Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1771/21.6T8PVZ.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: CONTRATO DE MÚTUO
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
FORMA ESCRITA
CONFISSÃO DE DÍVIDA
DOCUMENTO PARTICULAR
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
DIREITO PROBATÓRIO MATERIAL
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - A declaração constante de um documento escrito na qual uma pessoa se confessa devedor perante outro em razão de uma determinada causa constitui uma confissão extrajudicial escrita em documento particular.


II - Tendo resultado provado que a dívida confessada emerge de empréstimos ao longo dos anos, não permite concluir que nos encontremos perante um contrato de mútuo nulo por vício de forma nos termos do art. 1143º do CCivil, uma vez que não se provou que alguma das quantias sucessivamente emprestadas excedesse os valores ali referidos.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA, residente em ..., ..., instaurou acção declarativa contra BB e marido CC, residentes na mesma localidade, pedindo a condenação dos réus a pagarem-lhe a quantia de € 71.480,00 acrescida de juros de mora contados desde a citação até integral pagamento.

Alegou para tanto e em síntese, que emprestou aos réus diversas vezes sucessivas quantias que totalizam o valor do pedido, tendo os réus subscrito a confissão de dívida que junta, sendo que apesar das promessas feitas os réus não lhe restituíram essa quantia na data em que se comprometeram a fazê-lo.

Os réus foram citados e apresentaram contestação, impugnando os factos alegados, arguindo a falsidade da confissão de dívida junta, e concluindo que a acção deve ser julgada parcialmente improcedente, aceitando os réus deverem o capital mutuado de €32.000,00.

Foi requerida e admitida a intervenção principal activa de DD, que se associou ao articulado da autora.

Realizado julgamento, foi proferida sentença, tendo a acção sido julgada parcialmente procedente e os réus condenados a pagar a quantia de € 32.000,00, acrescida de juros, calculados à taxa legal, desde 22-12-2021 até 24-10-2022.

Do assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação.

O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 24.09.2023, julgou procedente o recurso e, alterando a sentença, condenou os RR a pagarem à A. a quantia global de €71.480,00 (setenta e um mil e quatrocentos e oitenta euros), acrescida de juros de mora à taxa legal a contar da citação, com abatimento do valor consignado em depósito a título de capital e de juros moratórios.

Recorrem agora os Réus de revista, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:

1 – Os Recorrentes efectuaram uma declaração unilateral de reconhecimento de divida por empréstimo, declarando nessa declaração que o valor era de 71.480€

2 – Contestando a acção em primeira Instancia reconheceram, ali, que apenas haviam recebido do mutuante a importância de 32.000€ que depositaram de imediato à ordem do Processo acrescidos dos juros à taxa legal e contados desde a Citação.

3 – A Declaração emitida pelos mutuários foi efectuada em documento particular não autenticado.

4 – A Recorrida e o Interveniente disseram no Artº 1º da sua P.I. que: “ A A. ao longo de alguns anos emprestou aos RR em dinheiro vivo que em 12 de Agosto de 2021 atingiu a

quantia de 72.480,00 € …”

5 – Tal mútuo em “dinheiro vivo”, numerário, é transacção absolutamente proibida por Lei, por norma imperativa, conforme ao disposto no Artº 63-E da Lei Geral Tributária, D.L. 368/98 de 17 de Dezembro, na redacção conferida pela Lei 92/2017 de 22/8, que proíbe transacções de qualquer natureza, efectuadas em numerário, superiores a 3.000€

6 – Tal mútuo é assim absolutamente nulo nos termos do Artº 294 do Código Civil; e por isso também será nula qualquer declaração a que esse mútuo seja subjacente.

7 – O mútuo é também nulo por vício de forma pois que não podia ser celebrado sem documento autêntico (escritura publica) ou documento particular autenticado e não existiu nem uma coisa nem outra e tinha que obrigatoriamente ser outorgado por mutuantes e mutuários.

8 – O reconhecimento unilateral de dívida por mutuo só seria válido se as assinaturas estivessem reconhecidas notarialmente, documento autenticado, pois que nos termos do Artº 364, nº 1 do Código Civil quando a lei exigir como forma de declaração documento autentico ou autenticado – Artº 1143 do C.C. – não pode esse ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior e ainda nos termos do nº2, se o documento for exigido para prova da declaração, esse só pode ser substituído por confissão extrajudicial desde que essa conste de documento de igual ou força probatória superior; por isso a declaração unilateral efectuada pelos Recorrentes não é meio suficiente de prova e enfermando por isso de nulidade por vicio de forma.

9 – Uma confissão de divida extrajudicial, com valor superior a 25.000€, não faz prova contra o confitente se essa confissão for considerada/declarada insuficiente pela lei, Artº 354, alª a) e 364 1 e 2 do Código Civil; no caso do mútuo a lei exige ou escritura pública ou documento particular autenticado e assinado por mutuante e mutuário e nada disso existindo no caso dos autos e a confissão está efectuada em documento particular simples (sem autenticação).

10 – O Acórdão da Relação do Porto ofende disposição expressa da lei – Artº 364 do C. Civil – porque no mutuo de valor superior a 25.000€ a lei exige como meio de prova – mesmo em confissão extrajudicial – que o documento tenha que ser autentico (escritura publica) ou autenticado (documento particular autenticado) não podendo ser substituído por outro meio de prova ou por documento com força probatória inferior; o documento constante dos autos é particular simples sem autenticação nos termos legais.

