Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1015/20.8T8PVZ.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA JOÃO VAZ TOMÉ
Descritores: ACIDENTE DESPORTIVO
CONTRATO DE SEGURO
SEGURO OBRIGATÓRIO
SEGURO DE GRUPO
SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL
SEGURO DE ACIDENTES PESSOAIS
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
INCAPACIDADE
LESADO
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
Data do Acordão: 10/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - Cobrir os riscos implicados pelo exercício do desporto, mediante a consagração do seguro desportivo obrigatório, traduz-se numa necessidade primordial para a segurança dos praticantes.

II - Por outro lado, além de obrigatório, o seguro desportivo obrigatório é um seguro de grupo em sentido estrito, porquanto se celebra um único contrato entre o segurador e a federação desportiva – que assume a posição de tomadora do seguro – que cobre uma multiplicidade de segurados e, dentro dos seguros de grupo, é contributivo.

III - Entende-se que a referência feita no art. 16.º, al. d), da LSD, ao concreto grau de incapacidade do lesado impõe, justamente, que se atenda à situação em que o mesmo efetivamente se encontra, o que não sucede se não se levar em devida linha de conta a extensão do dano concretamente por si sofrido, assim como aos danos não patrimoniais.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça,

I - Relatório

1. Mediante a presente ação declarativa, AA pretende obter a condenação de AIG Europe S.A. – Sucursal em Portugal e da Federação Equestre Portuguesa no pagamento da quantia total de € 116.164, 88, relativa aos diversos danos (biológico, não patrimonial, perda de ganho, despesas médicas e medicamentosas e outros) por si sofridos em consequência da queda de um cavalo aquando do exercício da atividade desportiva de equitação enquanto atleta federada. Perante a seguradora AIG Europe S.A. – Sucursal em Portugal, invoca a existência de um contrato de seguro celebrado entre esta e a Federação Equestre Portuguesa.

2. As Rés contestaram. A Ré seguradora referiu ter celebrado um contrato de seguro de acidentes pessoais e não de responsabilidade civil pelo que, considerando o regime aplicável, apenas responde na proporção da incapacidade de que padeça a Autora, aplicada ao limite de capital contratado de € 28.000, 00.

3. Realizado o julgamento, foi proferida sentença, a 23 de setembro de 2022, que absolveu a Ré Federação Equestre Portuguesa do pedido e, julgando parcialmente procedente a ação contra a seguradora, condenou-a a pagar à Autora a quantia de € 27.589,04, com juros de mora desde a citação.

4. Não conformada, a Ré seguradora interpôs recurso de apelação, pugnando pela revogação parcial da sentença e pela redução da condenação para a quantia de € 6.589, 04.

5. Por acórdão de 27 de fevereiro de 2023, o Tribunal da Relação do Porto decidiu o seguinte:

Pelo exposto, decidem as Juízas deste Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e manter a decisão recorrida”.

6. De novo não conformada, a Ré seguradora interpôs recurso de revista excecional, formulando as seguintes Conclusões:

1- Vem o presente recurso de revista excepcional interposto do douto Acórdão que confirmou a sentença de primeira instância e que decidira pelo arbitramento à Autora da quantia de € 28 000,00, deduzida de € 410,96 já pagos pela Recorrente, ou seja, € 27 589,04 (vinte e sete mil, quinhentos e oitenta e nove euros e quatro cêntimos).

2- A Recorrente discorda do douto Acórdão e do seu arrazoado, entendendo a Recorrente que perante o tipo de contrato de seguro em questão, não poderia ter sido condenada no pagamento da totalidade do capital previsto na apólice.

3- Nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2009, o montante a pagar pela cobertura de invalidez permanente parcial deve ser obtido por simples cálculo aritmético, com ponderação do grau de invalidez e, além disso, não se prevê no diploma que devam ser pagos quaisquer montantes a título de “danos não patrimoniais”.

4- Ainda que estejamos perante uma situação de “dupla conforme”, existem fundamentos para uma revista excepcional, estando em causa interesses de particular relevância social e havendo outros Acórdãos em contrário, já transitados em julgado.

5- O contrato de seguro objecto de litígio, titulado pela apólice n.º ...05, foi contratado à Recorrente AIG pela Federação Equestre Portuguesa em cumprimento da exigência legal que lhe impunha o Decreto-Lei n.º 10/2009, de 12 de Janeiro.

6- O seguro desportivo obrigatório visa atender a uma necessidade social fundamental e tem como objectivo acautelar os riscos inerentes à prática desportiva e garantir que os atletas mantêm as suas actividades desportivas.

7- Além de se acautelar as eventuais lesões sofridas por um atleta em concreto, indirectamente também este seguro garante o normal funcionamento das instituições desportivas, a própria prática desportiva na generalidade, a sua finalidade de inserção social e os seus princípios de universalidade, igualdade e ética desportiva.

8- Não obstante a sua obrigatoriedade e as suas especificidades, o contrato de seguro desportivo não deixa de ser precisamente isso: um contrato. E, porque o é, tem contraprestações definidas para cada uma das partes.

9- À obrigação de garantir determinado risco que impende sobre o segurador, corresponde a obrigação do tomador pagar o prémio, que é definido tendo vários critérios, como sejam o tipo de risco e o capital da apólice.

10- Apólices com capitais reduzidos, terão prémios mais baixos, enquanto que outras de capitais mais elevados, terão, consequentemente, prémios mais elevados.

11- Igual influência na definição do prémio terá o modo de funcionamento da cobertura de invalidez permanente parcial, por exemplo, e o seu método de cálculo do capital a pagar ao atleta, pelo que é de primária importância ter em conta as legítimas expectativas do segurador aquando da contratação das apólices, que calculou o prémio, a sua remuneração pela cobertura do risco, com base em pressupostos que não devem ser a posteriori afastados.

12- Acresce, ao fixar os capitais mínimos para as diferentes coberturas previstas, o legislador terá tido em conta as condições socioeconómicas da generalidade dos atletas amadores e ainda a realidade em que se inserem as associações e federações desportivas, que, na sua esmagadora maioria, não têm capacidade para suportar prémios de elevada monta.

13- Por esse motivo e porque de outro modo os prémios subiriam para valores proibitivos, a tentação de subir os capitais mínimos previstos na lei, ainda que com objectivos nobres, deve ser contida.

14- Na esfera do decisor, o ímpeto de se arbitrar a totalidade do capital contratado para a cobertura de invalidez permanente parcial, cujo limite mínimo legal é reconhecidamente baixo, deve ser temperado pelos mesmos motivos.

15- A segurança e certeza jurídicas, com o intuito de não se frustrar as legítimas expectativas do segurador e não colocar em causa o comércio jurídico, e ainda o profundo impacto que decisões como as dos presentes autos podem ter no associativismo desportivo e na própria prática desportiva demonstram bem a particular relevância social das questões objecto de decisão e deveriam ditar que a determinação do capital a pagar no âmbito da cobertura de invalidez permanente parcial fosse feito de modo diferente da optada pelos julgadores do caso concreto.

16- Termos em que se encontra preenchido o requisito da alínea b) do nº 1 do artigo 672º do CPC, devendo ser admitido o presente RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL.

17- Ainda que assim não se entenda, existem diversos acórdãos contrários, sendo que dois servirão de fundamento à revista excepcional: Acórdão datado de 07/11/2019, processo n.º 654/16.6T8ABT.E1.S1 (adiante “Acórdão-Fundamento do STJ”) e Acórdão datado de 12/10/2020, processo n.º 6075/15.0T8VNG.P1 (adiante “Acórdão-Fundamento do TRP”.

18- No caso concreto, o Tribunal da Relação do Porto considerou que «ao abrigo do disposto no art. 16.º d) daquele diploma, na fixação do capital a atribuir ao lesado, deverá efetuar-se referência à incapacidade concreta deste, não para efetuar um cálculo proporcional – 100% corresponderia à invalidez total e, a partir daí, aplicar-se-ia a percentagem de incapacidade ao capital garantido – mas para se apurar qual exatamente o dano real que sofreu, tendo em conta aquela incapacidade, atribuindo-se, ao abrigo do seguro, o capital respetivo, até ao limite de € 25.000, 00 (ou do que for contratado, se superior a este valor).»

19- Desenvolvendo, concluíram ainda que os danos não patrimoniais são «uma decorrência da invalidez ou incapacidade, não distinguindo aquele regime entre um (patrimonial) e outro (não patrimonial) dos danos», e, por esse motivo, devem ser tidos em conta no cálculo do capital a atribuir.

20- Os citados Acórdãos-Fundamento pronunciaram-se em sentido diametralmente oposto ao do Acórdão ora recorrido.

21- Por um lado, o “Acórdão-Fundamento do STJ” argumentou que «o contrato de seguro desportivo obrigatório regulado no Dec.-Lei n.º 10/2009, de 12-01, pelo menos nas vertentes de cobertura do risco por morte e por invalidez permanente, absoluta ou parcial, assume a natureza de um contrato de seguro de acidentes pessoais inerentes a atividade desportiva; Nessa base, tal contrato pode garantir prestações de valor predeterminado não dependente do efetivo montante do dano e prestações de natureza indemnizatória, conforme o preconizado no n.º 2 do artigo 175.º da Lei do Contrato de Seguro (LCS) aprovada pelo Dec.-Lei n.º 72/2008, de 16- 04.; Assim, as coberturas dos montantes mínimos de capital devido por morte ou por invalidez permanente, absoluta ou parcial, estabelecidas, respetivamente, nas alíneas a), c) e d) do artigo 16.º do Dec.-Lei n.º 10/2009, devem ser configuradas como prestações de capital predeterminadas em função exclusiva da natureza dessas lesões e do grau de incapacidade fixado no caso de invalidez permanente parcial, independentemente do valor do dano efetivo; Nesses casos, atender ao valor do dano efetivo, incluindo dos danos não patrimoniais, poderá eclipsar a diferenciação da atribuição patrimonial devida por invalidez permanente absoluta e a devida por invalidez permanente parcial e, no quadro desta, a que for devida em função dos graus de incapacidade fixados, diferenciação essa, de cariz objetivo, que se encontra bem patente no artigo 16.º, alíneas c) e d) do Dec.-Lei n.º 10/2009.

22- Por sua vez, o “Acórdão-Fundamento do TRP” arrazoou que «por força do regime vertido no Decreto-Lei nº 10/2009, de 12.01, os agentes desportivos, os praticantes de actividades desportivas em infra-estruturas desportivas abertas ao público e os participantes em provas ou manifestações desportivas devem, obrigatoriamente, beneficiar de um contrato de seguro desportivo que cubra os riscos de acidentes pessoais inerentes à respectiva actividade desportiva, nomeadamente os que decorrem dos treinos, das provas desportivas e respectivas deslocações, dentro e fora do território português; Em função das coberturas mínimas fixadas nesse diploma (artigos 5º, nº 2 e 16º), esse seguro assume natureza híbrida, com uma vertente de seguro de capitais - porque determina o pagamento de um capital por morte ou invalidez, total ou parcial, em cuja fixação não se aplica o princípio indemnizatório, que limitaria a prestação do segurador ao valor do dano decorrente do sinistro; e uma vertente de seguro de danos - já que cobre as despesas de tratamento e de repatriamento, onde, por contrapartida, se aplica o princípio indemnizatório; A essa luz a cobertura do montante mínimo devido por invalidez permanente, absoluta ou parcial, deve ser configurada como prestação de capital predeterminada em função exclusiva da natureza da lesão e do grau de incapacidade fixado no caso de invalidez permanente parcial, independentemente do valor do dano efectivo e das consequências não patrimoniais decorrentes do acidente desportivo.

23- O Acórdão aqui recorrido, defendeu que «deverá efetuar-se referência à incapacidade concreta do lesado, não para efetuar um cálculo proporcional – 100% corresponderia à invalidez total e, a partir daí, aplicar-se-ia a percentagem de incapacidade ao capital garantido – mas para se apurar qual exatamente o dano real que sofreu, tendo em conta aquela incapacidade, atribuindo-se, ao abrigo do seguro, o capital respetivo, até ao limite de € 25.000, 00 (ou do que for contratado, se superior a este valor)», argumentando ainda que «o mesmo vale para os danos não patrimoniais que são, também, uma decorrência da invalidez ou incapacidade, não distinguindo a LSD entre um e outro dos danos».

24- Pelo contrário, o Acórdão-Fundamento do STJ refere que «o artigo 5.º, n.º 2, alínea a), do Dec.-Lei n.º 10/2009, de 12-01, tal como o artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do antecedente Dec.-Lei n.º 146/93, de 26-04, estabelece a cobertura mínima abrangida pelo seguro desportivo para o pagamento de um capital (…) por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da atividade desportiva, o que se afigura não equivaler, juridicamente, a pagamento de indemnização propriamente dita em função do dano efetivo ainda que limitada àquele capital. (…) Poderá discutir-se, de jure condendo, se não seria mais adequado ou justo atender ao dano efetivo como fator complementar na fixação da prestação devida, mas o certo é que este fator não foi erigido como critério legal, nem era imperioso que o fosse, tanto mais que o contrato de seguro de pessoas pode garantir prestações de valor predeterminado não dependente do efetivo montante do dano, como se preconiza no artigo 175.º, n.º 2, da LCS.

25- Assim, concluiu-se, «impõe-se arbitrar uma indemnização na proporção desse grau de incapacidade sobre o valor do capital garantido, o que equivale a € 2.200,00 [€ 27.500,00 x 8%].»

26- Já no Acórdão-Fundamento do TRP, decidiu-se que «a garantia do capital mínimo pela cobertura do contrato de seguro desportivo obrigatório para os casos de invalidez permanente do sinistrado, absoluta ou parcial, estabelecida nas als. c) e d) do art. 16.º da LSD, de forma taxativa, com a ponderação ainda do grau de incapacidade fixado, no caso de invalidez parcial, insere-se perfeitamente no quadro do contrato de seguro de acidentes pessoais na modalidade de prestações de valor predeterminado não dependente do montante efetivo do dano, de modo a proporcionar um ressarcimento do sinistrado a forfait, seja este dano superior ou inferior àquele valor» concluindo que «não se mostra imperioso que a prestação devida pelo segurador seja aferível pelo dano efetivo ou esteja limitada a este, segundo o princípio indemnizatório consagrado no artigo 128.º da LCS para o contrato de seguro de dano» e que «não se afigura que a “indemnização” desse modo pré-determinada na ajuizada apólice de seguro seja, sem mais, contrária à natureza da atividade desportiva ou provoque um esvaziamento do objeto do contrato de seguro nos termos e para os efeitos do art. 6.º da LSD.»

27- Portanto, os Acórdãos-Fundamento, já transitados em julgado, e o Acórdão recorrido analisaram o mesmo núcleo de questões de direito e à luz das mesmas normas aplicáveis e produziram-se decisões opostas, pelo que se justifica reanalisar o presente caso.

28- Termos em que se encontra preenchido o requisito da alínea c) do nº 1 do artigo 672º do CPC, devendo ser admitido o presente RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL.

29- Quanto ao concreto objecto do recurso a Recorrente discorda que na atribuição do capital previsto na cobertura de invalidez permanente parcial se deva atender ao dano efectivo; e ainda que se possa ter em conta danos não patrimoniais da pessoa segura no arbitramento desse capital.

30- O contrato em questão trata-se de um seguro de pessoas, de acidentes pessoais (cfr. artigos 175.º e seguintes e 210.º e seguintes do RJCS, Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril), e as suas coberturas estão regulamentadas no DL 10/2009, em especial nos artigos 5.º e 16.º do diploma, sendo que nada estas normas justifica que se atenda ao efectivo dano sofrido pela pessoa segura para se determinar o capital a pagar ou, por outro lado, que seja levado em conta.

31- O artigo 16.º prevê as seguintes coberturas e capitais mínimos abrangidas pelo seguro desportivo:

a. Morte - (euro) 25 000;

b. Despesas de funeral - (euro) 2000;

c. Invalidez permanente absoluta - (euro) 25 000;

d. Invalidez permanente parcial - (euro) 25 000, ponderado pelo grau de incapacidade fixado;

e. Despesas de tratamento e repatriamento - (euro) 4000.

32- Do Acórdão recorrido resulta que «ao abrigo do disposto no art. 16.º d) daquele diploma, na fixação do capital a atribuir ao lesado, deverá efetuar-se referência à incapacidade concreta deste, não para efetuar um cálculo proporcional – 100% corresponderia à invalidez total e, a partir daí, aplicar-se-ia a percentagem de incapacidade ao capital garantido – mas para se apurar qual exatamente o dano real que sofreu, tendo em conta aquela incapacidade, atribuindo-se, ao abrigo do seguro, o capital respetivo, até ao limite de € 25.000, 00 (ou do que for contratado, se superior a este valor).»

33- Não pode a Recorrente aceitar que outro critério que não a simples ponderação aritmética do grau de incapacidade seja utilizado na determinação do capital a pagar à pessoa segura.

34- Está em causa uma prestação pré-determinada, que se resume simplesmente ao simples pagamento de um capital capitais por ocorrência da morte ou da invalidez permanente da pessoa segura.

35- Verificada que seja a “condição suspensiva” prevista, por exemplo, a morte, o segurador deverá cumprir com a sua prestação, que corresponderá ao pagamento do capital de € 25 000,00 e, tratando-se de invalidez parcial, deverá o segurador pagar o capital de € 25 000,00 «ponderado pelo grau de incapacidade fixado».

36- Esta ponderação traduz-se na multiplicação da percentagem de incapacidade pelo capital estipulado na apólice. Ou seja, um atleta com uma invalidez parcial de 10% terá direito de exigir do segurador um capital de € 2 500,00 (dois mil e quinhentos euros).

37- Assim decidiu, por exemplo, o Tribunal da Relação de Guimarães1: «(…) não nos encontramos perante um seguro de responsabilidade por acto ilícito previsto no art. 483º do C.C. pelo que não podem nesta sede ser aplicadas as normas e critérios próprios deste regime, designadamente os critérios que a jurisprudência normalmente se socorre para fixar os danos patrimoniais decorrentes da incapacidade.

Assim, verificado um sinistro/acidente – “acontecimento fortuito, súbito e anormal, devido a causa exterior e violenta, estranha à vontade do Tomador, do Beneficiário ou da Pessoa Segura que nesta origina lesões corporais, passíveis de constatação médica objectiva” como se lê nas Condições Particulares aqui em causa – e tendo o mesmo como consequência uma incapacidade permanente parcial fica a seguradora obrigada apenas a entregar à pessoa segura certa prestação patrimonial convencionada no contrato de seguro.

Atender nesta sede ao dano efectivo conduziria a que não houvesse diferença de atribuição patrimonial entre a invalidez permanente absoluta prevista no art. 16º c) do R.J.S.D.O. e a invalidez permanente parcial prevista na al. d) do mesmo preceito, o que claramente não foi o objectivo do legislador.»

38- No caso concreto, portanto, a única solução viável e consentânea com a lei e com o direito, seria a de arbitrar uma quantia calculada com base no capital contratado e na percentagem de incapacidade fixada à Recorrida.

39- De acordo com Acórdão da Relação do Porto, º 6075/15.0T8VNG.P12, o critério elegido pelo legislador não equivale «juridicamente, a pagamento de indemnização propriamente dita em função do dano efetivo ainda que limitada àquele capital. Poderá discutir-se, de jure condendo, se não seria mais adequado ou justo atender ao dano efetivo como fator complementar na fixação da prestação devida, mas o certo é que - como se evidencia no Acórdão do STJ de 7.11.2019[10] - este fator não foi erigido como critério legal, nem era imperioso que o fosse, tanto mais que, em conformidade com o disposto no art. 175º, nº 2 da LCS, o contrato de seguro de pessoas pode garantir prestações de valor predeterminado não dependente do efetivo montante do dano. (…) uma solução que se pautasse, sem mais, pelo atendimento do dano efetivo poderia levar até a que a “indemnização” por invalidez permanente ficasse aquém do valor do capital garantido, caso o montante daquele dano fosse porventura inferior a este capital. (…) atender ao valor do dano efetivo, incluindo dos danos não patrimoniais, poderá eclipsar a diferenciação da atribuição patrimonial devida por invalidez permanente absoluta e a devida por invalidez permanente parcial e, no âmbito desta, a que for devida em função dos graus de incapacidade fixados»

40- Na mesma linha vai o Acórdão 654/16.6T8ABT.E1.S1, do Supremo Tribunal de Justiça3, entendendo que «a determinação do quantitativo da atribuição patrimonial devida à pessoa segura em função do sinistro se acha estritamente correlacionada com o grau de invalidez de que aquela ficou a padecer em consequência desse evento sendo este o único factor a atender. (…) A garantia do capital mínimo pela cobertura do contrato de seguro desportivo obrigatório para os casos de invalidez permanente do sinistrado, absoluta ou parcial, estabelecida nas alíneas c) e d) do artigo 16.º do Dec.-Lei n.º 10/2009, de forma taxativa, com a ponderação ainda do grau de incapacidade fixado, no caso de invalidez parcial, insere-se perfeitamente no quadro do contrato de seguro de acidentes pessoais na modalidade de prestações de valor predeterminado não dependente do montante efetivo do dano, de modo a proporcionar um ressarcimento do sinistrado a forfait, seja este dano superior ou inferior àquele valor. (…) não se mostra imperioso que a prestação devida pelo segurador seja aferível pelo dano efetivo ou esteja limitada a este, segundo o princípio indemnizatório consagrado no artigo 128.º da LCS para o contrato de seguro de danos. Nessa conformidade, não se afigura que a “indemnização” desse modo pré-determinada nas apólices de seguro desportivo sejam, sem mais, contrárias à natureza da atividade desportiva ou provoquem um esvaziamento do objeto do contrato de seguro nos termos e para os efeitos do artigo 6.º do Dec.-Lei n.º 10/2009, de 12/01.»

