Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
275/13.5TBTVR.E1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DANOS FUTUROS
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 01/09/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA.
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
Doutrina:
-Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2.ª edição, p. 305 e 306;
-Sousa Dinis, CJSTJ, 2001, Tomo I, p. 5 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 671.º, N.º 1.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 494.º, 496.º, N.º 3 E 564.º, N.º 2.
Referências Internacionais:
CENTRO REGIONAL DE INFORMAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, UNRIC, IN HTTPS://WWW.UNRIC.ORG/PT/PESSOAS-COM-DEFICIENCIA/5459.
ESTRATÉGIA EUROPEIA PARA A DEFICIÊNCIA 2010-2020, COMPROMISSO RENOVADO A FAVOR DE UMA EUROPA SEM BARREIRAS, DE 15-11-2010, IN HTTP://EUR-LEX.EUROPA.EU/LEXURISERV/LEXURISERV.DO?URI=COM:2010:0636:FIN:PT:PDF.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 20-01-2010, PROCESSO N.º 203/99.9TBVRL.P1.S1;
- DE 20-05-2010, PROCESSO N.º 103/2002.L1.S1;
- DE 14-09-2010;
- DE 07-06-2011;
- DE 31-03-2012, PROCESSO N.º 1145/07.1TVLSB.L1.S;
- DE 10-10-2012, PROCESSO N.º 632/2001.G1.S1;
- DE 12-12-2013;
- DE 07-05-2014;
- DE 04-06-2015, PROCESSO N.º 1166/10.7TBVCD.P1.S1;
- DE 19-01-2016, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - É adequada a indemnização de €250.000,00 por danos patrimoniais futuros (supressão da capacidade de ganho) ao sinistrado, pessoa de 41 anos de idade e com um rendimento mensal de €750,00, que, em decorrência de acidente de viação, e entre outros danos:- sofreu amputação de parte de uma perna;- ficou afetado de um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 30 pontos em 100;- as sequelas são impeditivas do exercício da atividade profissional habitual.

II - Tendo o lesado sofrido, e para além da amputação do membro e da respetiva intervenção cirúrgica, uma outra intervenção cirúrgica, internamento hospitalar, dano estético permanente de grau 6 (numa escala de 7), quantum doloris de grau 6 (numa escala de 7), e vários outros graves danos somáticos e psíquicos (nomeadamente stress pós-traumático crónico e quadro depressivo, inclusivamente com ideação suicida), justifica-se o arbitramento de uma indemnização de €125.000,00 a título de dano não patrimonial.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

AA (representada, por ser menor, pelos seus pais, BB e CC) demandou oportunamente (Abril de 2013), pelo Tribunal Judicial de ... e em autos de ação declarativa com processo na forma ordinária (processo nº 275/13.5TBTVR), DD S.A. (que, entretanto, na sequência de operação de incorporação por fusão, passou a denominar-se EE, S.A.), peticionando a condenação desta na quantia de €40.000,00, acrescida de juros desde a citação.

Também BB demandou oportunamente (Abril de 2013), pelo mesmo Tribunal e em autos igualmente de ação declarativa com processo na forma ordinária (processo nº 276/13.3TBTVR), a mesma Ré, peticionando a condenação desta no pagamento da quantia de €718.080,00 (que veio depois a ampliar para €773.080,00), acrescendo juros de mora desde a citação. Foi ordenada a apensação desta ação aos presentes autos nº 275/13.5TBTVR.

Para o efeito, alegaram os Autores, em síntese, que quando se deslocavam (o Autor como condutor e a Autora como passageira) no motociclo matrícula -DJ, veio este a ser embatido por um outro motociclo, matrícula -JL-, que circulava em sentido contrário. O acidente ficou a dever-se a culpas do condutor deste último veículo, por isso que, na sequência de uma manobra de ultrapassagem, invadiu a hemifaixa de rodagem por onde seguiam os Autores. Em decorrência do embate, sofreram e sofrerão os Autores os danos patrimoniais e não patrimoniais que descrevem. A proprietária do motociclo matrícula -JL- havia transferido para a Ré a responsabilidade civil emergente da respetiva utilização, competindo por isso à Ré reparar o dano sofrido pelos Autores.

Contestou a Ré, concluindo pela improcedência dos pedidos.

Mais requereu, e viu deferida, a intervenção principal do condutor do veículo -JL-, FF.

O Instituto da Segurança Social, I.P. - Centro Distrital de Faro deduziu contra a Ré pedido de reembolso da quantia de €657,87, acrescida de juros, correspondente ao montante de subsídio de doença que prestou ao Autor em decorrência do acidente.

Seguindo a ação seus termos, veio, a final, a ser proferida sentença, onde se decidiu condenar a Ré a pagar:

a) À Autora AA a quantia de €40.000,00, a título de danos não patrimoniais (estando aí incluído o dano biológico), acrescida de juros de mora desde o dia seguinte à prolação da sentença;

b) Ao Autor BB a quantia total de €435.000,00, sendo €340.000,00 a título de danos patrimoniais (correspondendo € 200.000,00 à indemnização a título de danos futuros pela perda da capacidade de ganho, aí se incluindo a indemnização pelo dano biológico na sua vertente patrimonial e €140.000,00 a título de dano futuro relativo aos custos previsíveis com tratamentos e substituições das próteses e respetivos componentes) e €95.000,00 a título de danos morais (sendo €80.000,00, a título de compensação pelos danos não patrimoniais na sequência do acidente, estando englobada neste valor o dano biológico na sua vertente não patrimonial e €15.000,00 relativos às demoras na substituição dos componentes da prótese por parte da Ré), acrescida de juros de mora desde o dia seguinte à prolação da sentença; e,

c) Ao Instituto de Segurança Social, IP, a quantia de € 657,87, acrescida de juros de mora desde a notificação do pedido de reembolso à Ré até integral pagamento.

Inconformados com o assim decidido, apelaram o Autor e a Ré.

A Relação de Évora decidiu os recursos da seguinte forma:

a) Não conhecer do recurso da Ré Seguradora, na parte respeitante à indemnização por danos não patrimoniais arbitrada à A. AA;

b) Negar, no demais, provimento ao recurso da Ré Seguradora;

c) Conceder parcial provimento do recurso interposto pelo Autor, fixando em €250.000,00 a indemnização devida pela perda da capacidade de ganho, e em €125.000,00 a indemnização devida a título de danos não patrimoniais, aqui se englobando a circunstância agravante relativa às demoras ocorridas na substituição dos componentes da prótese;

d) Manter no mais a sentença recorrida, quer na parte relativa à indemnização arbitrada à Autora, quer na parte relativa à indemnização de €140.000,00 por custos com tratamentos e substituição da prótese e respetivos componentes, quer na parte relativa ao tempo e modo de contagem dos juros.

Ainda inconformados, pedem o Autor e a Ré revista.

Da respetiva alegação extrai o Autor as seguintes conclusões:

I. O A. recorre de dois únicos pontos (os únicos em que a decisão ora recorrida merece reparo): a) montante de indemnização calculado a título de indemnização por perda da capacidade de ganho do recorrente BB (ora fixado em €250.000,00); b) montante de €125.000,00 a título de danos morais (estando englobada neste valor o dano biológico na sua vertente não patrimonial relativo às demoras na substituição dos componentes da prótese por parte da Ré)

II. Face à dimensão dos danos sofridos, da sua expectativa de vida e ao que demais se mostrava provado nos autos, que o montante para este segmento da indemnização pedira-se fundamentadamente em recurso que fosse nunca inferior a 260.000,00€;

III. Não obstante a douta fundamentação do Acórdão da Relação e a ponderação com recurso à tabela utilizada no Acórdão da Relação de Coimbra de 4.4.1995 (referida a pág. 40 do Acórdão), afigura-se ao recorrente que deveria ser levado em linha de conta um fator adicional, aliás facto notório e previsível: é que se a esperança média de vida de um indivíduo do sexo masculino é atualmente de 82,3 anos (pág. 38 do douto Acórdão recorrido), todos os dados sociológicos e estatísticos conhecidos e públicos demonstram que de ano para ano essa esperança média vai sucessivamente sendo maior.

IV. Ou seja, nos previsíveis e expectáveis 40,6 anos que o recorrente atualmente expecta ainda viver, essa expectativa terá tendência a alargar-se pela evolução natural que se verifica.

V. As considerações doutamente feitas pela Relação para estabelecer o atual valor de 250.000,00€ de indemnização nesta sede, deveriam sempre ser melhor enquadradas nos critérios de equidade, que relevam para o estabelecimento do valor em causa. Pelo que, tudo ponderado, nunca o valor a atribuir, para compaginação da decisão com a norma do art. 566º, nº 3 do CC, deverá ser inferior aos pedidos 260.000,00€.

VI. Não se fixando tal montante mas sim um inferior a ele, ocorre violação da lei substantiva, por erro na aplicação da norma (a do art. 566º, nº3 do CC); devendo por isso ser, em recurso, fixado este montante indemnizatório parcial em 260.000,00€.

VII. A mesma argumentação é aplicável aos danos de natureza não patrimonial, ora fixados em montante de €125.000,00, estando englobada neste valor o dano biológico na sua vertente não patrimonial pelas demoras na substituição dos componentes da prótese por parte da Ré.

VIII. Muito especialmente quanto a esta parcela do valor relativo às demoras na substituição dos componentes da prótese por parte da Ré, os critérios de estrita equidade impunham que esse valor fosse acrescido.

IX. Reputa-se extremamente grave o dano que deste modo foi causado ao recorrente a nível moral - e bem assim as sequelas que dele resultaram e se prolongarão no tempo - ainda por cima, dano de todo evitável, e para o qual nenhuma justificação existe para que a R. tenha optado por o causar ao Recorrente.

X. Como bem assinala o Acórdão ora recorrido, essa conduta da R., sendo escusada e totalmente injustificada, causou ao recorrente um sofrimento acrescido e absolutamente desnecessário (1ª parágrafo de pág. 44 do Acórdão recorrido.)

XI. O Autor e ora recorrente peticionara por danos morais €180.000,00 mais €55.000,00, acrescidos de juros de mora, a título de danos morais sofridos em virtude da Ré, que assumira a responsabilidade pelos custos da prótese e componentes de que necessita, quando foi preciso a sua substituição, ter demorado desnecessariamente 7 meses a pagar tal valor e só o efetuando com instauração de uma providência cautelar, sabendo não ter o Autor meios para custear a mesma, sofrendo assim o A. desnecessários e adicionais novos transtornos e angústias.

XII. Tudo o que justificaria sempre e pelo menos uma indemnização de 135.000,00€,

XIII. A que acresceria o valor correspondente aos danos que foram peticionados no articulado superveniente (os referentes à demora) que se reputavam justos se fixados em 55.000,00€; mas que no anterior recurso o A. considerou que poderiam cifrar-se (estes últimos) num valor nunca inferior a 35.000,00€, com base na equidade. Como pedido no recurso ante a Relação.

XIV. Ao ter fixado em 125.000,00€, ao invés de em 170,000, 00€ - como pedido e como se nos afigura justo e justificado face à complexidade dos danos - o valor geral de danos morais, o douto acórdão viola lei substantiva, por erro na aplicação da norma dos art. 496º e 566º, nº3, do CC. Devendo por isso, em sede deste recurso, ser fixado este montante indemnizatório parcial em 170.000,00€, o que se pede.

XV. No mais, o douto Acórdão não merece qualquer outra censura.

Termina dizendo que deve ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que “declare que o valor global da indemnização a atribuir ao A. deve ser - quanto aos pontos em causa - respetivamente de 260.000,00€ a título de danos patrimoniais por danos futuros pela perda da capacidade de ganho, aí se incluindo a indemnização pelo dano biológico na sua vertente patrimonial); e de 170.000,00€ (sendo € 135.000,00 a título de compensação pelos danos não patrimoniais na sequência do acidente, estando englobada neste valor o dano biológico na sua vertente não patrimonial, e €35.000,00 relativos às demoras na substituição dos componentes da prótese por parte da Ré); tudo num total de 430.000,00€; a que acrescerá o demais já decidido no Acórdão recorrido que, nos demais pontos, deve manter-se, passando a indemnização global a ser de 570.000,00€ com juros contados no tempo e modo de contagem já decidido”.

                                                           +

São as seguintes as conclusões que a Ré extrai da sua alegação:

I. O presente recurso visa alterar a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância e pelo Tribunal da Relação de Évora no que respeita ao montante de indemnização atribuído ao Autor BB, a título de danos patrimoniais (perda da capacidade de ganho futuro/dano biológico na sua vertente patrimonial) e danos não patrimoniais.

II. O valor indemnizatório atribuído ao Autor a título de danos patrimoniais e não patrimoniais fixados pelas instâncias, salvo o devido respeito, mostra-se desajustado e desproporcionado à gravidade objetiva e subjetiva das lesões sofridas pelo Autor BB.

III. O critério geral para a atribuição da respetiva indemnização é o da equidade (artigos 4.°, al. a) e 566.° nº 3, do Código Civil) e o princípio da uniformidade (artigo 8.°, nº 3, do Código Civil), com apelo aos casos análogos da jurisprudência;

IV. É inquestionável a gravidade das sequelas das lesões corporais do Autor/Recorrido que foram dadas como provadas, sendo inquestionável o dever de indemnização que recai sobre a lesante/Recorrente e que compreende além dos danos patrimoniais futuros previsíveis/dano biológico na vertente patrimonial, os danos morais.

V. Porém, no caso em apreço as instâncias recorridas não se contiveram dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade, tendo-se afastado injustificadamente dos padrões jurisprudenciais seguidos para casos análogos.

VI. Impondo-se, por isso, a justiça do caso concreto com recurso a juízos de equidade com base na proporção, no equilíbrio e na adequação às circunstâncias do caso concreto, nos termos do disposto no nº 3 do art. 566º do CC.

VII. Assim, atendendo aos aludidos critérios para a atribuição de indemnizações e, tendo por base casos análogos para se obter uma uniformidade e maior igualdade nas indemnizações a atribuir, cumpre ter presente as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal de Justiça:

- 07.07.2009, proc. nº 1145/05.6TAMAL.C1, relator Fernando Fróis,

- 19.01.2012, proc. 817/07.5TBVVD.G1.S1- 7a Secção, relator Sérgio Poças,

- 02.05.2012, proc. nº 1011/2012. L1.S1- 6ª Secção, relator Fonseca Ramos,

- 26.01.2012, proc. nº 220/2001 - 7 S1, 2ª Secção, relator João Bernardo,

- 02.06.2016, proc.2603/10.6TVLSB.L1.S1, relator Tomé Gomes.

VIII. Comparando a gravidade das lesões sofridas pelos lesados nos aludidos acórdãos do STJ com as lesões sofridas pelo Autor/Recorrido, deveria a decisão recorrida, atentos os critérios da equidade e o princípio da uniformidade, ter atribuído uma indemnização nunca superior a 100.000,00€ a título de dano futuro pela perda de capacidade de ganho (dano biológico vertente patrimonial) e uma indemnização inferior a 75.000,00€ a título de dano não patrimonial (dano biológico vertente não patrimonial), não o tendo feito violou a sentença recorrida o critério da equidade e princípio da uniformidade na atribuição das indemnizações;

IX. A sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância ao considerar que que a incapacidade que foi atribuída (30 pontos) ao Autor não reflete o seu efetivo prejuízo, atribuiu, alegadamente por recurso à equidade, a indemnização a título de dano futuro pela perda da capacidade de ganho no montante de 200.000,00€, ou seja, montante muito aproximado caso se concluísse que a perda de rendimentos era total (257.725,00€), o que não se justifica;

X. Embora tenha ficado provado que a incapacidade permanente geral de 30 pontos atribuída ao Autor o impede de exercer a sua atividade profissional habitual, ficou, igualmente, provado que o Autor poderá trabalhar noutras profissões da área da sua preparação técnico profissional;

XI. Deste modo, podendo o Autor exercer outra atividade, jamais poderá ser-lhe atribuída uma indemnização por perda de ganho muito próxima daquela que seria se se concluísse que a perda de rendimentos era total, ou seja, que o Autor jamais poderia voltar a trabalhar,

XII. Razão pela qual mais desproporcionado foi o “quantum” indemnizatório de 250.000,00€, atribuído ao mesmo título pelo Tribunal da Relação de Évora, tendo considerado para a base de cálculo da indemnização a atribuir por incapacidade as tabelas consagradas no direito de trabalho e os subsídios de férias e de Natal que não ficaram provados ou aceites pelas partes, e, ainda entendendo que tal caso configura situação de extrema gravidade, semelhante a incapacidade total para o trabalho quer para fixação do dano patrimonial biológico quer para os danos morais, o que não se mostra adequado nem razoável.

XIII. Valoraram as instâncias recorridas os danos sofridos pelo Autor de forma excessiva quando comparados com casos similares na nossa jurisprudência, atendendo à idade do lesado, lesões sofridas, sequelas, quantum doloris, dano estético, grau de incapacidade, incapacidade para o exercício da profissão habitual ou para todas as profissões, dependência de terceira pessoa e perda de autonomia.

XIV. Verificando-se, deste modo, que a sentença recorrida não atendeu a critérios de equidade e uniformidade na atribuição das indemnizações, pelo que deve ser revogada, substituindo-se por decisão que decida atribuir ao Recorrido indemnização a título de dano futuro pela perda de capacidade de ganho inferior ao montante de 100.000,00€ e indemnização a título de danos não patrimoniais inferior à quantia de 75.000,00€.

XV. Ao não interpretar e aplicar da forma sugerida a decisão recorrida violou os art.s 483.°, 494.°, 496.°, nº 3, 562.° e 566.° do Código Civil.

Termina dizendo que deve ser revogado o acórdão recorrido, a substituir por decisão “que determine a condenação da Recorrente quanto aos danos patrimoniais - perda de capacidade de ganho/dano biológico na vertente patrimonial- em montante inferior a 100.000,00€ (cem mil euros), e quanto aos danos não patrimoniais em montante inferior a 75.000,00€ (setenta mil euros)”.

                                                           +

O Autor contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso da Ré.

Mais suscitou a questão prévia da inadmissibilidade desse recurso.

                                                           +

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

                                                           +

Questão prévia da inadmissibilidade do recurso interposto pela Ré:

Contrariamente ao que diz o Autor na sua contra-alegação, a revista interposta pela Ré é admissível, visto que ocorre a situação do art. 671º, nº 1, 1ª parte, do CPCivil. Embora seja verdade que a Ré faz alusão no seu recurso à sentença da 1ª instância, de que diz discordar (o que nada tem de estranho, pois que se sabe que dela apelou, sem êxito) e repita parte da argumentação que aduziu contra a mesma sentença na apelação, tal não significa que não estejamos, de modo autónomo e efetivo, perante um recurso interposto contra o acórdão da Relação que foi proferido nos autos. De outro lado, e também contrariamente ao que diz o Autor, não está formada qualquer dupla conforme impeditiva do recurso da Ré para este Supremo Tribunal, uma vez que o acórdão recorrido não confirmou, nos aspetos que estão ainda em discussão, a sentença da 1ª instância. Ao invés, alterou-a, agravando a posição da Ré.

Improcede pois a questão prévia[1].

II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou fundamentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

                                                           +

É questão a conhecer:

- Quantificação do dano patrimonial e não patrimonial sofrido pelo Autor.

                                                           +

III - FUNDAMENTAÇÃO

Plano Factual

Estão provados os factos seguintes:

I) Da Acão principal (Proc. 275/13.5TBTVR):

1) A 10 de Julho de 2010, cerca das 10.30 horas, na Estrada Nacional ..., na freguesia de ..., concelho de ..., ao km 14,500, o pai da Autora AA, BB, circulava a conduzir o motociclo de matrícula -DJ, de serviço particular (doravante designado por veículo n.º 2).

2) A estrada, naquele local, tem 5,60 m de berma a berma, o tempo estava bom, com o piso seco, era de dia e a visibilidade era bastante boa.

3) O pai da Autora, nesse momento e no exercício dessa condução, transportava como passageira a ora Autora, sua filha AA.

4) A circulação do pai e da Autora fazia-se naquela Estrada Nacional ..., no sentido de … – ....

5) Fazia-se na parte direita da faixa de rodagem, portanto dentro da sua hemifaixa, atento o seu sentido de marcha e aproximava-se de uma curva acentuada.

6) Na mesma estrada mas no sentido contrário, isto é, no de .../..., circulava também o motociclo de serviço particular de matrícula -JL- (doravante designado como veículo n.º 1), o qual era conduzido por FF, sendo o respetivo veículo propriedade de GG.

7) Este motociclo, veículo n.º 1, estava segurado pela Ré DD por contrato de seguro a que se reporta a apólice ....

8) O condutor do veículo n.º 1 procedeu a uma ultrapassagem de um veículo automóvel que também seguia naquele sentido ... / ... exatamente sobre a curva, entrou na hemifaixa contrária, não conseguindo retomar a sua mão de trânsito e aparecendo em frente ao veículo n.º 2 que o pai da Autora conduzia, indo embater, inteiramente dentro da hemifaixa de rodagem deste, com a parte esquerda do motociclo que conduzia, na parte lateral esquerda do motociclo do pai da Autora, atingindo-o diretamente na perna esquerda deste e no pé esquerdo da passageira, ora Autora.

9) Em virtude do embate, as três pessoas nele envolvidas ficaram com ferimentos graves.

10) Também se registaram, com o embate e por virtude deste, danos avultados no veículo n.º 2.

11) A GNR de ... tomou conta da referida ocorrência, lavrando Participação de Acidente de Viação, incluindo nela croquis de acidente, a que atribuiu o n.º 67/2010.

12) Posteriormente, os condutores de ambos os veículos elaboraram Participação Amigável de Acidente Automóvel, nela fazendo constar a forma como cada um deles considerara o acidente, sendo que o condutor do veículo n.º 1 (FF) ali fez constar que “eu condutor do motociclo A de matrícula -JL- circulava sentido ... para .... Iniciei a ultrapassagem de um veículo existente no meu sentido, fui colidir com a lateral esquerda do meu motociclo na parte lateral esquerda do motociclo B de matrícula -DJ que circulava em sentido contrário ao meu, sentindo-me assim culpado do acidente” e que “iniciei a ultrapassagem e nem me apercebi que vinha outro veículo na outra faixa em sentido contrário” e o pai da Autora naquela declaração escreveu “eu condutor do veículo B matrícula -DJ circulava no meu motociclo sentido ... para ..., no qual fui surpreendido pelo motociclo A de matrícula -JL-, que vinha em sentido contrário e iniciou a ultrapassagem de outro veículo no seu sentido e veio colidir com a lateral esquerda do seu motociclo na parte lateral esquerda do meu motociclo, sendo o embate na minha perna esquerda e no pé do meu ocupante” e em tal declaração amigável, elaborada em 14 de Julho de 2010, fizeram os intervenientes constar um pequeno croquis em que graficamente reproduzem o que se passou, e em que é visível que o embate se deu na hemifaixa do Autor invadida pelo veículo n.º 1 durante a ultrapassagem.

13) A Ré igualmente prestou tratamento à Autora nos seus serviços clínicos.

14) A Ré foi reembolsando a Autora das despesas que esta foi fazendo com transportes de e para o Hospital, e/ou consulta e tratamentos, com a compra da medicamentação, com deslocações e com equipamento e material, foi pagando as despesas médicas que o tratamento da A. tem ocasionado e ainda as consultas a que esta se tem submetido.

15) A Autora tem no pé esquerdo um visível coto e cicatrizes evidentes.

16) A Autora AA nasceu em 20 de Outubro de 2000 e é filha de BB e de CC.

II) Do processo n.º 276/13.3TBTVR apenso:

17) A 10 de Julho de 2010, cerca das 10.30 horas, na Estrada Nacional ..., na freguesia de ..., concelho de ..., ao km 14,500, o Autor BB, circulava a conduzir o motociclo de matrícula -DJ, de serviço particular (doravante designado por veículo n.º 2).

18) A estrada, naquele local, tem 5,60 m de berma a berma, o tempo estava bom, com o piso seco, era de dia e a visibilidade era bastante boa.

19) O Autor, nesse momento e no exercício dessa condução, transportava como passageira a sua filha AA.

20) A circulação do Autor fazia-se naquela Estrada Nacional ..., no sentido de ... – ....

21) Fazia-se na parte direita da faixa de rodagem, portanto dentro da sua hemifaixa, atento o seu sentido de marcha e aproximava-se de uma curva acentuada.

22) Na mesma estrada mas no sentido contrário, isto é, no de .../..., circulava também o motociclo de serviço particular de matrícula -JL-, (doravante designado como veículo n.º 1), o qual era conduzido por FF, sendo o respetivo veículo propriedade de GG.

23) Este motociclo, veículo n.º 1, estava segurado pela Ré DD por contrato de seguro a que se reporta a apólice ....

24) O condutor do veículo n.º 1 procedeu a uma ultrapassagem de um veículo automóvel que também seguia naquele sentido .../... exatamente sobre a curva, entrou na hemifaixa contrária, não conseguindo retomar a sua mão de trânsito e aparecendo em frente ao veículo n.º 2 que o Autor conduzia indo embater inteiramente dentro da hemifaixa de rodagem deste, com a parte esquerda do motociclo que conduzia, na parte lateral esquerda do motociclo do Autor, atingindo-o diretamente na perna esquerda deste e no pé esquerdo da passageira.

25) Em virtude do embate, as três pessoas nele envolvidas ficaram com ferimentos graves.

26) Também se registaram, com o embate e por virtude deste, danos avultados no veículo n.º 2.

27) A GNR de ... tomou conta da referida ocorrência, lavrando Participação de Acidente de Viação, incluindo nela croquis de acidente, a que atribuiu o n.º 67/2010.

28) Posteriormente, os condutores de ambos os veículos elaboraram Participação Amigável de Acidente Automóvel, nela fazendo constar a forma como cada um deles considerara o acidente, sendo que o condutor do veículo n.º 1 (FF) ali fez constar que “eu condutor do motociclo A de matrícula -JL- circulava sentido ... para .... Iniciei a ultrapassagem de um veículo existente no meu sentido, fui colidir com a lateral esquerda do meu motociclo na parte lateral esquerda do motociclo B de matrícula -DJ que circulava em sentido contrário ao meu, sentindo-me assim culpado do acidente” e que “iniciei a ultrapassagem e nem me apercebi que vinha outro veículo na outra faixa em sentido contrário” e o Autor naquela declaração escreveu “eu condutor do veículo B matrícula -DJ circulava no meu motociclo sentido ... para ..., no qual fui surpreendido pelo motociclo A de matrícula -JL-, que vinha em sentido contrário e iniciou a ultrapassagem de outro veículo no seu sentido e veio colidir com a lateral esquerda do seu motociclo na parte lateral esquerda do meu motociclo, sendo o embate na minha perna esquerda e no pé do meu ocupante” e em tal declaração amigável, elaborada em 14 de Julho de 2010, fizeram os intervenientes constar um pequeno croquis em que graficamente reproduzem o que se passou e em que é visível que o embate se deu na hemifaixa do Autor invadida pelo veículo n.º 1 durante a ultrapassagem.

29) Em consequência do embate, o Autor sofreu a amputação do terço inferior da perna esquerda e esteve internado entre 10-07-2010 e 19-07-2010 na urgência e desde 25-07-2010 a 16-08-2010 no serviço de ortopedia do Hospital Distrital de ….

30) Em face da infeção do coto de amputação, foi necessária nova intervenção cirúrgica, de novo sob anestesia geral, para revisão do coto da amputação.

31) No dia 16-08-2010 foi dada alta clínica ao Autor, com a ferida cirúrgica cicatrizada, terminando a fase de internamento.

32) A Ré, tendo assumido que lhe cabia a responsabilidade pelo ressarcimento destes danos e de todos quantos mais decorressem do acidente, foi reembolsando o Autor das despesas que este foi fazendo com transportes de e para o Hospital, e/ou consulta e tratamentos, com a compra da medicamentação, com deslocações e com equipamento e material e pagou a reparação do seu motociclo danificado no acidente.

33) A Ré, tomando como referência um valor médio de salário mensal do Autor, adiantou-lhe € 750,00 por mês, no montante total de € 3.750,00.

34) A Ré foi pagando as despesas médicas que o tratamento do Autor tem ocasionado e ainda as consultas a que este se tem submetido.

35) A Ré tomou a seu cargo o pagamento da prótese que o Autor se vê obrigado a usar em substituição da parte do membro amputado e pagou o material acessório dessa prótese, que tem que ser necessariamente e regularmente utilizado e substituído.

36) A amputação é, neste caso, uma lesão que conduzirá necessariamente a uma redução da mobilidade, o que aliás já se está a verificar, pois a prótese não permite a mesma capacidade de deslocação e de movimento que a perna natural.

37) O Instituto de Segurança Social, IP, concedeu ao Autor BB, a título de subsídio de doença e provisoriamente, desde 10 de Julho de 2010 até 12 de Março de 2011, a quantia de € 657,87, tendo apresentado nos autos o requerimento a peticionar tal quantia em 03-02-2015.

Dos temas da prova

III) Da Acão principal:

38) O pai da Autora, nas circunstâncias referidas de 1) a 10) da acão principal, circulava à velocidade máxima de 45 km por hora, na sua mão do trânsito e, quando efetuava aquela curva, viu o veículo n.º 1 entrar pela sua hemifaixa de rodagem – sentido ... / ... – vindo da hemifaixa contrária.

39) Em consequência do embate, a Autora foi transportada pelo INEM para o Hospital Distrital de …, tendo dado entrada no bloco de urgências.

40) Em consequência do embate, a Autora apresentava traumatismo do pé esquerdo, com perda de substância do dorso do pé, fratura da falange proximal do quinto dedo do pé esquerdo e amputação traumática do quarto dedo do pé esquerdo, estando tais feridas conspurcadas por terra e óleo, tendo sido transferida para o Hospital de Santa Maria, em Lisboa.

41) No dia seguinte, 11-07-2010, foi submetida sob anestesia a desbridamento cirúrgico com redução e osteossíntese de fratura da primeira falange do quinto dedo e enxerto no pé esquerdo e imediatamente antes teve que iniciar antibioterapia com Cefazolina e analgesia, enquanto esperava pela terapêutica cirúrgica.

42) Após a cirurgia de 11-07-2010, a Autora manteve-se em internamento até 30-07-2010, apirética, sob antibioterapia com Cefuroxima e Gentamicina, fazendo pensos diariamente, passando depois a serem feitos em dias alternados e em consulta de cirurgia plástica.

43) A Autora, a partir de 27-08-2010, passou a ser acompanhada pela consulta externa de cirurgia plástica e a efetuar tratamento de reabilitação às amplitudes do tornozelo e pé a partir de 01-09-2010, o que se prolongou até Maio de 2011, com constantes e necessárias deslocações da menor, desde a sua residência em ..., …, ora a …, ora a …, para tratamentos e consultas.

44) Estas deslocações representaram sempre uma situação penosa e de grande desconforto para a Autora.

45) Em Maio de 2011, a Autora foi avaliada medicamente nos serviços de Medicina de Reabilitação do Centro de Neurodesenvolvimento do Hospital Distrital de …, serviços que produziram relatório médico do qual consta que, não obstante se ter verificado evolução favorável das amplitudes do tornozelo e do pé, em Maio de 2011, apresentava ortótese para preenchimento do espaço da amputação, ortótese que usava irregularmente dado apresentar disestesias no coto da amputação e que, apesar de ter autonomia deambulatória, mantinha padrão de defesa secundária à situação neuropática, pelo que deveria manter-se em tratamento de dessensibilização e manter o uso da ortótese, devendo este uso ser posteriormente revisto ao longo do tempo, verificando-se repercussão funcional da marcha, ainda que moderada, bem como a desvantagem estética direta dada a idade (10 anos) da menor que tinha e tem repercussão na organização da auto-imagem da Autora, situação então não resolvida, bem como apresentava aspeto de neuropatia do coto da amputação, presente e com dificuldades de regressão, situação que restringia e restringe a marcha descalça em areia ou relva e a utilização de calçado comum ao grupo etário da Autora.

46) A intervenção a que a Autora se sujeitou foi traumática e dolorosa, quer do ponto de vista físico, quer do ponto de vista emocional, a que acresciam as dores do pós-operatório e as dores que a Autora já sofria em virtude dos ferimentos causados pelo acidente e a conspurcação das feridas por óleo e terra.

47) Entre o momento da entrada no Hospital de … e o momento da intervenção em Lisboa, a Autora sofreu também grandes dores e grande ansiedade e expectativa.

48) A Autora era uma menina jovial, alegre, descontraída, com bom desenvolvimento para a sua idade, sem qualquer mazela ou queixa funcional, com muita auto-estima, muito gosto pela vida, sempre muito prazenteira e contente.

49) Tinha aproveitamento escolar, sendo muito estimada e querida pelos seus colegas e amigos, professores e pessoas que a conheciam.

50) A amputação que sofreu provocou uma redução da sua auto-estima, uma diminuição do gosto pelo próprio corpo e pela própria imagem, para lá de redução da mobilidade, com comprometimento funcional da marcha, ficou humilhada e vexada perante os outros, sentindo-se diminuída e perdendo confiança e parte da alegria de viver.

51) O coto da amputação não permite a mesma capacidade de deslocação e movimento que o pé natural, especialmente em marcha descalça na areia ou na relva, bem como a Autora sente-se constrangida em usar sandálias ou havaianas, mesmo em períodos de grande calor.

52) A Autora gostava muito de praticar natação.

53) Tem hoje a Autora consciência de que se tornou incapaz de praticar desporto da forma integral como podia praticar antes por causa do acidente, o que muito a magoa emocionalmente.

54) A Autora tornou-se muito relutante em frequentar piscinas e praias, sofrendo com isso, porque se sente afastada do convívio dos seus amigos e das pessoas da sua idade nessas alturas.

55) A Autora sente diariamente o comprometimento funcional da marcha, seja a caminhar, seja a subir umas escadas, seja a pegar um objeto ou a dobrar-se para o apanhar no chão, seja a tentar acompanhar a passada de outros.

56) A Autora sente ainda dores na ausência do dedo amputado, como se o dedo existisse.

57) A Autora sente ainda dores provocadas pelo desconforto na marcha, pela dificuldade na caminhada, pelas mudanças climatéricas, pelas posturas necessárias nos atos do dia-a-dia como sentar-se, levantar-se, deitar-se.

58) A Autora sofreu ainda medo de morrer, no momento em que sofreu o embate e até ter sido anestesiada no hospital.

59) Situação que a Autora recorda muitas vezes, mesmo que a tente esquecer, o que sempre a aflige de modo grave.

60) A Autora ter no pé esquerdo visível coto e cicatrizes evidentes causa-lhe vergonha, provocando-lhe embaraço, tristeza e situações de desconforto e grande incomodidade.

61) Em consequência do embate, a Autora ficou perturbada emocionalmente quanto à locomoção em veículos de duas rodas e ganhou pavor às motos.

62) Em consequência do embate, a Autora está perturbada no seu sono, sofrendo ocasionalmente de pesadelos.

63) Em consequência do embate, a Autora fica deprimida e abatida.

IV) Do processo n.º 276/13.3 TBTVR apenso:

64) O Autor, nas circunstâncias referidas de 17) a 26) da Acão apensa, circulava a velocidade máxima de 45 km por hora, na sua mão do trânsito e, quando efetuava aquela curva, viu o veículo n.º 1 entrar pela sua hemifaixa de rodagem – sentido ... / ... – vindo da hemifaixa contrária.

65) Em consequência do embate, o Autor foi transportado pelo INEM para o Hospital Distrital de Faro, tendo dado entrada no bloco de urgências onde foi sedado e de imediato submetido a uma transfusão de sangue.

66) Em consequência do embate, em 10-07-2010, a amputação da perna esquerda do joelho para baixo do Autor foi efetuada porque era de todo impossível salvar a mesma dado o seu estado de esfacelamento, tendo sido necessário que a ferida fosse pensada e suturada com agrafos totais a 22-07-2010.

67) Tal intervenção foi profundamente traumática para o Autor, quer do ponto de vista físico, quer do ponto de vista emocional, acrescendo as dores da intervenção e do pós-operatório, às dores que o Autor já sofria em virtude dos ferimentos causados pelo acidente.

68) Após essa amputação, o coto de amputação infetou, pelo que lhe foi diagnosticada tal infeção a 25-07-2010 no Hospital Distrital de ….

69) A nova intervenção de 25-07-2010 foi dolorosa, fragilizando ainda mais o Autor.

70) Após a alta clínica de 16-08-2010, o Autor tinha, segundo indicação médica, necessidade da vigilância médica e de tratamento, sendo necessário, de três em três dias, vigiar a ferida cirúrgica, sendo necessário iniciar consultas de fisioterapia, a partir de 18-08-2010, bem como consultas da dor, também a partir do mesmo dia e ainda consultas de ortopedia, com regularidade a partir de 15-09-2010.

71) O Autor tinha ainda a indicação para iniciar treino de marcha com canadianas e devia frequentar a consulta externa de amputados de fisiatria, na semana seguinte à alta clínica, devendo ficar sob a vigilância e o cuidado constante junto do Centro de Saúde de ..., para onde se emitiu documento de carta de transferência.

72) Após a alta hospitalar e durante tempo não concretamente apurado mas no máximo até 16-12-2010, o Autor tinha que ingerir medicamentos de diversos espécies e natureza, para debelar eventuais infeções, suportar as dores e ajudar nos tratamentos.

73) O Autor foi até 2004 um desportista de nome reconhecido e de craveira internacional, praticante de desportos de combate, treinador e formador de jovens nessa vertente desportiva, obteve diversos títulos nas modalidades que praticava, sendo reconhecido e respeitado como um praticante de alto nível, sendo assim referido e noticiado em diversos órgãos noticiosos e reconhecido e conceituado entre os seus pares, o público e a entidades gestoras do fenómeno desportivo.

74) O Autor tem 1,87 m de altura e tinha, à data do embate, o peso de pelo menos 104 kg.

75) Em consequência da amputação, o Autor sofreu um aumento da massa corporal, pesando atualmente 143,00 kg.

76) O que porá em risco a outra perna e as articulações desta.

77) O Autor queixa-se já da sobrecarga que sente nas articulações dessa perna.

78) Em consequência da amputação, o Autor sofre repercussões a nível da coluna e da postura natural pois que a transferência natural do peso para a perna saudável obriga a um aumento de carga no lado direito do corpo, com a necessária deformação da postura da coluna no mesmo sentido.

79) É previsível que essa deformação por excesso de carga se vá acentuando, implicando previsivelmente para futuro tratamentos de correção médica, recurso a fisioterapia, ginástica corretiva, medicação psiquiátrica e observação regular por ortopedista e psiquiatra, o que também se repercutirá nas próteses, quer na atual, quer nas futuras, seja ao nível da longevidade delas, seja a nível do seu bom desempenho, seja ainda ao nível da duração e conservação dos seus acessórios e partes integrantes.

80) Em consequência das lesões, o Autor apresenta escoliose a nível da cintura pélvica com dores nos músculos paravertebrais, dor no joelho dado o desgaste articular, excesso de peso por falta da atividade física desportiva devido à limitação, com desmotivação e desinteresse que afetam a componente psicológica, apresentando instabilidade generalizada nos afetos, comportamentos e identidade dado o acidente e a afetação a sua imagem corporal e identidade, gerando falta de controlo, inflexão interna da agressividade, ideação suicida e sintomatologia depressiva, sendo-lhe recomendado consulta de psiquiatria e ainda acompanhamento psicoterapêutico regular para maturação psíquica entre o tempo antes do acidente e o posterior a este, sofrendo de stress pós traumático de forma crónica, necessitando de medicação psiquiátrica para o resto da vida.

81) O Autor, à data do acidente, tinha como atividade principal a de porteiro de bar, fazendo biscates como vendedor.

82) O Autor participou em representação de Portugal em combates e torneios em …, em …, … e em diversos outros locais e países, durante várias épocas desportivas e durante anos anteriores a 2004.

83) O Autor era igualmente treinador e formador de atletas nos desportos de combate, tendo tido alguns campeões de renome internacional entre os seus formandos até 2004, exercendo tal atividade à data do acidente a nível amador, apenas recebendo as mensalidades dos formandos como contrapartida monetária e em montantes não concretamente apurados.

84) Em consequência do embate, o Autor perdeu motivação de treino, ficou humilhado e vexado perante os outros, sentindo-se diminuído.

85) O Autor praticou, ao longo da sua vida, …, ..., …, …, …, …, … e ….

86) O Autor frequentou o curso de …, de … em …, de árbitro …, tendo os cursos de …, de ….

87) Tem o Autor consciência de que se tornou incapaz de praticar aqueles desportos e aquelas atividades por causa do acidente, o que muito o magoa emocionalmente.

88) A sua auto-estima diminuiu consideravelmente, o que também acentua gravemente o seu sentimento de marginalização e de perda, o que muito o entristece e deprime.

89) Levando-o a isolar-se dos seus colegas e amigos e companheiros de prática desportiva com que antes se dava pois que, perante eles, sente-se envergonhado da sua atual condição física, sentindo-se diminuído e complexado negativamente.

90) A prótese não lhe permite a mobilidade requerida para um desportista do seu gabarito nem para a prática, ainda que de modo amador, daquelas atividades que tanto prazer lhe davam.

