Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
89/13.2TBMAC-A.E1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ORLANDO AFONSO
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
PROCEDIMENTOS CAUTELARES
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
INCONSTITUCIONALIDADE
ACESSÃO INDUSTRIAL
PRESSUPOSTOS
DIREITO SUBSTANTIVO
ACÇÃO PRINCIPAL
AÇÃO PRINCIPAL
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
Data do Acordão: 10/06/2016
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NÃO CONHECIMENTO DO RECURSO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCEDIMENTOS CAUTELARES / RECURSOS / ADMISSIBILIDADE DO RECURSO.
DIREITO CIVIL - DIREITOS REAIS / DIREITO DE PROPRIEDADE / ACESSÃO INDUSTRIAL IMOBILIÁRIA.
DIREITO CONSTITUCIONAL - PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS - DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS / ACESSO AO DIREITO E TUTELA JURISDICIONAL.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1317.º, ALÍNEA D), 1340.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 370.º, N.º 2, 629.º, N.º 2, AL. D).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 2.º, 20.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 02/06/2015 E DE 24/09/2015, PROFERIDOS, RESPECTIVAMENTE, NO PROC. N.º 149/14.2YHLSB.L1.S1 E NO PROC. N.º 332/14.0TVLSB.L1.S1, AMBOS DISPONÍVEIS EM WWW.DGSI.PT .

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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

-N.º 259/97 E 132/2001, PUBLICADOS NO DIÁRIO DA REPÚBLICA, 2.ª SÉRIE, RESPECTIVAMENTE DE 30 DE JUNHO DE 1997 E DE 25 DE JUNHO DE 2001;
-N.º 442/2000, DE 25/10/2000, DISPONÍVEL EM WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT
Sumário :
I - Decorre do disposto no art. 370.º, n.º 2, do CPC que, em princípio, está vedada a possibilidade de interposição de recurso para o STJ das decisões proferidas nos procedimentos cautelares, só assim não sendo nos casos excepcionais em que o recurso é sempre admissível, como sucede com a oposição de julgados prevista no art. 629.º, n.º 2, al. d), do mesmo diploma legal.

II - Resulta, porém, da interpretação conjugada e teleológica dos aludidos normativos que a oposição de julgados que aí se prevê, para efeitos de admissibilidade do recurso para o STJ, é apenas a que se relacione com os pressupostos próprios e específicos da tutela cautelar, não se estendendo, consequentemente, às questões atinentes à definição do direito substantivo aplicável ao caso, posto que estas encontram a sua sede própria na acção principal.

III - Centrando-se o núcleo fundamental do recurso na invocada oposição entre decisões na parte concernente aos pressupostos substantivos de cuja verificação depende a aquisição do direito de propriedade através do instituto da acessão industrial imobiliária – questão de mérito que é objecto da acção principal – e não nos pressupostos próprios da tutela cautelar, não há que tomar conhecimento daquele já que, nesse circunstancialismo, não é de aplicar ao caso o disposto no art. 629.º, n.º 2, al. d), do CPC, mas antes a regra geral ínsita no art. 370.º, n.º 2, 1.ª parte, do mesmo Código.

IV - Não obrigando os princípios constitucionais do direito a um processo equitativo, da igualdade das partes, da segurança jurídica e da protecção da confiança, plasmados nos arts. 2.º e 20.º da CRP, a que se considerem recorríveis para o STJ todas as decisões – designadamente as proferidas em sede cautelar (onde a regra que vigora é precisamente a contrária) – a interpretação das normas em questão, nos termos acima expostos, não padece de inconstitucionalidade.

Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça:



A) Relatório:


AA, identificado nos autos, intentou procedimento cautelar comum, por apenso à acção declarativa na qual assume a posição de réu/reconvinte, contra BB e CC, também identificada nos autos, alegando, para tanto, em síntese, que, para pagamento e amortização parcial da dívida proveniente de empréstimos que fez à requerida e à sua falecida mãe, a primeira lhe cedeu, por acordo verbal, três parcelas de terreno de um prédio rústico de que os requeridos são proprietários, autorizando-o a entrar na sua posse para aí construir uma piscina e muros de suporte, com aproveitamento do respectivo espaço, o que o requerente fez, sem que, porém, a requerida tenha querido formalizar essas cedências tal como tinha ficado ajustado.