41- Perante o exposto, na esteira dos acórdãos citados e seguindo a regra simples e clarividente do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 10/2009, considerando o grau de invalidez de 25% fixado à Recorrida, o capital a pagar pela Recorrente no âmbito desta cobertura seria de € 7 000,00 (sete mil euros), ao que sempre seria deduzida a quantia já paga de € 410,96.

42- Ou seja, deverá o Acórdão ser alterado no sentido de condenar a Recorrente apenas ao pagamento da quantia de € 6 589,04 (seis mil, quinhentos e oitenta e nove euros e quatro cêntimos).

43- Acresce, contudo, que entendeu ainda o Tribunal da Relação do Porto no Acórdão recorrido que os danos não patrimoniais reclamados pela Autora são «uma decorrência da invalidez ou incapacidade» e que, por isso, estão cobertos pelo contrato de seguro em questão, argumentando ainda que «a solução a ponderar não pode deixar de passar pelo fim e razão de ser dos chamados seguros obrigatórios» e que, «nesta ótica, uma interpretação correta do regime jurídico em presença deverá fazer apelo à sua teleologia que é, segundo vimos, a de introdução, num domínio dele carecido, de uma obrigação de reparar danos socialmente relevantes».

44- Não pode a Recorrente conformar-se com esta solução dada a uma questão amplamente debatida não só na jurisprudência, como na doutrina.

45- Como defende Francisco Rodrigues Rocha4, que a razão principal para se decidir no sentido da não cobertura dos danos não patrimoniais «reside na natureza das prestações a cargo do segurador».

46- Como defende aquele autor, a putativa cobertura de danos não patrimoniais, não se enquadra «na lógica das prestações a cargo do segurador, em particular do seu quantum. De facto, se se entendesse que os danos não patrimoniais fossem cobertos no seguro desportivo em acréscimo aos directamente derivados da invalidez permanente e se fossem autonomizados uns e outros, só seriam cobertos danos não patrimoniais por invalidez de grau inferior a 100% e em termos gradualmente maiores à medida que menor o referido grau. Isto conduziria a um resultado pouco compreensível: os danos não patrimoniais seriam cobertos em casos pouco graves de invalidez, mas não o seriam em casos mais graves de invalidez em que não restaria capital para o pagamento de tais danos. A conclusão só pode ser a de que os danos não patrimoniais não são isoladamente considerados no capital a pagar, pois a prestação a cargo do segurador é de valor predeterminado, não dependente do montante efectivo do dano (artigo 175.º/2 do RJCS)».

47- Conforme resulta de Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães5, os defensores da tese de que este seguro deve pagar danos não patrimoniais «aplicam as normas e critérios próprios da responsabilidade civil por facto ilícito prevista nos art. 483º nº 1 e 496º nº 1 do C.C. (…). Defendem que da incapacidade permanente resultam, quer danos patrimoniais, quer danos não patrimoniais, pelo que, se o contrato e a lei não distinguem tais danos o intérprete não o deve fazer (…). Se a primeira afirmação é verdadeira entendemos que a segunda não atende à natureza do seguro desportivo, nem ao espírito do diploma que o regula, designadamente do art. 6º, nº 2 a) do qual, a nosso ver, resulta apenas como “cobertura mínima” o pagamento de um capital (e não uma indemnização no sentido estrito) em caso de “morte” e “invalidez permanente, total ou parcial” e do art. 16º d) que prevê como único critério na fixação do montante do capital referente a incapacidade permanente parcial o grau fixado desta. Estas normas imperativas não impõem a necessária inclusão dos danos não patrimoniais. (…) A inclusão dos danos não patrimoniais pode levar a um resultado absurdo como num caso de incapacidade permanente total poder não haver capital disponível para compensar tais danos. Se é verdade que a cobertura “invalidez” se inscreve no seguro de pessoas o art. 175º nº 2 do R.J.C.S. prevê que este seguro pode garantir “prestações de valor determinado não dependente do efectivo montante do dano”, como aquela aqui em causa, sendo que este entendimento não é contrário à natureza da actividade desportiva ou provoque um esvaziamento do objecto do contrato de seguro (6º do R.J.S.D.O). No sentido por nós defendido vide, entre outros, os citados Ac. do S.T.J. de 07/11/2019 (Tomé Gomes), de 08/09/2016 (Orlando Afonso), da R.P. de 07/04/2016 (Maria José Costa Pinto), R.E. de 11/04/2019 (Isabel Peixoto Imaginário).»

48- Ainda no mesmo sentido, vai o já citado Acórdão da Relação do Porto n.º 6075/15.0T8VNG.P16: «Na nossa perspectiva (…) as coberturas por morte (al. a)) ou por invalidez permanente absoluta ou parcial (als. c)e d)) encontram-se configuradas como prestações de capital predeterminadas em função exclusiva da natureza dessas lesões, devendo ainda a invalidez permanente parcial ser ponderada pelo grau de incapacidade que for fixado (al. d)). Significa isto que estas últimas coberturas (por morte ou por invalidez permanente) se traduzem em obrigação de prestação convencionada independente do valor do dano efetivo e não em prestação indemnizatória propriamente dita, como no caso das referidas coberturas pelas despesas de funeral e de tratamento. Esta linha de entendimento tem sido seguida em diversos arestos do STJ, designadamente em Acórdão de 08.09.2016, ao considerar-se que, na hipótese de invalidez permanente parcial, “a determinação do quantitativo da atribuição patrimonial devida à pessoa segura em função do sinistro se acha estritamente correlacionada com o grau de invalidez de que aquela ficou a padecer em consequência desse evento” sendo este “o único factor a atender”. Nessa mesma linha (relativamente à reparabilidade dos ditos danos morais) se decidiu no Acórdão de 06.04.2017, ao concluir que não se vê “como pode ter-se por compreendida no capital por invalidez permanente, para além da estrita indemnização correspondente à percentagem da perda de capacidade aquisitiva, a indemnização por danos não patrimoniais. (…) chegar-se-ia ao absurdo de, no caso de uma incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer trabalho, correspondente a uma IPP de 100%, ou mesmo no caso de um IPP de 66% -potencialmente determinativas de maiores danos em bens de ordem espiritual, atenta a maior gravidade do dano corporal e as maiores limitações físicas que coenvolvem -, a apólice não contemplar a indemnização por danos não patrimoniais por não haver já capital disponível para o efeito». (…) uma tal solução não se afigura compatível com a já assinalada natureza do contrato de seguro desportivo obrigatório por acidentes pessoais tal como se encontra parametrizado em sede de coberturas mínimas no art. 16.º da LSD, ao prever uma prestação de capital pré-determinada, mormente para a invalidez permanente, total ou parcial, sem qualquer consideração pelo valor do dano efetivo. De salientar que o art. 5.º, n.º 2, al. a), da LSD estabelece a cobertura mínima abrangida pelo seguro desportivo para o pagamento de um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da atividade desportiva, o que se afigura não equivaler, juridicamente, a pagamento de indemnização propriamente dita em função do dano efetivo ainda que limitada àquele capital”.

49- E ainda no já citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 654/16.6T8ABT.E1.S17: “Nesta conformidade, enquanto que as coberturas previstas para as despesas de funeral (alínea b) e para as despesas de tratamento e repatriamento (alínea e) apontam para o montante dessas despesas dentro dos limites ali fixados, já as coberturas por morte (alínea a) ou por invalidez permanente (alíneas c e d) encontram-se configuradas como prestações de capital predeterminadas em função exclusiva da natureza dessas lesões, devendo ainda a invalidez permanente parcial ser ponderada pelo grau de incapacidade que for fixado (alínea d). Significa isto que estas últimas coberturas (por morte ou por invalidez permanente) se traduzem em obrigação de prestação convencionada independente do valor do dano efetivo e não como prestação indemnizatória propriamente dita, como no caso das referidas coberturas pelas despesas de funeral e de tratamento.”

50- Impõe-se, assim, alterar a decisão recorrida, inexistindo justificação legal ou contratual para a solução de direito adoptada pelo Tribunal da Relação do Porto no presente caso.

51- A lei não previu, como não prevê o contrato, que em caso de verificação de uma invalidez permanente parcial, sejam “ponderados danos”, não se fazendo uma menção que seja à palavra “dano” ao longo de todo o diploma.

52- Apenas se prevê o pagamento de “um capital”, cujo tecto máximo está pré-determinado, e que se chegue ao valor exacto a pagar num caso concreto mediante a ponderação do grau de incapacidade.

53- Querer que o seguro desportivo pague “danos não patrimoniais” é aplicar à força uma regra da responsabilidade civil extracontratual num tipo de seguro que não é de responsabilidade civil, mas sim de pessoas, na modalidade de acidentes pessoais.

54- Como escreve Francisco Rodrigues Rocha8, «nos seguros de responsabilidade, dá-se, é certo, uma aproximação – umas vezes recíproca, outras unilateral – entre o regime da responsabilidade civil e o do seguro, mais intensa nos obrigatórios (artigo 146.º/3 do RJCS) do que nos facultativos (artigo 138.º/2 do RJCS), a ponto de, como princípio, serem cobertos danos não patrimoniais (artigos 138.º/2 e 146.º/3 do RJCS). Todavia, mesmo nestes casos, o dever do segurador segue, em pontos vários, “por natureza” ou determinação legal, um regime próprio, diferente do da responsabilidade civil. (…) Com efeito, é-nos difícil compreender como chega a referida tese à conclusão de que

55- Contrariamente ao que defendeu o Meritíssimo Tribunal da Relação Do Porto, muitos são os argumentos que abonam e sustentam a tese da não cobertura dos danos não patrimoniais.

56- O artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 10/2009 não contempla danos não patrimoniais, prevendo simplesmente o pagamento de um capital por morte ou invalidez.

57- Está em causa um seguro de pessoas, não de responsabilidade civil, em que as coberturas por invalidez configuram prestações de carácter pré-determinado independentes do valor efectivo do dano.

58- Na falta de especificação legal, vigora o princípio da liberdade contratual, podendo as partes modular o conteúdo da relação contratual como bem entenderem, nos termos do artigo 405.º do Código Civil, pelo que ao intérprete caberá apenas concluir pela existência de prescrição legal limitativa quando a mesma é clara e manifesta.

59- Inexiste ambiguidade quando as apólices, ao definirem invalidez permanente, não aludem a danos não patrimoniais e quando, ao estabelecerem o método de cálculo das prestações a pagar, avancem um critério puramente aritmético

60- O Decreto-Lei n.º 10/2009 contém regras próprias para o cálculo da prestação do segurador, não se lhe podendo sobrepor outras.

61- Concluindo, deverá o Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que aplique o disposto na alínea d) do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 10/2009, de 12 de Janeiro e bem assim o estipulado no contrato de seguro em questão, condenando a Recorrente a pagar nada mais que o capital previsto de € 7 000,00 (€ 28 000,00 capital x 25% incapacidade), deduzido da quantia de € 410,96 já paga, ou seja, € 6 589,04 (seis mil, quinhentos e oitenta e nove euros e quatro cêntimos).

Termos em que:

Deverá ser a substituído o Acórdão recorrido por novo Acórdão que condene a Recorrente ao pagamento da quantia de € 6 589,04, absolvendo-a do demais peticionado pela Recorrida.

Assim se fazendo a tão acostumada JUSTIÇA!

7. Por seu turno, a Autora apresentou contra-alegações com as seguintes Conclusões:

1- A revista excecional é, como o seu próprio nome já indica, excecional, não devendo vulgarizar-se ou banalizar-se. A lei impõe ao Recorrente determinados ónus, cujo incumprimento acarreta a rejeição do recurso.

2- O requerente da revista excecional, ao abrigo do disposto no art. 672.º n.º 1 do C.P.C., deve indicar, na sua alegação, sob pena de rejeição, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, as razões pelas quais a apreciação da questão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito e as razões pelas quais os interesses são de particular importância.

3- Não cumpre estes ónus quem se limita a referir meras generalidades, pois de acordo com a doutrina mais relevante e a jurisprudência consolidada do STJ o requerente tem de concretizar, com argumentos concretos e objetivos, o relevo jurídico e social das questões em causa.

4- Relevância jurídica, para efeitos da al. a) do n.º 1 do art. 672.º, do C.P.C., implicará que a questão suscitada apresente um caráter paradigmático e exemplar, transponível para outras situações, ou seja controversa ou, porventura, inédita, reclamando para a sua solução uma reflexão mais alargada.

5- Interesses de particular relevância social, para efeitos da al. b) do n.º 1 do art. 672.º, do C.P.C., devem ser considerados interesses importantes da comunidade e valores que se sobrepõem ao mero interesse das partes, isto é, com invulgar impacto para o tecido social e para a comunidade, em geral.

6- Da leitura das Conclusões não resulta nem a identificação de tal questão ou questões, nem muito menos a referida necessidade clara de apreciação.

7- O que a Recorrente pretende pôr em causa – vejam-se a título de exemplo as Conclusões 2, 3, 12, 38 – é, em bom rigor, a decisão do Tribunal da Relação.

8- Tem sido entendimento do STJ o de que uma questão é relevante, se, para além de integrar um tema importante em termos da aplicação do direito, é também objeto de um debate doutrinal e jurisprudencial que aconselha a prolação reiterada de decisões judiciais em ordem a uma melhor aplicação da justiça.

9- Por outro lado, o nº 2 do art.º 672º do C. P. Civil impõe ao recorrente o ónus de indicar as razões da relevância em causa.

Acresce que,

10- O Acórdão recorrido não causa qualquer alarme social e não põe, de todo, em causa a confiança da comunidade na realização da justiça pelos Tribunais.

11- Ora, a alegação da recorrente é completamente omissa a este respeito, sendo certo que, não é suficiente considerar a simples relevância jurídica da questão.

12- Ao interpor o recurso de revista excecional, o recorrente não pode, como acontece nestes autos, limitar-se a remeter para as alegações do recurso.. As razões do recurso devem constar, pois, do prévio requerimento de interposição, formalmente distinto da motivação do recurso. Acresce que a não se entender assim, ficaria sem sentido o ónus do recorrente do nº 2 do art.º 672º do CPC de indicar as razões do recurso.

13- Pelo que não pode ser atendida a remissão feita pela recorrente para o acórdão citado nas alegações, não podendo, por isso, relevar o pressuposto da oposição de julgados.

14- No caso em apreço não existe identidade de situações de facto.

15- O núcleo factual em causa no acórdão recorrido não tem a mínima comparação com o núcleo factual que está em causa nos acórdãos fundamento invocados pela Recorrente.

16- No limite, a única semelhança entre os acórdãos- recorrido e fundamento, tem que ver com a atribuição do montante devido pela seguradora no âmbito de contrato de seguro desportivo decorrente de invalidez permanente parcial nos termos da alínea d) do artº 16º do Decreto-lei nº 10/2009 de 12 de Janeiro.

17- Mas tal, só por si, é manifestamente insuficiente para se concluir pela identidade da situação de facto subjacente a essa aplicação- exigindo-se, como acima se expôs, a identidade do núcleo central da situação de facto, a questão fundamental de direito não se define pela estatuição da norma, mas pela questão nuclear necessariamente recortada na norma pelos factos e repercussão, em termos essenciais, nas concretas decisões em confronto.

18- Por todas estas razões deve ser rejeitado, por inadmissível do recurso de revista excecional interposto pela recorrente.

Sem conceder,

19- A alínea d) do artº 16º do DL 10/2009 de 12/01), segundo jurisprudência maioritária deve ser interpretado no sentido de que determina apenas o montante máximo de capital devido pela seguradora. Complementarmente, na compensação devida ao segurado deve atender-se também aos danos não patrimoniais de um acidente pessoal inerente à atividade desportiva.

20- Os danos decorrentes da invalidez permanente pessoal são, frequentemente, danos decorrentes de uma incapacidade permanente, ainda que de uma incapacidade permanente parcial, para o trabalho. Entende-se, por consequência, que excluir da compensação devida ao segurado os danos decorrentes da incapacidade para o trabalho seria “esvaziar” o objecto do contrato de seguro, frustrando num ponto essencial, o fim de “cobrir os riscos”, prevenindo o “perigo de as vítimas não obterem ressarcimento”.

21- A compensação devida ao segurado deverá atender aos danos não patrimoniais decorrentes de um acidente pessoal inerente à atividade desportiva.

22- No caso, o tribunal de 1ª instância (e Relação) considerou, como devia, os danos patrimoniais e não patrimoniais — e, considerando-os, concluiu, como devia concluir, que “[f]ace à matéria de facto dada como provada nos autos, relativa ao grande desgosto e sofrimento que para a autora, mesmo que indagássemos tão só qual o montante adequado ao ressarcimento dos danos morais que sofreu e continuará a padecer com essa relevantíssima incapacidade que a afeta, desprezando o cálculo dos danos patrimoniais desta decorrentes, sempre concluiríamos que o mesmo ultrapassaria largamente os 28.000,00 euros previstos no contrato de seguro.

23- Os danos da A são muito graves se atentarmos na idade da autora e nas repercussões para a sua vida diária. Por outro lado, o quantum doloris é extremamente elevado e o sofrimento da autora foi atroz. É de meridiana clareza que estes danos morais são merecedores da tutela do direito, artigo 496º, n.º 2 do Código Civil.

24- Como entendeu o Tribunal “a quo” (Relação) valorando devidamente a incapacidade de 25 pontos que foi fixada à autora, temos que o dano biológico deve ser fixado em 80.000,00 e o dano moral em €30.0000,00. Como o capital máximo do contrato de seguro está estipulado em € 28.000,00 foi esse o valor em que a ré seguradora foi condenada.

25- Como se vê, o Tribunal de 1ª instância sopesou todos os factos e circunstâncias relevantes para a fixação da indemnização, deixando transparecer uma especial sensibilidade em relação ao desgosto e sofrimento da A o que demonstra a justeza do valor fixado.

26- Por tudo isto, a(s) decisões em cotejo, não merecem qualquer reparo, tendo o tribunal “a quo” procedido a uma correta apuração da matéria de facto e a uma adequada qualificação e subsunção jurídica da mesma, impondo-se a sua manutenção.

8. Tratando-se de um recurso de revista excecional, a Relatora remeteu os autos à Formação.

9. Por acórdão de 21 de junho de 2023, a Formação admitiu o recurso com fundamento na relevância social das questões suscitadas.

II – Questões a decidir

Levando em linha de conta a decisão da Formação do Supremo Tribunal de Justiça e as conclusões do recurso de revista em apreço, estão em causa as seguintes questões:

- se, no âmbito do contrato de seguro desportivo, concretamente no que respeita à cobertura de invalidez permanente parcial prevista nos arts 5.º e 16.º do DL n.º 10/2009, de 12 de janeiro, o montante a pagar pelo segurador à pessoa segura deve ou não ser obtido mediante simples cálculo aritmético;

- se o DL n.º 10/2009, de 12 de janeiro, prevê a compensação de danos não patrimoniais.

III - Fundamentação

A. De Facto

Os factos dados como provados no acórdão recorrido e não colocados em causa no recurso são os seguintes:

1. A Autora participou o acidente à primeira Ré em 10 de janeiro de 2020 no âmbito da apólice n.º ...05.

2. A 13 de Janeiro a primeira Ré acusou a receção da participação e atribuiu ao processo o nº ...PT, acrescentando que toda e qualquer abertura de processo de sinistro de despesas de tratamento e repatriamento se aplica uma franquia de € 50.

3. Em 27 de Janeiro de 2020 foi enviada à primeira Ré uma compilação de todas as despesas médicas e medicamentosas, deslocações, material para fisioterapia, etc, que ascendiam a € 575,84.

4. A primeira Ré reembolsou a Autora em € 410,96.

5. Em 6 de Abril de 2020 a Autora enviou à segunda Ré uma exposição do sinistro solicitando o pagamento do montante de € 164,88 que não fora comparticipado pela primeira Ré.

6. A segunda Ré, enquanto federação desportiva, celebrou com a segunda Ré contrato de seguro titulado pela apólice n.º PA17AH0005 ao qual podem aderir individualmente os agentes desportivos no momento da sua inscrição9.

7. A 15 de dezembro de 2018, a A. começou a frequentar aulas de equitação na QUINTA ..., sita na Rua ....

8. Durante uma aula de equitação, no dia 06-09-2019, cerca das 19h00, a A., numa altura em que andava a galope, por movimento brusco do cavalo, desequilibrou e caiu de cima do mesmo.

9. Embatendo de costas numa trave de madeira, e depois caindo desamparadamente no solo.

10. A autora tinha adquirido um colete de proteção airbag (próprio para a prática de equitação), no valor de 450,00€, que lhe tinha sido aconselhado.

11. A ambulância dos Bombeiros Voluntários ... chegou ao local pelas 20h25, cerca de 9 minutos após receber o alerta.

12. A autora deu entrada no Centro Hospitalar de ..., sendo admitida pelas 21h14, tal como consta do Relatório de Urgência.

13. A autora apresentava uma temperatura timpânica de 36ºC e uma dor de 7 (régua de dor numérica de 0 -10).

14. A autora realizou Raio X e foi encaminhada para a especialidade de Ortopedia.

15. Do relatório de urgência, constam ainda as seguintes informações:

- Queda com trauma lombar e cóccix; Sem défices ou parestesias; Força muscular preservada;

- Dor lombar baixa na linha média; Dor no cóccix;

- Raio X sem sinais de lesão aguda;

- Reforço analgesia.

16. Durante o episódio de urgência, foi administrada a seguinte medicação, por via injetável, à A.:

- Tramadol 100 mg/2 ml Sol inj Fr 2 ml IM IV SC - analgésico;

- Metoclopramida 10 mg/2 ml Sol inj Fr 2 ml IM IV – antiemético;

- Ondansetrom 4 mg/2 ml Sol inj Fr 2 ml IV – antiemético.

17. A autora teve alta na madrugada do dia 07-09-2019, sendo recomendada a toma de Ibuprofeno em S.O.S.

18. Porém, nesse mesmo dia, pelas 09h49, a autora recorreu às urgências da Unidade ... pois passou a noite com dores insuportáveis, apresentando dificuldade e desconforto ao urinar.

19. A autora fez teste bacteriológico à urina.

20. Ao final da manhã, recebeu alta medicada com antibiótico para a infeção urinária.

21. No entanto, nessa tarde, o estado de saúde da mesma agravou-se e por esse motivo, dirigiu-se às urgências do C ...

22. Realizou uma Tomografia Computorizada (TAC ou TC), que revelou uma fratura no sacro, na vértebra S3.

23. Apresentava um quadro de hipostesia na região perineal e retenção urinária.

24. No dia 08-09-2019, a A. foi submetida a uma descompressão das vértebras S2 e S3 (Laminectomia Sacro),

25. Uma vez que lhe foi diagnosticada a Síndrome de ....

26. Esta patologia surge na decorrência do evento traumático que levou ao deslocamento e fratura da vértebra S3 e, consequentemente, à compressão da cauda equina.

27. Esta (a Síndrome de ...) caracteriza-se por uma compressão das raízes nervosas lombares, sacrais e coccígeas distais ao término do cone medular na altura das vértebras L1 e L2.

28. A Síndrome da cauda equina tem efeitos sobre o funcionamento dos órgãos pélvicos, tais como:

• Perda total ou parcial da função urinária, intestinal e sexual por causa da compressão da cauda equina na lombar;

• As lesões localizadas nos níveis S2-S4 ou os aferentes e eferentes parassimpáticos, que afetam qualquer parte do circuito de reflexo do esvaziamento da bexiga, podem produzir uma bexiga flácida e paralisada, que se enche excessivamente de urina, acabando por vazar quando a bexiga não consegue distender mais;

• Em relação ao esvaziamento intestinal, se o circuito reflexo for interrompido, lesão em S2-S4 ou nas conexões parassimpáticas, ocorre perda da influência parassimpática sobre o peristaltismo e o esvaziamento reflexo do intestino.

29. A 13-09-2019, a A. foi transferida para a área de internamento do Serviço de ....

30. Após a intervenção cirúrgica verificou-se uma melhoria do quadro neurológico durante o internamento.

31. Com recuperação de sensibilidade perineal parcial. Manteve quadro de dor, que impossibilitaria a sedestração, segundo a própria, mas com alívio progressivo (…).

32. Sem défices cognitivos da linguagem.

33. Sem défices motores. Sensibilidade preservada até S3; hipostesia em S4 e S5 (hipostesia em sela).

34. Com reflexo anal presente; tónus esfíncter anal presente. Com contração de esfíncter anal. Sente passagem da sonda vesical.

35. Durante o internamento, foram abordados vários problemas:

• Bexiga neurogénea: foi inicialmente realizado SEU e Bact. urina, para osterior desalgaliação. Isolada Serratia mascescens, multissensível, medicada com fosfomicina. Foi desalgaliada e iniciou treino de autoalgaliações 3/3h, com algaliação noturna.

Bexiga neurogénea com sensibilidade ao preenchimento conservada. Sem hiperatividade do detrusor. Compliance vesical normal (400 ml).

Incapacidade em iniciar a micção. Detrusor acontráctil. Volume residual 400 ml.

36. Manteve esquema instituído com algália de 4/4h, com necessidade de encurtamento do intervalo no período pós-almoço e que é definido pela sensação miccional. Durante a noite com intervalos de 7h, com volumes adequados.

37. No dia 08-10-2019, a. recebeu alta medicada com:

• Bisocodilo supositório (1 a cada 2 dias) e comprimidos (2 cp. à noite) - laxante;

• Domperidona 10 mg - antiemético;

• Alprazolam (em início de desmame) – para alívio da ansiedade;

• Lactulose (em S.O.S.) – laxante.

38. Durante o internamento no Serviço de ... (26 dias), a autora fazia fisioterapia, de 2ª a 6ª feira, duas vezes por dia.

39. Quando recebeu alta, foi recomendada a prática de exercícios de Pilates e de Natação.

40. Para além de ser seguida em consultas de Ortopedia e Fisiatria no C ..., a A. foi também acompanhada no Hospital ... em consultas de Urologia e de Ginecologia/Obstetrícia.

41. Em 06-04-2020, via correio eletrónico, foi enviada à Federação Equestre Portuguesa uma breve exposição do sinistro, solicitando o pagamento do montante não comparticipado pela Seguradora, aqui Ré (164,88€).

42. À data do acidente, a A. tinha 41 anos (atualmente, 42), gozava de boa saúde e não tinha complicações.

43. Durante vários anos, a A. trabalhou como assistente de bordo da companhia espanhola Air ...

44. Era autónoma, fazia as lides domésticas, as refeições e ia às compras.

45. Até março, a autora sentiu fortes dores, que impediam ou condicionavam a realização de tarefas básicas do quotidiano.

46. Mesmo os seus momentos de lazer foram afetados, já que não consegue desfrutar deles da mesma forma, ou por causa das dores, ou por se sentir limitada, deixando de ter vontade até de dar pequenos passeios.

47. A autora era orgulhosa da sua imagem e gostava de se arranjar para sair, mas em virtude do acidente e da condição em que se encontra já não tem esse mesmo sentimento quanto à sua imagem pessoal (já não olha para si da mesma maneira).

48. Tudo isto se conjuga para que a autora se sinta triste e deprimida.

49. A autora embateu de costas numa trave de madeira que fazia parte da cerca limitativa do picadeiro e que não tinha qualquer tipo de proteção.

50. desamparadamente no chão que apenas tinha areia.

51. E fraturou a vertebra S3.

52. A apólice referida no facto 6., cobre os danos corporais sofridos pelas pessoas seguras acima referidas em consequência de acidentes ocorridos em resultado da prática equestre, prevê um capital máximo de € 28 000,00 (vinte e oito mil euros).

53. Para as Despesas de Tratamento das pessoas seguras, a apólice referida em 6., tem um sublimite máximo, por sinistro, de € 5 000,00 (cinco mil euros).

54. À cobertura de Despesas de Tratamento e Repatriamento aplica-se uma franquia de € 50,00 por sinistro.

55. Acresce que este seguro de grupo tem um prémio comercial fixo não estornável e a pagar por Pessoa Segura no valor de € 11,00

*

Factos provados com base no relatório pericial:

1. A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 17.08.2021.

2. O Período de Défice Funcional Temporário Total é fixável num período de 33 dias.

3. O Período de Défice Funcional Temporário Parcial é fixável num período 181 dias.

4. O Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total na actividade formativa é fixável num período total de 60 dias.

5. O Período de Repercussão Temporária na Atividade Formativa Parcial é fixável num período total de 652 dias.

6. O Quantum Doloris é fixável em 5/7.

7. O Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica é fixável em 25 pontos.

8. Dano Estético Permanente fixável no grau 1.

9. Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer é fixável no grau 3.

10. Repercussão permanente na actividade sexual é fixável no grau 5.

11. A sinistrada irá ainda necessitar de medicação analgésica ou do foro urológico e material necessário para autoalgaliações, bem como laxantes.

12. A sinistrada irá ainda necessidade de tratamento de medicina física e de reabilitação.

B. De Direito

1. A Ré AIG Europe S.A. – Sucursal em Portugal interpôs recurso de revista excecional do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27 de fevereiro de 2023, que julgou improcedente o recurso de apelação e, consequentemente, manteve a decisão recorrida.

2. O Tribunal de 1.ª Instância julgou a ação parcialmente procedente, absolvendo a Ré Federação Equestre Portuguesa de todos os pedidos e condenando a Ré AIG Europe S.A. – Sucursal em Portugal a pagar à Autora AA a quantia de € 27.589,04, acrescida de juros moratórios, às taxas legais sucessivamente emergentes do disposto no art. 559.º, n.º 1, do CC, desde a citação até integral pagamento, no mais absolvendo a Ré.

3. Não conformada com a decisão do Tribunal da Relação do Porto, por entender que este fez uma errada interpretação e aplicação da lei aplicável, a Ré AIG Europe S.A. – Sucursal em Portugal interpôs o presente recurso de revista excecional. Para o efeito, invocou a relevância social das questões suscitadas, de um lado e, de outro, a existência de contradição jurisprudencial entre o acórdão recorrido e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de novembro de 2019.

4. Não existem obstáculos à admissibilidade do recurso, porquanto a revista excecional foi admitida pela Formação e estriba-se na norma do art.. 672.º, n.º 1, al, b), do CPC, por estarem em causa questões de particular relevância social.

Questões a decidir

1. No recurso de revista excecional em apreço não está em causa a qualificação da relação negocial existente entre as partes como contrato de seguro desportivo obrigatório, nem a responsabilidade da seguradora/Recorrente, pelos danos derivados do sinistro em causa nos autos.

2. As únicas questões que se debatem consistem em saber de que forma se deve proceder ao cálculo do montante devido pela Ré seguradora à Autora no âmbito do contrato de seguro de grupo anteriormente celebrado e se este cobre ou não os danos não patrimoniais decorrentes do sinistro.

3. A institucionalização de um seguro obrigatório para “provas ou manifestações desportivas” respeitante “a acidentes ou doenças decorrentes da prática desportiva” foi inicialmente prevista nos arts. 42.º e 43.º da Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto (doravante LBAFD), aprovada pela Lei n.º 5/2007, de 16 de janeiro. O art. 42.º da LBAFD estabelece, pois, um sistema de seguros, nomeadamente um seguro obrigatório para todos os agentes desportivos, um seguro para instalações desportivas e um seguro para manifestações desportivas. Visando assegurar garantir a proteção dos praticantes não compreendidos no n.º 1 do art. 42.º, o legislador, no n.º 2, garante “a institucionalização de um sistema de seguro obrigatório para: a) Infraestruturas desportivas abertas ao público; b) Provas ou manifestações desportivas”, competindo às federações desportivas e às entidades compreendidas nas várias alíneas deste preceito a celebração de contratos de seguro desportivo. Também o artigo 43.º do mesmo diploma legal, referindo-se às obrigações das entidades prestadoras de serviços desportivos, consagra a celebração obrigatória de seguros relativos a acidentes ou doenças decorrentes da prática desportiva. Por seu turno, as entidades que organizem provas ou manifestações desportivas, ainda que não abertas ao público, são responsáveis pela celebração do contrato de seguro desportivo.

4. Cobrir os riscos implicados pelo exercício do desporto, mediante a consagração do desportivo obrigatório, traduz-se numa necessidade primordial para a segurança dos praticantes.

5. Foi entretanto publicado o DL n.º 146/93, de 26 de abril, que consagrou o regime jurídico do seguro desportivo, enquanto seguro obrigatório. O estabelecimento de seguros obrigatórios tem por objetivo satisfazer a necessidade social fundamental de assegurar que o beneficiário usufrua, efetivamente, da cobertura, prevenindo o risco de as vítimas não serem ressarcidas dos danos sofridos.

6. Por sua vez, o regime do contrato de seguro desportivo obrigatório foi entretanto estabelecido no DL n.º 10/2009, de 12 de janeiro (doravante LSD) - que revogou o DL n.º 146/93, que, por seu turno, revogara o DL n.º 162/87, de 8 de abril) -, em cujo preâmbulo se refere o seguinte: “com os seguros obrigatórios atende-se a uma necessidade social fundamental, a de assegurar que o beneficiário chegue, efectivamente, a usufruir da cobertura. É certo que um sistema de seguros não evita o risco, mas previne o perigo de as vítimas não obterem o ressarcimento.”.

7. De acordo com o art. 5.º, n.º 1, do DL n.º 10/2009, o seguro desportivo cobre os riscos de acidentes pessoais inerentes à respetiva atividade desportiva, nomeadamente aqueles que decorrem dos treinos, das provas desportivas e respetivas deslocações, dentro e fora do território português. o seguro desportivo obrigatório. Assim, “cobre os riscos de acidentes pessoais inerentes à atividade desportiva”.

8. Na medida em que “compreende a cobertura de riscos relativos à vida, à saúde e à integridade física de uma pessoa ou de um grupo de pessoas nele identificadas”, está em causa um seguro de pessoas (art. 175.º, n.º 1, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo DL n.º 72/2008, de 16 de abril – doravante RJCS)10.

9. O seguro desportivo tende também a proteger o património dos segurados. Com efeito, “o seguro desportivo aproxima-se simultaneamente da figura do seguro de acidentes pessoais e do seguro de bens, configurando-se como um misto de seguro de pessoas e de bens, porquanto visa não só cobrir danos provocados por eventos que afectem a vida, a saúde ou a integridade física do agentes desportivos, mas também visam cobrir os riscos derivados de qualquer evento que provoque danos no património do segurado.”11

10. Por outro lado, além de obrigatório, o seguro desportivo obrigatório é um seguro de grupo em sentido estrito12, porquanto se celebra um único contrato entre o segurador e a federação desportiva - que assume a posição de tomadora do seguro – que cobre uma multiplicidade de segurados (art 8.º - 10.º, 11.º, n.º 2, e 20.º, da LSD) e, dentro dos seguros de grupo, é contributivo (arts 9.º, n.os 2 e 3, da LSD, e art. 77.º, n.º 2 ,do RJCS) em que o pagamento do prémio compete ao tomador (art. 8.º, n.º 2, da LSD). Na medida em que se trata de seguro de grupo contributivo aplicam-se-lhe, em princípio, as normas dos arts. 86.º - 90.º do RJCS.

11. A esse seguro devem “aderir” os agentes desportivos.

12. Conforme o art. 5.º, n.º 2, do DL n.º 10/2009, “as coberturas mínimas abrangidas pelo seguro desportivo são as seguintes:

a) Pagamento de um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da actividade desportiva;

b) Pagamento de despesas de tratamento, incluindo internamento hospitalar, e de repatriamento”.

13. Por sua vez, o art. 16.º, do mesmo diploma legal, sob a epígrafe “coberturas mínimas abrangidas pelo seguro desportivo”, estabelece que “[o] contrato de seguro a que se refere o n.º 2 do artigo 5.º garante os seguintes montantes mínimos de capital:

a) Morte — 25 000 euros;

b) Despesas de funeral — 2000 euros;

c) Invalidez permanente absoluta — 25 000 euros;

d) Invalidez permanente parcial — 25 000 euros, ponderado pelo grau de incapacidade fixado;

e) Despesas de tratamento e repatriamento — 4000 euros”.

14. Na hipótese de invalidez parcial, o montante mínimo de capital é de € 25.000, 00, ponderado pelo grau de incapacidade fixado, e é de € 4.000, 00, para a despesas de tratamento (art. 16.º, als d) e e), da LSD).

15. Os valores assim indicados devem ser tidos como capitais mínimos obrigatórios nos contratos celebrados entre as seguradoras e as federações desportivas, as entidades prestadoras de serviços desportivos e as entidades que promovam ou organizem provas ou manifestações desportivas abertas ao público. Nada impede, pois, que as partes convencionem valores superiores aos legalmente indicados, como, de resto, sucede no contrato dos autos em que para a morte ou invalidez permanente foi fixado o valor de € 28.000,0 e, para as despesas de tratamento, o montante de € 5.000,00.

16. É, pois, um seguro de acidente pessoais, conforme o art. 210.º do RJCS. Os contratos de seguro de acidentes pessoais são especialmente regulados pelo disposto nos arts. 210.º - 212.º do RJCS, sendo-lhes ainda aplicáveis os preceitos relativos aos seguros de vida, para os quais remete o art. 211.º, n.º 1, do mesmo diploma legal.

17. Resta determinar o sentido com que deve valer a norma do art. 16.º, al. d), do DL n.º 10/2009, que prevê como montante mínimo de capital para a invalidez permanente parcial o valor de “25 000 euros, ponderado pelo grau de incapacidade fixado”.

Da divergência jurisprudencial existente quanto à interpretação do art. 16.º, al. d), do DL n.º 10 /2009, de 12 de janeiro

1. Recorde-se que se trata de um seguro desportivo de grupo em que a Autora surge como beneficiária, na qualidade de atleta federada e praticante amadora da tomadora de seguro, a Federação Equestre Portuguesa.

2. Esse contrato de seguro estava em vigor em 2019, ano em que a Autora se lesionou na prática da atividade desportiva em causa.

3. No que respeita à sua natureza jurídica, o contrato de seguro desportivo já foi considerado como “uma figura híbrida”:

– de um lado, com traços de seguro de capitais, porque determina o pagamento de um capital por morte ou invalidez (permanente, total ou parcial), a cuja fixação não se aplica o princípio indemnizatório, não se limitando o quantum da prestação da seguradora ao montante do dano decorrente do sinistro (art. 128.º do RJCS);

- de outro lado, com traços de seguro de danos, na medida em que cobre as despesas de tratamento e de repatriamento, a que se aplica o princípio indemnizatório (art. 175.º, n.º 2, do RJCS)13.

4. A propósito da questão da determinação do montante devido pela seguradora ao agente desportivo, verifica-se a existência de duas correntes na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça: de um lado, aquela que, considerando que no seguro desportivo obrigatório não está em causa a atribuição de indemnização fundada na responsabilidade civil por facto ilícito, entende que se trata de um seguro de prestações convencionadas, com conteúdo e montante previamente definidos, i.e., independentes da extensão do dano concretamente sofrido pelo lesado; de outro lado, aquela que reputa tratar-se de um seguro de prestações indemnizatórias14, na medida em que não prescinde da ponderação dos danos efetivamente resultantes do sinistro, solução que a lei não afasta, antes acolhe à luz daquela que é a ratio subjacente à consagração dos seguros obrigatórios.

5. No sentido da primeira tese, segundo a qual o art. 16.º, al. d), da LSD impõe a determinação do quantum da atribuição patrimonial devida à pessoa segura estritamente em função ou na proporção do grau de invalidez de que ficou a padecer em consequência do sinistro, desconsiderando a extensão do dano concreto e os danos não patrimoniais, foram proferidos, pelo Supremo Tribunal de Justiça, os seguintes acórdãos:

- de 8 de setembro de 2016 (Orlando Afonso), proc. n.º 1311/11.5TJVNF.G1.S115, ainda no domínio de vigência do DL n.º 146/93, de 26 de abril: considerou que, na hipótese de invalidez permanente parcial, “a determinação do quantitativo da atribuição patrimonial devida à pessoa segura em função do sinistro se acha estritamente correlacionada com o grau de invalidez de que aquela ficou a padecer em consequência desse evento” sendo este “o único factor a atender”;

- de 6 de abril de 2017 (Gonçalves Rocha), proc. n.º 335/10.4TTOAZ-P1.S116: “é manifesto que na reparação da invalidez permanente foi convencionado um critério dependente de meros cálculos matemáticos (no qual não intervém o princípio geral contido no artigo 562.º do Código Civil, segundo o qual o quantum indemnizatório deve corresponder ao prejuízo efectivamente sofrido e repará-lo integralmente), não se vendo como pode ter-se como compreendida no capital por invalidez permanente, para além da estrita indemnização correspondente à percentagem da perda da capacidade aquisitiva, a indemnização por danos não patrimoniais.

Acresce que, a entender assim, teríamos que aceitar a incongruente solução de que a apólice apenas contemplaria a reparação de danos não patrimoniais em casos de menor gravidade, em que a invalidez permanente fosse de um valor percentual mais baixo, pois o o valor do capital disponível para tal indemnização iria diminuindo à medida que fosse subindo o grau de desvalorização funcional permanente. E chegar-se-ia ao absurdo de, no caso de uma incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer trabalho, correspondente a uma IPP de 100%, ou mesmo no caso de uma IPP de 66% – potencialmente determinativas de maiores danos em bens de ordem espiritual, atenta a maior gravidade do dano corporal e as maiores limitações físicas que coenvolvem –, a apólice não contemplar a indemnização por danos não patrimoniais por não haver já capital disponível para o efeito.”.

- de 7 de novembro de 2019 (Tomé Gomes), proc. n.º 654/16.6T8ABT.E1.S117: “- as coberturas dos montantes mínimos de capital devido por morte ou por invalidez permanente, absoluta ou parcial, estabelecidas, respetivamente, nas alíneas a), c) e d) do artigo 16.º do Dec.-Lei n.º 10/2009, devem ser configuradas como prestações de capital predeterminadas em função exclusiva da natureza dessas lesões e do grau de incapacidade fixado no caso de invalidez permanente parcial, independentemente do valor do dano efetivo.

- Nesses casos, atender ao valor do dano efetivo, incluindo dos danos não patrimoniais, poderá eclipsar a diferenciação da atribuição patrimonial devida por invalidez permanente absoluta e a devida por invalidez permanente parcial e, no quadro desta, a que for devida em função dos graus de incapacidade fixados, diferenciação essa, de cariz objetivo, que se encontra bem patente no artigo 16.º, alíneas c) e d) do Dec.-Lei n.º 10/2009.”.

6. Por seu turno, em sentido divergente e coincidente com aquele preconizado no acórdão recorrido:

- de 4 de outubro de 2018 (Paulo Sá), proc. n.º 4575/15.1T8BRG.G1.S118: a compensação devida ao segurado deveria atender aos danos não patrimoniais decorrentes de um acidente pessoal ocorrido no exercício da atividade desportiva;

- de 9 de maio de 2019 (Nuno Pinto de Oliveira), proc. n.º 1751/14.8TBVCD.P1.S119: o art. 16.º, al. d), do DL n.º 10/2009, há-de ser interpretado no sentido de determinar tão-só o montante máximo de capital devido pela seguradora, devendo, dentro deste limite, ser atendidos tanto os danos patrimoniais como os danos não patrimoniais, considerando nulas as cláusulas que excluam tal cobertura por aplicação conjugada do art. 6.º do DL n.º 10/209 e do art. 294.º do CC.

Decorre deste aresto que o regime do seguro desportivo obrigatório pretende corresponder à necessidade fundamental “de assegurar que o beneficiário chegue, efectivamente, a usufruir da cobertura. É certo que um sistema de seguros não evita o risco, mas previne o perigo de as vítimas não obterem o ressarcimento”. O fim de “cobrir os riscos”, prevenindo o “perigo de as vítimas não obterem ressarcimento”, depõe em favor de que o critério decisivo para a determinação do montante de capital devido ao segurado seja determinado pela extensão do dano — e não pela extensão da incapacidade, de que decorre o dano.”.

Acrescenta-se que “quando um acidente pessoal inerente à actividade desportiva cause uma invalidez permamente parcial de 25% e, como consequência da invalidez permanente parcial, um dano de 12500 euros, o montante de capital devido ao segurado deve ser 12500, e não de 6250 euros; quando um acidente pessoal cause uma invalidez permanente parcial de 50% e, como consequência da invalidez permanente parcial, um dano de 25000 euros, o montante de capital devido ao segurado deve ser de 25000 euros, e não de 12500 euros.”.

No que respeita à atendibilidade dos danos não patrimoniais, refere que a lei, no âmbito do contrato de seguro desportivo, não distingue entre dano patrimonial e dano não patrimonial, pelo que nenhuma razão existe para o intérprete proceder a tal diferenciação.

7. O acórdão recorrido, adotando a tese sufragada neste último aresto do Supremo Tribunal de Justiça e atendendo à ratio dos seguros obrigatórios - imperativo de solidariedade e de reparação equitativa dos danos decorrentes de uma atividade tipicamente perigosa, necessidade social que o legislador entendeu fundamental -, considerou tratar-se de um verdadeiro seguro de responsabilidade civil, ao qual não pode ser alheio ou indiferente a extensão do dano concretamente sofrido pelo lesado. Por isso mesmo, o art. 16.º, al. d), da LSD, estabelece a necessidade de ponderar o grau de incapacidade.

8. Assim, “(…) não pode considerar-se não se tratar o seguro obrigatório em causa de um seguro de responsabilidade civil, nem faz qualquer sentido dizer-se ser indiferente o dano efetivo. Tanto não é que a al. d) do art. 16.º manda ponderar o grau de incapacidade.

Também não é argumento defensável afirmar-se que o atendimento do dano efetivo incluindo dos danos não patrimoniais criaria uma disfunção do sistema: eclipsar a diferença entre invalidez permanente e absoluta e invalidez permanente parcial.

Bom, se assim é, diremos, o problema não é de aplicação da norma, mas da bondade da sua solução intrínseca e, porventura, da sua desadequação à realidade, volvidos que são catorze anos desde a sua aprovação e tendo em vista a evolução do risco social em causa neste domínio.

Quer dizer: não cabe ao aplicador lançar mão de uma interpretação voluntarística das normas em ordem a garantir o seu putativo sentido interno quando daí resultar o esvaziamento ou redução da proteção jurídica que a mesma visa dirigir ao sujeito por si tutelado. E, como vimos, é escopo desta norma proteger de forma efetiva os lesados que o sejam na prática desportiva, o que não pode dispensar nunca a consideração da sua lesão efetiva.

Que socialização de risco e que solidariedade teríamos quando, prevendo o contrato de seguro um capital de € 28.000, 00, para o caso de invalidez permanente, se apurasse, a tal título um dano patrimonial de € 80.000, 00, e não patrimonial de € 30.000, 00, e se fixasse a medida da contribuição da seguradora em € 7.000, 00?...”.

9. Não pode deixar de se acolher a solução adotada no acórdão recorrido.

10. Com efeito, o sentido atribuído à norma interpretanda pela outra posição jurisprudencial restringe, de forma iníqua, o objetivo intencionado pelo legislador ao regular o seguro desportivo obrigatório, que é o de atender a uma “necessidade social fundamental” de modo “a … assegurar que o beneficiário chegue, efectivamente, a usufruir da cobertura”. Segundo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de maio de 2019, supra mencionado, “o fim de “cobrir os riscos, prevenindo o perigo de as vítimas não obterem ressarcimento” depõe em favor de que o critério decisivo para a determinação do montante de capital devido ao segurado seja determinado pela extensão do dano — e não pela extensão da incapacidade, de que decorre o dano.”. O recurso ao termo “ressarcimento” ilustra igualmente que as prestações a cargo do segurador se revestem de natureza indemnizatória.

11. Nessa medida, entende-se que se deve partir da fórmula de cálculo do montante da indemnização devida nos termos gerais, i.e., atendendo à dimensão do dano efetivamente sofrido, limitando-se, depois, porém, o montante concretamente obtido ao valor de € 25.000, previsto no art. 16.º, al. d), ou ao capital seguro, no caso de este ser superior àquele.

12. O resultado alcançado pela tese mais restritiva afigura-se também excessivamente oneroso para os beneficiários, já que é ostensiva a diferença patrimonial decorrente da aplicação de cada uma das posições em confronto. Aliás, conduz, no limite, praticamente à impossibilidade de a seguradora vir a pagar alguma vez o máximo do capital seguro. Exemplo disso é justamente o caso sub judice, em que, perante um dano concretamente sofrido pela agente desportiva no montante de € 110.000,00, o montante devido pela seguradora oscila entre o valor de € 7.000,00 (decorrente da mera aplicação da percentagem atribuída à incapacidade permanente) e o de € 28.000,00 (por aplicação da posição defendida no acórdão recorrido). Isto revela uma clamorosa injustiça do resultado obtido por essa tese, dada a evidente desproporção entre os danos sofridos e a respetiva compensação.

13. Não se crê que o objetivo da lei que aprovou o regime jurídico do seguro desportivo obrigatório – i.e., reparar danos socialmente relevantes - se realize mediante a aplicação de um critério dependente de meros cálculos matemáticos, i.e., que prescinda da ponderação do dano efetivamente sofrido pelo beneficiário.

14. Ademais, a letra da lei não parece consentir numa interpretação tão restritiva como a que é preconizada pela Ré/Recorrente.

15. Contrariamente ao que a tese restritiva sustenta, entende-se que a referência feita no art. 16.º, al. d), da LSD, ao concreto grau de incapacidade do lesado impõe, justamente, que se atenda à situação em que o mesmo efetivamente se encontra, o que não sucede se não se levar em devida linha de conta a extensão do dano concretamente por si sofrido.

16. Além do mais, conforme o acórdão recorrido, “Também não é argumento defensável afirmar-se que o atendimento do dano efetivo, incluindo dos danos não patrimoniais, criaria uma disfunção do sistema: eclipsar a diferença entre invalidez permanente e absoluta e invalidez permanente parcial.

Bom, se assim é, diremos, o problema não é de aplicação da norma, mas da bondade da sua solução intrínseca e, porventura, da sua desadequação à realidade, volvidos que são catorze anos desde a sua aprovação e tendo em vista a evolução do risco social em causa neste domínio.

17. É, de resto, o que conclui o acórdão recorrido: “deverá efetuar-se referência à incapacidade concreta do lesado, não para efetuar um cálculo proporcional – 100% corresponderia à invalidez total e, a partir daí, aplicar-se-ia a percentagem de incapacidade ao capital garantido – mas para se apurar qual exatamente o dano real que sofreu, tendo em conta aquela incapacidade, atribuindo-se, ao abrigo do seguro, o capital respetivo, até ao limite de
€ 25.000, 00 (ou do que for contratado, se superior a este valor).”.

Acresce que “o mesmo vale para os danos não patrimoniais que são, também, uma decorrência da invalidez ou incapacidade, não distinguindo a LSD entre um e outro dos danos.”.

18. Também quanto aos danos não patrimoniais se secunda o acórdão recorrido.20 Com efeito, , “não distinguindo a lei entre o dano patrimonial e o dano não patrimonial, também não deve o intérprete distinguir, sob pena de subversão do espírito do legislador, sendo, por isso, nele contemplado o ressarcimento dos danos em qualquer das vertentes21.

19. De resto, segundo o art. 9.º, n.º 3, do CC, o intérprete deve presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, não podendo eleger um sentido que não encontra ressonância no texto da lei.

20. Reitere-se que o seguro desportivo se consubstancia num seguro de acidentes pessoais e que, não sendo passíveis de avaliação pecuniária direta, os danos corporais são considerados como danos não patrimoniais. In casu, uma vez que abrange expressamente a cobertura de “danos corporais” (cf. cláusula 5), o contrato de seguro não permite considerar excluídos os danos não patrimoniais.

21. Acresce que, no caso de o contrato de seguro ser omisso sobre o tipo de danos a ressarcir, deve prevalecer o sentido mais favorável ao aderente (in dubio contra proferentem ou contra stipulatorem)22.

