Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
160-Q/2001.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE
SOCIEDADE COMERCIAL
LIBERALIDADE
NEGÓCIO GRATUITO
ÓNUS DA PROVA
NULIDADE
CAPACIDADE DE GOZO
ALTERAÇÃO DO PEDIDO
ALTERAÇÃO DA CAUSA DE PEDIR
Data do Acordão: 10/18/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS/ PESSOAS COLETIVAS/ NEGÓCIO JURÍDICO/ PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES/ FONTES DAS OBRIGAÇÕES/ CONTRATOS
DIREITO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS - CAPACIDADE JURÍDICA
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - INSTÂNCIA
Doutrina: – Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, Fontes, Conteúdo e Garantia da Relação Jurídica, 5ª ed., Lisboa, 2010
– Paulo Olavo Cunha, Direito das Sociedades Comerciais, 5ª ed., Coimbra, 2012
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL, ARTIGOS 160º, 294º, 342º, 473º, 493, 940º
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS, ARTIGO 6º
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, ARTIGOS 273º,
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE 10 DE JANEIRO DE 2010, CUJO SUMÁRIO SE ENCONTRA EM WWW.DGSI.PT, PROC. Nº 2380/05.2TBOER.S1.
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 7 DE JULHO DE 2010, WWW.DGSI.PT, PROC. Nº 07B4794 E DE 2 DE MARÇO DE 2011, WWW.DGSI.PT , PROC. Nº 823/06.7TBLLE.E1.S1
Sumário :
1. É ao autor que incumbe definir o pedido e a correspondente causa de pedir da acção, assim confinando o âmbito dos poderes de cognição do tribunal, balizados pelo efeito jurídico pretendido (artigos 498º, nº 3, 661º e 668º, nº 1, e) do Código de Processo Civil) e pelo núcleo factual do qual o faz surgir (artigos 264º, nº 1 e 498º, nº 4 do mesmo Código).
2. O momento próprio para essa definição é a petição inicial. Salvo acordo das partes, só na réplica se pode alterar a causa de pedir (salvo se o autor utilizar uma confissão feita pelo réu) e ampliar o pedido (excepto se a ampliação se traduzir no desenvolvimento do pedido inicial).
3. É condição de procedência de uma acção na qual se pede a declaração de nulidade de actos gratuitos alegadamente praticados por uma sociedade comercial, com fundamento em incapacidade da sociedade, a prova da gratuitidade dos actos.
4. Ao contestar a gratuitidade, a ré impugnou o carácter de liberalidade invocado pela autora para justificar a nulidade (negação indirecta dos factos constitutivos do direito invocado pela autora, artigo 489º do Código de Processo Civil).
5. Incumbe à autora o ónus da prova da gratuitidade dos actos.
Decisão Texto Integral:

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:


1. Em 5 de Janeiro de 2004, a Massa Falida de AA, Lda., por apenso ao processo de falência, instaurou uma acção contra BB, Lda, na qual, invocando a nulidade de diversos actos praticados pela autora “em benefício exclusivo da Ré”, constituindo “verdadeiras liberalidades”, “actos de disposição gratuita a favor da Ré e/ou de assunção de obrigações em benefício dela”, pediu a sua condenação na restituição de “tudo o que recebeu no âmbito dos actos declarados nulos”, “a quantia de 2.344.925,00 Euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados da citação até efectivo e integral pagamento”.

Tais actos – agrupados em “rendas pagas à CC, S.A e DD, S.A”, “saídas directas dos cofres da autora para os da ré sem título que as justificassem”, “pagamentos efectuados pela falida, ao Estado e outras entidades públicas, em nome e no interesse da ré”, “pagamentos, em nome da ré, efectuados pela falida à BB, Lda.”, “pagamento, pela autora, do complemento de reforma de um membro da direcção da ré”, “pagamentos de obras realizadas nas instalações da ré em seu benefício” e “pagamentos, pela autora, a fornecedores da ré” –, estranhos ao objecto social da autora, de quem a ré foi, “durante vários anos, a única sócia”, excederam a sua capacidade, com conhecimento da ré, sendo portanto nulos, por força dos artigos 6º e 260º do Código das Sociedades Comerciais; e a nulidade pode ser invocada pela Massa Falida “a todo o tempo” (artigo 286º do Código Civil).

A ré contestou, impugnando a quase totalidade dos factos alegados, explicando a “génese” e “o teor das relações contratuais entre as partes” da acção, negando ter havido “liberalidades ou actos praticados pela A estranhos ao seu escopo social”: “os actos praticados pela A. não são gratuitos, tiveram sempre contrapartidas, e visavam directa ou indirectamente fazer extinguir as dívidas que ela tinha com a R. e foram sim praticados na prossecução do seu fim social que era a obtenção do lucro”; e “todas as prestações efectuadas pela A. a terceiros, credores da R., visaram exclusivamente extinguir a obrigação da A. para com esta, porque assim foi sendo estipulado e consentido por todas as partes dadas as relações de confiança e creditícias existentes entre ambas”. Segundo alegou, existia uma conta corrente entre ambas, sendo que os pagamentos de dívidas da ré a terceiros, que a autora efectuou, a seu pedido, eram deduzidos “do seu saldo devedor”.

Houve réplica.

Na sequência do despacho de fls. 2632, a autora juntou nova petição inicial, acrescentando que aqueles actos não foram assumidos por nenhuma “deliberação social expressa” da falida, nem “tão pouco existem comportamentos” da mesma que revelassem a sua assunção tácita; a ré impugnou parte do seu conteúdo (a fls. 2670).