Mais alegou que, tendo tais obras/construções sido feitas de boa fé (porquanto autorizadas pela requerida) e tendo um valor muito superior ao do terreno no qual foram implantadas – do qual, de resto, não podem ser separadas ou levantadas – lhe deve ser reconhecido o direito de propriedade sobre o mencionado prédio, mediante o pagamento aos requeridos do valor que este tinha antes das obras, por se verificarem os pressupostos substantivos da acessão industrial imobiliária previstos no artigo 1340.º do Código Civil.

Sustentou, ademais, que o facto de um dos muros de suporte por si construído no referido prédio ter ficado inacabado por os requeridos se oporem à sua conclusão constitui um perigo para pessoas e bens, bem como para o direito de propriedade que invoca, já que, atentas as características do terreno, já ocorreram deslizamentos de terra, sendo, portanto, necessária uma intervenção urgente.

Concluiu pedindo o decretamento da providência consistente na autorização para que proceda ou mande proceder à continuação das obras/muros que descreveu, com vista a evitar os alegados prejuízos humanos e materiais.

Os requeridos deduziram oposição na qual impugnaram a factualidade alegada pelo requerente, alegando que, na verdade, as construções/obras a que este alude foram feitas fora da área das parcelas que foi objecto dos acordos verbais celebrados entre as partes, não se mostrando, por isso, preenchidos os requisitos da acessão industrial imobiliária, nem consequentemente, os do procedimento cautelar comum, uma vez que, para além de faltar a boa fé, as obras realizadas, não tendo licença de construção, são ilegais.

Terminaram pugnando pelo indeferimento da providência.

Realizado o julgamento, foi proferida decisão na qual se julgou o procedimento cautelar totalmente improcedente.

Inconformado, recorreu o réu/reconvinte para o Tribunal da Relação de Évora que, na procedência da apelação, revogou a sentença recorrida, reconhecendo a probabilidade séria de existência do direito de adquirir a propriedade das parcelas identificadas nos autos por acessão industrial imobiliária e, consequentemente, autorizou o requerente a realizar as obras necessárias à consolidação das construções aí realizadas.


Interpuseram agora os requeridos recurso de revista para este Supremo Tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 629.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Civil, invocando, para tanto, que o acórdão recorrido está em contradição com a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, tendo concluído a sua alegação da seguinte forma:

1. Com o devido respeito, os Recorrentes discordam da decisão do Acórdão recorrido do Venerando Tribunal da Relação de Évora, em virtude deste não ter observado o disposto na lei aplicável e encontrar-se em notória contradição com outro acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (o Acórdão proferido pelo STJ em 9 de Fevereiro de 2012, no âmbito do Recurso de Revista do processo n.°45/1999X1.SI, registado no Livro n.° 1731, a fls. 237 e seguintes - o Acórdão-fundamento), no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, conforme prevê o alínea d) do n.° 2 do artigo 629.° do CPC.

2. A questão em oposição prende-se com os artigos 1317.°, d) e 1340.° n.°s 1 e 4, todos do Código Civil e com os pressupostos substantivos e cumulativos para a aquisição de propriedade através do instituto da acessão industrial imobiliária, por parte do dono da obra, construtor ou interventor, sendo esta uma questão fundamental de direito.

3. Em concreto, a divergência jurisprudencial encontra-se na interpretação dada a um dos requisitos: a actuação de boa fé do interventor ou construtor da obra, exigido pelo n.° 1 do art. 1340º.° do Código Civil.

4. Apesar de citar o Acórdão-fundamento, ao elencar os pressupostos da acessão industrial imobiliária determinados pela lei e jurisprudência superior, o decidido no Acórdão recorrido opõe-se frontalmente à posição do STJ, porquanto se considerou ser apenas relevante que o Recorrido, quando fez construções em duas parcelas da parte rústica do prédio misto inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 467 da secção R e na matriz predial urbana sob o artigo 605, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Mação sob o n° 2102, encontrava-se de boa fé, sendo esta somente aferida no momento das construções e - nessa altura - o Recorrido estaria actuar mediante uma autorização que lhe foi concedida pela Recorrente mulher proprietária do prédio.

