2.ª Edição, Coimbra, 1998, pp. 192-193], escreve o seguinte: 

«No art.º 498.º [atual art.º 581.º, n.º 4, do CPC] o legislador fez uma opção clara ente dois sistemas possíveis: o da individualização ou o da substanciação da causa de pedir. Ao primeiro bastaria a indicação do pedido, devendo a sentença esgotar todas as possíveis causas de pedir da situação jurídica enunciada pelo autor, impedindo-se, após a sentença, a alegação de factos anteriores e que, porventura, não tivessem sido alegados ou apreciados. Já a opção pela teoria da substanciação implica para o autor a necessidade de articular os factos de onde deriva a sua pretensão, formando-se o objecto do processo e, por arrastamento, o caso julgado, apenas relativamente aos factos integradores da causa de pedir invocada. Foi esta a opção a que aderiu o legislador (…)»

Assim, a densificação da causa de pedir requer uma substanciação adequada à individualização da relação material controvertida, como singularidade ontológica, que, para além de oferecer garantia de base do contraditório, sirva de ulterior delimitação objetiva do caso julgado.

Todavia, importa distinguir, por um lado, os factos essenciais nucleares, estruturantes ou identificativos da causa de pedir; por outro lado, os factos complementares que, embora essenciais à procedência da pretensão deduzida, não relevam para identificação ou inteligibilidade daquela.

A par disso, tem-se entendido que, para delimitar determinada causa de pedir, não basta a mera identidade naturalística da factualidade alegada, havendo sempre que considerar a sua relevância em face do quadro normativo aplicável e em função da espécie de tutela jurídica pretendida.

Segundo Lebre de Freitas [nota 7: Caso julgado e causa de pedir, O enriquecimento sem causa perante o artigo 1229.º do Código Civil” Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Maio de 2006, in ROA 2006, Ano 66, Vol. III, acessível na Internet https://portal.oa.pt./publicacoes/revista/ano-2006/ano-66-vol-iii-dez-2006, p. 8]:    

«(…) embora a causa de pedir seja integrada por factos concretos, está hoje abandonada a ideia de que ela se possa delimitar segundo critérios meramente naturalísticos, o que a conduziria à impossibilidade de a circunscrever em termos jurídicos. Fora o caso de concurso de normas meramente aparente, dois complexos de factos, cada um dos quais integre a previsão duma norma jurídica constitutiva de direitos, só constituirão a mesma causa de pedir se o núcleo essencial das duas normas for o mesmo»   

Também Teixeira de Sousa [nota 8. Algumas questões sobre o ónus de alegação e de impugnação em processo civil, in Scientia Iuridica, Tomo LXII, n.º 332, 2013, pp. 395 e ss. (395, 401-402)] elucida que:

 «A causa de pedir é constituída pelos factos necessários para individualizar a pretensão material alegada. O critério para delimitar a causa de pedir é necessariamente jurídico. É a previsão de uma regra jurídica que fornece os elementos para a construção de uma causa de pedir.

 (…)

 Os factos que constituem a causa de pedir devem preencher uma determinada previsão legal, isto é, devem ser subsumíveis a uma regra jurídica: eles não são factos “brutos”, mas factos “institucionais”, isto é, factos construídos como tal por uma regra jurídica. Isto demonstra que o recorte da causa de pedir é realizado pelo direito material: são as previsões das regras materiais que delimitam as causas de pedir, pelo que, em abstracto, há tantas causas de pedir quantas as previsões legais.»    

Assim, embora a diferenciação de causas de pedir seja feita, em regra, por via da conjugação da concreta factualidade alegada com o aludido quadro normativo aplicável, casos há em que a mesma factualidade empírica é suscetível de preencher quadros normativos distintos com estatuição de modos de tutela jurídica qualitativamente diversos. Nestes casos, tal diferenciação será feita, basicamente, em função do vetor normativo da causa de pedir

Em suma, sendo o pedido e a causa de pedir conceitos de matriz e função processual, a sua densificação ou concretização, em termos de determinar em concreto cada causa de pedir, só poderá ser feita com base nas normas substantivas aplicáveis à situação litigiosa singular.”[sublinhados nossos]


Aplicando ao caso dos autos esta orientação jurisprudencial (cujo alcance não se afigura ter sido inteiramente apreendido pela Recorrida ao convocar em abono da sua posição, a fundamentação do acórdão que acabamos de reproduzir), temos que, tendo sido peticionada a anulação do testamento, há que ponderar se a factualidade empírica na qual o pedido se funda será ou não susceptível de preencher quadros normativos distintos, o que – assinale-se – não se confunde com a apreciação da viabilidade de procedência da pretensão da A.