A acção veio a ser julgada improcedente pela sentença de fls. 2973. Em síntese, o tribunal considerou terem ficado “provados todos os factos alegados pela A. no que aos pagamentos e entregas respeitam, ou seja, ficou assente que efectivamente a falida pagou despesas, suportou encargos e pagou dívidas da R.”; mas que a autora “não logrou provar (…) que as transacções efectuadas pela falida constituíram liberalidades”. Provou-se “que a A. efectuou pagamentos da R. a terceiros por conta do saldo devedor que tinha junto da R. e que quando tais pagamentos eram efectuados os respectivos montantes eram deduzidos no saldo devedor que a A. tinha para com a R. Mais se apurou que a R. pagava as contas telefónicas, da água e da electricidade dos prédios referidos arrendados à falida e que posteriormente debitava os respectivos valores à A. Por último ficou provado que a R. facultava à A. o goza das fracções dos prédios identificados nos autos e que não estavam incluídas no acordo celebrado entre ambas. É certo que nada se provou quanto a concretos montantes nem quanto aos valores que existiram na "conta-corrente" existente entre as duas sociedades, não sendo assim possível concluir se o saldo final se apresentava credor ou devedor da falida. Mas o facto se ter provado que havia uma conta permanente entre as duas sociedades, na qual eram lançados os vários movimentos de deve e haver existentes, impede que se dê como provado que os pagamentos que a falida fazia da responsabilidade da R. constituíam liberalidades. A falida fazia pagamentos, mas, em contrapartida, ela própria era devedora à R. de quantias diversas. Logo, não se apurando valores concretos, não se pode afirmar que os pagamentos que fazia não tinham qualquer contrapartida. Podiam não ter mas também podiam ter. Podiam não ter na sua totalidade mas também o podiam ter. (…) Tal como exposto, não ficou demonstrado no processo que os pagamentos e entregas de dinheiro feitas pela R. correspondessem a "doações" desta à R., ou seja, não se provou que a R. tenha assumido e suportado com fundos próprios dívidas e obrigações da R. Logo, não fica prova a existência de liberalidades, não fica provada a existência de negócios gratuitos indevidos que importem a obrigação da R. de proceder à sua restituição. Por conseguinte, não se provando tais "liberalidades" e sendo as mesmas o pressuposto que fundamenta o pedido de condenação formulado, não pode a R. ser condenada a entregar à A. a quantia peticionada. O pedido é, pois, improcedente”.

A autora recorreu para a Relação de Lisboa, sustentando, por entre o mais, a nulidade dos “pagamentos [efectuados] a título de liberalidades (…) na medida em que se trata de actos sem contrapartidas que se traduzem num desvalor para a A” e que “a Ré obteve um enriquecimento sem causa, na medida em que viu o seu património enriquecido sem causa justificativa, à custa do património e do empobrecimento da A.”, devendo restituir € 2.310.833,48, tendo a sentença violado, “entre outros, o disposto no art. 473º do Código Civil e 493º do Cód. Proc. Civil”.

A Relação julgou parcialmente procedente a apelação. Considerando que era à Ré que cabia o ónus de provar “que os pagamentos em causa, efectuados pela Autora, e que eram da sua responsabilidade decorreram para acerto de contas e para saldar créditos que detinha sobre a Apelante, derivados de pagamentos por si efectuados e que por sua vez competiam à A. como resulta nos artigos 31, 32, 33, 42, 56 e 57 da contestação, pelo que estaríamos face a uma mera compensação de créditos emergente de uma conta corrente destinada a registar movimentos a débito e a crédito de ambas as empresas”, prova que não fez, “subsiste a provados variados pagamentos feitos pela Autora sem qualquer justificação contabilística. São avultados montantes que não podem ser anuladas pela vaga alegação da necessidade de acerto de contas sem prova cabal sobre o conteúdo desse acerto.” Seria mesmo abusivo que a ré pretendesse prevalecer-se da impossibilidade de os peritos formularem “uma conclusão sobre as contas”, provocada por não lhes ter facultado “a documentação necessária para se apurar da regularidade desse acerto de contas”. E concluiu que “assim sendo, acompanhamos a posição da Autora no sentido de tais pagamentos se deverem entender como liberalidades e cuja manutenção no património da Ré consubstancia uma situação de enriquecimento sem causa. (…) Esta disposição [o artigo 473º do Código Civil] postula pois a restituição à Autora das quantias em causa. Tais quantias estão ilíquidas, uma vez que não é possível apurar com exactidão todos os montantes resultantes dos pagamentos a que se reportam os n°s 10 a 41 da matéria de facto supra. Em face disso deve lançar-se mão do disposto no art° 661°, n° 2, do Código de Processo Civil”.

            A acção foi julgada parcialmente procedente, sendo a ré condenada “a devolver à Autora as quantias que se vierem a liquidar em execução de sentença das que constam nos n°s 10 a 41 da matéria de facto (…), acrescidas de juros de mora vencidos desde a citação e vincendos até integral reembolso”

            2. A ré recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça. O recurso, ao qual não são aplicáveis as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, foi admitido como revista.

            Nas alegações que apresentou, acompanhadas de um parecer jurídico, a recorrente formulou as seguintes conclusões:

            “(…)

            5º. (…) a acção configurada pela A. e que fundamentava o pedido formulado, assentava nos seguintes pressupostos: a existência de pagamentos realizados pela A. a favor da R; que tais pagamentos constituíam liberalidades; que tais liberalidades deveriam ser consideradas nulas por não se incluírem no objecto social da Autora.

6º. Ficou provado que houve os pagamentos a favor da Ré e as entregas em dinheiro à Ré que a Autora alegou, mas não ficou provado o segundo pressuposto: que esses actos configuravam uma intenção de com a sua prática a Autora praticar liberalidades. Não ficou provado o segundo pressuposto da causa de pedir: que aqueles actos praticados pela A. eram actos gratuitos e, por isso, contrários ao fim da sociedade.

7º. Constitui entendimento comum na doutrina e na jurisprudência que o artigo 6º, n.°1 do CSC, consagra uma limitação à capacidade de gozo das sociedades comerciais, limitação essa que resulta do fim social, de onde decorre que os actos contrários ao fim social sejam nulos. O fim da sociedade situa-se no plano subjectivo: no propósito, na intenção, no objectivo de alcançar o lucro. Só os actos contrários ao fim é que exorbitam da capacidade da sociedade, uma vez que a sociedade tem a sua capacidade limitada pelo fim e que esse fim consiste no lucro.

8º. No caso dos autos, a Autora tinha que alegar e provar, além dos pagamentos efectuados em benefício da Autora, o animus donandi, isto é, que houve a intenção pela sua parte de efectuar uma atribuição patrimonial a favor da R., sem qualquer contrapartida. Era, por tanto, necessário à Autora provar, como muito bem evidenciou o Tribunal de primeira instância, a natureza gratuita dos actos, isto é, a existência de liberalidades.

9º Como resulta da resposta à matéria de facto e do relatório da sentença de primeira instância, a A. não logrou fazer essa prova (que não foi colocada em causa em sede de recurso). Pelo contrário, ficou provado que havia lançamentos recíprocos e que a Ré. entregava à A. as quantias que lhe eram entregues por terceiros e que pagava contas da responsabilidade da Autora.  Daí que o pressuposto de que dependia a existência do crédito cujo pagamento a A. reclamava não se verifica o que, consequentemente, impediu a aplicação da sanção da nulidade.

10°. Partindo dos mesmos factos, da mesma causa de pedir e do mesmo pedido, o Tribunal da Relação decidiu de modo diferente, condenando a Ré a devolver à Autora "as quantias que se vierem a liquidar em execução de sentença (...)". E fê-lo invocando as normas do enriquecimento sem causa e do ónus da prova, o que levou o Tribunal a transfigurar a acção, transformando a petição inicial da Autora em uma outra que ela não apresentou.

(…) 12°.A doutrina e a jurisprudência evidenciam que as questões relativas a pedidos com base em enriquecimento sem causa só deverão ser conhecidas quando na petição inicial tal pedido tenha efectivamente sido formulado, ainda que a título de pedido subsidiário. A A. não alegou na petição inicial, local processualmente indicado para o efeito, os pressupostos do enriquecimento sem causa (como aliás, não podia atenta a sua causa de pedir).

13°. O instituto do enriquecimento sem causa tem carácter subsidiário e, como tal, só pode ser invocado quando a lei não faculte ao A. outro meio de ser ressarcido do prejuízo que alega ter sofrido. Alegando a A. que fez pagamentos em benefício exclusivo da R. e que tais pagamentos constituíram verdadeiras liberalidades a favor desta, a A. tinha outro meio específico para "desfazer" tais pagamentos e pedir a sua restituição. E foi exactamente assim que a A. fez ao alegar a nulidade dos pagamentos peticionando, consequentemente, a sua restituição.

14°. O Tribunal da Relação ao decidir como decidiu deslocou a causa de pedir e o pedido efectuado pela Autora no âmbito da nulidade dos negócios para uma condenação no âmbito do enriquecimento sem causa. Isto é, perante uma factualidade, cuja prova produzida não permitiu concluir pela existência de liberalidades e, consequentemente, tornou inaplicável o regime da nulidade, o Tribunal da Relação considera que "tais pagamentos se devem entender como liberalidades e cuja manutenção no património da Ré consubstancia uma situação de enriquecimento sem causa"!

15°. Ao fundamentar a sua decisão nestes termos, o Tribunal a quo incorre em duas contradições: uma com a matéria de facto provada nos autos; outra, com o regime jurídico do enriquecimento sem causa.

16°. Não tendo ficado provado que existiram liberalidades, o Tribunal a quo não podia fundamentar a decisão, como o fez, no facto de tais pagamentos se "deverem entender como liberalidades"! Foi, aliás, porque essa prova não foi feita nos autos, porque a Autora não fez prova da natureza gratuita dos actos, é que deixou de haver causa para a invocada nulidade e, consequentemente, para a restituição do crédito peticionado. Portanto, o acórdão recorrido ao fundamentar a sua decisão é, neste passo, contraditório com a matéria fixada nos autos.

17°. A segunda contradição, agora com o regime jurídico do enriquecimento sem causa, resulta do facto de se afirmar que "as liberalidades" recebidas pela Ré consubstanciam enriquecimento sem causa. Esta afirmação só pode conduzir a um de dois resultados: ou que uma liberalidade implica, sempre, enriquecimento sem causa; ou que as (alegadas) liberalidades invocadas nos autos conduzem a enriquecimento sem causa, por terem sido efectuadas por sociedades. Qualquer destas duas hipóteses não têm fundamento.

(…)

20º. (…) No caso dos autos, a aplicação do regime do enriquecimento sem causa é absolutamente inconciliável com a causa de pedir da acção, que reside no carácter gratuito os actos praticados pela Autora e na sua nulidade.

(…) 23º. Em face do exposto, salvo o devido respeito, o Tribunal da Relação ao enquadrar a causa de pedir e o pedido dos presentes autos nas regras do enriquecimento sem causa interpretou erradamente as normas daquele instituto que impõem a sua aplicação subsidiária às situações em que não existe causa. Existindo uma causa para o enriquecimento a aplicação do regime do enriquecimento sem causa está excluída.

24°. O Tribunal a quo, ao ter condenado a aqui Recorrente, por enriquecimento sem causa, violou, assim, o disposto no artigo 473.°, 474.° e 479.° do Código Civil.

25º. Acresce, ainda, que nos termos do artigo 722.° do CPC, na redacção aplicável aos presentes autos, além da violação de lei substantiva, pode o recorrente alegar a violação de lei do processo, desde que preenchidos os requisitos constantes do artigo 754.°, n.° 2 do CPC, na referida redacção. Ora, como se alegou, o Tribunal a quo alterou a causa de pedir e o pedido formulado pela A. na petição inicial, tendo transfigurado a acção numa nova. (…)

26°. Ao ter alterado o pedido e a causa de pedir, o Tribunal a quo violou, assim, ainda, o disposto no artigo 3.° e 268.° do CPC.

27°. Ainda que se considerasse possível a aplicação do instituto do enriquecimento sem causa aos presentes autos, o que, como se demonstrou, não é, sempre também se teria que considerar prescrito tal direito. Tendo os pagamentos e entregas que estariam na base "do eventual" enriquecimento sem causa ocorrido entre Novembro de 1995 e Outubro de 2001, quando a A. intentou a acção, em 5 de Janeiro de 2004, para a qual a R. foi citada no dia 19 de Março de 2004, o direito a peticionar a restituição das quantias pagas com fundamento jurídico em enriquecimento sem causa encontrava-se já prescrito, relativamente aos pagamentos e entregas realizados antes de 19 de Março de 2001, nos termos do disposto no artigo 482.° do Código Civil – prescrição essa, que por dever de cautela, expressamente se invoca, não tendo  sido feito  anteriormente  por apenas  no Acórdão  recorrido surgir a configuração pelo instituto do enriquecimento sem causa.

(…) 33°. Ao ter alterado o pedido e a causa de pedir, o Tribunal a quo violou, ainda, o disposto no artigo 3.° e 268.° do CPC. Ao fazê-lo, o Tribunal a quo conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento, sendo, assim, a sentença recorrida nula, nos termos do artigo 668.°, n.° 1, alínea d), e 716.° do CPC.

34°. Em face da causa de pedir da A. e da contestação apresentada pela R., a esta cabia apenas alegar factos  que  obstassem  à  prova  do  carácter gratuito  dos pagamentos e das entregas efectuadas,  isto é, provar que os actos que a A. configurava como liberalidades tinham contrapartidas. O que a R. tinha que fazer, e fez, era contestar a alegação de que os actos assumiram a natureza de liberalidades. Ao fazê-lo, obstando a que a A. provasse o carácter gratuito das prestações, retirou à acção o fundamento de facto em que assentava a causa de pedir e o pedido da A. À R. não lhe competia provar nada, designadamente quaisquer montantes!

35°. A Ré não tinha o ónus de provar o montante dos pagamentos que efectuou à Autora ou dos pagamentos que fez por conta dela: muito simplesmente tendo a acção como causa de pedir o carácter de liberalidade dos actos – de onde a Autora retira a nulidade e o consequente direito a receber tudo o que prestou – a Ré apenas tinha que demonstrar que um dos elementos essenciais à qualificação dos actos como liberalidades não se verificava.

36°. Não impendia sobre a Ré o ónus de provar qual o montante exacto das suas prestações: do que se tratava não era de determinar quanto a Ré deve à Autora num acerto de contas, mas sim, apenas, saber se, por serem nulos os actos, a Autora era credora da Ré à repetição do que havia prestado.

37°. Aliás, tratando-se de actos praticados por sociedades comerciais que, atenta a factualidade provada, não resultou serem estranhos à sua actividade sempre se teria de concluir pela sua natureza mercantil (Cfr. artigo 2°, 2ª parte, do Código Comercial), aplicando-se-lhe o princípio da onerosidade.

38°. O Tribunal da Relação, ao imputar à Ré, um ónus da prova que não tinha, fez uma errada interpretação da norma do artigo 342º e 344°, ambos do Código Civil, que determinam que aquele que invocar um direito cabe fazer prova dos factos constitutivos do direito invocado".

39°. O Tribunal de Comércio de Lisboa ao dar como provados os factos que constam da factualidade assente teve em conta, não só as conclusões que os senhores peritos apresentaram no seu relatório pericial, mas também os documentos juntos aos autos por ambas as partes e a prova testemunhal feita em sede de audiência de discussão e julgamento. Do relatório pericial elaborado pelos Srs. Peritos não resulta, de forma alguma, qualquer indício de "obrigação/culpa" que o Acórdão recorrido quer imputar à Ré ao considerar que ela não juntou os documentos ou quaisquer outros elementos contabilísticos que permitiriam aos Srs. Peritos apurar da legitimidade e conformidade dos pagamentos efectuados.

40°. Os Srs. Peritos dizem no seu Relatório que na contabilidade da A. não constavam os extractos de conta onde estivessem registados movimentos existentes entre a A. e a R. o mesmo acontecendo com a contabilidade da R. Contudo, tendo em conta que quer a A., quer a R. vieram aos autos juntar os documentos contabilísticos que estariam na base dos pagamentos/movimentos realizados, e que esses documentos estavam arquivados na contabilidade de ambas as sociedades, o que denota classificação contabilística e evidência de terem sido efectivamente contabilizados segundo as regras do POC, os Srs. Peritos concluírem que, assim sendo, "os montantes registados a crédito na contabilidade da A. são aqueles que a R. junta no processo e os montantes a débito na contabilidade da A. são os que a própria A. junta ao processo e vice-versa".

41°. Foi com base nas conclusões apresentadas pelos Srs. Peritos no relatório pericial que o Tribunal de Primeira Instância deu como provado que a A. efectuou pagamentos da R. a terceiros, e estes pagamentos não foram colocados em causa pelo Tribunal da Relação. Isto é, sendo "o problema" da contabilidade o mesmo (a falta da conta corrente), se ela não é contestada para os pagamentos da A. também não o pode ser para as justificações desses pagamentos por parte da Ré.

42°. Assim, em face do exposto, o Tribunal a quo ao ter qualificado as prestações da Autora à Ré como liberalidades violou o disposto no artigo 6º do CSC. Da mesma forma, o Tribunal a quo, ao entender que incumbia à aqui Recorrente a prova da ausência de carácter gratuito das prestações da A., violou o disposto nos artigos 342.° e 344.° do Código Civil. Violou, ainda, o acórdão recorrido o disposto no artigo 395° do Código Comercial.

(…) 44°. A decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, além de entrar em contradição com a causa de pedir e pedido da A., acaba por entrar em contradição com a sua própria fundamentação! Se, por um lado, considera que os pagamentos efectuados pela A. não tinham causa que os justificasse e, nessa medida, constituíram um enriquecimento ilegítimo da R. à custa da A., ao condenar a R. nos montantes que se vierem a apurar em sede de liquidação de sentença, acaba por abrir a porta à legitimidade de tais pagamentos! Isto é, diz, em simultâneo, que tais pagamentos se devem considerar como liberalidades, e que são legítimos e o que tem é que se fazer o "encontro de contas"! Ou seja, o Tribunal da Relação acaba por considerar válidos os pagamentos efectuados por ambas as partes. Isto, apesar de na sua fundamentação, considerar que os pagamentos e entregas feitas pela A. configuravam liberalidades!

45°. Esta circunstância em que caiu o Tribunal a quo levou-o a produzir uma decisão além do pedido – condenando a Ré no que não foi peticionado – como até contra o pedido –- porque condenou a Ré em algo contraditório com o pedido da Autora.

46°.Ao ter decidido desta forma, o acórdão de que se recorre é nulo, nos termos do disposto no artigo 668° n.°1 alínea c) do CPC.

47.°. Em suma e face a todo o exposto no presente recurso de revista o Tribunal a quo violou as aludidas normas dos artigos 473.°, 474.° e 479.° do Código Civil no respeita à aplicabilidade do instituto do enriquecimento sem causa; ao ter alterado, o pedido e a causa de pedir dos presentes autos o Tribunal da Relação violou o disposto nos artigos 3.° e 268.° do CPC o que acarreta a nulidade do acórdão nos termos do disposto nos artigos 668.° n.° 1 alínea d) do CPC por remissão do artigo 716.° do mesmo diploma; No que respeita às questões atinentes ao ónus da prova, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 6.° do Código das Sociedades Comerciais, 395.° do Código Comercial, 342.° e 344.° do Código Civil: e, finalmente ao ter proferido uma decisão contraditória com os seus fundamentos o Tribunal da Relação proferiu um acórdão nulo nos termos do artigo 668.° 1 alínea c) do CPC.

Termos em que e nos melhores de Direito deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente e, em consequência, ser revogado o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, mantendo-se a decisão proferida em 1ª instância, que indeferiu o pedido da Autora e absolveu a Ré do pedido. (…)”

Não houve contra-alegações.

3. Vem provado o seguinte:

1 - "AA, Lda." pessoa colectiva n° 00000000 com sede na Travessa ..........., n°00, em Lisboa, tendo como objecto social a comercialização e aluguer de máquinas e equipamentos para a movimentação de cargas, bem como a sua manutenção, reparação, importação e exportação; a prestação de serviços de consultoria de gestão na área económico-fínanceira, incluindo estudos e projectos técnico-fínanceiros, contabilidades e outros serviços conexos, prestação de serviços de marketing de informática e de recursos humanos, foi declarada falida por sentença datada de 29 de Outubro de 2001.

2 - No momento da sua constituição a falida tinha o capital social de Esc. 30.000.000$00 e como sócios as sociedades "EE Lda.", titular de uma quota de Esc. 29.500.000$00 e "E. .........o, S.A." com uma quota de Esc. 500.000$00, quotas essas que foram objecto das seguintes operações:

a - transmissão para a sociedade "BB, S.A.", inscrita na matrícula em 26 de Março de 2003;

b - transmissão para a sociedade "FF, Lda.", inscrita na matrícula em 15 de Outubro de 1996;

c - transmissão da quota de Esc. 500.000$00 para a sociedade "GG, Lda.", inscrita na matrícula em 15 de Outubro de 1996;

d - partilha da quota de Esc. 29.500.000$00 em três quotas e transmissão, inscrita na matrícula m 15 de Outubro de 1996, para as seguintes sociedades:

- quota de Esc. 10.411.000$00 para a sociedade "GG, Lda.",

- quota de Esc. 9.121.000S00 para a sociedade "HH - Consultoria e Investimento, Lda.";

- quota de Esc. 9.968.000$00 para a sociedade "....... - Internacional, Inc".