22. Em jeito de conclusão:

em sentido favorável à referida cobertura, têm sido invocados argumentos vários, nas decisões dos tribunais portugueses. assim:

(i) o propósito do RJSDO, manifestado no seu preâmbulo e articulado, foi o de proteger os desportistas quanto a todo o tipo de danos, de modo que o artigo 5.º/2 a) do RJSDO contemplaria também danos morais emergentes do sinistro;

(ii) o preâmbulo do RJSDO refere- se expressamente ao “ressarcimento”, de modo que as prestações a cargo do segurador teriam, neste seguro, a natureza de indemnização;

(iii) o legislador no artigo 5.º/2 e 16.º do RJSDO, tendo podido fazê- lo – como fez com respeito à cobertura pelo FGA no artigo 49.º do RSORCA ou nos artigos 23.º e ss. e 47.º e ss. da LAT –, não distinguiu entre danos patrimoniais e não patrimoniais, de modo que não deveria também

o intérprete fazê- lo;

(iv) da incapacidade não resultam apenas danos patrimoniais;

(v) os danos não patrimoniais são indemnizáveis nos termos gerais da responsabilidade civil (artigo 496.º/1 do cc);

(vi) o seguro em causa é de pessoas, referente aos riscos relativos à integridade física e da sua lesão, designadamente em caso de incapacidade, decorrem danos patrimoniais como também não patrimoniais, cobertos por este seguro;

(vii) quando a lei fala de “capital”, “inclui todos os tipos de danos ou, dito doutro modo, não exclui os danos não patrimoniais”;

(viii) o artigo 16.º d) do RJSDO, ao estabelecer € 25.000 como soma segura, fixa apenas o limite da prestação do segurador, não impondo o cálculo da prestação em percentagem da incapacidade, o qual, em consonância com o propósito da instituição deste seguro obrigatório, deveria ser feito “nos termos gerais”, em função da extensão dos danos, sejam ou não patrimoniais, e não da incapacidade de que decorre o dano. Caso contrário, seria incompreensível a fixação do mesmo capital de € 25.000 para invalidez permanente absoluta;

(ix) a expressão “cobertura de danos corporais pelas pessoas seguras” contida nas apólices de seguro desportivo, sem exclusão expressa dos morais, abrangê- los- á, como consequência natural dos primeiros; além do mais,

(x) uma cláusula que impeça o ressarcimento de danos não patrimoniais será nula por força do artigo 6.º do RJSDO;

(xi) a forma de cálculo da indemnização por dano corporal estaria subtraída à autonomia privada, por força do artigo 6.º/1 d) do decreto- lei n.º 352/200770;

(xii) as cláusulas por que se estipule serem as indemnizações por lesões corporais calculadas sem ser tida em conta a actividade profissional da pessoa segura seriam nulas por força dos artigos 6.º do RJSDO e 294.º do cc.23.

IV - Decisão

Nos termos expostos, acorda-se em julgar improcedente o recurso de revista interposto pela Ré AIG Europe S.A. – Sucursal em Portugal, confirmando-se integralmente o acórdão recorrido.

Custas pela Ré/Recorrente.

Lisboa, 10 de Outubro de 2023


Maria João Vaz Tomé (Relatora)

Pedro de Lima Gonçalves

Manuel Aguiar Pereira

_____________________________________________

1. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, processo n.º 489/17.9T8AVV.G1, datado de 8 de Julho de 2020. Consultado em www.dgsi.pt.↩︎

2. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo n.º 6075/15.0T8VNG.P1, datado de 12 de Outubro de 2020. Consultado em www.dgsi.pt.↩︎

3. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 654/16.6T8ABT.E1.S1, datado de 7 de Novembro de 2019: Consultado em www.dgsi.pt.↩︎

4. Vide ROCHA, FRANCISCO RODRIGUES, “Seguro desportivo. Cobertura de danos não patrimoniais? Sports insurance. Non- financial losses cover?” in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, ano LXI, 2020, número 2↩︎

5. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, processo n.º 489/17.9T8AVV.G1, datado de 8 de Julho de 2020. Consultado em www.dgsi.pt.↩︎

6. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo n.º 6075/15.0T8VNG.P1, datado de 12 de Outubro de 2020. Consultado em www.dgsi.pt.↩︎

7. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 654/16.6T8ABT.E1.S1, datado de 7 de Novembro de 2019. Consultado em www.dgsi.pt.↩︎

8. Vide ROCHA, FRANCISCO RODRIGUES, “Seguro desportivo. Cobertura de danos não patrimoniais? Sports insurance. Non- financial losses cover?” in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, ano LXI, 2020, o dano para efeito da cobertura de “capital” por “invalidez permanente parcial” deva ser apurado “nos termos gerais”, entenda-se da responsabilidade civil. Além, repita-se, do carácter não indemnizatório da prestação em causa, há que ter em conta o teor do artigo 16.º d), segundo o qual o montante mínimo de capital para invalidez permanente parcial é “ponderado pelo grau de incapacidade fixado”. A letra da lei é muito clara neste sentido.»↩︎

9. De acordo com o doc. correspondente – doc 2 junto com a contestação da seguradora Ré – são as seguintes as cláusulas do contrato de seguro:

1. Risco Seguro

Risco Extra-Profissional, entendendo-se como tal o desempenho de funções inerentes à prática desportiva amadora Equestre, exclusivamente, e nos termos estabelecidos no Decreto-Lei nº 146/93 de 26 de Abril.

2. Pessoas Seguras

Consideram-se Pessoas Seguras os praticantes amadores de equitação com inscrição válida na Federação, e ou em representação do Tomador de Seguro, bem como, os dirigentes e demais agentes desportivos, que por inerência do cargo exerçam funções relacionados com a pratica amadora de equitação quer sejam funções administrativas ou outras, todos estes desde que devidamente inscritos como tal Federação Equestre Portuguesa e constem nas listagens enviadas à Seguradora.

3. Atividade Segura

Prática Desportiva Amadora de Equitação

4. Âmbito Territorial

Mundo Inteiro, excluindo países sancionados pelo OFAC, Nações Unidas ou Estados Unidos da América.

5. Âmbito da Cobertura

Danos Corporais sofridos pelas Pessoas Seguras, até aos limites adiante indicados, em consequência de acidentes ocorridos em resultado da Actividade Segura, incluindo deslocações em qualquer meio de transporte de e para os locais onde tenham lugar as referidas actividades, desde que em representação de clubes inscritos na F.E.P. e de acordo com os termos e condições dispostos nas Condições Gerais, Especiais e Particulares aplicáveis.

6. Coberturas e Capitais Seguros

A. Morte ou Invalidez Permanente 28.000,00€

B. Morte Simultânea de Pessoa Segura e Conjugue c/ Filhos Menores 15.000,00€

C. Despesas de Tratamento e Repatriamento 5.000,00€

D. Despesas de Funeral 5.000,00€

E. Despesas com Operações de Salvamento, Busca e Transporte 1.000,00€

Nota: Para menores de 14 anos não se aplicará a garantia de Morte sendo convertida em Despesas de Funeral até ao

limite de 5.000€.

7. Franquia

Aplica-se Franquia Fixa de 50,00€ em toda e qualquer abertura de processo de sinistro de Despesas de Tratamento e Repatriamento.

8. Prémio do Seguro

Prémio Comercial Fixo Não Estornável por Pessoa Segura: 11,00 Euros

9. Termos e Condições

De acordo com o estipulado nas Condições Gerais e Especiais do Seguro de Acidentes Pessoais – Seguro Desportivo, e no respectivo Manual de Procedimentos em Caso de Sinistros.

A cobertura dos riscos de Morte e o de Invalidez Permanente não são cumuláveis, pelo que no caso da “Pessoa Segura” vier a falecer em consequência de Acidente a coberto da apólice, à indemnização por Morte será abatida a indemnização por Invalidez Permanente que eventualmente lhe tenha sido atribuída e/ou paga relativamente ao mesmo acidente.

A tabela base para o cálculo de Indemnizações devidas por Invalidez Permanente, é a Tabela Nacional de Incapacidades (DL 341/93 de 30.09).↩︎

10. Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de novembro de 2019 (Tomé Gomes), proc. n.º 654/16.6T8ABT.E1.S1 – disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c2fc90ada0263e22802584ab005d6442↩︎

11. Cf. Ana Brilha, “O Novo Regime do Seguro Desportivo – Verdade Inovação?”, in Revista Jurídica do Desporto “Desporto & Direito”, Ano VI, Janeiro/Abril 2009, pp 293 e ss.. ↩︎

12. Cf. Margarida Lima Rego, “Contrato de seguro e terceiros. Estudo de direito civil”, Coimbra, Coimbra Editora, 2010, pp. 777 ss..; “Os seguros coletivos e de grupo”, in Temas de direito dos seguros. A propósito da nova lei do contrato de seguro, coord. de Margarida de Lima Rego, Coimbra, Almedina 2012, pp. 299-328.↩︎

13. Cf. Margarida Lima Rego, “O início da cobertura no seguro desportivo”, in O Desporto que os Tribunais Praticam, coord. José Manuel Meirim, Coimbra, Coimbra Editora, 2014, pp. 211 e ss..↩︎

14. Sobre a distinção entre seguros de prestações convencionadas e seguros de prestações indemnizatórias, vide José Vasques, Contrato de Seguro, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, p. 47, de acordo com o qual “Segundo esta classificação serão seguros de prestações indemnizatórias todos aqueles em que a prestação da seguradora consiste num valor a determinar a partir dos danos resultantes do sinistro e serão seguros de prestações convencionadas todos os restantes (naturalmente que, sendo clausuladas contratualmente, todas as prestações são, nesse sentido, convencionadas, pelo que o sentido que interessa ao texto é o que define as prestações convencionadas como aquelas cujo conteúdo e montante estão previamente definidos, dependendo apenas a sua realização da verificação de determinado evento).”.↩︎

15. Disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/86f72ef448890b838025802c003c4b79?OpenDocument↩︎

16. Disponível para consulta in

  http://www.gde.mj.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/3572ffe2b8215652802581000031d8df?OpenDocument↩︎

17. Disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c2fc90ada0263e22802584ab005d6442↩︎

18. Disponível para consulta in   http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/66df4dcbe601009580258322003fa60e↩︎

19. Disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/38772505767ab0c3802583f5005910ba?OpenDocument↩︎

20. No mesmo sentido, vide Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14 de maio de 2020 (Fernando Fernandes Freitas), proc. n.º 641/11.0TBCMN – disponível para consulta in http://www.gde.mj.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/1124d000490e67ef8025857500457a4c?OpenDocument.↩︎

21. Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 30 de janeiro de 2020 (Conceição Ferreira), proc. n.º 8818/17.9T8STB.E1 – disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/fc80b1dff173a6968025850a00361385?OpenDocument.↩︎

22. Cf. inter alia, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6 de julho de 2023 (Arlindo Crua), proc. n.º 2685/21.5T8SXL.L1-2 – disponível para consulta in

  http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/c289dd22e1c5a788802589ef005009e9?OpenDocument.↩︎

23. Cf. Francisco Rodrigues Rocha, “Seguro desportivo. Cobertura de danos não patrimoniais? Sports insurance. Non- financial losses cover?” in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, ano LXI, 2020, pp. 304-306.↩︎