5. No Acórdão-fundamento, numa questão semelhante à do caso subjudice, para efeitos da verificação da existência do pressuposto de boa fé do autor e dono da obra, entendeu o STJ que uma modificação aos condicionalismos que estiveram na génese da autorização dada pelo dono do terreno ao interventor, para incorporar materiais alheios no terreno, modificação essa em momento posterior à incorporação dos materiais no terreno, desautoriza ou posterga a autorização inicial.

6. Ou seja, a boa fé do interventor ou dono da obra terá que ser aferida e condicionada pelo âmbito, conteúdo e alcance que esteve na génese da autorização concedida pelo proprietário do terreno, ainda que a implantação dos materiais fosse sido feita de boa fé por, no momento da incorporação, os condicionantes da autorização serem observados.

7. Segundo o vertido no Acórdão-fundamento, faltando esse requisito da boa fé, o interventor não pode adquirir o terreno por acessão industrial imobiliária, no momento em que a pede.

8. A Primeira Instância no caso sub judice seguiu este entendimento do STJ, tendo, em consequência, considerado que o procedimento cautelar requerido pelo ora Recorrido era improcedente, por inexistência de probabilidade séria de aquisição futura por acessão industrial imobiliária da parte rústica do prédio misto propriedade da Recorrente.

9. A Sentença de As. deu como provado que a autorização que foi dada ao Requerido pela Recorrente mulher, para entrar na posse de duas parcelas, estava condicionada à contrapartida do início do pagamento e amortização de parte da dívida decorrente de empréstimos do Recorrido à Recorrente mulher e à sua mãe entre os anos de 2002 e 2011 (cfr. pontos 1), 2), 4) e 5) dos factos indiciariamente provados).

10. Porém, em momento posterior à incorporação, o ora Recorrido notificou judicialmente os Recorrentes para virem pagar na íntegra a quantia em dívida (ainda para mais em valor superior ao devido) que esteve na génese da autorização dada pela Recorrente mulher para entrar na posse das duas parcelas e para, igualmente, procederem à preparação de contrato promessa de compra e venda ou dação em cumprimento do artigo 467 da secção R da freguesia de Ortiga (cfr. (Ponto 13) dos factos indiciariamente provados e fls. 102-120 do processo principal).

11. O Recorrido não só vinha exigir a dívida subjacente ao acordo e à autorização dada para entrar nas duas parcelas, como também, exigia um negócio sobre a totalidade da parte rústica (e não só das duas parcelas), o que jamais fora objecto de acordo.

12. Exigência que o Recorrido concretizou com a injunção interposta contra os Requerentes, processo n.° 97177/13.4YIPRT (Ponto 15) dos factos indiciariamente provados e fls. 121-124 do processo principal), a que se juntou, sem quaisquer reservas da parte daquele, o pedido reconvencional de aquisição por acessão industrial imobiliária da totalidade da parte rústica da propriedade da Recorrente mulher na acção principal a que o presente procedimento cautelar se encontra apenso.

13. O comportamento do Recorrido em vir reclamar dos Recorrentes o ressarcimento integral das quantias em dívida em Tribunal, a que acumulou o pedido reconvencional da totalidade da parte rústica do prédio, fez com que o condicionalismo inicial, que esteve subjacente ao acordo e autorização da Recorrente mulher, tenha deixado de se verificar.

14. E ainda que se admita, por hipótese e no que não se concede, que o Recorrido estaria de boa fé quando incorporou as obras nas duas parcelas de terreno, as suas exigências póstumas ofenderam o acordado com a Recorrente mulher.

15. Decorre de um raciocínio lógico que, se a Recorrente mulher soubesse que o Recorrido viria a exigir o pagamento da dívida (e a totalidade da parte rústica) que esteve na génese do acordo, a Recorrente mulher não teria autorizado o Recorrido a entrar na posse das duas parcelas.

16. Tal como sucedeu no Acórdão-fundamento, o surgimento de uma realidade que postergou a autorização inicial (realidade criada pelo Recorrido com a exigência judicial do pagamento da dívida) impossibilita que o Recorrido venha, neste momento, beneficiar da aquisição das duas parcelas por via do instituto da acessão industrial imobiliária, desde logo, por lhe faltar o requisito da boa fé previsto no artigo 1340.°, n°s 1 e 4 do Código Civil.