3 - Por escritura pública datada de 21 de Agosto de 1992 as sociedades II, S.A." e "CC, S.A." celebraram um acordo que denominaram de "Compra e Venda e Locação Financeira" nos termos do qual a primeira declarou vender à segunda e esta declarou dar àquela em locação financeira os seguintes prédios urbanos:

a) prédio sito na Travessa ........... da Ponte, n° .., freguesia de S. Pedro de Alcântara, em Lisboa, descrito na 6a Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n° .... e inscrito na respectiva matriz sob o art. 1213;

b) prédio sito na Travessa ........... da Ponte, n° 00 e 00, freguesia de S. Pedro de Alcântara, em Lisboa, descrito na 6a Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n° 0000 e inscrito na respectiva matriz sob o art. 436;

4 - Na mesma escritura declararam as partes que a venda dos imóveis visava a locação financeira dos mesmos pela CC à II, Lda." tendo as partes fixado como prazo de duração do contrato de locação financeira 10 anos contados da data de escritura.

5 - 0 acordo referido em 3) foi objecto de dois aditamentos:  a - O primeiro, celebrado por escritura pública em 28 de Setembro de 1993; b - O segundo, celebrado por escrito particular em 1 de Março de 2001, data em que a sociedade  "CC,  S.A." tinha já a designação de "DD - sociedade de Locação Financeira, S.A.", em que as partes acordaram prorrogar o prazo do contrato de locação financeira por 36 meses.

5 - Por escritura pública datada de 28 de Setembro de 1993 as sociedades II, S.A." e "BB– Investimentos Imobiliários, Lda." celebraram um acordo nos termos do qual a primeira declarou ceder à segunda as posições contratuais que detinha por força dos acordos referidos em 3).

6 - Mais declararam ficar a segunda obrigada a entregar à primeira mensalmente o montante global de Esc. 6.777.677S00.

7 - Por escrituras públicas datadas de 10 de Agosto de 1995 as sociedades BB, Lda."  e "AA, Lda." celebraram dois acordos que denominaram de "Sublocação" nos quais a primeira declarou sub-locar à segunda uma parcela do prédio referido em 3-a) e o prédio referido em 3-b).

8 - Mais acordaram as partes que ambas as sub-Iocações tinham o "prazo de sete meses, renovável por períodos sucessivos de um ano", reportando-se o seu início a 1 de Junho de 1995, ficando a duração final do contrato, caso as sucessivas renovações se prolongassem para além da vigência do contrato de locação financeira, condicionada ao destino que fosse acordado entre as sociedades CC e a aqui R.

9 - E que os prédios se destinavam "única e exclusivamente" a ser utilizados como "escritório, armazém de peças e máquinas e oficina" da ora A..

10 - Relativamente ao prédio referido em 3-a) as aqui A. e R. acordaram o pagamento de uma renda mensal de Esc. 1.000.000$00 para o período compreendido entre o início do acordo e Dezembro de 1995.

1 - Mais acordaram que, caso houvesse renovação do acordo, a renda sofreria um aumento de 70% em Janeiro de 1996, de 43,53% em 1997 e a partir de 1998 e até 2002 de 7,6%.

12 - Por documento escrito datado de 28 de Dezembro de 2000 as partes acordaram alterar, com início em 01 e Janeiro de 2001, o montante da renda para € 4.688,70.

13 - Entregando a A. à R, a título de compensação pela redução das rendas, a quantia de € 174.579,26.

14 - Relativamente ao prédio referido em 3-b) as aqui A. e R. acordaram o pagamento de uma renda mensal de Esc. 500.000$00 para o período compreendido entre o início do acordo e Dezembro de 1995.

15 - Mais acordaram que, caso houvesse renovação do acordo, a renda sofreria um aumento de 60% em Janeiro de 1996, de 50% em 1997 e a partir de 1998 e até 2002 de 7,6%.

16 - Por documento escrito datado de 28 de Dezembro de 2000 as partes acordaram alterar, com início em 01 de Janeiro de 2001, o montante da renda para € 2.294,47.

17 - Entregando a A. à R, a título de compensação pela redução das rendas, a quantia de € 89.783,62.

18 - Os sócios da A. não deliberaram autorizar a sociedade a efectuar pagamentos da responsabilidade da sociedade R. a título de liberalidade, nem aprovaram qualquer deliberação a ratificar tais pagamentos.

19 - A partir de Novembro de 1995 a quantia que a R. tinha que entregar à sociedade "CC, S.A", posteriormente designada "DD, S.A.", por força do contrato referido em 3) passou a ser entregue em parte pela A..      

20 - Em nome e em benefício da aqui R..

21 - Tendo a A. entregue o montante global de € 1.428.890,27.

22 - Entregando simultaneamente à R. o valor entre estas acordado pela "sub-locação".

23 - Entre 3 de Janeiro de 1995 e 7 de Agosto de 2001 a A. entregou à R. o montante global de €626.610,34.