Compulsada a petição inicial, verifica-se que os factos alegados (“78.Foi a 2ª R. quem deu instruções sobre o sentido em que o testamento iria ser lavrado, 82. Porém, o que ficou expresso nesse documento não era o que a BB queria, 114. A BB apenas outorgou o Testamento e efectuou a simulada compra e venda da Quinta de … nos moldes em que o fez, porque estava na dependência FÍSICA, PSICOLÓGICA e de ACÇÃO da 2ªR., 115. Sentindo-se compelida (e isso a 2ª R. lhe fazendo notar) de que dependia em absoluto da 2ª R. e que esta a abandonaria, caso a decessa não lhe fizesse a vontade, 116.   A BB apenas obedecia à 2ª R. e cumpria a vontade desta, 117. A BB limitava-se a fazer o que a 2ª R. lhe dizia para fazer”), tanto são susceptíveis de preencher o regime da incapacidade acidental por falta de liberdade no exercício da vontade de testar (segunda parte do art. 2199º do CC), como de se subsumirem ao vício da coacção moral (art. 257º do CC, aplicável ao testamento ex vi art. 2201º do CC). O que aliás foi, até certo ponto, reconhecido pelo acórdão recorrido que, não obstante ter excluído a qualificação da causa de pedir como coacção moral, admitiu, a final, apreciar da verificação dos respectivos pressupostos, concluindo em sentido negativo.

A possibilidade de subsunção dos factos alegados ao vício de coacção moral não desrespeita o princípio do contraditório, enquanto princípio estruturante do processo civil e enquanto garantia processual fundamental, tanto porque – como decorre da leitura dos factos alegados, aqui transcritos, à luz da previsão do quadro normativo do nº 1 do art. 255º do CC (é “feita sob coacção moral a declaração negocial determinada pelo receio de um mal de que o declarante foi ilicitamente ameaçado com o fim de obter dele a declaração”) – tal subsunção é perfeitamente apreensível pela contraparte como porque, ao longo do processado, teve a mesma contraparte oportunidade de, por diversas vezes, se pronunciar acerca da referida qualificação alternativa, tendo-se efectivamente pronunciado.

Diversamente, no que ao quadro normativo da usura respeita, definido pelo nº 1 do art. 282º do CC, – e independentemente da posição assumida acerca da questão da aplicabilidade de tal regime ao testamento – constata-se que, ainda que tenham sido alegados factos susceptíveis de integrar os pressupostos da existência de uma situação de inferioridade do declarante e da exploração da situação de inferioridade pelo usurário(o que, repita-se, não se confunde com a tomada de posição acerca do efectivo preenchimento de tais pressupostos), não foi alegado qualquer facto que possa integrar o pressuposto da promessa ou concessão de benefícios excessivos ou injustificados para o usurário ou terceiro, não podendo relevar as considerações a este respeito tecidas pela A. em sede recursória. Tanto basta para afastar a possibilidade de se qualificar a causa de pedir no domínio da usura.


Em conformidade com o exposto, conclui-se que, após consolidação da factualidade dada como provada, deverá a Relação proceder à apreciação do pedido de anulação do testamento dos autos não apenas com fundamento em incapacidade acidental por falta de liberdade da testadora no exercício da vontade, mas também com fundamento em coacção moral. Assim como deverá proceder à reapreciação da invocada nulidade por ofensa aos bons costumes.


9. Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, revogando-se o acórdão recorrido e decide-se:

a) Manter, como enunciados de facto, os pontos 46, 47, 47-A e 48 da factualidade dada como provada pela 1ª instância;

b) Mandar baixar os autos à Relação para:

i. Conhecer da impugnação da matéria de facto deduzida pela R. em sede de apelação, circunscrita à impugnação dos referidos pontos 47, 47-A e 48;

ii. Após estabilização da decisão relativa à matéria de facto, proferir decisão de direito, apreciando a invalidade do testamento com fundamento em incapacidade acidental por falta de liberdade da testadora no exercício da vontade, em coacção moral e em ofensa aos bons costumes.


Custas da acção e do recurso a final


Lisboa, 17 de Dezembro de 2019


Maria da Graça Trigo (Relator)

Maria Rosa Tching

Rosa Maria Ribeiro Coelho

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[1]E extensamente citado nas contra-alegações da Recorrida, ainda que por via da citação incorporada no acórdão de 24/01/2019, proferido no processo nº 948/14.5TVLSB.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt.