Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1896/20.5T8FNC.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
CULPA DO LESADO
CONCORRÊNCIA DE CULPA E RISCO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
DANOS PATRIMONIAIS FUTUROS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
JUROS DE MORA
UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Data do Acordão: 11/30/2022
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Sumário :
I. De acordo com uma interpretação actualista dos arts. 505.º e 570.º do CC, é de admitir a concorrência causal entre os riscos próprios do veículo automóvel e a conduta do lesado, culposa ou não culposa, sendo que tal entendimento não constitui apenas uma via interpretativa ao lado da interpretação tradicional que excluía tal concorrência, mas antes a única via interpretativa conforme ao DUE em matéria de seguro automóvel.

II. No caso dos autos sufraga-se o entendimento do acórdão recorrido segundo o qual a morte do sinistrado foi devida a culpa leve deste último, mas também aos riscos próprios do veículo segurado na ré; sendo, por isso, igualmente de sufragar o juízo de adequação e proporcionalidade realizado pelo tribunal a quo ao atribuir a causalidade da morte em 25% ao lesado e em 75% aos riscos próprios do veículo.

III. Não merecem censura os montantes indemnizatórios equitativamente fixados pelo acórdão recorrido a título de danos não patrimoniais, bem como a título de danos patrimoniais futuros.

IV. Da aplicação ao caso dos autos da norma do art. 805.º, n.º 3, segunda parte, do CC, tal como interpretada pelo AUJ n.º 4/2002, resulta que os juros de mora incidentes sobre os quantitativos indemnizatórios fixados equitativamente de forma actualizada devem ser contados desde a data da sentença e não desde a data da citação.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. AA, BB, CC, DD e EE intentaram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Seguradoras Unidas, S.A., pedindo a condenação desta a pagar, tudo com juros legais moratórios desde a citação até integral pagamento:

- Aos autores, em conjunto, €60.000, pelo dano decorrente da morte de FF, e €10.000€ pelo dano decorrente das dores e antevisão pela vítima da sua própria morte no momento do embate e horas seguintes;

- À autora AA € 20.000, à autora BB € 15.000, e aos demais autores €10.000/cada, por danos [morais] próprios sofridos com a morte da vítima;

- Às autoras AA e BB, pelo dano patrimonial (alimentos) pela perda de rendimentos futuros da vítima, € 109.638,78;

- À autora AA pelas despesas de transporte do falecido para o hospital e despesas de funeral, o montante de € 2.365,50.

Alegam, em síntese, que: no dia 22/08/2018, um veículo ligeiro de mercadorias, que circulava numa estrada, no sentido norte-sul (descendente), colheu um peão quando este fazia o atravessamento da via, provindo de uma propriedade privada em direcção ao veículo da sua mulher, que se encontrava estacionado do lado direito (ascendente) da estrada, carregando um fardo de erva às costas; do atropelamento resultou o falecimento do peão nesse dia; a eventual responsabilidade civil emergente da circulação do veículo encontrava-se transferida para a R. seguradora.

A R. seguradora contestou, aceitando alguns dos factos alegados pelos AA. e impugnando outros, e apresentou a sua versão dos mesmos; esclareceu que a proprietária do veículo era a C..., Lda., que transferiu para a R. a eventual responsabilidade civil decorrente da circulação do mesmo.

O Instituto da Segurança Social, I.P. deduziu pedido de reembolso de prestações por si pagas à viúva e à filha do falecido, no valor total de € 15.994,27, e ainda aquelas a pagar até ao encerramento do processo, acrescentando que a culpa do condutor do veículo se presumia, nos termos do disposto no art. 503.º, n.º 3, do Código Civil, pois o veículo era conduzido por ele enquanto trabalhador por conta de outrem, sob a direcção, responsabilidade e interesse da entidade empregadora (a sociedade proprietária do veículo).

A R. contestou este pedido, no essencial, nos mesmos termos da anterior contestação, impugnando também os factos que permitiam a conclusão da condução por conta de outrem.

Por sentença de 20 de Dezembro de 2021 foi proferida decisão que julgou improcedente a acção, absolvendo a R. do pedido.

Inconformados, interpuseram os AA. recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, impugnando a decisão da matéria de facto e pedindo a reapreciação da decisão de direito.

O Instituto da Segurança Social veio, ao abrigo do disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 do art. 634.º do Código de Processo Civil, declarar a sua adesão ao recurso interposto pelos AA..

Por acórdão de 9 de Junho de 2022 foi pontualmente alterada a matéria de facto e, a final, foi proferida a seguinte decisão:

«Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, revogando-se a sentença recorrida e condenando agora a ré a pagar:

- aos 5 autores 60.000€ pelo dano morte, a repartir em partes iguais por cada um deles;

- à autora AA 20.000€, à autora BB 15.000€ e aos demais autores 10.000€/cada, por danos próprios sofridos com a morte da vítima;

- à autora AA 33.277,23€ de indemnização prevista no art. 495/3 do CC, a que há que descontar o valor de 12.743,15€ recebidos do ISS a título de pensões de sobrevivência, ficando pois reduzidos a 20.534,08€.

- à autora BB 17.617,50€ de indemnização prevista no art. 495/3 do CC, a que há que descontar o valor de 2.392,79€ recebidos do ISS a título de pensões de sobrevivência, ficando pois reduzidos a 15.224,71€.

- à autora AA, as despesas de funeral comprovadas (art. 495/1 do CC), 1.665€, a que há que descontar 965,03€ do subsídio por morte recebidos do ISS, ficando pois reduzidos a 699,97€.

- ao ISS 16.100,97€ (= 965,03€ + 12.743,15€ + 2.392,79€).

Tudo com juros de mora à taxa legal desde a citação/notificação [em 08/06/2020 quanto ao pedido dos autores e em 12/02/2021 quanto ao pedido do ISS, mas quanto a este apenas relativamente aos valores que já nessa altura estavam pagos, vencendo-se juros quanto aos outros valores pagos pelo ISS a partir da data desses pagamentos] até integral pagamento

Quanto ao pedido dos autores, custas, na vertente de custas de parte por não haver outras, pela ré seguradora (na proporção de 65,37%) e pelos autores (na proporção de 34,63%).

Quanto ao pedido do ISS, custas, na vertente de custas de parte (não há outras), em 75% pela ré (o ISS está isento delas).».


2. Vem a R. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

«I. Vem o presente recurso de revista interposto do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que julgou parcialmente procedente o recurso de apelação apresentado pelos Autores melhor identificados nos autos, condenando a Ré ao pagamento dos seguintes valores:

h) €60.000,00 (sessenta mil euros) pelo dano morte, a repartir em partes iguais por cada um dos Autores;

i) €20.000,00 (vinte mil euros) à Autora AA, €15.000,00 (quinze mil euros) à

Autora BB e €10.000,00 (dez mil euros) a cada um dos demais Autores, pelos respetivos danos próprios sofridos com a morte da vítima;

j) €33.277,23 à autora AA a título de indemnização prevista no art.º 495/3 do Código Civil (CC), a que há que descontar o valor de €12.743,15 recebidos do ISS a título de pensões de sobrevivência, ficando, pois, reduzidos a €20.534,08;

k) €17.617,50 à autora BB, a título de indemnização prevista no art.º 495, n.º 3 do CC, a que há que descontar o valor de €2.392,79 recebidos do ISS a título de pensões de sobrevivência, ficando, pois, reduzidos a €15.224,71;

l) à autora AA, as despesas de funeral comprovadas (art. 495/1 do CC), 1.665€, a que há que descontar 965,03€ do subsídio por morte recebidos do ISS, ficando, pois, reduzidos a 699,97€.

m) ao ISS o valor de €16.100,97 (= €965,03 + €12.743,15 + €2.392,79);

n) todos os valores com juros de mora à taxa legal desde a citação/notificação [em 08/06/2020 quanto ao pedido dos autores e em 12/02/2021 quanto ao pedido do ISS, mas quanto a este apenas relativamente aos valores que já nessa altura estavam pagos, vencendo-se juros quanto aos outros valores pagos pelo ISS a partir da data desses pagamentos] até integral pagamento;

II. Neste contexto, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, ora recorrido, procede também à alteração da matéria de facto, do seguinte modo (sem destaque no original):

“1. No dia 22/08/2018, cerca das 09h35, na Estrada ..., ..., ..., GG conduzia um veículo ligeiro de mercadorias, matrícula ..-..-SV, marca Mitsubishi, modelo Canter [...; peso máximo 3500], e HH encontrava-se apeado na referida rua.

5. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1, o peão saía de uma propriedade privada, tendo em vista a travessia da aludida via de trânsito.

6. Com um fardo de erva às costas, com o intuito de atravessar a referida via pública, em direcção ao veículo da sua mulher, que se encontrava estacionado no lado direito (ascendente) da faixa de rodagem, olhou para a esquerda e para a direita, com o intuito de verificar se circulavam veículos quer no sentido ascendente, quer no sentido descendente.

7. Ao iniciar o atravessamento da via pública, o peão foi colhido pelo veículo, que circulava naquela estrada em sentido descendente, numa recta no sentido norte-sul (P.../C...).

30. [O condutor d]o veículo, no dia, hora e local aludidos em 1, quando avistou o peão com um fardo de erva às costas e uma foice na mão, parado na berma da estrada, abrandou a marcha.

31. Tendo continuado a sua circulação, presumindo que o peão aguardaria a sua passagem.

32. Acto contínuo, veio o peão a embater na zona do canto frontal direito (faróis e retrovisor) do veículo. => O peão avançou em frente e foi colhido pela frente, a cerca 20/30 cm da esquina direita, do veículo.

33. Tendo o peão, consequentemente, sido projectado para o chão, levado pelo veículo, acabando por ficar a 21,60m do local de embate.

34. O peão olhou para ambos os lados da faixa de rodagem antes de dar início à travessia. …”

III. Assim, da matéria de facto ora fixada pelo Tribunal da Relação de Lisboa decorre a culpa exclusiva do lesado na ocorrência do acidente, pois, como resulta do douto acórdão, o lesado “(…) olhou para a esquerda e para a direita, com o intuito de verificar se circulavam veículos quer no sentido ascendente, quer no sentido descendente …”, “(…) olhou para ambos os lados da faixa de rodagem antes de dar início à travessia…” e, por último, “(…) o peão avançou em frente e foi colhido pela frente, a cerca 20/30 cm da esquina direita, do veículo”,

IV. Em abono da verdade, ao suprimir o entendimento no sentido de que o peão embateu no “canto frontal direito (faróis e retrovisor) do veículo” e fixando que esse mesmo embate se verificou a “cerca 20/30 cm da esquina direita, do veículo” (vide ponto 32 da matéria de facto do Acórdão), vem o Meritíssimo Tribunal a quo reforçar tal entendimento, na medida em que fica demonstrado e assente que o peão avançou para a estrada quando o veículo seguro se encontrava já demasiado próximo, sendo manifestamente impossível ao condutor deste último evitar a colisão.

V. E assim conclui o douto acórdão recorrido quando afirma que “os factos provados permitem (…) concluir que o peão avançou quando o veículo estava a uma distância muito próxima” (cfr. Página 29 do acórdão recorrido).

VI. Concomitante, da mesma matéria de facto ora fixada pelo Tribunal da Relação de Lisboa não foi dado como provado qualquer facto atinente à falta de zelo ou diligência daquele que assumia a direção efetiva do veículo seguro pela Ré/Recorrente.

VII. Isso mesmo é também afirmado, entre parêntesis, pelo Venerando Tribunal a quo: “o que afasta a prova efectiva do condutor do veículo e, por isso, a condenação da ré com base na culpa efectiva do condutor do veículo segurado” (cfr. Página 29 do Acórdão recorrido).

VIII. Neste conspecto, veja-se o teor do acórdão recorrido (cfr. Páginas 29 a 31, sem destaque no original):

“Esquecendo aquilo que foi dito pelas partes e pelas testemunhas e os raciocínios feitos na parte da discussão de facto para se ver se mereciam credibilidade as declarações de parte e os depoimentos das testemunhas, e partindo apenas dos factos provados, pode-se agora dizer que os factos não permitem a conclusão de que o peão atravessou repentinamente a estrada, nem que não o tenha feito (o que afasta a prova efectiva do condutor do veículo e, por isso, a condenação da ré com base na culpa efectiva do condutor do veículo segurado).

(…)

Mas, mesmo nesta hipótese se terá de aceitar que o peão quando avançou o fez quando o veículo já se encontrava muito próximo: avançar quando se está a 14 metros de distância, vindo um veículo a circular perto dos 50 km à hora, seria mesmo assim falta de cuidado da parte do peão, em violação das regras dos arts. 99/2 e 101/1 do CE que serão referidas de seguida, pois que num segundo esse veículo teria percorrido cerca de 14m, tanto mais que há que contar com o tempo de reacção, o que tornaria praticamente inevitável o embate.

(…)

sempre considerando apenas os factos dados como provados: o facto de o peão, que está parado na berma, ter olhado para ambos os lados, não indicava que ele ia atravessar.

Antes pelo contrário: o facto de o peão ter olhado nos dois sentidos, indicaria que ele não atravessaria sem ter deixado passar antes o veículo que nela estava a circular. Aliás, tendo o peão só avançado quando, sejam quais forem as contas que se façam, o veículo já estava muito próximo, e sabendo-se que o seu avistamento se deu bem antes, isto é, depois do veículo ter feito a curva e entrado na recta (os autores, mais à frente, já se vai ver, mesmo que sem base para o efeito, falam em 50m e antes tinham falado em 58m), isso também aponta para que o peão fosse esperar a passagem do veículo (e tudo isto independentemente do que o condutor do veículo pensou ou deixou de pensar ou disse ter pensado; nada disso consta dos factos provados e não tem de ser considerado).

(…)

Ora, um condutor de um veículo que circula pela estrada não é obrigado a parar sempre que vê alguém parado na berma da estrada, num local que não é uma passadeira, e não dá mostras de ir começar a atravessar (mesmo que possa imaginar que o peão o quer fazer quando o puder). Ele só é obrigado a abrandar e a travar, se necessário, se o peão der sinais/indícios de ir começar a atravessar a estrada, mesmo que, aí sim, o peão o faça em violação da norma do artigo 101 do CE. De outra forma, a circulação seria impossível, os condutores estariam sempre a parar em qualquer ponto de qualquer da estrada onde vissem um peão parado na berma”.

(…)

Assim, embora o art. 101 do CE94 já não ponha, como o anterior, o assento tónico no dever do peão, ao atravessar a estrada no local que não está especificamente destinado a isso, se certificar de que pode atravessar sem perturbar a circulação dos veículos, falando agora no dever de se certificar de que, tendo em conta a distância que o separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o pode fazer sem perigo de acidente, tal atravessamento não deixa de estar subordinado ao dever, previsto no art. 99/2 do CE94, de ser feito com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos.

Portanto, o peão, para além do dever de se certificar de que não há perigo de acidente, continua com o dever de prudência e de não prejudicar o trânsito.

Tendo em conta isto, o condutor de um veículo que circule por uma estrada, sem passadeiras para peões, ao ver um peão na berma, sem ter iniciado a travessia nem dar mostras de o ir fazer, não é obrigado a parar chegam quais forem as circunstâncias, embora deva abrandar a velocidade se circular a uma velocidade que não lhe dê tempo para parar antes do embate no caso de o peão, de forma prudente, iniciar o atravessamento (art. 24/1 do CE).

No caso, não há prova de que o condutor circulasse a uma velocidade que não lhe permitisse evitar o embate naquele caso, pelo que não tem sentido colocar em jogo o dever de abrandar a velocidade.

É evidente que se o peão tivesse iniciado o atravessamento da estrada, ou tivesse dados sinais inequívocos de que ia iniciar esse atravessamento, nada mais restava ao condutor do veículo do que abrandar e parar o veículo. Mas ele entrou na recta, viu o peão na berma, sem mais, e nada mais se passou até ao momento em que, sejam quais forem as contas que se façam, o veículo já estava muito próximo do peão. Assim sendo, e perante os factos provados, não há razões para censurar o condutor pois que, repete-se, não se sabe a que velocidade circulava, nem havia indícios de que o peão fosse atravessar a estrada antes de ele passar.