91) O aumento de peso, aliado à menor mobilidade corporal e à necessária diminuição da atividade desportiva, levou a uma perda de agilidade e de flexibilidade, que muito apoquenta e preocupa o Autor.

92) Sente diariamente essa perda de agilidade e de flexibilidade, seja a caminhar, seja a subir umas escadas, seja a pegar um objeto ou a dobrar-se para o apanhar no chão, seja a sentar-se ou a levantar-se, seja a tentar acompanhar a passada de outros e também nas pequenas coisas diárias, a sair com amigos ou a deslocar-se com estes a qualquer lugar, se sente sempre um “peso a mais”, o que reforça a sua tendência para se isolar e afastar o que, por sua vez, mais o entristece e deprime vivendo assim num círculo vicioso depressivo provocado pelo acidente.

93) O Autor teve que abdicar dos seus ideais de formação desportiva de jovens e igualmente teve que pôr de lado todos os planos de ensino que pretendia levar por diante, o que lhe provoca sofrimento.

94) O Autor sofreu ainda dores provocadas quer nos períodos de pós-operatório, quer na situação de infeção do coto, quer na aplicação de agrafos totais na zona amputada, nos tratamentos e adaptação à prótese, quer ainda por, na ausência do membro amputado, continuar a sentir como se o membro existisse, bem como pelo desconforto na marcha, pela dificuldade na caminhada, pelas mudanças climatéricas, pelas posturas necessárias nos atos do dia-a-dia (sentar-se, levantar-se, deitar-se).

95) O A. sofreu ainda um grande, angustiante e perturbador medo de morrer, no momento em que sofreu o embate e até ter sido anestesiado no hospital.

96) Situação muito agravada por ao mesmo tempo ter consciência de que a sua filha menor e acompanhante também ficara ferida no mesmo acidente.

97) Situação pessoal que recorda muitas vezes, mesmo que a tente esquecer, o que sempre o aflige do modo grave.

98) Em consequência da amputação, o Autor tem na perna esquerda um visível coto e cicatrizes evidentes.

99) O Autor sempre cultivou o corpo, vem como a sua imagem pessoal e a situação em que se encontra muito o envergonha, provocando-lhe embaraço, tristeza e situações de desconforto e grande incomodidade.

100) O Autor sente-se muito constrangido em usar calções, mesmo em períodos de grande calor e deixou de frequentar as praias, por se sentir limitado e diminuído e alvo das atenções dos demais e por se sentir mirado de modo diferente, o que o constrange.

101) Em consequência do embate, o Autor ficou perturbado emocionalmente quanto à locomoção em veículos de duas rodas.

102) Deixou por isso de andar de moto, como o fazia antes amiudadamente, pois que dessa atividade muito gostava, porque lhe aliviava o espírito, e deixou, pois ganhou medo.

103) Em consequência do embate, o Autor está permanentemente perturbado no seu sono, sofrendo com muita frequência de pesadelos e tendo dificuldade em adormecer.

104) O Autor relembra muitas vezes, mesmo enquanto acordado, o momento do embate e os momentos seguintes em que se viu de perna esmagada e coberto de sangue e receou a morte.

105) Em consequência do embate, o Autor fica deprimido, abatido e sem ânimo.

106) E nesses dias mais dificuldade tem em conciliar o sono, ficando sem repousar o que se lhe reflete negativamente no seu estado geral nos dias seguintes.

107) Uma prótese do tipo utilizado pelo Autor tem o preço atual para aquisição por consumidor final de, pelo menos, € 3.125,00, mais IVA à taxa de 6%, perfazendo um total de € 3.312,50 necessitando de ser substituída com uma frequência de 2 a 4 anos e o pé protésico tem um custo atual de pelo menos € 3.200,00 mais IVA à taxa de 6%, perfazendo um total de € 3.392,00, necessitando e ser substituído, pelo menos, de 3 em 3 anos.

108) Existirão ainda regulares necessidades de acessórios e peças de maior desgaste na prótese, como encaixes, com um custo atual para aquisição por consumidor final de pelo menos € 1.300,00, necessitando de ser substituídos anualmente e interface com um custo atual de pelo menos € 800,00 e que necessita de ser substituído de 6 em 6 meses.

109) Por cada substituição de prótese e/ou encaixe justificar-se-á a observação e acompanhamento médico do Autor, designadamente com fisioterapia e consultas de ortopedia que importarão montante não concretamente apurado.

110) Em consequência do embate, o Autor BB apresenta:

I) Dano permanente no membro inferior esquerdo (amputação pelo terço proximal com coto bem almofadado e cicatriz transversal de 22 cm ligeiramente dolorosa na base posterior, com ortótese razoavelmente adaptada), cuja data da consolidação ocorreu em 16-12-2010;

II) Défice Funcional Temporário Total de 129 dias;

III) Défice Funcional Temporário Parcial de 29 dias;

IV) Um Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total de 158 dias;

V) Um Quantum Doloris no grau 6/7;

VI) Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica de 30 pontos em 100, sendo de admitir a existência de Dano Futuro;

VII) Dano Estético Permanente no grau 6/7;

VIII) Repercussão Permanente na Atividade Profissional, sequelas impeditivas do exercício da atividade profissional habitual sendo, no entanto, compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico profissional;

IX) Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer no grau 5/7; e,

X) Necessita de fisioterapia regular e de revisão de ortóteses periódica (artigos 181º e 182º da petição inicial).

111) Desde fim de Setembro de 2013, que o interface de silicone e o encaixe da prótese estão desgastados e com necessidade da substituição.

112) A falta dessa prótese e de qualquer dos seus acessórios em estado funcional, agrava desde logo a lesão do coto da amputação, contribui para a degradação do estado físico do sinistrado, com a diminuição da sua qualidade de vida, aumenta-lhe a carga corporal sobre a outra perna, com reflexos negativos no equilíbrio e na simetria do tronco e da coluna e acaba por impedir de todo a locomoção e a marcha.

113) Em 8 de Outubro de 2013, estando já com a marcha muito afetada e dolorosa na zona do coto, por falta daqueles componentes, o Autor solicitou consulta médica no Centro Hospital … – Consulta de Amputados – Fisiatria.

114) Nesse mesmo dia, o médico Dr. HH prescreveu, como necessários para a prótese, os seguintes componentes: um interface em silicone sem trancador, modelo icerosse transfemoral seal in com um anel; e um encaixe transfemoral tipo modelo ISNY com porção externa em carbono e porção interna em material termo-moldável e com válvula de escape de ar.

115) Com a marcha comprometida por falta desses acessórios, o Autor solicitou à Ré que ordenasse a substituição destes, assumindo os custos, uma vez que tal era de grande urgência e o Autor não o pode fazer por si.

116) A resposta da Ré foi sempre inconclusiva, não restando ao Autor alternativa de que intentar, em Janeiro de 2014, procedimento cautelar, para ver reposto o seu direito, sem que até tal data tivesse havido qualquer resposta positiva por parte da Ré.

117) O Autor, durante os meses de Novembro de 2013 a Maio de 2014, só conseguiu deslocar-se (e tão só quando se confrontou com situações de urgência) com o auxílio de terceiras pessoas, uma vez que a marcha, por si, lhe causava muitas dores e ferimentos no membro amputado.

118) Nesse período, o Autor esteve confinado ao quarto da sua casa, deslocando-se ali internamente com muita dificuldade e dor, estando impedido de sair à rua por esse motivo, a não ser se apoiado por terceiros e a falta de movimento agravou as suas já difíceis condições físicas, fazendo-o aumentar de peso.

119) A falta de movimentação e o sedentarismo forçado deixaram o Autor muito triste e acabrunhado, fazendo-o cair num estado depressivo mais acentuado do que aquele que a sua condição física já provoca.

120) O Autor, por falta de movimentação, isolou-se, deixou de conviver com os amigos e familiares como até ali o procurava ir fazendo, sempre dentro das limitações que a sua condição de amputado lhe impõe.

121) A sua falta de mobilidade que já existia e que assim se agravou e consequentemente o agravamento da sua dependência de terceiros para as suas deslocações mais básicas, durante estes 7 meses, que envergonharam ainda mais o Autor, que se sentia cada vez mais diminuído em função da sua situação física, o que agravava consequentemente o seu estado psicológico.

V) Nos termos do art. 5.º n.º 2 al. b) do Código de Processo Civil:

122) Em consequência do embate, a Autora AA apresenta:

a) Um dano permanente no membro inferior esquerdo (cicatriz linear da face anterior do terço distal da perna com 12 cm e outra circular da face anterior do joelho com 1,5 cm de diâmetro; cicatriz operatória da face anterior do tornozelo com 4 cm não retráctil, área vestigial cicatricial de bordo interno do pé com 6x4cm (área de colheita do enxerto) e área cicatricial retráctil do dorso do ante pé a nível do 4º e 5º espaço inter-metatársico com 4*3cm, bem como a amputação do 4.º raio – sendo uma área com hipersensibilidade táctil do pé esquerdo e ainda clinodactilia do 5º dedo esquerdo com rigidez articular), cuja data da consolidação ocorreu em 10-10-2010;

b) Défice Funcional Temporário Total de 52 dias;

c) Défice Funcional Temporário Parcial de 40 dias;

d) Quantum Doloris no grau 5/7;

e) Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica de 5 pontos em 100;

f) Dano Estético Permanente no grau 4/7;

g) Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer no grau 3/7; e,

h) Necessita de ajudas técnicas permanentes (ortótese).

VI) Nos termos do art. 607.º n.º 4 do Código de Processo Civil:

123) O Autor nasceu a 13 de Abril de 1969.

124) O Autor intentou em 29 de Janeiro de 2014 procedimento cautelar não especificado contra a Ré, peticionando o pagamento integral dos custos de substituição dos acessórios da prótese prescritos por médico em 8 de Outubro de 2013 (interface e encaixe), a qual foi decidida favoravelmente por decisão de 15 de Maio de 2014, tendo sido fixado à causa o valor de €1.350,00 e após oposição na qual foi impugnada a necessidade da substituição dos acessórios em causa, bem como o periculum in mora e ainda o valor de € 5.000,00.

125) O Autor intentou em 27 de Junho de 2014 procedimento cautelar não especificado contra a Ré, peticionando o pagamento integral dos custos de substituição dos acessórios da prótese prescritos por médico em Outubro de 2013 (interface e encaixe), independentemente do valor ser superior ou inferior ao valor da providência cautelar referida em 124) a qual, após oposição, terminou por transação homologada por sentença de 20 de Novembro de 2014, no início da audiência final, tendo-se a Ré comprometido a pagar a diferença de € 630,00 relativamente ao valor dos acessórios referidos no apenso B.

126) O Autor intentou em 20 de Fevereiro de 2015 procedimento cautelar não especificado contra a Ré, pedindo que o Tribunal determine que a Ré assuma o pagamento integral do pé protésico que lhe foi prescrito, com fundamento no facto de já ter sido decretada uma providência cautelar que determinou que a requerida suportasse os custos de substituição dos acessórios da prótese (interface e encaixe) conforme prescrição médica de Outubro de 2013 atenta a circunstância do requerente ter sido vítima de acidente de viação cuja culpa foi do condutor de um veículo seguro na requerida, necessitando atualmente da substituição urgente do pé protésico que lhe foi prescrito, tendo, após oposição, o pedido sido julgado procedente e foi determinado que a Ré assumisse o pagamento integral do pé protésico que lhe foi prescrito em 16 de Janeiro de 2015 até ao montante máximo de € 5.000,00, por decisão de 21-04-2015, o qual foi pago em 19-05-2015.

Plano Jurídico-conclusivo

Quanto à matéria das conclusões I (alínea a)), II, III, IV, V) e VI do recurso do Autor, e quanto à matéria das conclusões I (em parte), II (em parte), III (em parte), V (em parte), VI (em parte), VII (em parte), VIII (em parte), IX, X, XI, XII, XIII (em parte) e XIV (em parte) do recurso da Ré:

Nestas conclusões Autor e Ré contestam o quantum indemnizatório fixado pelo acórdão recorrido a título do prejuízo advindo para o Autor em termos da sua capacidade aquisitiva ou de ganho.

Está provado que em consequência do acidente o Autor veio a sofrer amputação da perna esquerda do joelho para baixo (pontos 66 e 110, alínea I da factualidade provada). Assim como está provado que, em decorrência dessa amputação, emergem para o Autor várias limitações funcionais (nomeadamente as descritas nos pontos 75, 76, 77, 78, 79, 80 e 92).

Estamos aqui perante um dano com projeção para o futuro e, como assim, perante um dano patrimonial (vertente patrimonial do chamado dano biológico) que deve ser reparado (art. 564º nº 2 do CCivil).

Como calcular o quantum indemnizatório desse dano?

Dentro do que tem sido uma constante na jurisprudência, interessa para o efeito alcançar uma indemnização que represente um capital que se extinga ao fim do tempo em que o lesado pudesse angariar rendimento e seja suscetível de garantir durante esse tempo as prestações periódicas correspondentes à sua perda aquisitiva. Entretanto, importa refinar um pouco esta conclusão, de modo a não reduzir a (in)capacidade aquisitiva a uma simples (in)capacidade para aquisição de réditos laborais ou profissionais (lato sensu). A primeira é mais ampla, abrangendo a atividade geral do lesado (que fica comprometida na sequência do atingimento na sua integridade psicossomática), prolongando-se naturalmente para além da vida ativa laboral ou profissional. E assim, o que deve ser objeto de reparação é precisamente a supressão (total ou parcial) da normal capacidade aquisitiva, e não apenas a supressão (total ou parcial) da capacidade de obtenção de rendimentos de índole laboral ou profissional. Como se aponta no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Outubro de 2012 (processo nº 632/2001.G1.S1, relator Lopes do Rego, disponível em www.dgsi.pt), “constitui entendimento jurisprudencial reiterado que a indemnização a arbitrar por tais danos patrimoniais futuros deve corresponder a um capital produtor do rendimento de que a vítima ficou privada e que se extinguirá no termo do período provável da sua vida, determinado com base na esperança média de vida (e não apenas em função da duração da vida profissional activa do lesado, até este atingir a idade normal da reforma, aos 65 anos): (…) as necessidades básicas do lesado não cessam obviamente no dia em que deixar de trabalhar por virtude da reforma, sendo manifesto que será nesse período temporal da sua vida que as suas limitações e situações de dependência, ligadas às sequelas permanentes das lesões sofridas, com toda a probabilidade mais se acentuarão; além de que, como é evidente, as limitações às capacidades laborais do lesado não deixarão de ter reflexos negativos na respectiva carreira contributiva para a segurança social, repercutindo-se no valor da pensão de reforma a que venha a ter direito.”

Relevante para a aferição do prejuízo em questão é sempre, e para além do grau do défice psicossomático que atinge o lesado, a idade deste e o seu rendimento.

No caso vertente, a idade que nos deve servir de referência é a de 41 anos, a idade que o Autor tinha (nasceu a … de … de 19…) aquando da consolidação médico-legal das lesões (Dezembro de 2010). A tal data era expectável que o Autor pudesse angariar pelo seu próprio esforço o inerente rendimento profissional por mais uns 27 anos (altura em que se reformaria), e que, para além desse tempo, pudesse angariar também pelos seus próprios meios outro tipo de vantagens patrimoniais por mais algum tempo. De outro lado, sabe-se que o Autor auferia proventos mensais estimados em €750,00.

Ora, aqui chegados, usando a metodologia expedita preconizada pelo Exmo. Conselheiro Dr. Sousa Dinis (Col Jur-Ac do STJ, 2001, tomo I, pp. 5 e seguintes), e apelando a uma taxa de juro realista média de 1% e ao abatimento, à partida, de ¼ do valor encontrado (a fim de neutralizar o efeito de enriquecimento indevido que resultaria da circunstância de se receber no imediato aquilo que só se iria alcançar ao longo de muitíssimos anos), atinge-se, visto o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 30 pontos, o valor de €202.500,00.

Este é um valor meramente indicativo, é uma base de trabalho.

A partir daqui há que fazer intervir a equidade, levando-se em linha de conta todas as circunstâncias que possam ter rebate no caso.

Desde logo, a idade ainda relativamente jovem do Autor e a esperança média de vida (que, para os homens, andará pelos 77 anos em Portugal). Circunstâncias estas que deverão levar ao aumento dessa quantia.

Depois, importa considerar uma outra circunstância, e esta está adequadamente exposta no acórdão recorrido, e cuja bondade é irrecusável: a da condição de deficiente do Autor (que viu a perna amputada pelo seu terço inferior), e das consequências que, em termos de empregabilidade, lhe estão associadas. E passamos a citar o acórdão, pois que melhor não podíamos dizer:

«[É] preciso ter em atenção que as sequelas são impeditivas do exercício da actividade profissional habitual. Ora, o lesado que se vê impedido de exercer a sua profissão habitual, está em posição de desvantagem em relação a outro que, mesmo afectado da mesma incapacidade parcial, não ficou impedido de exercer a sua profissão habitual. (…) [O] dano do A. BB é substancialmente agravado pela incapacidade de exercer a sua profissão de porteiro de bar, ou de formador de atletas de desporto de combate.

Note-se que a taxa de desemprego do cidadão deficiente é especialmente elevada, porquanto os empregadores partem do pressuposto da sua inadaptação ao desempenho profissional. O Centro Regional de Informação das Nações Unidas – UNRIC – informa que “cerca de 386 milhões de pessoas em idade de trabalhar são deficientes, segundo a Organização Mundial do Trabalho (OIT). No seu caso, o desemprego atinge os 80%, em alguns países. Os empregadores partem, com frequência, do princípio de que as pessoas com deficiência não são capazes de trabalhar[2]. ” A Comissão Europeia, ao definir a Estratégia Europeia para a Deficiência 2010-2020, também assinalou que “a taxa de pobreza das pessoas com deficiência é 70% superior à média, em parte devido a limitações no acesso ao emprego[3]. ”

Em Portugal noticia-se que a taxa de desemprego entre os portadores de deficiência é cerca de duas a três vezes superior à dos restantes cidadãos[4]. E em notícia de 03.12.2016, publicada no jornal Público, informa-se que a Secretária de Estado da Inclusão, citando estatísticas do Eurostat, menciona uma taxa de desemprego de 16% entre a população activa portadora de deficiência, podendo “os valores reais ser muito superiores se englobassem as pessoas com dificuldades mais severas, que nem sequer estão no âmbito do mercado de trabalho. Já quanto ao emprego, os números apontam que 44% estão a trabalhar, quando a taxa relativa às pessoas sem qualquer tipo de deficiência ronda os 70%”[5]

Na realidade, o défice funcional que vem assinalado ao Autor (30%) não diz tudo, só por si, em termos de prejuízo real, antes tem que ser compaginado com a repercussão da deficiência no mundo real em termos de acesso a fontes de rendimento (perda de oportunidades). E isto tem que ser levado em linha de conta para efeitos indemnizatórios. Como ainda se observa no supra citado acórdão deste Supremo Tribunal «… a compensação do dano biológico tem como base e fundamento, quer a relevante e substancial restrição às possibilidades de exercício de uma profissão e de futura mudança, desenvolvimento ou conversão de emprego pelo lesado, implicando flagrante perda de oportunidades, geradoras de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais, frustrados irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente o vai afectar; quer a acrescida penosidade e esforço no exercício da sua actividade diária e corrente, de modo a compensar e ultrapassar as graves deficiências funcionais que constituem sequela irreversível das lesões sofridas. Na verdade, a perda relevante de capacidades funcionais – mesmo que não imediata e totalmente reflectida no valor dos rendimentos pecuniários auferidos pelo lesado – constitui uma verdadeira «capitis deminutio» num mercado laboral exigente, em permanente mutação e turbulência, condicionando-lhe, de forma relevante e substancial, as possibilidades de exercício profissional e de escolha e evolução na profissão, eliminando ou restringindo seriamente a carreira profissional expectável – e, nessa medida, o leque de oportunidades profissionais à sua disposição -, erigindo-se, deste modo, em fonte actual de possíveis e futuramente acrescidos lucros cessantes, a compensar, desde logo, como verdadeiros danos patrimoniais». (…) Nesta perspectiva, deverá aditar-se ao lucro cessante, decorrente da previsível perda de remunerações, calculada estritamente em função do grau de incapacidade permanente fixado, uma quantia que constitua junta compensação do referido dano biológico, consubstanciado na privação de futuras oportunidades profissionais, precludidas irremediavelmente pela capitis deminutio de que passou a padecer (o lesado), bem como pelo esforço acrescido que o já relevante grau de incapacidade fixado irá envolver para o exercício de quaisquer tarefas da vida profissional ou pessoal (…)». E no acórdão também deste Supremo Tribunal de 4 de Junho de 2015 (processo nº 1166/10.7TBVCD.P1.S1, relatora Maria dos Prazeres Beleza, disponível em www.dgsi.pt) aduz-se que «(…) já no acórdão deste Supremo Tribunal de 31 de Março de 2012 (www.dgsi.pt, 1145/07.1TVLSB.L1.S), na linha dos acórdãos de 20 de Janeiro de 2010 (www.dgsi.pt, proc. nº 203/99.9TBVRL.P1.S1) ou de 20 de Maio de 2010 (www.dgsi.pt, proc. nº 103/2002.L1.S1) [se disse que] “É sabido que a limitação funcional, ou dano biológico, em que se traduz esta incapacidade é apta a provocar no lesado danos de natureza patrimonial e de natureza não patrimonial. No que aos primeiros respeita, o Supremo Tribunal de Justiça já por diversas vezes frisou que «os danos futuros decorrentes de uma lesão física “não [se] reduzem à redução da sua capacidade de trabalho, já que, antes do mais, se traduzem numa lesão do direito fundamental do lesado à saúde e à integridade física; (…) por isso mesmo, não pode ser arbitrada uma indemnização que apenas tenha em conta aquela redução (…)”».

Acresce dizer que vem provado (ponto 110, alínea VIII) que as sequelas do Autor são impeditivas do exercício da sua atividade profissional habitual. E em termos de atividade profissional habitual o que conhecemos, conforme consta dos pontos 81 e 83, é que o Autor era porteiro de bar, fazia biscates como vendedor e era, a nível amador, treinador e formador de atletas em desportos de combate. Um tal impedimento resolve-se, na prática, numa incapacidade quase total, se não mesmo total. É certo que também vem dado como provado que as sequelas são “compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico profissional”, mas isto não passa, pela sua vacuidade, de uma abstração. De que profissões “da área da preparação técnico profissional” do Autor se está afinal a falar? Existem alternativas? Se o Autor exercia a atividade de porteiro de bar e fazia biscates como vendedor e para isto ficou impedido em termos de aptidão física e psíquica, convir-se-á que dificilmente se concebe uma alternativa. E muito menos se concebe no que respeita à atividade de treinador e formador de atletas de desportos de combate (como, aliás, decorre da factualidade provada).

Assim sendo, como é, julgamos que é justificada uma substancial elevação do quantum indemnizatório acima achado (€202.500,00). O valor de €250.000,00 (note-se, inclusivamente, que se trata de um valor já atualizado) a que chegou o acórdão recorrido mostra-se perfeitamente ajustado à situação (estamos a falar em números redondos; é estulto andar-se nesta matéria à busca de valores exatos, “matemáticos” ou “científicos”).

O que significa que improcedem as conclusões em destaque. Nem tem razão o Autor ao pugnar por uma indemnização superior (€260.000,00), nem tem razão a Ré ao pugnar por uma indemnização inferior (uma que não exceda os €100.000,00).

Quanto à matéria das conclusões I (alínea b)), VII, VIII, IX, X, XI, XII, XIII e XIV do recurso do Autor, e quanto à matéria das conclusões I (em parte), II (em parte), III (em parte), V (em parte), VI (em parte), VII (em parte), VIII (em parte) e XIV (em parte) do recurso da Ré:

Nestas conclusões a questão que é colocada é a do quantum do dano não patrimonial sofrido pelo Autor.

Regem para o caso os art.s 496º, nº 3 e 494º do CCivil.

A indemnização do dano não patrimonial não visa nem pode visar pagar o que seja, senão (e para além de punir, pelos meios próprios do direito civil, o causador do dano) conferir ao lesado uma compensação que lhe permita adquirir meios que, de alguma forma, tornem a sua vida um pouco mais gratificante. Trata-se de conferir ao lesado a possibilidade de aquisição de meios materiais ou imateriais que, razoavelmente, lhe possam proporcionar uma qualquer autogratificação ou satisfação capaz de iludir o dano sofrido. Interessa acrescentar ser pacífico na jurisprudência que a reparação do dano não patrimonial deve ser feita de forma condigna, sendo de rejeitar as indemnizações miserabilistas ou meramente simbólicas.

De outro lado, a apreciação da gravidade do dano, embora tenha de assentar no circunstancialismo concreto envolvente, deve operar sob um critério objetivo, num quadro de exclusão, tanto quanto possível, da subjetividade inerente a alguma particular sensibilidade humana. Nesta medida, a fixação da indemnização deve orientar-se em harmonia com os padrões de cálculo adotados pela jurisprudência mais recente, de modo a salvaguardar as exigências da igualdade no tratamento do caso análogo, uniformizando critérios. São de ponderar circunstâncias várias, como a natureza e grau das lesões, suas sequelas físicas e psíquicas, as intervenções cirúrgicas eventualmente sofridas e o grau de risco inerente, os internamentos e a sua duração, o quantum doloris, o dano estético, o período de doença, a situação anterior e posterior da vítima em termos de afirmação social, apresentação e autoestima, alegria de viver, a idade, a esperança de vida e perspetivas para o futuro.

Assim, importa atender, como meio de determinação da indemnização, ao comparativo jurisprudencial. Vejamos algumas decisões recentes deste Supremo Tribunal que nos podem servir de linha de orientação, todas disponíveis em www.dgsi.pt:

- Acórdão de 07/05/2014: “Pessoa de 25 anos que ficou com IPP de 25%. Sofreu lesões que demandaram período longo até à estabilização. Ficou com paralisia parcial, com parestesias nos dedos da mão esquerda, na metade esquerda dos líbios, hemilíngua e hemiface esquerdo. Passou a sentir dormência na cara e ponta dos dedos e lado esquerdo, com dificuldades em comer e mastigar principalmente do lado esquerdo; Perdeu força na mão, braço e perna esquerdas. Tem desequilíbrios na perna esquerda. Abandonou o desporto e da dança. Sofre irritabilidade, insónias, alguma perda de memória e coordenação de ideias, tendo momentos de grande depressão e ansiedade. Ficou com duas cicatrizes de 6X2 cm na face anterior duma das pernas, não indo, por isso, à praia, nem usando calções e saia. É adequado o montante compensatório relativo aos danos não patrimoniais de € 80.000,00”;

- Acórdão de 14/09/2010: “Tendo-se provado que a 1.ª autora sofreu fratura dupla do membro inferior esquerdo, que ficou mais curto, sofreu 7 intervenções cirúrgicas e igual número de internamentos hospitalares, manteve-se acamada no domicílio durante 1 ano e 5 meses, continua em tratamento médico 3 anos após o acidente, necessitou desde a data do sinistro, e continua a necessitar, da ajuda de terceiros para a realização da sua higiene diária, bem como para lhe confeccionarem as refeições, movimenta-se com grande dificuldade e dores e sempre com o recurso a duas canadianas, anda de forma claudicante, tendo o membro operado ficado desfeiado e cheio de cicatrizes; não pode fazer esforços, perdeu a alegria de viver por se sentir uma pessoa inútil, tem dificuldades no relacionamento conjugal e sente-se angustiada pela impossibilidade de cuidar da filha, à data do acidente com 5 meses de idade, bem como pelo futuro da sua outra filha, a 2.ª autora, que teve de abandonar o seu percurso escolar para tratar da mãe e da irmã; perante as descritas consequências permanentes de que ficou a padecer a 1.ª autora, quer ao nível físico, quer psíquico, não poderá deixar de ser tida em consideração a intensa gravidade das mesmas, pelo que, em nada tendo a 1.ª autora contribuído para a produção do acidente, o qual se ficou a dever a culpa exclusiva do segurado da ré, entende-se, de acordo com a equidade – art.s. 494.º e 496.º, n.º 3, do CC –, que o montante indemnizatório destinado ao ressarcimento de tais danos deverá ser computado em € 100 000”

- Acórdão de 07/06/2011: “Não é excessiva uma indemnização de €90.000, arbitrada como compensação de danos não patrimoniais, decorrentes de lesões físicas dolorosas, que implicaram sucessivas intervenções cirúrgicas, internamento por tempo considerável, dano estético relevante e ditaram sequelas irremediáveis e gravosas para o padrão e a qualidade de vida pessoal do lesado”.

- Acórdão de 19 de janeiro de 2016 (acórdão relatado pelo mesmo relator do presente, e aqui mencionado apenas por uma questão de reforço e coerência):“ É justa e adequada à reparação do dano não patrimonial a indemnização de €100.000,00 ao sinistrado por acidente de viação que sofreu lesões que implicaram mais de 17 intervenções cirúrgicas, internamentos sucessivos (o primeiro por 7 meses e vários por 1 ou 2 meses), que sofreu dano estético relevante, que ficou com necessidade da ajuda de canadianas para as deslocações, que ficou com um encurtamento de uma perna, que ficou psicológica e psiquiatricamente afetado de forma grave face às dores sentidas, alteração da sua vida nas vertentes profissional, social, pessoal e familiar, receio de amputação da perna, perda da esperança de voltar a andar normalmente (malefícios estes que lhe determinaram ao nível das sequelas psiquiátricas uma incapacidade permanente parcial de 12 pontos), que sofreu por quase três anos de ITT, que ficou afetado de uma IPP de 49 pontos, sendo as sequelas, em termos de rebate profissional impeditivas do exercício da sua atividade profissional habitual, bem assim como de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional e sem capacidade futura de reconversão, que ficou necessitado do auxílio de 3.ª pessoa para algumas atividades do seu dia-a-dia, para o resto da sua vida, que ficou afetado de anquilose a nível do joelho esquerdo, anquilose no tornozelo em flexão plantar, ausência de extensão e eversão ativas no pé esquerdo.”

- Acórdão de 12.12.2013:- acidente que envolveu lesões de particular extensão e gravidade no membro inferior esquerdo, originando um muitíssimo gravoso processo patológico, que se arrastou ao longo de anos, gerando múltiplas intervenções cirúrgicas, tratamentos e internamentos hospitalares, decorrentes nomeadamente de persistentes infecções, que culminaram, vários meses depois do acidente, na respectiva amputação pelo terço proximal do fémur;- persistência de dificuldades de cicatrização e recuperação, originando a amputação gravíssimas sequelas, quer ao nível da capacidade de movimentação e autonomia, quer ao nível psíquico, consubstanciadas em depressão pós amputação; - afetação relevante e irremediável do futuro padrão de vida de sinistrado com 58 anos de idade e qualidade de vida, até então, perfeitamente satisfatória, associada, desde logo, ao grau de incapacidade fixado (IPG fixada em 50%, suscetível de, no futuro alcançar mais 3 pontos) - com repercussões concretas extremamente gravosas ao nível da vida pessoal do lesado, já que tais sequelas, além de serem totalmente impeditivas do exercício de qualquer actividade profissional compatível com as aptidões do lesado, inviabilizam plenamente qualquer autonomia pessoal, carecendo consequentemente de ajuda permanente de terceiros para realização das actividades domésticas e de higiene pessoal;- para além do dano estético e funcional decorrente da amputação, suportou a lesada internamentos e tratamentos médico-cirúrgicos muito prolongados, com imobilização do doente e envolvendo dores e sofrimentos intensos (quantum doloris em grau 6, numa escala de 7). Indemnização fixada: €150.000,00.

No caso vertente vem dado como provado que o Autor sofreu, sofre e sofrerá os seguintes malefícios, tudo em decorrência do acidente:

- Foi transportado pelo INEM para o Hospital Distrital de …, tendo dado entrada no bloco de urgências, onde foi sedado e de imediato submetido a uma transfusão de sangue;

- Foi-lhe amputada a perna do joelho para baixo (terço inferior da perna esquerda), dado o seu estado de esfacelamento;

- Esta intervenção cirúrgica foi para o Autor profundamente traumática, quer do ponto de vista físico, quer do ponto de vista emocional, acrescendo as dores da intervenção e do pós-operatório às dores que já sofria em virtude dos ferimentos causados pelo acidente;

- Esteve internado entre 10-07-2010 e 19-07-2010 na Urgência, e desde 25-07-2010 a 16-08-2010 no serviço de ortopedia do Hospital Distrital de …;

- Foi submetido a uma nova intervenção cirúrgica, de novo sob anestesia geral, para revisão do coto da amputação, pois que veio a infetar;

- Esta intervenção foi dolorosa, fragilizando ainda mais o Autor;

- Tem necessidade de usar uma prótese, em substituição da parte do membro amputado;

- A amputação conduzirá necessariamente a uma redução da mobilidade (o que aliás já se está a verificar), pois a prótese não permite a mesma capacidade de deslocação e de movimento que a perna natural;

- Foi sujeito a consultas e vigilância médica, e teve que tomar medicamentos para debelar eventuais infeções, suportar as dores e ajudar nos tratamentos;

- Em consequência da amputação (privação da normal atividade física), o Autor sofreu um aumento da massa corporal, pesando atualmente 143 kg;

- O que porá em risco a outra perna e as respetivas articulações;

- O Autor queixa-se já da sobrecarga que sente nas articulações dessa perna;

- Em consequência da amputação, o Autor sofre repercussões (deformação) a nível da coluna e da postura natural;

- É previsível que essa deformação por excesso de carga se vá acentuando, implicando para futuro tratamentos de correção médica, recurso a fisioterapia, ginástica corretiva, medicação psiquiátrica e observação regular por ortopedista e psiquiatra;

- O Autor apresenta escoliose a nível da cintura pélvica com dores nos músculos paravertebrais, e dor no joelho dado o desgaste articular;

- Apresenta também desmotivação, desinteresse, instabilidade generalizada nos afetos, comportamentos e identidade, bem como falta de controlo, inflexão interna da agressividade, ideação suicida e sintomatologia depressiva;

- Sofre de stress pós traumático de forma crónica, necessitando de medicação psiquiátrica para o resto da vida;

- Sente-se humilhado, vexado e diminuído perante os outros;

- A sua autoestima diminuiu consideravelmente, o que também acentua gravemente o seu sentimento de marginalização e de perda, o que muito o entristece e deprime;

- Isola-se dos seus colegas e amigos e companheiros de prática desportiva, sentindo-se envergonhado da sua atual condição física, diminuído e complexado;

- O aumento de peso, aliado à menor mobilidade corporal e à necessária diminuição da atividade desportiva, levou a uma perda de agilidade e de flexibilidade, que muito o apoquenta e preocupa;

- Sofreu dores decorrentes dos períodos de pós-operatório, da situação de infeção do coto, da aplicação de agrafos totais na zona amputada, dos tratamentos e adaptação à prótese;

- Continua a sentir o membro amputado como se ainda existisse;

- Sente desconforto na marcha, pela dificuldade na caminhada, pelas mudanças climatéricas, pelas posturas necessárias às suas atividades da vida diária;

- Sofreu um grande, angustiante e perturbador medo de morrer, desde o momento em que ocorreu o acidente e até ter sido anestesiado no hospital;

- Situação muito agravada por ao mesmo tempo ter consciência de que a sua filha menor e acompanhante também ficara ferida no mesmo acidente;

- Eventos estes que recorda muitas vezes, mesmo que os tente esquecer, o que sempre o aflige de modo grave;

- Em consequência da amputação, o Autor tem na perna esquerda um visível coto e cicatrizes evidentes;

- O Autor sempre cultivou o corpo, bem como a sua imagem pessoal, e a situação em que se encontra muito o envergonha, provocando-lhe embaraço, tristeza e situações de desconforto e grande incomodidade;

- Sente-se muito constrangido em usar calções, mesmo em períodos de grande calor, e deixou de frequentar as praias, por se sentir limitado e diminuído e alvo das atenções dos demais e por se sentir mirado de modo diferente, o que o constrange;

- Ficou perturbado emocionalmente quanto à circulação em veículos de duas rodas, deixando de andar de motociclo;

- Está permanentemente perturbado no seu sono, sofrendo com muita frequência de pesadelos e tendo dificuldade em adormecer;

- Relembra muitas vezes, mesmo enquanto acordado, o momento do embate e os momentos seguintes em que se viu de perna esmagada e coberto de sangue e receou a morte;

- Fica então deprimido, abatido e sem ânimo;

- Sofreu um quantum doloris no grau 6/7;

- Ficou afetado de um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 30 pontos em 100, sendo de admitir a existência de dano futuro;

- Sofreu um dano estético permanente no grau 6/7;

- Necessita de fisioterapia regular e de revisão de ortóteses periódica;

- Desde fim de Setembro de 2013, que o interface de silicone e o encaixe da prótese estavam desgastados e com necessidade da substituição;

- A falta dessa prótese e de qualquer dos seus acessórios em estado funcional, agravou a lesão do coto da amputação e contribuiu para a degradação do estado físico do Autor, com a diminuição da sua qualidade de vida, aumento da carga corporal sobre a outra perna, com reflexos negativos no equilíbrio e na simetria do tronco e da coluna e impedindo de todo a locomoção e a marcha;

- Com a marcha comprometida por falta dos acessórios prescritos para a prótese, o Autor solicitou à Ré que ordenasse a substituição destes, assumindo os custos, uma vez que tal era de grande urgência e o Autor não o podia fazer por si;

- A resposta da Ré foi sempre inconclusiva, não restando ao Autor alternativa senão de intentar, em Janeiro de 2014, procedimento cautelar, para ver reposto o seu direito, sem que até tal data tivesse havido qualquer resposta positiva por parte da Ré;

- O Autor, durante os meses de Novembro de 2013 a Maio de 2014, só conseguiu deslocar-se (e tão só quando se confrontou com situações de urgência) com o auxílio de terceiras pessoas, uma vez que a marcha, por si, lhe causava muitas dores e ferimentos no membro amputado;

- Nesse período, o Autor esteve confinado ao quarto da sua casa, deslocando-se ali internamente com muita dificuldade e dor, estando impedido de sair à rua por esse motivo, a não ser se apoiado por terceiros, e a falta de movimento agravou as suas já difíceis condições físicas, fazendo-o aumentar de peso;

- A falta de movimentação e o sedentarismo forçado deixaram o Autor muito triste e acabrunhado, fazendo-o cair num estado depressivo mais acentuado do que aquele que a sua condição física já provoca;

- O Autor, por falta de movimentação, isolou-se, deixou de conviver com os amigos e familiares como até ali o procurava ir fazendo, sempre dentro das limitações que a sua condição de amputado lhe impõe;

- A sua falta de mobilidade, que já existia e que assim se agravou, e consequentemente a sua maior dependência de terceiros para as suas deslocações mais básicas, durante 7 meses, envergonharam ainda mais o Autor, que se sentia cada vez mais diminuído em função da sua situação física, o que agravava consequentemente o seu estado psicológico.

Ora, tendo em vista a culpa grosseira e exclusiva do condutor do motociclo causador do acidente, a condição económica limitada do Autor, os demais critérios acima indicados e o comparativo jurisprudencial reportado, resulta para nós óbvio que a indemnização preconizada pela Ré (“inferior a €75.000,00”) não pode de forma alguma ser atendida. Já, ao invés, uma indemnização ao redor dos €120.000,00 se afigura justa e cabida ao grave dano não patrimonial sofrido pelo Autor. Tendo o acórdão recorrido fixado a indemnização nesta ordem de valores (mais exatamente em €125.000,00, mas englobando neste montante o dano decorrente das demoras ocorridas na substituição dos componentes da prótese), julgamos que nenhuma censura merece. O que significa também que não é de subscrever a pretensão do Autor à elevação da indemnização para €170.000,00.

Improcedem pois as conclusões em destaque.

Pelo que fica dito, conclui-se que improcedem os recursos, não se mostrando violadas as disposições legais que os Recorrentes citam, sendo assim de confirmar o acórdão recorrido.

IV. DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em negar as revistas, confirmando o acórdão recorrido.

Regime de custas:

O Autor é condenado nas custas do recurso que interpôs.

A Ré é condenada nas custas do recurso que interpôs.

                                                           ++



Lisboa, 9 de Janeiro de 2018

José Rainho (Relator)

Graça Amaral

Henrique Araújo

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[1] Curiosamente, o que será discutível, isso sim, é a admissibilidade da revista do próprio Autor, na medida em que o decidido na Relação representou para ele um resultado mais favorável do que aquele que decorreria da mera confirmação integral da sentença (situação esta em que o recurso de revista não seria admissível, precisamente porque estaria constituída uma situação de dupla conformidade decisória). Numa hipótese destas há quem entenda, mediante o uso de argumento por maioria de razão, que não é admissível recurso de revista (v. a propósito Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª ed., pp. 305 e 306).
[2] Publicado em https://www.unric.org/pt/pessoas-com-deficiencia/5459.
[3] Documento de 15.11.2010, denominado “Estratégia Europeia para a Deficiência 2010-2020: Compromisso renovado a favor de uma Europa sem barreiras”, disponível em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=COM:2010:0636:FIN:pt:PDF.
[4] Cfr. http://expressoemprego.pt/carreiras/emprego-para-portadores-de-deficiencia/5191.
[5] Ver a notícia em: https://www.publico.pt/2016/12/03/sociedade/noticia/governo-quer-quotas-de-emprego-no-privado-para-pessoas-com-deficiencia-1753527