17. Acontece que no Acórdão recorrido entendeu-se que a boa fé deveria apenas ser aferida no momento da incorporação das obras no terreno alheio e que os procedimentos judiciais intentados pelo Recorrido e referidos nos pontos 13) e 15) da matéria de facto provada revelavam somente que o Recorrido tinha o propósito de exercer o direito potestativo de aquisição das Ia e 2a parcelas, não sendo relevantes para efeitos de boa fé (entendimento que seria contrário, caso tivesse seguido a tese do Acórdão-fundamento).

18. O Acórdão recorrido encontra-se em contradição absoluta com o Acórdão-fundamento sobre a mesma questão de direito, o que condicionou de forma essencial e determinante a decisão proferida, em prejuízo dos Recorrentes.

19. E notório que, se tivesse o Venerando Tribunal da Relação de Évora seguido entendimento vertido no Acórdão-fundamento não teria reconhecido a probabilidade séria de existência do direito de futura aquisição, pelo Requerido, por acessão industrial-imobiliária das duas parcelas da propriedade da Recorrente mulher e teria mantido a decisão da Primeira Instância, considerando a providência cautelar e a Apelação improcedentes, na sequência do que prevê artigo 362.° do CPC.

20. Acessoriamente, torna-se ainda importante mencionar que no Acórdão recorrido, o Tribunal da Relação de Évora diverge de forma expressa também do decidido no Acórdão do STJ de 03/12/2009, proferido no processo n.° 1102/03.7TBBILH.C1S1, cuja cópia não certificada se junta infra.

21. De facto, o Acórdão do STJ (processo n.° 1102/03.7TBBILH.C1S1) acrescenta como pressuposto essencial para que se beneficie do instituto da acessão industrial imobiliária, uma conformidade da obra incorporada em prédio alheio com as normas imperativas do direito urbanístico e de ordenação do território (tese que se encontra também vertida no Acórdão-fundamento, como se encontra mencionado supra).

22. Por sua vez, no Acórdão recorrido enuncia-se que se discorda da jurisprudência do STJ, nomeadamente a posição ínsita no Acórdão do processo n.° 1102/03.7TBBILH.C1S1, e que mesmo que não haja uma conformidade da situação de facto com as normas de direito do urbanismo e de ordenamento do território, a aquisição de parcela de terreno por acessão imobiliária é possível (cfr. Acórdão recorrido, págs. 17, 18 e 19).

23. No processo em apreço, foi provado que o Recorrido viu-lhe ser instaurado um processo de contra-ordenação pela Câmara Municipal de Mação por falta de licença camarária para a realização das obras de construção da arrecadação na propriedade da Recorrente mulher (todas as obras aqui em questão) e as obras foram paradas por falta de licenciamento (Pontos 11) e 20) dos factos indiciariamente provados).

24. Impõe a alínea c), do n.° 2 do art. 4.° do RJUE que "estão sujeitas a licença administrativa (...) as obras de construção, de alteração ou de ampliação em área não abrangida por operação de loteamento ou por plano de pormenor (...)

25. Não tendo o Recorrido provado (ou sequer alegado no seu requerimento de providência cautelar) que tinha cumprido as normas imperativas de direito urbanístico, não restaria outra hipótese ao Venerando Tribunal da Relação de Évora senão concluir, como elucidou a Primeira Instância que, também por este facto não haveria probabilidade séria de existência do direito invocado pelo Recorrido (aquisição por acessão industrial imobiliária), por inobservância.

26. Divergindo o Acórdão recorrido do entendimento unânime do STJ vertido no Acórdão do processo n.° 1102/03.7TBBILH.C1 SI e no Acórdão-fundamento. os Recorrentes foram prejudicados, pois uma correcta apreciação à luz da tese do STJ determinaria, agora com este fundamento, a confirmação da sentença da Primeira Instância.

27. No Acórdão-recorrido, o Tribunal Relação de Évora considerou ainda que, sem prejuízo do entendimento acerca da observância das normas urbanísticas imperativas, ainda assim no caso sub judice seria possível o Recorrido adquirir as duas parcelas da parte rústica do prédio em apreço, por acessão industrial imobiliária, devido à falta de licenciamento das obras nas duas parcelas de terreno ser uma irregularidade sanável, ainda que em momento posterior à construção, "mediante a solicitação e emissão do atinente licenciamento", (vide Acórdão recorrido, págs. 20 e 21).

28. Todavia, no processo em apreciação, resultam dos factos provados que o Recorrido não é titular de qualquer direito sobre a parte rústica do prédio dos Recorrentes e, por esse motivo, a emissão da licença não se demonstra possível ou, sendo emitida, é declaradamente nula por violação o n.° 1 do art. 9.° do RJUE, conjugado com o regime previsto na Portaria n.° 232/2008, de 11 de Março, exige que o requerente da licença invoque e faça prova de "qualquer direito que lhe confira a faculdade de realizar a operação urbanística a que se refere", no momento em que faz o pedido.

29. Ao contrário do entendimento vertido no Acórdão-recorrido, neste caso concreto, a falta de licença demonstra-se insanável, confirmando-se a impossibilidade de aquisição por acessão industrial imobiliária das duas parcelas pelo Recorrido por violação de normas imperativas urbanísticas, confirmando-se a doutrina do Acórdão-fundamento e do acórdão do STJ do processo n.° 1102/03.7TBBILH.C1S.

30. E se, por hipótese, se entendesse que o Recorrido poderia requerer a licença após uma hipotética aquisição do terreno por acessão industrial imobiliária, então nesse caso ocorreria um evidente contrassenso, porque se admitiria que o Recorrido se tornaria proprietário (e titular de um direito) através da acessão industrial imobiliária, mas a sanação só se tornou possível devido a ter beneficiado desse instituto.

31. Com o devido respeito, assinale-se ainda que o Acórdão recorrido também se contradiz nas suas próprias conclusões, uma vez que considerou que a área das duas parcelas em que existiria a probabilidade séria de existência do direito invocado, na falta de outros elementos, seria aquela alegada pelos Recorrentes na Oposição ao procedimento cautelar (vide Acórdão recorrido, págs. 22 e 23), a qual é de 354,69 m2 (cfr. art. 88.° e a área nos desenhos n.° 3 e n.° 4 do Doe. 14, ambos da P.I. e art. 19.° da Réplica, todos da acção principal).

32. Sendo este mais um fundamento que prova a impossibilidade de aquisição daquelas duas parcelas, ainda que juntas, pelo Recorrido: se a área global das duas parcelas é 354,69 m2, o fraccionamento destas, ainda que juntas, seria sempre contrário à lei, por violação n.° 1 do art. 1376.° do Código Civil (o art. l.° da Portaria n.° 202/70, de 21 de Abril, determina que a área da unidade de cultura para a região de Santarém é de dois hectares para prédios com cultura arvense).

33. Além de que o Regulamento do Plano Director Municipal de Mação (aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.° 72/94, de 16 de Junho) dispõe, no seu artigo 60.°, que apenas será permitido o fraccionamento da propriedade rústica se as parcelas resultantes não tenham área inferior a 2500m2, requisito que in casu não se verifica (factos carreados para os autos do processo principal).

34. Não obstante mencionar que seria uma questão lateral e para apreciação na acção principal, o Venerando Tribunal da Relação de Évora, pronunciou-se ainda sobre um hipotético abuso de direito da Recorrente mulher, mas salvo melhor opinião, partiu de um pressuposto errado, pois não foi a ora Recorrente mulher que veio invocar o direito de propriedade sobre o prédio para obstar ao exercício do direito que o Requerente veio a peticionar através do presente Procedimento Cautelar, desde logo, porque foi a Recorrente mulher que apresentou uma acção de reivindicação, a acção principal, a qual é muito anterior ao procedimento cautelar.

35. É insofismável que foi o incumprimento por parte do Recorrido dos limites e condições dos dois acordos verbais e as ocupações e construções ilegais daquele (através da violação dos limites da autorização de utilização que lhe fora dada pela Recorrente e da a exigência judicial - na NJA e confirmada na injunção n.° 97177/13.4YIRPT - do pagamento da dívida resultante dos mútuos e sobre a qual os acordos verbais e autorizações) que obrigaram a Recorrente mulher a apresentar a acção de reivindicação da sua propriedade, o meio adequado para defesa dos seus direitos enquanto proprietária.

36. Se há alguém cuja actuação é abusiva é a do Recorrido.

Concluíram pedindo a revogação do acórdão recorrido e a consequente confirmação da decisão da primeira instância.

O requerente contra-alegou, pugnando, desde logo, pela inadmissibilidade da revista por a invocada contradição não ser entre acórdãos da Relação mas entre um acórdão desta e acórdãos do Supremo e por os recorrentes também não terem comprovado o trânsito em julgado do acórdão-fundamento. Sustentaram, para além disso, que por serem diversas as premissas factuais em que se basearam as decisões em confronto, não existe a invocada oposição de julgados, acrescentando que, mesmo que se conheça do objecto do recurso, lhe deve ser negado provimento.

Foi proferido despacho tabelar de admissão do recurso, que foi, posteriormente, objecto de reponderação pelos fundamentos vertidos a fls. 818.

Notificados de tal despacho nos termos e para os efeitos previstos no artigo 655.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, pronunciaram-se os recorrentes nos termos do requerimento que antecede, reiterando a invocada contradição da decisão posta em crise com a jurisprudência deste Supremo Tribunal e insistindo pela admissibilidade da revista. Sustentaram, para tanto, que, apesar de ser verdade que o Supremo Tribunal de Justiça corre o risco de ter de analisar o mesmo processo duas vezes já que a decisão proferida, nesta sede, não fará caso julgado em relação ao processo principal, apenas pretendem que se tome conhecimento parcial da questão substantiva (isto é, na parte concernente à reconvenção) para efeitos de verificação, ou não, dos pressupostos do decretamento da providência cautelar, sob pena de, não se conhecendo do objecto do recurso, se porem em causa os princípios constitucionais do processo equitativo, da segurança jurídica e da protecção da confiança consagrados nos artigos 2.º e 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.



***



Tudo visto,

Cumpre decidir:


      O Direito:


Dispõe o artigo 370.º, n.º 2, do Código de Processo Civil que “Das decisões proferidas nos procedimentos cautelares (…) não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível”.

Este preceito que corresponde, no essencial, ao artigo 387º.-A do anterior Código de Processo Civil, foi então aí introduzido pelo Decreto-lei n.º 375-A/99, de 20 de Setembro, por se ter considerado que, em matéria de procedimentos cautelares, o valor da segurança bastar-se-ia com a duplicidade de graus de jurisdição em relação à matéria de facto e à matéria de direito, assim se compatibilizando aquele valor com o da celeridade.

Decorre, assim, do supra citado normativo que, em princípio, fica vedada a possibilidade de interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, mesmo que, à luz das regras gerais, o mesmo fosse admissível.

Só assim não será nos casos excepcionais, que vêm previstos no artigo 629.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, em que o recurso é sempre admissível, como sucede precisamente com a oposição de julgados.

Preceitua, a esse propósito, o artigo 629.º, n.º 2, do Código de Processo Civil que: “Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso: (...) d) Do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme”.

Reabriu-se, com esta solução - que tinha sido eliminada pela reforma do regime dos recursos levada a cabo pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 25 de Agosto e que foi agora repristinada – a possibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça nos casos em que, por razões estranhas à alçada ou à sucumbência, o recurso não seria admissível.

Subjacente a esta previsão legal está, pois, o propósito de permitir que o Supremo Tribunal de Justiça dirima contradições jurisprudenciais verificadas entre acórdãos das Relações (ou, por maioria de razão, entre uma decisão da Relação e um acórdão do Supremo) que, de outro modo, ficariam por resolver.

Importa, porém, ter presente que, de acordo com o entendimento que tem sido seguido por este Supremo Tribunal – e que aqui se sufraga -, a excepcional recorribilidade que é conferida pelo preceito legal em análise cinge-se a aspectos relacionados com os pressupostos próprios e específicos da tutela cautelar, não se estendendo, consequentemente, às questões atinentes à definição do direito substantivo aplicável ao caso, posto que estas encontram a sua sede própria na acção principal (vide, neste sentido, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 02/06/2015 e de 24/09/2015, proferidos, respectivamente, no proc. n.º 149/14.2YHLSB.L1.S1 e no proc. n.º 332/14.0TVLSB.L1.S1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).

No fundo, o que resulta da interpretação conjugada e teleológica dos artigos 370.º, n.º 2, e 629.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Civil é que a oposição de julgados que ali se prevê, para efeitos de admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões proferidas nos procedimentos cautelares, é apenas a que se relacione com os pressupostos próprios e específicos da tutela cautelar, sob pena de se subverter a lógica inerente à relação de instrumentalidade que deve existir entre a acção principal e o procedimento já que, a ser de outra forma, seria a decisão tomada no âmbito deste último que ditaria a sorte daquela.

Ora, no caso sub judice, o Tribunal da Relação considerou, para decretar a providência cautelar requerida, que os factos indiciariamente provados permitiam concluir pelo preenchimento dos pressupostos da acessão industrial imobiliária e que, como tal, assistia ao requerente o direito de, por essa via, adquirir as parcelas de terreno em causa nos autos, bem como o de, consequentemente, proceder à consolidação das obras que aí tinha iniciado com vista a evitar o seu desmoronamento.

A conclusão a que se chegou no acórdão recorrido – contrária à posição que havia sido perfilhada pela primeira instância – assentou, assim, essencialmente e por um lado, na circunstância de aí se ter entendido que a não conformidade da situação de facto com normas imperativas do direito do urbanismo e do ordenamento do território não impede a aquisição de parcela de terreno por acessão industrial imobiliária e, por outro, que os requisitos de que depende o referido modo de aquisição da propriedade (em particular, a boa fé do autor da incorporação), devem ser aferidos à data dos factos, ou seja, à data da incorporação da obra no terreno alheio nos termos dos artigos 1317.º, alínea d), e 1340.º do Código Civil.

O tribunal a quo ponderou se, à luz dos factos indiciariamente provados, se mostravam preenchidos os requisitos de direito substantivo que são exigidos para que o autor da obra possa adquirir, por acessão, o direito de propriedade sobre o terreno no qual incorporou a obra, tendo sido essa ponderação que determinou o sentido da decisão.

Vê-se, por sua vez, da análise que se faça das conclusões com que os recorrentes remataram a alegação recursória que a sua discordância relativamente ao acórdão recorrido se centra precisamente no preenchimento (ou não) desses pressupostos de direito substantivo (o mesmo é dizer, na questão de mérito) e não propriamente nos pressupostos específicos da tutela cautelar.

Com efeito, a oposição que os recorrentes invocam entre o acórdão recorrido e os acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça prende-se, conforme referem expressamente nos pontos 2. e 3. das aludidas conclusões, com os pressupostos substantivos e cumulativos para a aquisição de propriedade através do instituto da acessão industrial imobiliária, por parte do dono da obra, construtor ou interventor, encontrando-se a divergência jurisprudencial na interpretação dada a um dos requisitos: a actuação de boa fé do interventor ou construtor da obra, exigido pelo n.º 1 do artigo 1340.º do Código Civil e, em concreto, do momento em que esta devia ser aferida, bem como no facto de se ter aí considerado, contrariamente ao decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão que indicaram, que a falta de conformidade da situação de facto com as normas de direito do urbanismo e de ordenamento do território não era impeditiva da aquisição de parcela de tereno por acessão industrial imobiliária (cf. pontos 20 a 22. das conclusões).

Ou seja, não obstante o esforço agora desenvolvido pelos recorrentes, no exercício do contraditório, no sentido de procurar demonstrar que a censura que dirigem à decisão recorrida se prende também com os pressupostos de cuja verificação depende o decretamento da providência, a verdade é que se extrai claramente das suas conclusões do recurso que a invocada oposição de julgados se cinge à apreciação dos pressupostos de aplicação de uma norma de direito substantivo (in casu, o artigo 1340.º do Código Civil), apreciação essa que, na prática, conduziria a uma decisão definitiva que só na acção principal deve ser alcançada.

Com efeito, como se afirmou no Acórdão de 02/06/2015 a que já se fez referência, a tomar-se conhecimento do recurso daria esta circunstância origem a uma situação em que ou o julgamento aqui efectuado em sede cautelar não constituía caso julgado relativamente à acção principal, admitindo-se que nesta se viesse a emitir novo julgamento eventualmente não coincidente, com possibilidade de outro recurso para este STJ ou constituía subvertendo-se neste caso a lógica inerente à relação de instrumentalidade existente entre a acção e o procedimento e ofendendo-se mesmo a própria lógica do processo civil que tem por inerente o princípio de que é no processo principal que hão-de ser dirimidas em definitivo as questões substantivas.