Deste modo, o Venerando Tribunal da Relação reconhece que o peão avançou quando o veículo já se encontrava muito próximo, que não seria expectável ou indiciário, a este ou qualquer outro condutor (atendendo ao critério do homem médio colocado em idênticas circunstâncias), que se verificasse o início da travessia pelo peão e, portanto, não tendo sido possível ao condutor do veículo seguro evitar o embate.

IX. Contudo, a decisão final consiste na mera repartição das responsabilidades decorrentes do acidente pelo peão e pela Ré seguradora, na proporção de 25%-75%, respetivamente, ignorando o facto de o acidente e os danos daí emergentes procedessem exclusivamente do comportamento do peão e condenando a Ré Seguradora, ainda que parcialmente, com base, única e exclusivamente, na “responsabilidade pelo risco”.

X. Assim, e salvo o devido respeito por entendimento diverso, inexplicável, e até mesmo, contraditoriamente, o douto acórdão recorrido acaba por atribuir a ocorrência do acidente aos riscos próprios do veículo seguro na aqui Recorrente, não valorando que o comportamento do peão interrompe o nexo de causalidade que, no seu entender representa o risco do veículo, conclusão da qual se discorda absolutamente.

XI. Mais, salvo melhor entendimento, o douto acórdão recorrido enferma de incoerência e procede a uma interpretação incorreta dos factos e dos demais elementos carreados aos autos, ignorando no seu segmento decisório, aquilo que foi o comportamento do próprio lesado que provocou o acidente, bem como de uma errónea subsunção dos factos ao direito.

XII. Com efeito, pese embora a alteração da matéria de facto aqui evidenciada, entende a Ré Seguradora ora recorrente que a Decisão da 1.ª instância deverá ser mantida naquilo que concerne à inexistência de responsabilidade sua, em face da culpa que se imputa ao lesado que aqui se transcreve (sem sublinhado nem destaque no original):

“(…) Não se mostrando preenchido tal requisito, prejudicada fica a apreciação dos restantes supra enunciados pressupostos de que depende o dever de reparação resultante de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos. Por outro lado, tendo resultado provada a culpa do peão, afastada fica a possibilidade de uma eventual obrigação de indemnizar resultante de responsabilidade objetiva ou pelo risco por acidentes devidos a veículos de circulação terrestre, nos termos, na medida e limites do disposto nos artigos 483º, nº. 2, 499º e 503º a 508º, todos do Código Civil. É que este tipo de responsabilidade, de carácter excecional, em que o dano tem que representar a concretização de um risco específico, em atenção ao qual a responsabilidade é imposta e que surge independentemente de culpa, serve para indemnizar quando não se prova ou não se presume a culpa. Aliás, basta que o acidente seja devido, atribuível, ao lesado, mesmo que não haja culpa dele, para que a lei, no artigo 505º do Código Civil, considere quebrado, em virtude do facto praticado pela própria vítima, o nexo de causalidade entre o risco e o dano, excluindo-se a responsabilidade objetiva do detentor do veículo. Por outro lado, verificando-se culpa do lesado, bem como que o ato do lesado foi uma das causas do dano, qualquer presunção legal de culpa cede, sendo que a eventual responsabilidade de um terceiro apenas se poderá basear em culpa efetiva (artigo 570º, n.º 2 do Código Civil). Assim sendo, considera-se que não se encontram preenchidos in casu os requisitos, quer do nº. 1, quer os do nº. 2 do artigo 483º, bem os como os dos artigos 503º a 508º, todos do Código Civil, pelo que não pode ser a ré responsável pelo pagamento de qualquer indemnização, sendo que a ré seguradora só seria obrigada a indemnizar nos termos e na medida em que o fosse o seu segurado.

XIII. Sobre este tema deve também atender-se à doutrina impulsionada por Antunes Varela, que afirma que:

“(…) a responsabilidade só poderá considerar-se definitivamente excluída, quando se provar que houve culpa do lesado e não houve culpa do condutor ou do detentor. É nesse sentido que algumas legislações e alguns autores afirmam que a responsabilidade do proprietário e do condutor do veículo é excluída quando a culpa do lesado for a única causa do acidente, ou quando este for unicamente devido a culpa do lesado”, sendo de entender por acidente “imputável ao próprio lesado” não apenas a imputação a título de culpa como a imputação não culposa: “não é um problema de culpa que está em causa no artigo 505.º, pois não se trata de saber se o lesado é responsável pelos danos provenientes de facto (ilícito) que haja praticado. Trata-se apenas de um problema de causalidade.” – in Das Obrigações em geral, Vol. I., pp. 675-677.

XIV. Recorde-se que, nos termos do art.º 503.º, n.º 1 do Código Civil, “[a]quele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação”, contudo, “[q]uando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída” (cfr. art.º 570 do Código Civil). Assim, tal responsabilidade pelo risco “é excluída quando o acidente for [exclusivamente] imputável ao próprio lesado” (cfr. art.º 505.º do Código Civil).

XV. O art.º 570 do Código Civil refere-se ao comportamento do lesado, exigindo que o seu acto seja causa - exclusiva ou concorrente - do dano, sendo, desta feita, necessário estabelecer o nexo causal, em termos de causalidade adequada, entre tal acto e o dano - vide o douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15.067.1989 (processo n.º 076061), relator Fernandes Fugas. Assim, estabelecido esse nexo causal, há que indagar se, ainda assim, se verifica uma causalidade adequada entre o mero risco de circulação de veículo na via pública e o dano.

XVI. Veja-se, a propósito, o douto acórdão da 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 01.02.2011, relator Azevedo Ramos (processo n.º 5109/03.6TBSTS.P1.S1), no qual se entendeu o seguinte (sem sublinhado nem destaque no original):

“Exigindo que o condutor possa parar no espaço livre e visível à sua frente, o art. 24.º, n.º 1, al. a), do CEst, apenas quer que o condutor se assegure de que a distância entre ele e qualquer obstáculo visível é suficiente para, em caso se necessidade, fazer parar o veículo, sem ter de contar com obstáculos que lhe surjam inopinadamente. (…) A regra de que o condutor deve adoptar velocidade que lhe permita fazer parar o veículo no espaço visível à sua frente, pressupõe, obviamente, na sua observância, que não se verifiquem condições anormais ou factos imprevisíveis que alterem de súbito a sua linha de marcha. (…)

Atendendo a que o acidente só ficou a dever-se à conduta do peão, sendo-lhe imputável a título de culpa, e apenas a ele, não pode haver concorrência da responsabilidade objectiva ou pelo risco criado pela circulação do veículo com a culpa do peão”.

XVII. Significa isto que o conceito de risco próprio de circulação de veículo terrestre, que subjaz à responsabilidade pelo risco imputada à Ré Seguradora, não deve cobrir toda e qualquer eventualidade e dano que resulte da circulação de veículo na via pública.

XVIII. Desta forma, ainda que o risco próprio do veículo contemple tudo o que tenha a ver com a circulação do veículo, devem considerar-se excluídos dos riscos próprios do veículo todos aqueles que não ocorram de forma fortuita e que sejam provocados por terceiro que se comportou de forma anómala, imprevisível e contrária às regras estradais tão bem invocadas no douto Acórdão recorrido, conforme se transcreve:

“O art. 99/2 do CE (desde a redacção originária do DL 114/94, de 03/05) dispõe: “Os peões podem […] transitar pela faixa de rodagem, com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos, nos seguintes casos: a) Quando efectuem o seu atravessamento; […].” O art. 101 do CE (os n.ºs 1, 2 e 3 com a mesma redacção desde o DL 2/98, de 03/01; o n.º 4 com a mesma redacção desde a Lei 7/2003, de 03/09; as precisões são feitas, aqui como acima, com base no CE na publicação do sítio da PGDL na internet), sobre o atravessamento da faixa de rodagem, dispõe: “1 - Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente. 2 - O atravessamento da faixa de rodagem deve fazer-se o mais rapidamente possível. 3 - Os peões só podem atravessar a faixa de rodagem nas passagens especialmente sinalizadas para esse efeito ou, quando nenhuma exista a uma distância inferior a 50 m, perpendicularmente ao eixo da faixa de rodagem. 4 – Os peões não devem parar na faixa de rodagem ou utilizar os passeios e as bermas de modo a prejudicar ou perturbar o trânsito. […]”

XIX. Recorde-se ainda que, o douto Acórdão recorrido “(…) considerando apenas os factos dados como provados: o facto de o peão, que está parado na berma, ter olhado para ambos os lados, não indicava que ele ia atravessar. Antes pelo contrário: o facto de o peão ter olhado nos dois sentidos, indicaria que ele não atravessaria sem ter deixado passar antes o veículo que nela estava a circular. Aliás, tendo o peão só avançado quando, sejam quais forem as contas que se façam, o veículo já estava muito próximo, e sabendo-se que o seu avistamento se deu bem antes, isto é, depois do veículo ter feito a curva e entrado na recta (os autores, mais à frente, já se vai ver, mesmo que sem base para o efeito, falam em 50m e antes tinham falado em 58m), isso também aponta para que o peão fosse esperar a passagem do veículo. (…) Mas ele entrou na recta, viu o peão na berma, sem mais, e nada mais se passou até ao momento em que, sejam quais forem as contas que se façam, o veículo já estava muito próximo do peão. Assim sendo, e perante os factos provados, não há razões para censurar o condutor pois que, repete-se, não se sabe a que velocidade circulava, nem havia indícios de que o peão fosse atravessar a estrada antes de ele passar.

XX. Resulta assim, claramente assente nestes autos que o peão agiu em violação das mais elementares regras estradais e que essa violação contribuiu, de forma decisiva, para a produção do sinistro em apreço, na medida em que avançou para a estrada quando o veículo já se encontrava demasiado próximo, existindo ainda a agravante de o atravessamento da estrada pelo peão ter sido precedido de um comportamento do qual se extrai que aquele tinha observado a presença de um veículo em circulação.

XXI. Neste ponto concreto, merece especial atenção o facto de o peão, parado na berma da estrada, ter olhado nas duas direções (vide ponto 34 dos factos provados do douto acórdão), criando naturalmente a convicção no condutor, tal como resulta do comportamento do homem médio inserido em situação equivalente, de que não atravessaria a estrada e aguardaria a passagem do veículo.

XXII. Ou seja, não se tratou da mera travessia inusitada da via de trânsito, mas sim, o facto de o lesado ter verificado a presença de um veículo em circulação e sinalizado essa percepção, olhando na direcção do mesmo, e criando a legítima convicção ao condutor do veículo, que se aproximava, de que não atravessaria a via, facto que não poderá já enquadrar-se como um risco próprio da circulação de veículos terrestres, sob pena de tornar o conceito ilimitado e destituído de utilidade técnico-jurídica.

XXIII. Este comportamento deverá ser valorado, na justa medida, enquanto elemento demonstrativo de que foi o peão quem contribui unicamente para a ocorrência do acidente e dos danos dele decorrentes, consubstanciando razão idónea para afastar a responsabilidade pelo risco imputada à Ré Seguradora.

XXIV. Deste modo, invoca-se também a jurisprudência dominante – nomeadamente, constante dos acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 07.10.2014 (processo n.º 527/13.4T2AVR.C1), do Tribunal da Relação do Porto, de 08.02.2018 (processo n.º 1091/15.5T8PVZ.P1), do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15.10.2018 (processo n.º 3955/13.1TBVFX.L1-2) e do Supremo Tribunal de Justiça, de 17.05.2012 (processo 1272/04.7TBGDM.P1.S1, que vem defendendo uma interpretação actualista das normas aplicáveis e a atribuição de culpa exclusiva ao peão que, como no presente caso, atravessa a estrada de forma inopinada e não permite ao condutor evitar o embate

XXV. Ao mesmo tempo, o “mero facto naturalístico de o acidente ter envolvido um veículo automóvel, como corpo em movimento, com determinado peso e dimensões, dotado de inércia, não pode ser considerado determinante de um risco causalmente adequado ao acidente, perdendo todo o relevo, quer em termos absolutos, quer em termos relativos” (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17.05.2012 proferido no processo n.º 1272/04.7TBGDM.P1.S1) e, no presente caso, verifica-se a falta de nexo de causalidade (adequada) entre o risco próprio do veículo e o acidente, que apenas ocorreu por efeito do comportamento do peão, devendo, portanto, afastar-se totalmente a responsabilidade pelo risco da Ré Seguradora ora recorrente.

XXVI. Com efeito, para imputação de tal responsabilidade à Recorrente, o Venerando Tribunal a quo limita-se a referir que “se entende que a culpa dele é uma culpa leve de apenas 25%, tanto mais que, por um lado era surdo, tornando mais difícil percepcionar a aproximação e velocidade do veículo, e estava carregado com um fardo de erva às costas, andando curvado, o que leva a supor que o seu ângulo de visão fosse menor, podendo não ver um veículo que já circulava na estrada, ou vendo-o, achando que tinha tempo de atravessar a estrada.” (cfr. Página 36 do Acórdão recorrido).

XXVII.  Contudo, tais suposições - não factos provados -, não são susceptíveis de afastar o comportamento culposo do peão, e tão pouco são correlacionáveis com os “riscos próprios de circulação de um veículo”.

XXVIII. Como refere Dário Martins de Almeida, “no risco, compreende-se tudo o que se relacione com a máquina enquanto engrenagem de complicado comportamento …” – in Manual de acidentes de viação, Dário Martins de Almeida, Coimbra, Livraria Almedina, 1987 (sem destaque no original) -, mas nem todo e qualquer evento danoso associado à circulação de veículos terrestres se pode qualificar imediatamente como risco próprio do veículo, devendo ser analisado no caso concreto, se a forma como ocorreu o acidente e os danos emergentes resultam efetivamente de um risco típico da circulação terrestre através de veículos ou, antes, se foi o comportamento do lesado que contribuiu para a produção do acidente.

XXIX. E, tal como resulta da matéria dada como provada, mesmo na versão alterada pelo douto acórdão recorrido, à luz da experiência comum, o peão agiu com culpa quando este, não obstante ter olhado para a esquerda e para a direita com o intuito de se assegurar de que poderia, em segurança, iniciar a travessia da via pública, não observou os deveres de cautela, sendo que ao condutor não era exigível que o peão, depois de ter observado o espaço em seu redor, iniciaria repentinamente o atravessamento de uma faixa de rodagem na qual o veículo já circulava e era fácil, melhor, necessariamente visível.

XXX. Por sua vez, as regras de trânsito contidas no Código da Estrada e já acima referidas configuram deveres de diligência cuja violação motiva a qualificação do comportamento como negligência, dispensando a prova da negligência em concreto, pelo que, na esteira da jurisprudência dominante e com a devida valoração dos factos provados de acordo com a experiência comum, não se encontram preenchidos os pressupostos para responsabilizar a Ré Seguradora.

XXXI. Além disso, o n.º 2 do artigo 3.º do Código da Estrada, consagra um dever geral de diligência, que recai sobre os utentes da via, designadamente os condutores, consistente na proibição de atos ou omissões que impeçam ou embaracem o trânsito e, inclusive, comprometam a segurança ou comodidade dos utentes da via, traduzindo, assim, um dever de omissão, de non facere, o qual não foi evidentemente cumprido pela vítima, pois o peão não observou o dever prévio de cautela no atravessamento de uma via.

XXXII. Assim, evoca-se também o douto acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 10.11.2016 (processo n.º 2749/14.1T8BRG.G1) que entendeu:

“Age com culpa exclusiva o peão que inicia o atravessamento de uma estrada de forma imprudente, sem se certificar de que o pode fazer sem perigo de acidente, tendo em conta a aproximação de um veículo, a cerca de 10 metros de distância, cuja trajectória cortou, sem que o veículo, que circulava a velocidade de 40 a 50 km/hora, pudesse evitar o embate.

(…)

Sendo de atribuir o acidente exclusivamente a actuação culposa da vítima, não concorrendo para a respectiva eclosão, em termos de causalidade adequada, o risco inerente à circulação do veículo envolvido no acidente, porque a potencialidade de perigo que encerra a sua circulação foi alheia ao sinistro, não se pode considerar a concorrência do risco com a culpa exclusiva da vítima.” (evidenciados nossos).

XXXIII. À imagem do que sucede na situação dos presentes autos, o lesado atua em contravenção com as regras estradais e atua de forma a provocar a ocorrência do acidente, não podendo qualificar-se o sucedido como risco do veículo.

XXXIV. Destarte, olhando para os contornos do presente processo, e fazendo um juízo de adequação e proporcionalidade, à luz da interpretação actualista do regime conjugado dos art.os 505.º e 570.º, ambos do Código Civil, não conseguimos aqui encontrar – e o Meritíssimo Tribunal a quo não aponta -, os elementos característicos dos riscos próprio do veículo, mas, por seu turno, conseguimos aqui enunciar – e o Venerando Tribunal a quo aponta, e bem -, os elementos característicos próprios da culpa, única e exclusiva, do lesado na produção do sinistro em apreço.

XXXV. Em virtude disso, também a eventual obrigação de indemnizar resultante de responsabilidade objetiva ou pelo risco por acidentes devidos a veículos de circulação terrestre resulta prejudicada na medida do previsto pelos art.os 483.º, nº. 2, 499.º e 503.º a 508.º, todos do Código Civil, pois apesar de esta formulação da responsabilidade civil ser independente de culpa apurada, sendo o acidente imputável ao lesado, o nexo de causalidade entre o risco e o dano é interrompido e não dá lugar a responsabilidade objetiva do detentor do veículo (vide art.º 505.º do Código Civil).

XXXVI. Por todo o exposto, deverá a decisão recorrida ser revogada na parte em que conclui pela existência de uma “concorrência de culpas”, isto é, na parte em que conclui que a conduta do peão corresponde a uma culpa leve quantificável em apenas 25%, e consequentemente, julgando a acção totalmente improcedente, absolvendo a Ré e aqui Recorrente do(s) pedido(s).

XXXVII. Ad cautelam, sem prescindir de todo o supra exposto e requerido, ainda que da douta análise dos Senhores Juízes Conselheiros dos factos constantes dos autos se entenda e resulte não ser possível concluir pela exclusão da responsabilidade da Ré Seguradora ora Recorrente- o que se não concebe nem concede -, a actuação culposa do lesado projectada no acidente e pelo Meritíssimo Tribunal a quo evidenciada, permite afirmar que o comportamento daquele foi fundamental e contribuiu de forma decisiva e preponderante para a ocorrência do acidente.

XXXVIII. Assim, em face da doutrina e jurisprudência acima referida e dos elementos constantes do processo supra referidos e citados, confirma-se que o comportamento do peão é conditio sine qua non da ocorrência do acidente, sem o qual os danos nunca se teriam verificado.

XXXIX. O nexo causal entre o comportamento do peão e a ocorrência do embate verifica-se com propriedade na situação sob análise, pois, tal como já se sustenta acima, o acidente surgiu da travessia inusitada da via de trânsito levada a cabo pelo peão, que atenta a proximidade do veículo, impediu qualquer manobra que evitasse o embate, sendo que não se provou qualquer falha ou erro de condução imputável ao condutor.

XL. Atenta a predominância da culpa no comportamento do lesado nunca poderá atribuir-se ao lesado uma proporção de culpa inferior a 75% (setenta e cinco por cento), devendo a responsabilidade da Ré Seguradora ser reduzida proporcionalmente.

XLI. Neste contexto, veja-se, nomeadamente, os doutos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 24.09.2020 proferido no processo n.º 9/14.7T8CPV.P2.S1 e de 09.09.2014 proferido no processo n.º 121/10.1TBPTL.G1.S1, que consideram, respectivamente, uma concorrência de culpas de 60-40 prevalente para o peão e na proporção de 50-50, por entenderem que a culpa do peão se deve a mera desatenção típica do quotidiano e considerando ainda, pelo menos, na última decisão, a imperícia do condutor.

XLII. Porém, nos presentes autos, nunca poderá tratar-se de uma mera desatenção uma vez que ficou provado que a vítima olhou para ambos os lados da fixa de rodagem e que só no momento em que se aproximava o veículo é que aquela iniciou o atravessamento da via, o que comprova pela zona de embate entre peão e veículo correspondente ao lado direito do veículo, 20 ou 30 cm do lado direito (ou na versão anterior dos factos, “no canto frontal direito”).

XLIII. Com base na jurisprudência e razões expostas que se entenda que a culpa do peão nunca poderá julgar-se inferior a 75% (setenta e cinco por cento) uma vez que além da violação das regras estradais, do comportamento imprudente e da ausência de um juízo diligente, o mesmo peão observou que um veículo vinha na sua direção, criando a convicção de que não atravessaria, todavia, iniciou a travessia da estrada no exato momento em que o veículo se encontrava junto a ele, não oferecendo qualquer hipótese ao condutor de evitar o acidente.

XLIV. Assim, sem prescindir do que se alega quanto à exclusão da responsabilidade, deve, nesta medida, absolver-se a Ré Seguradora ora recorrida do pedido de indemnização formulado pelos Autores, reduzindo-se a respetiva responsabilidade à proporção de 25% dos danos apurados.

XLV. Pelo que, ad cautelam, deverá a decisão recorrida ser alterada na parte em que conclui que a conduta do peão corresponde a uma culpa leve quantificável em apenas 25%, qualificando tal comportamento de gravoso e quantificando a responsabilidade do peão em, pelo menos 75%, e consequentemente, julgando a acção parcialmente procedente, absolvendo a Ré e aqui Recorrente do(s) pedido(s) nessa mesma proporção.

XLVI. Igualmente sem prescindir e sempre ad cautelam, cumpre também atender à falta de fundamentação e, até mesmo, existência de incoerência e excesso de pronuncia da decisão do Mm. Tribunal a quo e aqui colocada em crise em relação à quantificação dos concretos danos apurados. Com efeito:

XLVII. Quanto ao dano morte (do peão) vem o Meritíssimo Tribunal a quo apreciar que “[t]endo então em conta, no caso, a idade da vítima, o facto de, face aos factos provados, ser de lhe imputar a culpa do acidente em 25%, e a jurisprudência recente do STJ, atribuiu-se a este dano, já descontada aquela percentagem da culpa da vítima, o valor de 60.000€, a dividir em partes iguais pelos cinco autores” (cfr. Página 39 do acórdão recorrido). Isto, constatando que os Autores “dizem que, tendo em consideração a idade da vítima, à data do acidente (69 anos), ser pessoa alegre, activa, a imputação do acidente a culpa exclusiva ao condutor do veículo segurado pela ré, com negligência, o demais factualismo alegado, e os critérios legais previstos nos artigos 494, 496, 499, 503, nº [sic], 562 a 564 e 566 do CC, consideram ajustado para compensar a perda do direito à vida da vítima 60.000€”. (cfr. Página 37 do acórdão recorrido).

XLVIII. Ora, recorde-se que o peão vítima do acidente em apreço, marido e pai dos Autores nestes autos, à data do sinistro, tinha 69 anos de idade, encontrava-se aposentado, desconhecendo-se, em absoluto, o seu estado de saúde. Com efeito, atente-se que nestes autos resulta por não provado “HH era pessoa saudável, ativa e feliz” (cfr. 12.ª página da Sentença).

XLIX. E, recorrendo a acervos decisórios desse douto Tribunal ad quem mais recentes, nomeadamente, em acórdão de 24 de setembro de 2020 (Rijo Ferreira), proc, n.º 9/14.7T8CPV.P2.S1, em acórdão de 23 de maio de 2019 (Pinto de Almeida), proc. n.º 1580/16.4T8AVR.S1, em acórdão de 19 de dezembro de 2018 (Távora Victor), proc. n.º 1178/16.7T8VRL.L1, em acórdão de 5 de junho de 2018 (Salreta Pereira), proc. n.º 370/12.8TBOFR.C1.S2, e em acórdão de 24 de setembro de 2020, proc. n.º 9/14.7T8CPV.P2.S1, temos que em casos similares àquele sub judice, mormente no que respeita ao atropelamento de peão, o montante arbitrado pelo Supremo Tribunal de Justiça oscilou entre os valores de €54.000,00 e de €70.000,00, na maioria dos acórdãos referidos, o montante da indemnização não ultrapassou o valor de €65.000,00.

L. Assim, comparando a situação dos autos com outras apreciadas pelo Supremo Tribunal de Justiça, assim como os montantes que por este têm vindo a ser arbitrados, bem como o pedido dos Autores, considera-se excessivo o valor fixado pelo douto Tribunal da Relação, constituindo um enriquecimento sem causa e não uma justa compensação pelos danos não patrimoniais eventualmente sofridos, e em manifesta violação do disposto nos art.os 496.º, n.º 1, 562.º, 563.º e 564.º, todos do Código Civil.

LI. Devem ser equitativamente ajustados os valores para compensação do dano morte que deverão encontrar-se alinhados com os valores indemnizatórios arbitrados pelo Supremo Tribunal de Justiça, uma vez que os valores calculados no douto acórdão recorrido não se compadecem a tendência jurisprudencial, recomendando-se, assim e a este título, a atribuição de compensação nunca superior a €35.000,00 (trinta cinco mil euros).

LII. Sem prescindir, salvo melhor entendimento, não poderia o mesmo douto Tribunal partir de valor superior a €60.000,00 e tendo por base responsabilidade de 100%, atento o pedido dos Autores nesse mesmo sentido, sob pena de nulidade por excesso de pronuncia (cfr. art.º 615.º, n.º 1, alínea e) do CPC).

LIII. Com efeito, o juiz condena em valor superior ao pedido dos Autores ao considerar que o valor indemnizável é proporcionalmente superior ao valor efectivamente pedido. Dito de outro modo, ao concluir que a indemnização pelo dano morte devida, tendo por base um grau de responsabilidade em 75%, é de €65.000,00, conclui também que a indemnização pelo dano morte devida, tendo por base um grau de responsabilidade em 100%, é de €86.667,00. Valor este que excede o montante pelos Autores pedido.

LIV. Assim, e sem prescindir da já evidenciada ausência de prova dos factos que sustentam o valor do pedido -, que sempre deverá ser relevada pelo julgador, não o tendo sido pelo Meritíssimo Tribunal a quo -, ainda que esse douto Tribunal ad quem acompanhe o entendimento no sentido de que a responsabilidade do veículo se fixa em 75% - o que se não concebe nem concede -, não poderá, nesta sede, o quantum indemnizatório exceder o valor global de €45.000,00 (quarenta e cinco mil euros), desta feita, sempre devendo o Tribunal ad quem ter em consideração o grau de responsabilidade (que não deveria ser) atribuído à aqui Recorrente.

LV. Já quanto aos (alegados) danos morais dos Autores, entende o Tribunal a quo que: “No caso, isto poderia levar à atribuição às autoras, cônjuge e filha conviventes, de 35.000€ para cada uma, sem distinções entre elas; e a cada um dos filhos, a indemnização de 20.000€, já que, naturalmente, estes, embora a viverem distantes e independentes, mantinham laços de afeição, mas esses laços eram, também naturalmente, de menor intensidade em relação às outras duas autoras. Mas como tal ultrapassaria o valor destes pedidos e não se pode dar aos autores mais do que pedem (art. 609/1 do CPC), não vale a pena discutir a discrepância em relação ao pedido, sendo de se aceitar os valores indicados pelos autores (20.000€ para a cônjuge, 15.000€ para a filha e 10.000€ para cada um dos filhos)”.

LVI. Ora, sem menosprezo para o sofrimento inerente à perda de familiar próximo, certo é que o valor determinado no douto acórdão recorrido excede a baliza jurisprudencial ao arbitrar um valor global de €65.000,00 (sessenta e cinco mil euros) que se afigura desproporcionado face às circunstâncias do caso concreto, a idade e expectativa de vida da vítima.

LVII. Por outro lado, não se valora devidamente o facto de os 3 filhos maiores residirem no estrangeiro e, forçosamente, manterem uma relação social e afectiva necessariamente menos estreita e próxima com a vítima, pois, não pode fazer equivaler-se nem aproximar-se da forma que o Meritíssimo Tribunal a quo o fez, entre os danos morais dos filhos e os danos morais da filha menor, mais frágil, cujo sofrimento é certa e seguramente mente maior, em comparação com quem não vive diariamente ou mantém uma relação distante ao de cujus e se encontra geograficamente afastado.

LVIII. Sendo que, na determinação de tal dano «há que considerar o grau de parentesco, mais próximo ou mais remoto, o relacionamento da vítima com esses seus familiares, se era fraco ou forte o sentimento que os unia, enfim, se a dor com a perda foi realmente sentida e se o foi de forma intensa ou não. É que a indemnização por estes danos traduz o “preço” da angústia, da tristeza, da falta de apoio, carinho, orientação, assistência e companhia sofridas pelos familiares a quem a vítima faltou» – cf. Sousa Dinis, in Dano Corporal em Acidentes de Viação, CJSTJ 1997, tomo 2, pág. 13. (cfr. Acórdão do STJ do dia 15-04-2009, proferido no âmbito do processo n.º 08P3704).

LIX. Salvo melhor entendimento, a ausência de demonstração da instabilidade emocional e dificuldades resultantes do dano morte do seu familiar, elementos que sempre deverão ser ponderados na atribuição do direito indemnizatório, os Autores não devem ser compensados no valor global de €65.000,00, sob pena de enriquecimento sem causa justificativa, o que constituiria enriquecimento sem causa e não uma justa compensação pelos danos não patrimoniais eventualmente sofridos, que extravasaria igualmente o disposto nos art.os 496.º, n.º 1, 562.º, 563.º e 564.º, todos do Código Civil.

LX. Sem prescindir, acresce ainda que, também o valor arbitrado a título de dano moral dos sucessores legítimos pelo montante global de €65.000,00 (sessenta e cinco mil euros), alegadamente devidos por efeito do desgosto de cônjuge (€20.000,00), 1 filha de 16 anos (€15.000,00) e 3 filhos (€10.000,00/filho), excede, na respectiva proporção, o valor pelos mesmos peticionado.

LXI. Assim, e sem prescindir da evidenciada em sede de Sentença (cfr. factos não provados) ausência de prova de parte dos factos que sustentam o valor do pedido -, que sempre deverá ser relevada pelo julgador, não o tendo sido pelo Mm. Tribunal a quo -, não poderá, nesta sede, o quantum indemnizatório exceder o valor global de €48.750,00 (quarenta e oito mil setecentos e cinquenta euros), à razão dos montantes indemnizatórios de €15.000,00 (para a cônjuge), €11.250,00 (para a filha de 16 anos) e de €7.500,00 (para cada um dos três restantes filhos), desta feita, sempre devendo o Tribunal ad quem ter em consideração o grau de responsabilidade (que não deveria ser) atribuído à aqui Recorrente.

LXII. Ainda quanto (alegado) dano patrimonial das 1.ª e 4.ª Autoras (Apelantes) o Venerando Tribunal a quo determinou, desta feita, que durante 9 anos (108 meses) a vítima provavelmente reservaria para si 1/4 dos seus rendimentos e contribuiria com €435,00 mensais, valor que passaria €386,66, correspondente ao valor total de €67.859,64 (correspondente à soma de € 46.980,00 a € 20.879,64) do qual seriam beneficiárias as duas Autoras, cônjuge e filha menor.

LXIII. Neste contexto, não resultando de qualquer facto dado como provado qual o valor que o peão e familiar das Autoras auferia a título de reforma ou outro, resultando apenas do ponto 37. dos factos dados como provados que “[o] falecido era reformado, mas trabalhava na agricultura, juntamente com a sua mulher” (cfr. Sentença) e, resultando, aliás, do ponto gg) dos factos dados como não provados que “[a] reforma de HH era de cerca de €550,00” (cfr. Sentença), entendeu o Tribunal a quo, gentil e erroneamente, que “[n]ão havendo uma actividade profissional remunerada, não se afigura desajustado tomar como referência o valor mensal de próximo do salário mínimo nacional”.

LXIV. Contudo, o valor apurado assenta erradamente na convicção inverosímil de que o de cujus apenas reservaria 1/4 dos seus rendimentos, presumindo que 3/4 do mesmo rendimento seria despendido com o restante agregado familiar, o que não corresponde à realidade familiar e financeira paradigmática da família portuguesa naquelas mesmas condições profissionais e familiares.

LXV. Ainda, ignora também esse douto Tribunal a quo que, a partir do momento em que a emancipação da Autora filha menor, se verificasse o de cujus deixaria eventualmente de contribuir financeiramente, sendo que nada resulta dos autos que justificasse que a ajuda financeira perdurasse no tempo, pelo que é inadmissível o cálculo indemnizatório que o acórdão recorrido encerra (vide página 45).

LXVI. Ignora também o Meritíssimo Tribunal a quo que o próprio de cujus se incluia nas despesas desse mesmo agregado familiar e, portanto, que os 3/4 hoje considerados são superiores aos 3/4 em vida do Autor considerados.

LXVII. Uma vez mais, o valor determinado no douto acórdão recorrido parece-nos exceder aquilo que seria justa compensação patrimonial pelas ajudas financeiras que o de cujus poderia eventualmente conceder, consubstanciando uma situação de enriquecimento sem causa, em manifesta violação do disposto nos art.os 496.º, n.º 1, 562.º, 563.º e 564.º, todos do Código Civil.

LXVIII. Sem prescindir, salvo o devido respeito por entendimento diverso, se o valor que se desconhece é o valor auferido a título de reforma pelo de cujus, claro está que é o valor médio nacional auferido a esse título, de reforma, que deve ser ponderado pelo Tribunal para efeitos de ponderação de um valor indemnizatório. O que não resulta do douto acórdão ora em crise.

LXIX. Sendo ainda certo que, se a responsabilidade a atribuir é de 75% - o que se não concebe nem concede -, sempre deverá o valor condenatório ser reduzido ao montante correspondente a 75% do valor que se reputa por devido. O que igualmente não resulta do douto acórdão ora em crise.

LXX. Assim, tendo em consideração que o valor médio anual da reforma por velhice em 2018 era de €5.445,80 (cfr. https://www.pordata.pt/), há que considerar que o de cujus auferia um valor mensal a título de reforma de €453,82. Desta feita, ainda que se considere que três quartos de tal rendimento era destinado ao agregado familiar e desse agregado se exclua o de cujus, sobra um rendimento mensal de €340,36, o qual, ao fim de 9 anos (108 meses), ascende ao valor de €36.758,88 e cuja proporção de 75% resulta no montante global de €27.569,16 (vinte sete mil quinhentos e sessenta e nove euros e dezasseis cêntimos).

LXXI. Posto isto, não poderá, nesta sede, o quantum indemnizatório exceder o valor global de €27.569,16 (vinte sete mil quinhentos e sessenta e nove euros e dezasseis cêntimos), desta feita, sempre devendo o Tribunal ad quem ter em consideração o grau de responsabilidade (que não deveria ser) atribuído à aqui Recorrente.

LXXII. Acresce que, o Meritíssimo Tribunal a quo a Ré/Recorrente em “juros de mora à taxa legal desde a citação/notificação [em 08/06/2020 quanto ao pedido dos autores …”, viola o douto acórdão de fixação de jurisprudência n.º 4/2002, de 09.05.2002, a indemnização por danos não patrimoniais e patrimoniais fixados por recurso à equidade, por respeitar a valores atualizados, à data da sentença, não beneficiam de juros moratórios a partir da citação do réu, mas apenas partir da data da prolação da sentença (e não da citação).

LXXIII. Assim, em caso de condenação da Ré/Recorrente no pagamento de qualquer dos danos em apreço – o que se não concebe, nem concede, e por mero dever de cautela se cogita -, sempre deverá, também nesta sede, o acórdão ora em crise ser alterado por esse douto Tribunal ad quem.

LXXIV. Todo o supra exposto, e que por economia processual aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos efeitos legais, aplica-se, mutatis mutandis, quando ao valor a reembolsar ao Instituto da Segurança Social, I.P. por efeito do subsídio de sobrevivência liquidado por efeito do sinistro em apreço e, nessa medida, sempre devendo a Ré/Recorrente ser integralmente absolvida do mesmo pedido por efeito da comprovada culpa (exclusiva) do lesado ou, ad cautelam, sempre devendo a Ré/Recorrente ser parcialmente do mesmo pedido na proporção da culpa do lesado.

LXXV. Termos em que, deve esse douto Tribunal ad quem revogar a decisão recorrida e absolvendo do pedido a Seguradora Ré/Recorrente ou, ad cautelam, absolver a Seguradora Ré/Recorrente em, pelo menos, e sem prescindir do tanto que se alega quanto à ausência de prova, 75% do pedido.

LXXVI. Ao consignar diverso entendimento, a douta decisão recorrida incorre em violação, entre outros, do disposto nos art.os 483.º, 487.º, 495.º, 496.º, 499.º, 503.º, 505.º a 508.º, 562.º a 564.º, 570.º, todos do Código Civil, e o art.os 5.º (e 615.º, n.º 1, alíneas c) e e), 1.ª parte), do CPC.

LXXVII. O que se deixa expressamente alegado para todos os devidos efeitos legais.».


A Recorrida contra-alegou, requerendo a ampliação do objecto do recurso e formulando o pedido de que se reaprecie a questão da culpa exclusiva do condutor do veículo, «[d]evendo o douto acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que declare que a Ré seguradora deverá responder por 100% dos danos resultantes do acidente»;

- Subsidiariamente, e «[n]a eventualidade de se entender que o acidente não ocorreu por culpa exclusiva do condutor do veículo, deverá então manter-se a responsabilidade pelo acidente em causa na proporção fixada pelo Tribunal a quo, daí decorrendo que a Ré, enquanto seguradora do mesmo, deverá responder por 75% dos danos resultantes do acidente».

Em resposta, pronunciou-se a R. Recorrente pelo indeferimento do pedido de ampliação do objecto do recurso por este se encontrar indevidamente qualificado como tal, sendo antes um verdadeiro recurso de revista, na parte em que os AA. ficaram vencidos. Subsidiariamente, pugna pela improcedência da pretensão dos AA..

Quid iuris?

Prescreve o n.º 1 do art. 636.º do Código de Processo Civil:

«No caso de pluralidade de fundamentos da ação ou da defesa, o tribunal de recurso conhece do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respetiva alegação, prevenindo a necessidade da sua apreciação.».

Importa ter presente que o recurso de apelação interposto pelos AA. foi julgado parcialmente procedente, tendo o acórdão da Relação revogado a decisão da 1.ª instância e condenado a R. a indemnizar os AA. ainda que em quantia inferior ao peticionado.

Ora, compulsadas as contra-alegações dos Recorridos, verifica-se que, efectivamente, com a assim denominada ampliação do objecto do recurso, não pretendem os AA. que, em caso de procedência do recurso da R., seja reapreciado outro fundamento da acção, no qual os AA. tenham decaído, mas antes, como expresso pelos mesmos AA., que o «acórdão recorrido [seja] revogado e substituído por outro que declare que a Ré seguradora deverá responder por 100% dos danos resultantes do acidente». Tal pretensão apenas mediante recurso, e não mediante ampliação do objecto do recurso da contraparte, poderia ser formulada.

Conclui-se, assim, pela não admissibilidade do pedido de ampliação do objecto do recurso formulado pelos AA..

Cumpre apreciar e decidir o recurso da R..


4. Vem provado o seguinte:

De acordo com o Tribunal da Relação, «Foram dados como provados os seguintes factos que interessam à decisão destas questões (os factos 1 a 23 já constavam de uma especificação elaborada no despacho saneador com referência aos meio de prova; os factos 30, 31, 32 e 33 têm a sua redacção alterada em consequência do que foi decidido por este TRL na impugnação da decisão da matéria de facto; os elementos acrescentados ao facto 1, foram-no por este TLR com base nos documentos não impugnados e ao abrigo do art. 663/2 e 607/4 do CPC: auto de participação, livrete do veículo junto com a contestação da seguradora; este TRL tentou colocar por sequência cronológica os factos respeitantes à forma como o acidente se deu, sem alteração da numeração e tentando não dar origem a sequências cronológicas que não foram dadas como provadas nem tinham sido alegadas; como resultará evidente, existem muito factos repetidos, dada a forma como eles foram alegados, mas não serão eliminados, embora se tenham juntado os factos 4 e 22 para evitar uma das muitas repetições).»:

1. No dia 22/08/2018, cerca das 09h35, na Estrada ..., ..., ..., GG conduzia um veículo ligeiro de mercadorias, matrícula ..-..-SV, marca Mitsubishi, modelo Canter [...; peso máximo 3500], e HH encontrava-se apeado na referida rua.

5. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1, o peão saía de uma propriedade privada, tendo em vista a travessia da aludida via de trânsito.

6. Com um fardo de erva às costas, com o intuito de atravessar a referida via pública, em direcção ao veículo da sua mulher, que se encontrava estacionado no lado direito (ascendente) da faixa de rodagem, olhou para a esquerda e para a direita, com o intuito de verificar se circulavam veículos quer no sentido ascendente, quer no sentido descendente.

7. Ao iniciar o atravessamento da via pública, o peão foi colhido pelo veículo, que circulava naquela estrada em sentido descendente, numa recta no sentido norte-sul (P.../C...).

30. [O condutor d]o veículo, no dia, hora e local aludidos em 1, quando avistou o peão com um fardo de erva às costas e uma foice na mão, parado na berma da estrada, abrandou a marcha.

31. Tendo continuado a sua circulação, presumindo que o peão aguardaria a sua passagem.

32. Acto contínuo, veio o peão a embater na zona do canto frontal direito (faróis e retrovisor) do veículo. => O peão avançou em frente e foi colhido pela frente, a cerca 20/30 cm da esquina direita, do veículo.

33. Tendo o peão, consequentemente, sido projectado para o chão, levado pelo veículo, acabando por ficar a 21,60m do local de embate.

34. O peão olhou para ambos os lados da faixa de rodagem antes de dar início à travessia.

35. O peão não podia ouvir a aproximação de qualquer veículo (por ser surdo).

8. A via era uma recta, com cerca de 5m de largura, afecta a dois sentidos, sem separador, e com o limite local e limite geral de velocidade de 50 km/h.

9. O piso estava seco e a estrada detinha iluminação.

10. O condutor do veículo não travou antes do embate, nem se desviou para não embater no peão.

14. O local referido em 1 trata-se de uma via marginada por habitações.

25. O peão ficou prostrado no chão.

26. O condutor do veículo não travou.


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23. No âmbito dos autos de inquérito 313/18...., que correram termos no Departamento de Investigação e Acção Penal – Secção de ..., com data de 03/02/2020, foi proferido pelo Ministério Público despacho de arquivamento relativamente ao acidente, factualidade susceptível de integrar a prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137 do Código Penal. De tal despacho consta, além do mais, que:

“[…]

Não se conseguiu apurar a velocidade a que circulava o veículo.

Também não se conseguiu apurar a que distância conduzia GG da berma da estrada.

Do mesmo modo, não foi possível apurar se o acidente se deveu a imperícia/falta de atenção ou, se, por outro lado, o acidente se deveu ao facto de a vítima ter atravessado repentinamente a via de transito concomitantemente ao momento em que o veículo conduzido por GG passava por si, encontrando-se este numa situação de impossibilidade de reacção em tempo útil.

Na verdade, considera-se que a segunda versão parece aquela que apresenta mais indícios, considerando o facto de não existirem marcas de travagem no local, o que indicia que GG nem sequer tentou/conseguiu travar para evitar o embate. Na verdade, considerando as características da via, seria muito provável que caso a vítima já tivesse iniciado a sua marcha o condutor, mesmo desatento, iria em momento próximo do embate tentar travar para evitar o contacto.

Por outro lado, verifica-se que o local de embate é, de facto, na parte direita da frente do veículo, o que indicia que a vítima iniciou marcha em momento próximo ou mesmo em simultâneo ao momento em que GG passa por si a conduzir. Conforme bem referido pelo agente da PSP inquirido, se o local do embate ocorresse a meio da frente do veículo não existiam dúvidas de que, no momento do embate, a vítima já se encontrava a atravessar a estrada, todavia, no presente caso, considerando o local do embate, surgem dúvidas sabre o momento exacto em que a vítima iniciou a travessia da estrada.

Mais acresce a circunstância de a vítima ser surda-muda e carregar um grande molho de erva às costas, o que poderia ter inviabilizado que tivesse visto que uma viatura se aproximava, iniciando, repentinamente, a sua marcha.

[…]

[…e]xistindo fundadas dúvidas sobre a dinâmica do acidente, nomeadamente se a causa do acidente ficou a dever-se a falta de atenção do condutor e/ou a imprudência da vítima que, repentinamente, invadiu a via de trânsito, não se pode concluir que o condutor conduzia de forma imprudente e que, em consequência, podia e devia ter evitado o acidente.”

[na transcrição feita pela sentença recorrida só constava este último §; os outros foram transcritos por este TRL, para os fins referidos abaixo]


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11. O peão foi socorrido e assistido no local, primeiramente pelos Bombeiros Voluntários ... e seguidamente pela equipa da EMIR, onde foi encontrado em paragem cardio-respiratória, com recuperação de circulação espontânea após cerca de 5 minutos de manobras de suporte avançado de vida.

12. Após receber estes primeiros socorros, foi transportado para o Hospital ..., onde deu entrada, no Serviço de Urgências, pelas 10h56m desse dia 22/08/2018.

15. À entrada no Serviço de Urgência apresentava Escala de Glasgow 3T, sem qualquer sedo analgesia, anisocoria OD>OE, pupilas arreativas à luz e rinorragia abundante. Apresentava ainda instabilidade hemodinâmica sob vasopressoe (noradrenalina).

16. Realizou TC crânio-encefálica e TC da coluna cervical, dorsal e lombo-sagrada, que evidenciaram “hematoma subdural hemisférica direito, milimétrica; foco de contusão frontobasal esquerdo; hemorragia subaracnóide dispersa; apagamento dos sulcos corticais e espaços cisternais, incluindo a nível do buraco occipital, indiciando edema cerebral difuso; múltiplas fracturas craniofaciais, envolvendo principalmente a órbitra esquerda, a escama frontal esquerda, com afundamento ósseo pericentimétrico, as paredes do seio maxilar esquerdo, o rochedo temporal direito, e a região esfenoidal anterior; fracturas das apófises transversas de D1 e de D2 à direita”.

17. A TC tóraco-abdómico-pélvica revelou “volumoso hematoma no flanco direito, projectado aos músculos oblíquos transversos do abdómen, com maiores eixos de 11x6cm, que revela exuberante hemorragia activa; existe um segundo hematoma da região glútea esquerda, com 5cm, também com hemorragia activa; não se observam focos de hemorragia intra-abdominal; ligeira ascite peri esplénica na dependência de derrame pleural esquerdo e do hematoma junto à 12ª costela; fractura do arco anterior na 4ª e 5ªcostelas direitas; área de condensação do lobo inferior esquerdo que se admite contusão pulmonar no presente contecto; fractura do arco posterior da 2ª costela direita”.

18. Ocorreu uma evolução desfavorável do quadro clínico com necessidade crescente de suporte cardiovascular, vindo a falecer pelas 14h do dia 22/08/2018.

13. Em decorrência do referido em 7, ocorreu a morte do peão.


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19. A educação escolar desenvolve-se em três níveis: os ensinos básico, secundário e superior: - 1.º ciclo (1.º ano ao 4.º ano); 2.º ciclo (5.º e 6.º ano); 3.º ciclo (7.º ao 9.º ano). O ciclo seguinte, o ensino secundário - abrange os 10.º, 11.º e 12.º anos.

20. O ciclo de estudos conducente ao grau de licenciado no ensino universitário tem 180 ou 240 créditos e uma duração normal compreendida entre seis e oito semestres curriculares de trabalho dos alunos.

21. Todo este percurso se desenrola em 21 anos, pelo menos.


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24. O falecido havia-se deslocado à propriedade referida em 5, acompanhado da sua mulher e filha, a fim de colher erva para o pasto.

27. Todos os sábados o falecido e a mulher dirigiam-se à propriedade privada referida em 5 a fim de ajudarem na manutenção da mesma e recolher erva que levavam para sua casa com o intuito de alimentar alguns animais que criavam.

28. A mulher e filha da vítima cruzavam-se com frequência ali com o condutor do veículo segurado na ré.

29. O condutor do veículo sabia que o falecido era surdo-mudo, conhecia o carro da mulher deste que se encontrava estacionado no outro lado da estrada, em frente à propriedade de onde ele saiu.

36. Durante as cinco horas posteriores ao acidente, o falecido agonizou entre a vida e a morte.

37. O falecido era reformado, mas trabalhava na agricultura, juntamente com a sua mulher.

38. Era marido e pai disponível, ajudando na realização de todas as tarefas domésticas, cozinhava e cuidava do jardim e da casa, ajudava a mulher e os filhos no que podia.

39. Era estimado por todos.

40. Vivia com a sua mulher e a filha, na altura, menor, BB.

41. Os demais filhos, também aqui autores, residem no estrangeiro, mantendo, no entanto, sempre uma relação de muita proximidade com os seus familiares (sobretudo com o falecido), na RAM.

42. Foi difícil para os autores, estando longe, aceitar a morte do seu pai.

43. A autora cônjuge assistiu ao acidente e ficou em choque, num estado de consternação, desespero e angústia.

44. Assim se mantendo nas 5 horas seguintes em que permaneceu no hospital, aguardando por notícias.

45. Estado que se agravou quando ao fim das cinco horas recebeu a notícia de que o marido havia falecido.

46. Desde essa data mulher e filhos têm vivido dias de profunda tristeza e dor, e sentem a falta do marido/pai.

47. As autoras não podem hoje contar com o apoio do pai e marido, nem com a sua ajuda e compreensão e palavras.

48. A autora ficou abalada e em sofrimento com a morte do marido.

49. A autora custeou despesas de funeral do falecido, no montante de 2100€.

50. E despesas com táxi, referentes a serviço de funeral, no montante de 120€.

2. A vítima faleceu pelas 14 horas desse mesmo dia, com 69 anos, no estado de casado com a autora AA, nascida em .../.../1963, casamento esse ocorrido em .../.../1986.

51. Em virtude do falecimento do marido, a autora requereu ao Instituto da Segurança Social, IP a atribuição de subsídio por morte, tendo tal instituto processado e pago à referida autora, a título de subsídio por morte a quantia de 1.286,70€.

52. Em virtude do falecimento do pai, a autora cônjuge e a sua filha BB requereram ao ISS a atribuição de pensões de sobrevivência, os quais foram deferidos, tendo tal instituto, através do Centro nacional de Pensões, processado e pago, à primeira, no período de Setembro de 2018 a Janeiro de 2021, 11.467,18€, sendo que continua a pagar à referida viúva prestações mensais de 345,23€, e à segunda, no período de Setembro de 2018 a Julho de 2020, 3.190,39€.

53. Foi a morte do peão que determinou o pagamento pelo ISS-IP, através do CNP, das prestações de subsídio por morte e de pensões de sobrevivência.

3. Os autores CC, nascido em .../.../1987, EE, nascido em .../.../1990, DD, nascido em .../.../1992, e BB, nascida em .../.../2002, são filhos do peão.

4 e 22. Na data referida em 1, mediante contrato de seguro de responsabilidade civil, com a apólice ...50, com data de início em 18/10/2017 e data de fim em 27/10/2018, a companhia de seguros Tranquilidade havia assumido responsabilidade civil resultante da circulação daquele veículo, contratado pelo proprietário do mesmo, C..., Lda.


5. Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.

Assim, o presente recurso tem como objecto as seguintes questões:

- Padece o acórdão recorrido de erro de direito ao atribuir aos riscos do veículo segurado na R. 75% da responsabilidade pelo acidente de viação, devendo tal responsabilidade: (i) ser totalmente afastada, considerando-se que o acidente ficou a dever-se exclusivamente à conduta culposa do próprio lesado; (ii) subsidiariamente, e para o caso de o tribunal vir a entender existir concorrência de culpas, ser esta de repartir em 25% para o condutor do veículo e 75% para o próprio lesado;

- Em qualquer caso, devem ser reduzidas as quantias indemnizatórias fixadas a título de:

- Danos não patrimoniais pela perda da vida do sinistrado (fixados em €60.000,00, mas que não devem ultrapassar €35,000,00; sendo que, a manter-se o valor fixado, sempre terá de ser proporcionalmente reduzido para não mais que €45.000,00, atendendo ao limite do pedido);

- Danos não patrimoniais próprios dos autores, a mulher e os filhos do sinistrado (fixados na quantia global de €65.000,00, que deve ser reduzida; sendo que, a manter-se o valor fixado, sempre terá de ser proporcionalmente reduzido para não mais que €48.750,00, atendendo ao limite do pedido);

- Danos patrimoniais das autoras mulher e filha menor (fixados em €67.859,64, mas que não devem ultrapassar €36.758,88; sendo que este valor sempre terá de ser reduzido para não mais do que €27.569,16, atendendo à proporção da responsabilidade (75%) atribuída aos riscos do veículo);

- Sendo a indemnização fixada segundo a equidade, os juros moratórios apenas devem ser contabilizados a partir da data da sentença e não da data da citação;

- Absolvição do pedido do ISS no que se refere ao subsídio de sobrevivência, ou, de qualquer forma, redução da condenação para 75% do pedido.


6. Invoca a Recorrente que o acórdão recorrido padece de erro de direito ao atribuir aos riscos do veículo segurado na R. 75% da responsabilidade pelo acidente de viação, devendo tal responsabilidade: (i) ser totalmente afastada considerando-se que o acidente ficou a dever-se exclusivamente à conduta culposa do próprio lesado; (ii) subsidiariamente, e para o caso de o tribunal vir a entender existir concorrência de culpas, ser esta antes de repartir em 25% para o condutor do veículo e 75% para o próprio lesado.

Relevam os seguintes factos provados:

1. No dia 22/08/2018, cerca das 09h35, na Estrada ..., ..., ..., GG conduzia um veículo ligeiro de mercadorias, matrícula ..-..-SV, marca Mitsubishi, modelo Canter [...; peso máximo 3500], e HH encontrava-se apeado na referida rua.

2. A vítima faleceu (...) com 69 anos (...).

5. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1, o peão saía de uma propriedade privada, tendo em vista a travessia da aludida via de trânsito.

6. Com um fardo de erva às costas, com o intuito de atravessar a referida via pública, em direcção ao veículo da sua mulher, que se encontrava estacionado no lado direito (ascendente) da faixa de rodagem, olhou para a esquerda e para a direita, com o intuito de verificar se circulavam veículos quer no sentido ascendente, quer no sentido descendente.

7. Ao iniciar o atravessamento da via pública, o peão foi colhido pelo veículo, que circulava naquela estrada em sentido descendente, numa recta no sentido norte-sul (P.../C...).

30. [O condutor d]o veículo, no dia, hora e local aludidos em 1, quando avistou o peão com um fardo de erva às costas e uma foice na mão, parado na berma da estrada, abrandou a marcha.

31. Tendo continuado a sua circulação, presumindo que o peão aguardaria a sua passagem.

32. Acto contínuo, veio o peão a embater na zona do canto frontal direito (faróis e retrovisor) do veículo. => O peão avançou em frente e foi colhido pela frente, a cerca 20/30 cm da esquina direita, do veículo.

33. Tendo o peão, consequentemente, sido projectado para o chão, levado pelo veículo, acabando por ficar a 21,60m do local de embate.

34. O peão olhou para ambos os lados da faixa de rodagem antes de dar início à travessia.

35. O peão não podia ouvir a aproximação de qualquer veículo (por ser surdo).

8. A via era uma recta, com cerca de 5m de largura, afecta a dois sentidos, sem separador, e com o limite local e limite geral de velocidade de 50 km/h.

9. O piso estava seco e a estrada detinha iluminação.

10. O condutor do veículo não travou antes do embate, nem se desviou para não embater no peão.

14. O local referido em 1 trata-se de uma via marginada por habitações.

25. O peão ficou prostrado no chão.

26. O condutor do veículo não travou.


*


24. O falecido havia-se deslocado à propriedade referida em 5, acompanhado da sua mulher e filha, a fim de colher erva para o pasto.

27. Todos os sábados o falecido e a mulher dirigiam-se à propriedade privada referida em 5 a fim de ajudarem na manutenção da mesma e recolher erva que levavam para sua casa com o intuito de alimentar alguns animais que criavam.

29. O condutor do veículo sabia que o falecido era surdo-mudo, conhecia o carro da mulher deste que se encontrava estacionado no outro lado da estrada, em frente à propriedade de onde ele saiu.

37. O falecido era reformado, mas trabalhava na agricultura, juntamente com a sua mulher.

Perante a factualidade dada como provada, que, no essencial, manteve inalterada, o Tribunal da Relação, tal como o Tribunal da 1.ª instância, entendeu não estar provada a culpa do condutor do veículo na ocorrência do acidente, com a consequente morte do sinistrado, mas, fazendo apelo à mudança de paradigma em matéria de responsabilidade civil automóvel, considerou que a culpa do lesado não permite, sem mais, excluir a responsabilidade pelos riscos do veículo automóvel. No caso dos autos, ponderando a culpa (leve) do lesado e os riscos do veículo, repartiu a contribuição causal para o sinistro e os consequentes danos em 25% para a conduta do lesado e 75% para os riscos do veículo.

Insurge-se a R. contra esta decisão, convocando extensamente a orientação doutrinal e jurisprudencial tradicional, que interpreta o regime do art. 505.º do Código Civil no sentido de que a culpa do lesado quebra o nexo de causalidade entre os riscos do veículo automóvel e o acidente (e os danos), conduzindo necessariamente ao afastamento da responsabilidade do detentor efectivo do veículo ao abrigo do art. 503.º do CC.

Parece ignorar a R., ao menos aparentemente, que tal orientação vem sendo, nas últimas décadas, objecto de profunda revisão. Porém, ao referir-se à necessidade de fazer um «juízo de adequação e proporcionalidade, à luz da interpretação actualista do regime conjugado dos art.os 505.º e 570.º, ambos do Código Civil», revela, afinal, conhecer essa outra orientação, sem, contudo, dela retirar as necessárias consequências.


7. Tratando-se de questão de direito substantivo, de índole essencialmente dogmática, a respeito da qual têm surgido, na última década, múltiplos contributos doutrinais convergentes (por ordem de publicação, ver: Jorge Sinde Monteiro, «Direito dos seguros e direito da responsabilidade civil: da legislação europeia sobre o seguro automóvel a sua repercussão no regime dos acidentes causados por veículos: a propósito dos acórdãos Ferreira Santos, Ambrósio Lavrador (e o.) e Marques de Almeida, do TJUE», in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 142.º, n.º 3977, 2012, págs. 82-131; Maria da Graça Trigo, «Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade por acidente de viação», in Estudos dedicados ao Professor Doutor Bernardo Lobo Xavier, Volume II, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, págs. 485 e segs.; Hugo Luz dos Santos/Leong Cheng Hang, «O Acórdão do STJ, de 14/01/14: Concurso entre o risco do veículo e a culpa do lesado? Um passo atrás no padrão de jusfundamentalidade do Direito da União Europeia?», in Revista de Direito Civil, 2017, Tomo 2, págs. 501 e segs.; Raul Guichard, Anotação ao artigo 505.º, in Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, págs. 415 e seg.; Rui Mascarenhas Ataíde, «Concurso de imputações no âmbito dos acidentes de viação. Os riscos próprios do veículo e o facto do lesado, culposo ou meramente causal», in Revista de Direito Civil, 2021, n.º 2, págs. 319 e segs.; Carlos Lopes do Rego, «A problemática da concorrência da responsabilidade objetiva, decorrente dos riscos de circulação do veículo, com a culpa do lesado», in Julgar, n.º 46 (Janeiro-Abril 2022), págs. 33 e segs.), considera-se adequado socorrermo-nos da síntese recentemente apresentada por um dos referidos autores (Rui Mascarenhas Ataíde, cit., págs. 321 e segs.[1]):

«II. O entendimento tradicional que exclui a responsabilidade do detentor quando existe um acto culposo do lesado ou de terceiro, independentemente da sua contribuição causal para os prejuízos, predominou durante largas décadas na jurisprudência e doutrina nacionais.

Não obstante, a tese sempre encontrou, no plano doutrinário, ilustres opositores como Vaz Serra que, logo nos trabalhos preparatórios, sustentou que poderia haver concurso entre o risco do veículo e a conduta culposa ou não culposa da vítima, com as inerentes consequências ao nível da repartição de responsabilidade pelos danos; apenas se deveria admitir a exclusão total da reparação de danos pelo detentor, se o acidente fosse devido unicamente a facto do lesado.

Mais tarde, a orientação do concurso colheu o apoio de Sinde Monteiro, para quem só a culpa grave do lesado (ou de terceiro) devia excluir sem mais a responsabilidade do detentor do veículo, Brandão Proença (submetendo a hipótese do concurso do risco e da conduta culposa do lesado ao critério do artigo 570.º, n.º 1 e Calvão da Silva, que aceita o concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, sempre que ambos colaborem na produção do dano, sem quebra ou interrupção do nexo de causalidade entre este e o risco pela conduta da vítima como causa exclusiva do evento lesivo. Deste modo, a responsabilidade estabelecida pelo artigo 503.º, n.º 1, apenas seria afastada se o facto do lesado (como o facto de terceiro ou de força maior) fosse a causa única do dano, admitindo-se assim que a indemnização pudesse ser totalmente concedida, reduzida ou excluída, nos termos do regime do artigo 570.º, n.º 1, que seria, portanto, aplicável em virtude da ressalva efectuada pelo artigo 505.º.

Por seu lado, a Conselheira Maria da Graça Trigo veio defender que, no plano da relação causal entre o risco comum inerente à circulação de veículos e os danos sofridos por peões e passageiros (já que os ciclistas são abrangidos pelo regime da colisão de veículos ou são equiparados a peões), não se pode negar que a força cinética de um veículo automóvel constitui causa adequada dos danos ocorridos, mesmo que a conduta do lesado, culposa ou não, tenha sido concausal em relação ao acidente de que resultaram os danos, pelo que a redução da indemnização devido à conduta concausal do lesado teria de ser limitada a uma percentagem diminuta.

Deste modo, segundo Maria da Graça Trigo, sempre que o veículo se encontre em circulação, a respectiva força cinética faz com que seja causa adequada dos danos ocorridos, mesmo que a conduta do lesado, culposa ou não, tenha sido concausal em relação ao acidente de que resultaram os danos; apenas se poderá defender a inexistência de causalidade adequada por parte do veículo nas hipóteses de veículos estacionados ou simplesmente parados no trânsito (com ou sem condutor), nas quais a ausência de força cinética faça com que os veículos não constituam fonte de qualquer perigo especí4co. Com efeito, o fundamento para a responsabilidade objectiva do detentor do veículo não é apenas o perigo de mau funcionamento da máquina – que aponta para a responsabilidade pelo “risco concretizado ou agravado”, mas também o perigo da simples circulação da máquina.

Tratando-se de uma conduta não culposa do lesado (por este ser inimputável ou por, sendo imputável, ter actuado sem culpa), a redução resultaria apenas do vector da causalidade. Diversamente, caso se trate de uma conduta culposa da vítima, então poderia avaliar-se tanto a intensidade da contribuição causal dos perigos do veículo versus conduta do lesado, como o grau de culpa deste, podendo aumentar-se a percentagem de redução da indemnização até 50% do montante dos danos, fasquia que só deveria ser ultrapassada na hipótese de culpa grave do lesado.

III. No plano judicial, uma primeira inversão da orientação clássica ocorreu em 2007, quando o Supremo teve que decidir uma situação em que a condutora de um automóvel, ao iniciar a transposição de um entroncamento, foi surpreendida por um velocípede tripulado por uma criança com 10 anos de idade que, saindo de uma estrada sem prioridade, foi embater no referido veículo. Aplicou-se ao caso concreto o regime do artigo 570.º, n.º 1, e reduziu-se a indemnização em 60% devido à culpa da lesada. O Tribunal considerou que o artigo 505.º deve ser interpretado no sentido de acolher o concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, entendendo que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo apenas é excluída quando o acidente se dever somente ao próprio lesado ou a terceiro ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo. Ora, não obstante a actuação da menor ter contribuído para o acidente, o Tribunal entendeu que a simples estrutura física (as dimensões, a largura) do automóvel esteve inelutavelmente ligada à eclosão do acidente, além de a própria inexperiência da sua condutora fazer também parte dos riscos próprios do veículo.

A jurisprudência dos anos imediatamente posteriores reconheceu em alguns acórdãos a concorrência, em abstracto, entre risco do detentor e culpa do lesado, mas de uma forma geral, considerou que, nas circunstâncias concretas dos autos, o lesado foi o único causador do acidente. De todo o modo, estava lançado o mote para o reconhecimento jurisprudencial do concurso heterogéneo de fundamentos».

E, mais à frente, escreve o mesmo autor:

«II. Em face do exposto, o artigo 505.º tanto se pode aplicar às factualidades em que o acidente foi somente provocado por a vítima cometer uma violação culposa de uma regra de trânsito, como será o caso de um atropelamento motivado pelo próprio peão que atravessou a rua fora da passagem assinalada, como às hipóteses de facto não culposo do lesado, como sucede quando ele perdeu os sentidos, caindo à frente de um automóvel, que não conseguiu assim evitar o atropelamento. Em ambas as situações, a única causa dos acidentes consistiu em factos simplesmente atinentes ao próprio lesado, culposos ou não. Há, contudo, factualidades intermédias, em que se justifica admitir concorrência de imputações, a título de risco pelo lesante e a título culposo ou meramente causal pelo lesado, em virtude de intervir um fenómeno de concausalidade efectiva.

Haverá, por exemplo, imputação pelo risco ao lesante e a título de culpa ao lesado, se um automóvel perder os travões e atropelar um transeunte que atravessou a rua fora da passagem de peões, desde que ambos os factos tenham sido causais para os danos. Quer isto dizer que será necessário o lesado provar que não tendo havido avaria do sistema de travagem do automóvel, não haveria atropelamento, cabendo ao detentor do veículo demonstrar que, mesmo havendo avaria dos travões, o atropelamento também não teria acontecido se o peão atravessasse a rua na passagem de peões.

Em vez disso, existiu concurso de riscos quer do lado do lesante como do lesado, num caso decidido pelo STJ em 1967, em que o acidente foi causado pelo facto de o lesado, fugindo a uma vaga de mar e impelido pelo natural instinto de defesa, ter invadido, sem atenção ao trânsito, a faixa de rodagem e embatido num veículo que seguia em marcha moderada e cujo condutor, apesar de ter efectuado uma travagem rápida, não teve qualquer possibilidade de evitar o acidente. Não obstante, o Tribunal seguiu o entendimento tradicional de excluir a responsabilidade do detentor, em virtude de considerar que o acidente se deveu exclusivamente a facto do lesado; o caso provocou importante debate doutrinário, havendo, inclusive, orientações que se batem pela imputação exclusiva das consequências danosas ao detentor do veículo.

Concorrência de riscos existe também na hipótese de um peão sofrer uma síncope, caindo inanimado no solo e ser atropelado por um automóvel que perdeu os travões. Será novamente necessário o lesado provar que não tendo havido avaria do sistema de travagem do automóvel, não haveria atropelamento ainda que sofresse a síncope, cabendo, por seu turno, ao detentor do veículo demonstrar que, mesmo havendo a referida avaria, o atropelamento também não teria acontecido se o peão não tivesse sofrido a síncope.

Em qualquer destas últimas hipóteses, o artigo 505.º deve ser aplicado não para excluir a responsabilidade do detentor mas para fundar o concurso de imputações. Porém, parece existir um forte obstáculo legal a esta solução. Ao contrário do artigo 570.º, mais flexível porque admite várias hipóteses (redução, exclusão ou manutenção da indemnização devida pelo lesante, consoante a gravidade relativa de ambas as culpas), o artigo 505.º foi concebido, pelo contrário, na lógica do “tudo ou nada”. Contudo, pode interpretar-se o artigo 505.º no sentido de ter sido pensado para excluir a responsabilidade do detentor e não para a diminuir em sede de concurso de imputações, apenas porque a única hipótese que o legislador terá concebido foi precisamente a de o facto do próprio lesado ser a causa exclusiva do acidente.

Deste modo e porque o pensamento do autor da lei não vale nem pode valer como interpretação autêntica, é possível defender-se do ponto de vista metodológico um entendimento do artigo 505.º que atribua a esta disposição, por via de interpretação enunciativa, o sentido implícito de admitir a redução da indemnização devida pelo detentor em caso de concurso de causas, isto é, quando a ocorrência do sinistro foi desencadeada pelos riscos próprios do veículo e por um facto do lesado, culposo ou não culposo. Com efeito, se a regra exclui a responsabilidade do detentor do veículo caso o acidente seja exclusivamente imputável ao próprio lesado, então autoriza em termos implícitos a redução da indemnização devida por esse detentor, na hipótese de o facto do lesado ter sido apenas uma das causas que concorreu para a produção dos danos, em concurso com os riscos próprios do veículo. Aliás, quando o facto do lesado não for culposo, o procedimento preconizado limita-se a estender à aplicação do artigo 505.º a solução do concurso de riscos já consagrada no artigo 506.º, n.º 1, para a hipótese da colisão de veículos.

De resto, a solução afigura-se materialmente adequada, porque faz correr por conta de cada sujeito os riscos que se situam do lado das respectivas esferas, uma vez que não são evidentemente apenas os veículos que têm riscos próprios, as pessoas que participam no tráfego também os têm. Por conseguinte, assim como o detentor do veículo deve responder pelos respectivos riscos (designadamente, anomalias de funcionamento) nos termos do artigo 503.º, n.º 1, os lesados devem suportar o seu próprio risco geral da vida, que se precipitou no desmaio, na síncope, na queda involuntária ou nos eventos similares que tenham concorrido em termos causais para o efeito danoso. Existe, aliás, alguma disfuncionalidade sistemática em admitir somente o concurso de riscos no quadro da colisão de veículos (artigo 506.º), ignorando a relevância que esse fenómeno também pode conhecer em acidentes com peões.

Deste modo e, em princípio, a ponderação relativa de ambas as contribuições irá, assim, reflectir-se na redução do quantum indemnizatório devido pelo detentor do veículo, em termos a determinar segundo as circunstâncias do caso.».

Na mesma linha, afirma Lopes do Rego, em publicação do presente ano («A problemática da concorrência da responsabilidade objetiva, decorrente dos riscos de circulação do veículo, com a culpa do lesado», in Julgar, n.º 46 (Janeiro-Abril 2022), págs. 48 e seg.):

«Pode, pois, concluir-se que se vem sedimentando uma evolução jurisprudencial que afirma - em circunstâncias particulares e exigentemente fundamentadas - a possibilidade de concurso entre a responsabilidade fundada objetivamente nos riscos de circulação do veículo e a eventual culpa ou imputação ao lesado, em algum grau ou medida, do facto danoso.

De notar que parece inteiramente justificada a interpretação atualista do regime normativo originariamente consignado no CC, já que as condições e a intensidade da circulação rodoviária evoluíram drasticamente em relação ao que se verificava nos anos sessenta do século passado, implicando sensível agravamento dos riscos e da sinistralidade a ela associados (envolvendo atualmente, particularmente em ambiente urbano, não apenas a convivência normalmente problemática entre veículos automóveis, peões e velocipedistas, mas também entre estes meios tradicionais de deslocação e circulação e as novas formas de locomoção — trotinetes, patins,...- geradoras de inovatórios e acrescidos riscos na produção de eventos danosos, potencialmente com consequências pessoais gravosas).

Saliente-se mais uma vez que, como atrás se referiu, a tese dita tradicional acerca deste controverso tema, ao estabelecer, de forma rígida e inflexível, que qualquer percentagem de culpa ou de contribuição da conduta do lesado (mesmo que esta se mostre insuscetível de um juízo de censura, por carecer de imputabilidade) para o sinistro implica irremediavelmente o apagamento ou exclusão da responsabilidade objetiva do detentor pelos riscos próprios de circulação do veículo, pode conduzir a um resultado claramente desproporcional, valorando de modo manifestamente excessivo, em detrimento do lesado, comportamentos que - traduzindo embora algum incumprimento das estritas regras estradais - podem envolver, no caso concreto, uma censurabilidade e relevância diminutas para a eclosão do acidente e para as frequentemente gravíssimas lesões que dele resultaram para a vítima, sem permitir qualquer ponderação casuística com a intensidade dos riscos criados pela circulação do veículo.

Note-se que esta desproporcionalidade é ainda acentuada pela aplicação do regime prescrito no n.º 2 do art. 570.º do CC, ao estabelecer que a culpa do lesado não concorre, em princípio, com uma culpa presumida do lesante - ou seja, qualquer grau ou percentagem de culpa efetiva atribuível ao lesado exclui automaticamente a culpa presumida do condutor (por exemplo, se este for comissário por conta de outrem), bem como a responsabilidade objetiva do detentor do veículo, nos termos do disposto no art. 505.º, na referida interpretação.

Por outro lado, tem-se acentuado claramente, ao longo das últimas décadas, uma maior sensibilidade para as necessidades de tutela dos lesados, particularmente dos mais vulneráveis, que frequentemente sofrem danos corporais relevantíssimos a que o Direito não pode permanecer indiferente (podendo, aliás, tal circunstância conduzir, em determinadas situações, como efeito perverso, a uma exacerbada avaliação da culpa atribuível ao condutor do veículo, consubstanciada numa interpretação excessivamente exigente do critério normativo de aferição da culpa, envolvendo a comparação, não com um condutor médio, mas antes com um condutor excelente - isto como via indireta para operar alguma tutela do lesado).». [negrito nosso]

Aqui chegados, confirma-se que, tal como entendeu o tribunal a quo, de acordo com uma interpretação actualista dos arts. 505.º e 570.º do Código Civil, é de admitir a concorrência causal entre os riscos próprios do veículo automóvel e a conduta do lesado, culposa ou não culposa.

Pode, porém, questionar-se se esta interpretação normativa constitui uma simples alternativa, não vinculativa, à tese clássica de exclusão do concurso entre a responsabilidade pelo risco do detentor do veículo e a conduta imputável ao lesado. A resposta a esta questão não pode deixar de ser negativa pelas seguintes razões enumeradas por Rui Mascarenhas Ataíde (cit., págs. 335 e segs.):

«I. Além de oferecer uma repartição equilibrada dos diversos riscos que estejam concretamente envolvidos nos sinistros, o entendimento que se propõe para a compreensão do artigo 505.º assegura ainda o respeito pela chamada obrigação de interpretação conforme ao Direito da União Europeia (DUE) sobre seguro automóvel obrigatório, condensado na Directiva 2009/103/CE, de 16-9-2009, e cuja eficácia não pode ser prejudicada por soluções adversas dos ordenamentos nacionais.

O condicionamento do Direito interno pela legislação comunitária manifestou-se sobretudo a partir da 5.ª Directiva Automóvel (Directiva 2005/14/CE), que pretendeu assegurar a cobertura pelo seguro dos danos pessoais e materiais sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas, em consequência de acidentes em que estivessem envolvidos veículos a motor.

Nessa sequência, foram suscitados diversos reenvios prejudiciais perante o Tribunal de Justiça (TJ) questionando a conformidade com o DUE de uma solução normativa nacional que admitisse a exclusão por inteiro da responsabilidade pelo risco nos casos em que o acidente fosse de imputar ao lesado.

Essencialmente, esteve em causa saber se o imperativo de proteger as vítimas de acidentes de viação prosseguido pelas referidas Directivas, obrigava a desconsiderar a sua contribuição para os danos.

No Processo C-409/09 (Ambrósio Lavrador), estava subjacente o óbito de um ciclista de 6 anos que, circulando de forma tida como perigosa, foi colidir com um veículo automóvel. O TJ respondeu que as Directivas respeitantes ao seguro de responsabilidade civil automóvel “devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente, de exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano”.

Ao nível dos fundamentos da decisão, o TJ entendeu que “as referidas Directivas ficariam privadas desse efeito (efeito útil) se, apenas com fundamento na contribuição da vítima para a produção do dano, uma regulamentação nacional, definida com base em critérios gerais e abstractos, recusasse à vítima o direito de ser indemnizada pelo seguro automóvel obrigatório ou limitasse esse direito de modo desproporcionado. Por conseguinte, só em circunstâncias excepcionais, com base numa apreciação individual, a extensão da indemnização à vítima poderá ser limitada”. Com respeito ao caso que justificou o reenvio, esclareceu o TJ que a solução adoptada partia do pressuposto de que “a legislação nacional (portuguesa) aplicável no âmbito do litígio no processo principal só afasta a responsabilidade pelo risco do condutor do veículo envolvido no acidente” “quando a responsabilidade pelo acidente for exclusivamente imputável à vítima” e que “caso a vítima, por facto que lhe seja imputável, tenha concorrido para a produção do dano ou para o seu agravamento, a indemnização desta, nos termos dessa legislação, é afectada numa medida proporcional ao grau de gravidade desse facto”.

II. Como resulta do seu teor, as decisões do Tribunal de Justiça tiveram como pressuposto que a ordem jurídica portuguesa admite a concorrência entre a imputação do acidente ao lesado e o risco do condutor, cuja ponderação conjugada, para efeitos de concessão, limitação ou exclusão da indemnização, depende da apreciação em concreto das circunstâncias do caso.

Logo, de forma que o Direito nacional respeite a exigência de conformidade com o Direito da União Europeia (e para que, assim, seja salvaguardado o efeito útil das Directivas), é mister que seja interpretado de modo a que em casos de imputação do acidente ao lesado, a responsabilidade objectiva do detentor do veículo interveniente não seja liminar e automaticamente afastada com base em critérios gerais e abstractos, mas apenas quando tal resultar de uma apreciação em concreto das circunstâncias excepcionais que se verifiquem no caso concreto.» [negritos nossos]

No mesmo sentido, afirma Lopes do Rego (cit., págs. 49 e 51):

«Estas exigências acrescidas de proteção das vítimas da gravosa sinistralidade rodoviária contemporânea decorrem, aliás, em primeira linha, dos instrumentos normativos do Direito Comunitário, naturalmente vinculativos dos Tribunais nacionais.

(...)

Importa ainda realçar que, no nosso entendimento, os arestos proferidos pelo TJ nos reenvios prejudiciais operados nos processos atrás referenciados devem ser interpretados no sentido de que a luz verde dada aos ordenamentos nacionais na regulação desta problemática pressupõe a exigência de uma apreciação individualizada das circunstâncias do acidente - uma apreciação, individual e concreta, da relevância da contribuição exclusiva ou parcial da vítima na produção do seu próprio dano - claramente incompatível com a tese tradicional da exclusão automática da responsabilidade pelo risco perante um qualquer grau de culpa ou de contribuição do lesado para o dano por ele sofrido (a simples referência, nos pedidos de reenvio, a decisões prolatadas pelos tribunais superiores que têm admitido, em certas circunstâncias peculiares, tal concorrência terá seguramente levado o TJ a interpretar a pergunta formulada num contexto em que o sistema português não repele, de modo automático e absoluto, a eventualidade de ocorrerem situações concretas que possam justificar a referida concorrência).». [negrito nosso]

É, pois, forçoso concluir-se que a interpretação actualista dos arts. 505.º e 570.º do Código Civil – que a Recorrente pretende fazer prevalecer –, de acordo com a qual é de admitir a concorrência causal entre os riscos próprios do veículo automóvel e a conduta, culposa ou não culposa, imputável do lesado, não constitui apenas uma via interpretativa ao lado da interpretação tradicional que excluía tal concorrência, mas antes a única via interpretativa conforme ao Direito da União Europeia, tal como interpretado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia. Razão pela qual deve ser seguida pelos tribunais, tal como afirmado, inovatoriamente, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/10/2007 (proc. n.º 07B1710), disponível em www.dgsi.pt.

No sentido da admissão da tese do concurso, e reportando-nos apenas aos anos mais recentes, se pronunciaram os acórdãos deste Supremo Tribunal de 01/06/2017 (proc. n.º 1112/15.1T8VCT.G1.S1), de 11/01/2018 (proc. n.º 5705/12.0TBMTS.P1.S1), de 19/03/2019 (proc. n.º 5173/15.5T8BRG.G1.S1), de 28/03/2019 (proc. n.º 954/13.7TBPMS.C1.S1), de 27/06/2019 (proc. n.º 589/14.7T8PVZ.P1.S1), de 17/10/2019 (proc. n.º 15385/15.6T8LRS.L1.S1), de 24/09/2020 (proc. n.º 9/14.7T8CPV.P2.S1), de 13/04/2021 (proc. n.º 4883/17.7T8GMR.G1.S1), de 25/05/2021 (proc. n.º 3883/18.4T8FAR.E1.S1), de 22/06/2021 (proc. n.º 2992/18.4T8AVR.P1.S1), de 19/10/2021 (proc. n.º 7007/16.4T8PRT.P1-A.S1), de 09/03/2022, (proc. n.º 974/19.8T8AVR.P1.S1) e de 05/05/2022 (proc. n.º 5080/18.0T8MTS.P1.S1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.


8. Se não subsistem dúvidas acerca da correcção da interpretação normativa seguida pela Relação, no sentido da admissão do concurso entre a responsabilidade pelo risco do detentor efectivo do veículo e a conduta imputável ao lesado, tal não nos dispensa de, nas expressivas palavras do referido acórdão de 01/06/2017, formular um juízo de adequação e proporcionalidade «perante as circunstâncias de cada caso concreto, pesando, por um lado, a intensidade dos riscos próprios da circulação do veículo e a sua concreta relevância causal para o acidente; e, por outro, valorando a gravidade da culpa imputável a comportamento, activo ou omissivo, do próprio lesado e determinando a sua concreta contribuição causal para as lesões sofridas, de modo a alcançar um critério de concordância prática que, em determinadas situações, não conduzirá a um automático e necessário apagamento das consequências de um relevante risco da circulação do veículo, apenas pela circunstância de ter ocorrido alguma falta do próprio lesado, inserida na dinâmica do acidente.».

Para o efeito, consideremos, de novo, a factualidade dada como provada:

1. No dia 22/08/2018, cerca das 09h35, na Estrada ..., ..., ..., GG conduzia um veículo ligeiro de mercadorias, matrícula ..-..-SV, marca Mitsubishi, modelo Canter [...; peso máximo 3500], e HH encontrava-se apeado na referida rua.

2. A vítima faleceu (...) com 69 anos (...).

5. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1, o peão saía de uma propriedade privada, tendo em vista a travessia da aludida via de trânsito.

6. Com um fardo de erva às costas, com o intuito de atravessar a referida via pública, em direcção ao veículo da sua mulher, que se encontrava estacionado no lado direito (ascendente) da faixa de rodagem, olhou para a esquerda e para a direita, com o intuito de verificar se circulavam veículos quer no sentido ascendente, quer no sentido descendente.

7. Ao iniciar o atravessamento da via pública, o peão foi colhido pelo veículo, que circulava naquela estrada em sentido descendente, numa recta no sentido norte-sul (P.../C...).

30. [O condutor d]o veículo, no dia, hora e local aludidos em 1, quando avistou o peão com um fardo de erva às costas e uma foice na mão, parado na berma da estrada, abrandou a marcha.

31. Tendo continuado a sua circulação, presumindo que o peão aguardaria a sua passagem.

32. Acto contínuo, veio o peão a embater na zona do canto frontal direito (faróis e retrovisor) do veículo. => O peão avançou em frente e foi colhido pela frente, a cerca 20/30 cm da esquina direita, do veículo.

33. Tendo o peão, consequentemente, sido projectado para o chão, levado pelo veículo, acabando por ficar a 21,60m do local de embate.

34. O peão olhou para ambos os lados da faixa de rodagem antes de dar início à travessia.

35. O peão não podia ouvir a aproximação de qualquer veículo (por ser surdo).

8. A via era uma recta, com cerca de 5m de largura, afecta a dois sentidos, sem separador, e com o limite local e limite geral de velocidade de 50 km/h.

9. O piso estava seco e a estrada detinha iluminação.

10. O condutor do veículo não travou antes do embate, nem se desviou para não embater no peão.

14. O local referido em 1 trata-se de uma via marginada por habitações.

25. O peão ficou prostrado no chão.

26. O condutor do veículo não travou.


*


24. O falecido havia-se deslocado à propriedade referida em 5, acompanhado da sua mulher e filha, a fim de colher erva para o pasto.

27. Todos os sábados o falecido e a mulher dirigiam-se à propriedade privada referida em 5 a fim de ajudarem na manutenção da mesma e recolher erva que levavam para sua casa com o intuito de alimentar alguns animais que criavam.

37. O falecido era reformado, mas trabalhava na agricultura, juntamente com a sua mulher.

Perante esta factualidade, entendeu a Relação que, por um lado, não foi provado que o condutor do veículo tenha actuado culposamente, e, por outro lado, que, tendo o lesado infringindo o art. 101.º do Código da Estrada, a sua conduta deve ser considerada culposa, sendo que essa culpa «é uma culpa leve de apenas 25%, tanto mais que, por um lado era surdo, tornando mais difícil percepcionar a aproximação e velocidade do veículo, e estava carregado com um fardo de erva às costas, andando curvado, o que leva a supor que o seu ângulo de visão fosse menor, podendo não ver um veículo que já circulava na estrada, ou vendo-o, achando que tinha tempo de atravessar a estrada. A responsabilidade pelo risco é afastada apenas nesta medida, restando pois 75% dela.».

Insurge-se a Recorrente contra este entendimento.

Quid iuris?

Prescreve o art. 101.º do Código da Estrada:

«1 - Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respetiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente.

2 - O atravessamento da faixa de rodagem deve fazer-se o mais rapidamente possível.

3 - Os peões só podem atravessar a faixa de rodagem nas passagens especialmente sinalizadas para esse efeito ou, quando nenhuma exista a uma distância inferior a 50 m, perpendicularmente ao eixo da faixa de rodagem.

4 - Os peões não devem parar na faixa de rodagem ou utilizar os passeios e as bermas de modo a prejudicar ou perturbar o trânsito.

8. (...)».

Do conjunto dos factos provados resulta que, na qualidade de peão que pretendia atravessar a faixa de rodagem em local onde não existia uma passagem para peões, cabia ao peão assegurar-se de que o podia «fazer sem perigo de acidente» (n.º 1), sendo de concluir que, uma vez que o embate ocorreu sem que o condutor do automóvel tivesse infringido qualquer regra estradal, aquela norma não foi respeitada pelo falecido HH. Contudo, tendo sido também provado que «o peão [à data com 69 anos – facto provado 2.] olhou para ambos os lados da faixa de rodagem antes de dar início à travessia, com o intuito de verificar se circulavam veículos quer no sentido ascendente, quer no sentido descendente» (facto provado 6.), verifica-se que o desrespeito pela norma do n.º 1 do art. 101.º do Código da Estrada se deveu a simples imperícia do lesado que, transportando «um fardo de erva às costas», não conseguiu calcular bem o tempo necessário para o atravessamento. Tendo ainda em conta que: (i) foi provado que a sua actividade de transportar um fardo de erva às costas constituía para o lesado uma necessidade e não um capricho (facto provado 27.); (ii) foi provado que o lesado era surdo-mudo (facto provado 29.), não merecendo censura o juízo presuntivo da Relação («era surdo, tornando mais difícil percepcionar a aproximação e velocidade do veículo»); (iii) sufraga-se o entendimento do acórdão recorrido segundo o qual a morte do sinistrado foi devida a culpa leve deste último, mas também aos riscos próprios do veículo segurado na R.. Sendo, por isso, igualmente de sufragar o juízo de adequação e proporcionalidade realizado pelo tribunal a quo ao atribuir a causalidade da morte em 25% ao lesado e em 75% aos riscos próprios do veículo.

Deste modo, improcede a pretensão da Recorrente a respeito da imputação da responsabilidade pela morte do sinistrado.


9. Importa passar a apreciar da impugnação dos quantitativos indemnizatórios fixados pela Relação. Antes de mais, pretende a Recorrente que seja reduzida a quantia indemnizatória fixada em € 60.000,00, a título de danos não patrimoniais pela perda da vida do sinistrado, invocando dois fundamentos:

a) 1.º fundamento:

- «em casos similares àquele sub judice, mormente no que respeita ao atropelamento de peão, o montante arbitrado pelo Supremo Tribunal de Justiça oscilou entre os valores de €54.000,00 e de €70.000,00, na maioria dos acórdãos referidos, o montante da indemnização não ultrapassou o valor de €65.000,00.

- Assim, comparando a situação dos autos com outras apreciadas pelo Supremo Tribunal de Justiça, assim como os montantes que por este têm vindo a ser arbitrados, bem como o pedido dos Autores, considera-se excessivo o valor fixado pelo douto Tribunal da Relação (...)

- Devem ser equitativamente ajustados os valores para compensação do dano morte (...), recomendando-se, assim e a este título, a atribuição de compensação nunca superior a €35.000,00 (trinta cinco mil euros).».

b) 2.º fundamento:

- «[A]o concluir que a indemnização pelo dano morte devida, tendo por base um grau de responsabilidade em 75%, é de €65.000,00, conclui também que a indemnização pelo dano morte devida, tendo por base um grau de responsabilidade em 100%, é de €86.667,00. Valor este que excede o montante pelos Autores pedido.»

- «Assim, e sem prescindir da já evidenciada ausência de prova dos factos que sustentam o valor do pedido -, que sempre deverá ser relevada pelo julgador, não o tendo sido pelo Meritíssimo Tribunal a quo -, ainda que esse douto Tribunal ad quem acompanhe o entendimento no sentido de que a responsabilidade do veículo se fixa em 75% - o que se não concebe nem concede -, não poderá, nesta sede, o quantum indemnizatório exceder o valor global de €45.000,00 (quarenta e cinco mil euros), desta feita, sempre devendo o Tribunal ad quem ter em consideração o grau de responsabilidade (que não deveria ser) atribuído à aqui Recorrente».

Relativamente ao primeiro fundamento, e face ao reconhecimento de que a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem atribuído o montante de €70.000,00 pelo dano de perda da vida, torna-se difícil compreender como chegou a Recorrente ao reduzido valor de €35.000,00 para compensação desse mesmo dano no caso dos autos.

De qualquer forma, no que respeita ao fundamento invocado – necessidade de aproximar o quantum indemnizatório dos valores fixados pela jurisprudência deste Supremo Tribunal –, convoquemos o recente acórdão proferido por este mesmo colectivo em 10/11/2022 (proc. n.º 239/20.2T8VRL.G1.S1), disponível em www.dgsi.pt, no qual se manteve o valor de € 70.000,00 pelo dano de perda da vida do sinistrado (de 63 anos de idade), com a seguinte fundamentação:

«(...) basta referir, a título exemplificativo, que os acórdãos de 04-06-2020 (proc. n.º 2732/17.5T8VCT.G1.S1), de 25-02-2021 (proc. n.º 4086/18.3T8FAR.E1.S1) e de 03-03-2021 (proc. n.º 3710/18.2T8FAR.E1.S1), todos disponíveis em www.dgsi.pt, fixaram em €80.000,00 o quantum indemnizatório pelo dano morte – sendo também este o valor fixado para o dano morte nos supra referidos parâmetros definidos pelo Provedoria de Justiça – para concluir não ser excessivo o montante a este título atribuído pela tribunal a quo aos AA.».

Sendo estas considerações inteiramente válidas para o caso dos autos, não se afigura excessivo o valor indemnizatório fixado pela Relação.

Quanto ao segundo fundamento invocado – se os AA. peticionaram o montante de €60.000,00 pelo dano de perda da vida e a responsabilidade pelo acidente só foi imputada ao veículo seguro na R. em 75%, então o princípio do limite do pedido levará, necessariamente, a reduzir tal montante para € 45.000,00 – importa ter presente que o acórdão recorrido, após ter convocado decisões deste Supremo Tribunal que fixaram o valor de € 80.000,00 pelo dano morte, afirmou o seguinte:

«Tendo então em conta, no caso, a idade da vítima, o facto de, face aos factos provados, ser de lhe imputar a culpa do acidente em 25%, e a jurisprudência recente do STJ, atribuiu-se a este dano, já descontada aquela percentagem da culpa da vítima, o valor de 60.000€, a dividir em partes iguais pelos cinco autores.».

Temos, pois, que o tribunal a quo, considerando que a compensação pela perda da vida do sinistrado seria de fixar em € 80.000,00, atribuiu aos AA. o valor de € 60.000,00, correspondente precisamente à percentagem de 75% daquele valor, retirando pois € 20.000,00 correspondentes aos 25% de culpa do lesado.

Conclui-se, assim, não ter havido desrespeito pelos limites do pedido.


10. Quanto ao quantum indemnizatório fixado a títulos de danos não patrimoniais próprios dos AA., mulher e filhos do sinistrado, alega a Recorrente, em termos análogos, que:

a) Tal montante, fixado no valor global de € 65.000,00 (repartido em € 20.000 para a mulher, € 15.000 para a filha menor e €10.000 para cada um dos três filhos maiores), é excessivo quando comparado com os valores indemnizatórios atribuídos em outros casos;

b) De qualquer forma, a manter-se o valor fixado, sempre terá de ser proporcionalmente reduzido, atendendo ao limite do pedido, não podendo exceder «o valor global de €48.750,00 (quarenta e oito mil setecentos e cinquenta euros), à razão dos montantes indemnizatórios de €15.000,00 (para a cônjuge), €11.250,00 (para a filha de 16 anos) e de €7.500,00 (para cada um dos três restantes filhos), desta feita, sempre devendo o Tribunal ad quem ter em consideração o grau de responsabilidade (que não deveria ser) atribuído à aqui Recorrente.».

Em relação ao primeiro fundamento invocado (carácter excessivo dos montantes indemnizatórios atribuídos), afirma-se no acórdão recorrido:

«Os autores invocam o dano sofrido por cada um deles com a morte da vítima, que dá direito a indemnização de acordo com a hierarquização do artigo 496 do CC. Considerando as circunstancias em que o acidente e morte ocorreram e tendo ainda em conta o bom relacionamento que existia entre eles e a vítima, consideram ajustado para o compensar a atribuição de 20.000€ à autora mulher, 15.000€ para a autora filha - tendo em conta que estas assistiram ao acidente, viram o seu pai e marido agonizar entre a vida e a morte e viviam com a vitima - e 10.000€ para cada um dos outros três filhos, tendo em conta que eles também naturalmente sofrem mas terão conseguido enfrentar essa realidade de forma menos depressiva.

(...)

Apreciação:

No já referido ac. do STJ de 25/02/2021, proc. 4086/18.3T8FAR.E1.S1, escreve-se:

“[…] cumprindo-nos indagar […] quais os valores arbitrados que mais se harmonizam com os critérios ou padrões seguidos pela jurisprudência, importa salientar, tal como nos dá conta o citado acórdão do STJ de 21/03/2019, proc. 20121/16.7T8PRT.P1.S1, que relativamente à indemnização de um filho pela morte do pai ou mãe, a jurisprudência deste STJ tem fixado valores que têm variado, em razão da especificidade do caso, entre 7.500€ e 30.000€ [refere inúmeros acórdãos de 2010 a 2018], tendo fixado valores mais elevados apenas nos casos em que existe uma especial situação de fragilidade dos filhos em causa [cfr, entre outros, acs do STJ de 10/01/2012, proc. 4524/06.8TBBCL.L1.S1, e de 19/04/2012, proc. 569/10.1TBVNG.P1.S1].

Assim, à luz destes parâmetros e cientes da necessidade de uma progressiva actualização dos valores indemnizatórios, impõe-se concluir, ante o quadro factual supra descrito, ser ajustada a indemnização arbitrada pelo TRE ao autor [filho: de 35.000€], não se vislumbrando razões para estabelecer, a este nível, a diferenciação entre o autor, enquanto filho da vítima, e a interveniente BB [unido de facto], atendo o facto de a mesma ter vivido em união de facto com a vítima durante 6 anos.

Com efeito, resulta claro da matéria dada como provada que ambos mantinham com a vítima laços de afectividade e convivência no âmbito de um mesmo consolidado agregado familiar, admitindo-se que ambos ficaram psicologicamente afectados, em igual medida, pela perda do CC.

Considera-se, por isso, justo e adequado que a indemnização base pelos danos próprios do autor e da interveniente BB seja fixada em 35.000€.”

No caso, isto poderia levar à atribuição às autoras, cônjuge e filha conviventes, de 35.000€ para cada uma, sem distinções entre elas; e a cada um dos filhos, a indemnização de 20.000€, já que, naturalmente, estes, embora a viverem distantes e independentes, mantinham laços de afeição, mas esses laços eram, também naturalmente, de menor intensidade em relação às outras duas autoras. Mas como tal ultrapassaria o valor destes pedidos e não se pode dar aos autores mais do que pedem (art. 609/1 do CPC), não vale a pena discutir a discrepância em relação ao pedido, sendo de se aceitar os valores indicados pelos autores (20.000€ para a cônjuge, 15.000€ para a filha e 10.000€ para cada um dos filhos).». [negrito nosso]

Da fundamentação transcrita resulta ter o tribunal a quo aferido o valor de referência (€ 35.000,00 tanto para a mulher como para a filha menor; € 20.000,00 para cada um dos filhos maiores) a atribuir aos AA. - não fora o limite do peticionado - com base nos valores atribuídos pelo acórdão de 25/02/2021 (processo n.º 4086/18.3T8FAR.E1.S1), proferido nesta 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça e consultável em www.dgsi.pt. Tanto por esta referência comparativa, como pela consideração do supra referido acórdão de 10/11/2022, recentemente proferido por este mesmo colectivo, no qual se manteve o quantum indemnizatório de €40.000,00 por danos não patrimoniais próprios da viúva do aí sinistrado, é de concluir não serem excessivos os montantes indemnizatórios atribuídos aos AA. a título de danos não patrimoniais próprios.

Quanto ao segundo fundamento (necessidade de, para além de reduzir o valor atribuído em função do valor peticionado, se proceder também a uma redução proporcional do valor pedido em razão da atribuição de 25% de culpa ao lesado), tampouco assiste razão à Recorrente. Com efeito, o tribunal a quo – que, em todos as parcelas indemnizatórias, ponderou a repartição da responsabilidade entre os riscos do veículo e a culpa do lesado – teve já em conta a necessidade de tal redução. Concretamente:

- Se o valor a atribuir à mulher e à filha menor seria de €35.000,00 para cada uma, a redução em 25% conduziria ao valor de €26.250,00; consequentemente, nem o valor de €20.000,00 atribuído à A. mulher, nem o valor de €15.000,00 atribuído à A. filha excedem os montantes a que teriam direito, não fora os limites do peticionado;

- Se o valor a atribuir a cada filho maior seria de €20.000,00 para cada um, a redução em 25% conduziria ao valor de €15.000,00; consequentemente, o valor de €10.000,00, atribuído a cada um dos filhos, não excede o montante a que cada um teria direito, não fora os limites do peticionado.

Deste modo, conclui-se, também nesta parte, não merecer censura o acórdão recorrido.


11. Passemos agora a apreciar a questão da indemnização a título de reparação dos danos patrimoniais futuros da mulher e da filha menor, fixada em € 67.859,64, mas que, segundo a R. Recorrente, não deverá ultrapassar € 36.758,88; e sendo que, segundo a mesma Recorrente, este valor sempre terá de ser reduzido para não mais do que € 27.569,16, atendendo à proporção da responsabilidade (75%) atribuída aos riscos do veículo.

Ficou provado que «[o] falecido era reformado, mas trabalhava na agricultura, juntamente com a sua mulher.».

O acórdão recorrido fundamentou a sua decisão nos seguintes termos:

«Não havendo uma actividade profissional remunerada, não se afigura desajustado tomar como referência o valor mensal de próximo do salário mínimo nacional.

Posto isto,

No caso dos autos as autoras não lograram provar a sua absoluta dependência financeira da vítima, nem sequer, que o seu marido/pai auferisse qualquer reforma. Mas isso, já se viu, no caso dos direitos que aqui estão em causa não importa, pois que não se trata de fixar uma prestação de alimentos.

Dos factos provados (24, 25, 37 e 38) pode-se concluir apenas que aquele ajudava à manutenção de uma propriedade aos sábados e que nela recolhia erva que levava para sua casa com o intuito de alimentar alguns animais que ele e a mulher criavam. Era reformado, mas trabalhava na agricultura, juntamente com a sua mulher. Era marido e pai disponível, ajudando na realização de todas as tarefas domésticas, cozinhava e cuidava do jardim e da casa, ajudava a mulher e os filhos no que podia.

Face à falta de prova do valor efectivo de rendimentos que auferir, bem como do trabalho com que contribuía para os encargos do agregado familiar, entende-se que se deve ficcionar um rendimento mensal de um salário mínimo mensal (incluindo a sua contribuição com trabalho para os encargos do agregado familiar), que era, à data do acidente, Agosto de 2018, de 580€ (DL 156/2017, de 28/12).

O falecido tinha, à data do acidente, 69 anos, e, por isso, uma esperança média de vida de cerca de 13,5 anos. A mulher tinha 55 anos e por isso uma maior esperança de vida. A filha BB nasceu em .../.../2002 e era provável/possível que estudasse até aos 25 anos de idade, ou seja, até 2027, ou seja, mais 9 anos após o acidente.

Durante os próximos 9 anos (= 108 meses), a vítima provavelmente reservaria para si ¼ dos seus rendimentos, ou seja daria para o agregado familiar de 3 membros com 435€ mensais. Durante os outros 4,5 anos (= 54 meses), a reserva seria de 1/3 pelo que a contribuição para um agregado familiar de 2 membros passaria a ser de 386,66€. Ou seja, presumivelmente ele contribuiria, até à sua morte, com o valor total de 108 x 435€ + 54 x 386,66€ = 46.980€ (com benefício para as duas autoras) + 20.879,64€ (com benefício só para a autora). Dado que a taxa de juros bancários para depósitos de valores pequenos não tem hoje, praticamente relevo, a entrega deste capital, de uma só vez, não vai produzir rendimentos significativos que devam ser tidos em conta. Isto é a avançada idade da vítima torna, no caso, mais simples o cálculo desta forma, e desaconselhável, por ser mais aleatório, o cálculo de um capital produtor anualmente de um rendimento igual ao perdido, que é a forma como, em geral, se faz o cálculo deste ano.

Assim, a cônjuge tem direito 44.369,64€ e a filha a 23.490€.

Mas a estes valores há que descontar a proporção da culpa da vítima, de 25%, pelo que ficam reduzidos a 33.277,23€ e 17.617,50€, respectivamente.». [negritos nossos]

Insurge-se a Recorrente contra esta decisão, alegando os seguintes fundamentos:

(i) O valor apurado assenta erradamente na convicção inverosímil de que o de cujus apenas reservaria 1/4 dos seus rendimentos, presumindo que 3/4 do mesmo rendimento seria despendido com o restante agregado familiar, o que não corresponde à realidade familiar e financeira paradigmática da família portuguesa;

(ii) A partir do momento em que a emancipação da filha menor se verificasse, o de cujus deixaria eventualmente de contribuir financeiramente, sendo que nada resulta dos autos que justificasse que a ajuda financeira perdurasse no tempo;

(iii) Se o valor que se desconhece é o valor auferido a título de reforma pelo de cujus, claro está que é o valor médio nacional auferido a esse título, de reforma, que deve ser ponderado pelo tribunal para efeitos de ponderação de um valor indemnizatório;

(iv) Sendo ainda certo que, se a responsabilidade a atribuir for de 75%, sempre deverá o valor condenatório ser reduzido ao montante correspondente a 75% do valor que se reputa por devido.

Concluindo da seguinte forma:

- «Assim, tendo em consideração que o valor médio anual da reforma por velhice em 2018 era de €5.445,80 (cfr. https://www.pordata.pt/), há que considerar que o de cujus auferia um valor mensal a título de reforma de €453,82. Desta feita, ainda que se considere que três quartos de tal rendimento era destinado ao agregado familiar e desse agregado se exclua o de cujus, sobra um rendimento mensal de €340,36, o qual, ao fim de 9 anos (108 meses), ascende ao valor de €36.758,88 e cuja proporção de 75% resulta no montante global de €27.569,16 (vinte sete mil quinhentos e sessenta e nove euros e dezasseis cêntimos)»;

- «Posto isto, não poderá, nesta sede, o quantum indemnizatório exceder o valor global de €27.569,16 (vinte sete mil quinhentos e sessenta e nove euros e dezasseis cêntimos), desta feita, sempre devendo o Tribunal ad quem ter em consideração o grau de responsabilidade (que não deveria ser) atribuído à aqui Recorrente.».

Apreciemos brevemente cada um dos fundamentos invocados:

- A convicção de que o sinistrado gastaria consigo próprio cerca de 1/4 dos seus rendimentos, destinando cerca de 3/4 do mesmo rendimento para ser despendido com o agregado familiar, composto pelo próprio sinistrado, pela sua mulher e pela filha menor de ambos, nada tem de inverosímil, atendendo a que as despesas com o agregado familiar incluem tanto as despesas próprias da mulher e da filha como as despesas comuns do agregado, entre as quais algumas serão despesas fixas, isto é, não variáveis em função do número de pessoas que integram o agregado;

- Contrariamente ao invocado pela Recorrente, o tribunal a quo distinguiu claramente entre um período de 9 anos durante o qual a filha, menor à data do acidente, seria dependente dos pais e um outro período de 4,5 anos no qual a filha seria autónoma;

- A pretensão de que o acórdão recorrido tivesse adoptado como referencial base o valor da reforma média mensal e não o valor do ordenado mínimo mensal só faria sentido se tivesse ficado provado que, à data do sinistro, o falecido era apenas reformado; tendo ficado provado que, nessa data, ainda que reformado, continuava a trabalhar na agricultura, não merece censura o critério utilizado;

- Por fim, não se compreende a alegação de que o valor condenatório [seja] reduzido ao montante correspondente a 75% do valor que se reputa por devido», uma vez que essa dedução foi realizada pelo tribunal a quo («Assim, a cônjuge tem direito 44.369,64€ e a filha a 23.490€. Mas a estes valores há que descontar a proporção da culpa da vítima, de 25%, pelo que ficam reduzidos a 33.277,23€ e 17.617,50€ (...)».).

Conclui-se, assim, pela não verificação dos alegados erros nos pressupostos em que se baseou o juízo equitativo da Relação em matéria de indemnização pelos danos não patrimoniais futuros das autoras.


12. Invoca ainda a Recorrente que, sendo a indemnização fixada segundo a equidade, os juros moratórios apenas devem ser contabilizados a partir da data da sentença e não da data da citação.

Vejamos.

Prescreve o n.º 3 do art. 805.º do CC:

«Se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora, nos termos da primeira parte deste número.».

Acerca da segunda parte desta norma, afirma-se o seguinte:

«A segunda parte do nº 3 é o resultado de um aditamento operado pelo DL n.º 262/83, de 16 de Junho, diploma que introduziu várias alterações no CC, designadamente ao nível de matérias nas quais o fenómeno da inflação assume especial relevância. A interpretação e aplicação desta norma não se mostrou pacífica, suscitando-se inúmeros problemas interpretativos, entre os quais assumem maior importância os respeitantes à aplicação no tempo das alterações ao artigo 805.º, n.º 3, e à conjugação da nova redação com o regime do artigo 566.º, n.º 2.

(...)

(...) a conjugação sistemática desta norma com outras disposições relativas ao cálculo da obrigação de indemnizar, mormente com o artigo 566.º, n.º 2, constitui a questão essencial. Ao nível da jurisprudência, o tratamento deste problema passou pelo reconhecimento da eventual duplicação da indemnização em virtude da aplicação simultânea do regime do artigo 805.º, n.º 3 com o critério base do artigo 566.º, n.º 2.». (Maria da Graça Trigo /Mariana Nunes Martins, Anotação ao artigo 805.º, in Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, pág. 1131).

A questão da conjugação da segunda parte do art. 805.º, n.º 3 com a norma geral do n.º 2 do art. 566.º, ambas do Código Civil, veio a ser resolvida da seguinte forma pelo AUJ n.º 4/2002:

«Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação.».

Aplicando este critério ao caso dos autos, tudo indica que o acórdão recorrido, ao fixar quantitativos indemnizatórios segundo juízos de equidade, tanto por danos não patrimoniais dos AA., como por danos patrimoniais futuros da A. mulher e da A. filha, o fez de forma actualizada.

Procede, pois, nesta parte o recurso da R. Seguradora, devendo os juros de mora incidentes sobre os quantitativos indemnizatórios fixados equitativamente ser contados desde a data da sentença. E mantendo-se o decidido pelo tribunal a quo a respeito do início da contagem de juros moratórios sobre o montante a pagar à A. AA pelas «despesas de funeral comprovadas», assim como pelos montantes a pagar ao Instituto da Segurança Social (ISS).


13. Por último, pretende a Recorrente ser absolvida do pedido do Instituto da Segurança Social no que se refere ao reembolso do subsídio de sobrevivência «por efeito da comprovada culpa (exclusiva) do lesado ou, ad cautelam, sempre devendo a Ré/Recorrente ser parcialmente [absolvida] do mesmo pedido na proporção da culpa do lesado».

Vejamos.

No que se refere à pretensão formulada a título principal (absolvição da R. do peticionado pelo ISS), tendo improcedido a pretensão da Recorrente quanto à imputação da responsabilidade pelo sinistro e pelos danos, improcede também o recurso nesta parte.

No que se refere à pretensão formulada a título subsidiário (absolvição parcial da R. do pedido, na proporção da culpa do lesado), não faz a mesma sentido, uma vez que, como resulta claramente do teor da decisão recorrida, reproduzida supra, no relatório do presente acórdão, todas as quantias que a R. foi condenada a pagar ao ISS foram tidas em conta para efeitos de dedução às quantias que a R. foi condenada a pagar aos AA., sendo que, por sua vez, e como se verificou ao longo da fundamentação do presente acórdão, estas últimas quantias foram, todas elas, fixadas com dedução de 25% em função da culpa do lesado.

Conclui-se, pois, pela improcedência desta pretensão da Recorrente.


14. Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, decidindo-se:

a) Revogar o acórdão recorrido na parte em que decidiu que vencem juros de mora sobre os montantes indemnizatórios equitativamente fixados, desde a data da citação dos autores, devendo tais juros vencerem antes desde a data da sentença;

b) Manter a decisão do acórdão recorrido na parte respeitante ao início da contagem de juros moratórios sobre o montante a pagar à autora AA pelas despesas de funeral comprovadas, assim como sobre os montantes a pagar ao Instituto da Segurança Social (ISS);

c) No mais, manter a decisão do acórdão recorrido.


Custas pela Recorrente e pelos Recorridos, na proporção de 90% e de 10%, respectivamente.


Lisboa, 30 de Novembro de 2022


Maria da Graça Trigo (Relatora)

Catarina Serra

Paulo Rijo Ferreira (parcialmente vencido, conforme declaração de voto que junto)



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Processo 1896/20.5T8FNC.L1.S1


Fiquei vencido quanto à repartição de responsabilidades porquanto atribuiria 50% da responsabilidade a culpa do lesado e 50% da responsabilidade aos riscos próprios do veículo.

Afigura-se-me redutora a consideração de que a contribuição do lesado para o desencadear do acidente se ficou a dever a «simples imperícia de lesado que, transportando ‘um fardo de erva às costas’, não conseguiu calcular bem o tempo necessário para o atravessamento», depois de ter olhado (mas, ao que se deduz, sem ter visto) para ambos os lados da faixa de rodagem.

O embate ocorreu acto contínuo ao lesado ter iniciado o atravessamento, no canto frontal direito (faróis e retrovisor), quando o veículo havia já abrandado a marcha em função da aproximação do lesado e sem que o condutor do veículo tivesse travado ou intentado desviar-se, convicto que vinha de que o peão não intentaria o atravessamento (factos provados 7, 8, 10, 14 e 32). Não estamos, assim, perante uma ‘simples imperícia’, um mero erro de cálculo, mas antes perante uma manifesta desatenção ou inconsideração; que o facto de ser surdo não diminui uma vez que em função dessa sua incapacidade sensorial lhe era exigido que fizesse, na circunstância, mais acurada utilização de outros sentidos, em particular da visão.

Entendo que sopesando o peso relativo das circunstâncias causais do acidente – a súbita invasão da faixa de rodagem pelo lesado e a potencialidade de provocação de dano por parte do veículo automóvel em circulação – não se poderá ter como diminuída a relevância do comportamento da vítima. É que, não obstante ser de esperar que do embate num veículo em movimento resultem danos graves, não é de esperar que os peões se lancem súbita e desatentamente na faixa de rodagem intersectando o sentido de marcha dos veículos.

A perspectiva da concorrência entre culpa e risco, decorrente de uma socialização do risco do trânsito rodoviário e de protecção dos mais fracos utilizadores das vias rodoviárias, não pode redundar numa sistemática ou presuntiva atribuição de maior responsabilidade aos riscos próprios do veículo exclusivamente fundada na intrínseca da potencialidade danosa do mesmo. Caso contrário já não estaremos numa situação de concorrência entre culpa e risco, mas na assunção da prevalência do risco, partindo da consideração de que sempre que haja a intervenção de um veículo é desde logo de se lhe imputar a maior parte da causação do dano.

Rijo Ferreira

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[1] Em razão da sua extensão, opta-se por não transcrever as notas de pé de página do texto.