24 - A partir de Março de 1995 a A. passou a efectuar o pagamento das contribuições devidas pela R. à Fazenda Nacional e à Segurança Social.

25 - Tendo liquidado em nome da R. a quantia de € 88.624,04.

26 - A A. entregou à sociedade "JJ, Lda." a quantia de €14.200,25.»

27 - Quantia cuja entrega era da responsabilidade da R.

28 - Entre Setembro de 1995 e Julho de 2001 a A. assumiu o pagamento do complemento de reforma de KK.

29 - Membro da direcção da sociedade R.

30 - Tendo dispendido o montante global de € 28.039,21.

31 - Entre Abril de 1997 e Maio de 1999 as obras realizadas nos imóveis da R. foram custeadas pela A.

32 - Que nelas despendeu a quantia de € 110.269,13.

33 - A A. pagou a fornecedores da R. a quantia global de € 14.200,24.

34 - Por fornecimentos e serviços feitos à R. e em seu benefício exclusivo.

35 - A A. efectuou pagamentos da R. a terceiros por conta do saldo devedor que tinha junto da R.

36 - Quando tais pagamentos eram efectuados os respectivos montantes eram deduzidos no saldo devedor que a A. tinha para com a R.

37 - A R. facultava à A. o goza das fracções dos prédios referidos em 3) que não estavam incluídas no acordo referido em 7).

38 - A partir de Outubro de 1994 a generalidade dos trabalhadores da R. passou para os quadros da A.

3 9- 0 que ocorreu no âmbito de um acordo celebrado em 20 de Outubro de 2004 que visava deixar a sociedade II, S.A. apenas na posse do prédio sito na Travessa ........... da Ponte, n° .... a 00, em Lisboa e entregar o controlo de todas as empresas das sociedades por esta controladas a alguns dos seus quadros superiores.

40 - A R. pagava as contas telefónicas, da água e da electricidade dos prédios referidos em 3) arrendados à A.

41 - Debitando depois os respectivos valores à A..”

4. Estão em causa neste recurso as seguintes questões (nº 3 do artigo 684º do Código de Processo Civil):

– Nulidade do acórdão recorrido;

– Falta de prova dos fundamentos da acção;

– Repartição do ónus da prova;

– Prescrição do direito à restituição do indevido, com fundamento em enriquecimento sem causa.

O seu conhecimento far-se-á por ordem lógica, começando pela análise da acção que foi proposta.

5. Sem prejuízo dos efeitos que a defesa por excepção pode produzir no objecto de uma acção, é naturalmente ao autor que incumbe começar por definir o respectivo pedido e a correspondente causa de pedir, assim confinando o âmbito dos poderes de cognição do tribunal, balizados pelo efeito jurídico pretendido (artigos 498º, nº 3, 661º e 668º, nº 1, e) do Código de Processo Civil) e pelo núcleo factual do qual o faz surgir (artigos 264º, nº 1 e 498º, nº 4 do mesmo Código).

O momento próprio para essa definição é a petição inicial, sabendo-se que, dentro dos limites traçados pelos nºs 1 e 2 do artigo 273º do Código de Processo Civil, não havendo acordo das partes (artigo 272º), só na réplica se pode alterar a causa de pedir (salvo se o autor utilizar uma confissão feita pelo réu) e ampliar o pedido (excepto se a ampliação se traduzir no desenvolvimento do pedido inicial). Recorde-se que a causa de pedir nem sequer pode ser modificada por via do convite ao aperfeiçoamento da alegação previsto no artigo 508º (cfr. nº 5).

Na presente acção, nem o pedido, nem a causa de pedir foram alterados na réplica. Só nas alegações apresentadas no recurso de apelação é que a autora veio invocar enriquecimento sem causa, como nova causa do pedido de restituição.

No entanto, esse acrescentamento é inadmissível, como resulta do já citado artigo 273º, nº 1, do Código de Processo Civil.

Mantêm-se, portanto, os limites que a autora traçou na petição inicial, ou seja: o pedido – a restituição das quantias que prestou (no montante de € 2.344.924,00) e a causa de pedir – os actos praticados, entregas de dinheiro e pagamentos, que, por constituírem liberalidades, são nulos.

Tal como se mantém o fundamento de direito – a nulidade por incapacidade (artigos 6º do Código das Sociedades Comerciais e 294º do Código Civil).

Ao contestar a gratuitidade de tais actos, a ré impugnou o carácter de liberalidade invocado pela autora para justificar a nulidade (negação indirecta dos factos constitutivos do direito invocado pela autora, artigo 489º do Código de Processo Civil). Simultaneamente, alegou factos constitutivos de direitos de crédito sobre a autora e extintivos de créditos de ambas, nesta medida contestando também por excepção peremptória

6. Assim construída a acção, torna-se pois imprescindível à respectiva procedência, antes de mais, a prova da gratuitidade dos actos cuja validade a autora questiona.