Refira-se, de resto, que este entendimento se baseou, com as devidas adaptações, no Acórdão n.º 442/2000 do Tribunal Constitucional, de 25/10/2000 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos) no qual se considerou ser inadmissível o recurso para aquele Tribunal, de uma decisão proferida em sede cautelar, precisamente por o juízo de mérito a proferir, quer no âmbito do procedimento, quer no domínio da acção correspondente, depender da verificação da mesma norma.

Pelas razões aduzidas, forçoso é concluir que, centrando-se o núcleo fundamental do recurso na alegada oposição entre decisões na parte concernente aos pressupostos substantivos de cuja verificação depende o instituto da acessão industrial imobiliária (questão de mérito que é objecto da acção principal por força da reconvenção deduzida) e não nos pressupostos próprios da tutela cautelar, não há que tomar conhecimento daquele já que, no descrito circunstancialismo, não é de aplicar ao caso o artigo 629.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Civil, valendo, ao invés, a regra geral ínsita no artigo 370.º, n.º 2, primeira parte, do mesmo diploma legal.

E nem se diga que a interpretação da norma em questão, aqui acolhida, padece da inconstitucionalidade que os recorrentes lhe pretendem assacar, já que quando se fala de direito de acesso aos tribunais, na perspectiva do direito ao recurso, se alude à garantia de um duplo grau de jurisdição, visando-se assegurar a possibilidade de fazer examinar as causas com maior dignidade por uma instância de grau superior, na esperança de, por essa via, se obter uma decisão mais justa ou, ao menos, de se corrigirem eventuais erros de julgamento. Porém, há muito que constitui jurisprudência pacífica do Tribunal Constitucional que não existe um genérico e ilimitado direito de recorrer de todos os actos jurisdicionais, que seja extensivo a todas e quaisquer matérias, gozando, ao invés, o legislador ordinário de uma razoável margem de liberdade na definição dos casos em o que o recurso é admissível e dos termos em que tal direito há-de ser exercido. Decorrentemente, o que se vem acentuando é que, no processo civil, o que o legislador tem de assegurar sempre a todos, sem discriminações, é o acesso a um grau de jurisdição, tanto mais que se o texto constitucional é omisso quanto ao limite máximo dos graus de jurisdição, também o é quanto ao mínimo, não sendo, portanto, desejável a banalização do acesso à jurisdição do Supremo Tribunal de Justiça (cf. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 259/97 e 132/2001, publicados no Diário da República, 2.ª Série, respectivamente de 30 de Junho de 1997 e de 25 de Junho de 2001).

Tudo para concluir que, face à margem de liberdade do legislador na definição dos graus de recurso admissíveis, os princípios constitucionais do direito a um processo equitativo, da igualdade das partes, da segurança jurídica e da protecção da confiança, plasmados nos artigos 2.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa, não obrigam a que se considerem recorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça todas as decisões, designadamente as proferidas em sede cautelar, onde a regra que vigora é precisamente a contrária.

Sublinhe-se, aliás, que a inconstitucionalidade do regime então previsto no artigo 387.º-A do anterior Código de Processo Civil (que corresponde ao actual artigo 370.º, n.º 2) foi negada pelo Tribunal Constitucional no citado Acórdão n.º 132/2001 e a verdade é que tal entendimento em nada se altera pela circunstância de o recorrido ter visto a decisão da 1.ª instância ser alterada a seu favor através do direito ao recurso e de os recorrentes não terem agora igual possibilidade uma vez que, como é evidente, em todos os demais casos previstos na lei processual civil em que é vedado um terceiro grau de jurisdição (como sucede, por exemplo, nos processos de expropriação), tal limitação nada tem que ver com o facto de as decisões das instâncias serem ou não conformes mas antes com a ponderação que o legislador fez entre diversos valores que pretendeu compatibilizar com vista a atingir um justo equilíbrio (como sejam, no caso, os da segurança e da celeridade).

        

     Nesta conformidade, por todo o exposto, acordam os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça, em não tomar conhecimento do recurso.


Custas pela recorrente.


Lisboa, 6 de Outubro de 2016


Orlando Afonso (Relator)

Távora Victor

António da Silva Gonçalves