A autora alegou a violação do princípio da especialidade, que determina os limites da capacidade de gozo da sociedade AA, Lda., e que se encontra previsto para as pessoas colectivas em geral no artigo 160º do Código Civil e, especificamente para as sociedades comerciais, no artigo 6º do Código das Sociedades Comerciais. Sabe-se que este preceito, que “tem sido objecto de inúmeros estudos”, nas palavras de Paulo Olavo Cunha (Direito das Sociedades Comerciais, 5ª ed., Coimbra, 2012, pág. 81), cuida especialmente das liberalidades, e obriga à consideração concreta do seu significado no contexto global da actividade da sociedade que as pratica. Pode todavia afirmar-se que “(…) de acordo com o (…) princípio da especialidade do fim (…), que integra o factor determinante e específico da constituição das sociedades, quer civis, quer comerciais, que os actos gratuitos, como ocorre relativamente à doação – art. 940. nº 1, do CC – se mostram, regra geral, excluídos da capacidade de gozo daquelas sociedades, por não necessários ou convenientes à prossecução do aludido fim [“obtenção de lucros a distribuir pelos respectivos sócios ou accionistas”], como se estatui no art. 160.º, n.º 1, a contrario, do CC, relativamente às sociedades civis, pelo que a sua prática por parte daquelas tem como directa e imediata consequência, que sobre os mesmos incida a ocorrência do vício respeitante à sua nulidade” –  acórdão deste Supremo Tribunal de 10 de Janeiro de 2010, cujo sumário se encontra em www.dgsi.pt, proc. nº 2380/05.2TBOER.S1).

No entanto, tendo em conta os contornos com que a autora propôs a presente acção, a averiguação aprofundada da eventual desconformidade dos actos impugnados com o fim da sociedade AA, Lda só teria utilidade se estivesse demonstrada a respectiva gratuitidade; mas essa prova não foi feita, como frisou a 1ª Instância e igualmente resulta do acórdão recorrido.

7. Da matéria de facto provada, para cuja cabal compreensão há que recorrer à fundamentação do julgamento correspondente, constante de fls. 2951 e segs, não resulta a natureza de liberalidade dos actos impugnados pela autora; não resulta, nem a ausência de contrapartida, nem muito menos “a intenção de proporcionar gratuitamente um enriquecimento a outrem” (Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, Fontes, Conteúdo e Garantia da Relação Jurídica, 5ª ed., Lisboa, 2010, pág. 82), quer para a totalidade, quer para parte dos mesmos.

Diferentemente, e como a 1ª Instância observou, a prova revela que entre a falida e a ré existia “uma conta permanente entre as duas sociedades, na qual eram lançados os vários movimentos de deve e haver existentes”, o que “impede que se dê como provado que os pagamentos que a falida fazia da responsabilidade da R. constituíam liberalidades. A falida fazia pagamentos mas, em contrapartida, ela própria era devedora à R. de quantias diversas” (sentença, fls. 2983).

Esta falta de prova impossibilita a procedência da acção, confinada pela autora ao pedido de restituição com fundamento na incapacidade da falida para praticar liberalidades.

8. O acórdão recorrido entendeu que os pagamentos efectuados pela autora devem entender-se como liberalidades, e que a sua “manutenção no património da Ré consubstancia uma situação de enriquecimento sem causa”.

Mas, para chegar a esta conclusão, o acórdão recorrido deslocou para a ré o ónus da prova da natureza dos actos impugnados, atribuindo-lhe o encargo de provar que “detinha créditos sobre a apelante, derivados de pagamentos por si efectuados e que por sua vez competiam à A.” ; e conheceu de uma causa de pedir não alegada, ao afirmar que ocorreu “uma situação de enriquecimento sem causa”.

Sucede, todavia, que a acção proposta não comporta nem aquela conclusão, nem este conhecimento: porque o pedido de restituição assenta no carácter de liberalidade dos actos, cabendo o ónus da respectiva prova, em primeiro lugar, à autora (nº 1 do artigo 342º do Código Civil); e porque nem subsidiariamente a autora invocou, em momento oportuno, enriquecimento sem causa da ré – o que, aliás, implicaria a alegação dos requisitos desse instituto, igualmente ausente da petição inicial (cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 7 de Julho de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 07B4794).

9. A recorrente arguiu a nulidade do acórdão recorrido, por excesso de pronúncia, por condenação além do pedido e por contradição “com a sua própria fundamentação”.

É certo que, ao concluir pela existência de enriquecimento sem causa, o acórdão apreciou uma questão cuja apreciação lhe foi solicitada, nas alegações da apelação; mas que envolvia o conhecimento de uma causa de pedir não oportunamente alegada, como se viu. As considerações já feitas tornam inútil analisar mais detidamente o vício invocado; aliás, sempre incumbiria a este Tribunal o suprimento de eventual nulidade (nº 1 do artigo 731º do Código de Processo Civil).
Não se pode, no entanto, entender que a condenação tenha excedido o pedido, nem que o acórdão recorrido seja intrinsecamente contraditório.
A condenação determinada não ultrapassa o pedido formulado, nem qualitativa, nem quantitativamente; como se escreveu no acórdão deste Supremo Tribunal de 2 de Março de 2011 (www.dgsi.pt, proc. nº 823/06.7TBLLE.E1.S1), “pode afirmar-se que o que, afinal, identifica decisivamente a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico”. E a contradição apontada pela recorrente (cfr. em especial a conclusão 44ª das alegações da revista) traduz-se antes em erro de julgamento (incorrecta aplicação do regime do enriquecimento sem causa, em particular no que respeita ao seu carácter subsidiário).

10. Tendo em conta a improcedência da acção, não se conhecerá da prescrição invocada pela recorrente.

11. Nestes termos, concede-se provimento à revista, revoga-se o acórdão recorrido e absolve-se a ré do pedido, como em 1º Instância.

Custas pela recorrida.

Lisboa, 18 de Outubro de 2012

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)

Lopes do Rego

Orlando Afonso