11 – Não podia o Tribunal da Relação do Porto dar como provado e alterar a matéria provada do nº3 (da sentença da primeira instancia) pois que o mutuo é absolutamente nulo atenta a proibição legal da LGT (Lei geral tributária), atento ainda o Artº 1143 que obriga a forma legal (por documento autentico ou documento autenticado), por violação de lei expressa que obriga nesses mútuos a outorga de mutuantes e mutuários (o que jamais existiu) e ainda porque essa nulidade é determinada nos termos do Artº 364 do Código Civil.

12 – Com a alteração à matéria de facto, dada como provada pela 1ª Instancia, o Tribunal da Relação do Porto cometeu erro na apreciação da prova e na fixação dos factos materiais que deu como provados por ofensa de disposições expressas da lei e nomeadamente por violação dos Artºs 354, alª a), inadmissibilidade da confissão, 364, nº 1 e 2 todos do Código Civil e ainda o Artº 458, nº 2 do Código Civil e isto porquanto o mutuo de valor superior a 25.000€, para ser válido, tem que ser celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado – Artº 1143 do C. Civil - e por isso a confissão da divida não pode ser aceite porque é insuficiente para prova dos factos que se pretenderam provados dado ter sido efectuada apenas por documento particular simples; o que permite fundamento para o Recurso de Revista nos termos do Artº 674, nº 3 do C.P.C.

13 – Com as mais diversas nulidades invocadas cabia aos recorridos fazerem a prova da entrega do dinheiro o que nunca fizeram e por isso os Recorrentes devem ser integralmente absolvidos do pedido.

Contra alegou a Recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões:

1 - O documento de confissão de dívida foi manuscrito pelos recorrentes.

2 - Foram eles que beneficiaram da execução do seu conteúdo.

3 - Não se verifica qualquer nulidade.

4 - A existir ela não pode ser invocada, nem aproveitada, pelos recorrentes, por via do instituto do abuso de direito.

5 - Não foi violado qualquer normativo do acórdão recorrido.


///


Objecto do recurso:

- Alteração da matéria de facto pela Relação;

- Nulidade do mútuo;

Fundamentação.

O acórdão recorrido deu como provada a seguinte factualidade:

1. Ao longo de alguns anos, o casal composto por AA (ora Autora) e seu falecido marido EE emprestou dinheiro, em numerário, a BB e CC (ora Réus); ...

2. …Tendo BB e CC (ora Réus) usado esse dinheiro em seu benefício comum.

3. Até data anterior a 12-08-2020, AA (ora Autora) e seu falecido marido EE entregaram a BB e CC (ora Réus) a quantia global de €71.480 (setenta e um mil, quatrocentos e oitenta euros), tendo-se BB e CC (ora Réus), naquela data, comprometido a restituir-lhes tal quantia de €71.480 (setenta e um mil, quatrocentos e oitenta euros) no dia 12-08-2021.

4. BB e CC (ora Réus) subscreveram o documento intitulado «Declaração da Confição da Dívida do empréstimo», com o teor que consta do documento 1 apresentado com a petição inicial, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido.

5. O texto que consta do documento intitulado «Declaração da Confição da Dívida do empréstimo», com o teor que consta do documento 1 apresentado com a petição inicial, foi manuscrito por BB (ora Ré).

6. EE faleceu no dia ...-...-2021, no estado de viúvo de AA (ora Autora), tendo deixado como seus únicos e universais herdeiros a sua mulher AA (ora Autora) e o seu filho DD (ora Interveniente Principal).

7. No dia 24-10-2022, no âmbito do presente processo, BB e CC (ora Réus) procederam à consignação em depósito da quantia de € 33.080,11 (trinta e três mil e oitenta euros e onze cêntimos), imputando a quantia de 32.000 (trinta e dois mil euros) a capital e a quantia de € 1.080,11 (mil e oitenta euros e onze cêntimos) a juros calculados desde a data da citação até ao dia 26-10-2022.

O direito.

Os Recorrentes imputam ao acórdão recorrido violação de regras de direito probatório material por a Relação ter considerado que a declaração apresentada com a petição inicial configura confissão extrajudicial, com força probatória plena do facto constante da declaração de confissão, sendo certo que no caso era inadmissível a confissão por lhe estar subjacente um mútuo ferido de nulidade.

O Supremo Tribunal de Justiça só conhece, em regra, de matéria de direito, limitando-se a aplicar o regime jurídico que julgue adequado aos factos fixados pelo tribunal recorrido (art. 682º, nº1, do CPC. Daí que o eventual erro na apreciação das provas e na fixação dos factos pelo tribunal recorrido só possa ser objecto de recurso de revista quando haja ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (arts. 674º, nº3 e 682º, nº2, do CPC).

Como vem invocado uma das situações excepcionais que autorizam o Supremo a sindicar o juízo da Relação sobre a matéria de facto, há que apreciar a questão suscitada.

A sentença havia dado como provado no ponto 3:

“Até data anterior a 12-08-2020, AA (ora Autora) e seu falecido marido EE entregaram a BB e CC (ora Réus) a quantia de € 32.000,00 (trinta e dois mil euros), tendo-se BB e CC (ora Réus) comprometido a restituir-lhes tal quantia de € 32.000,00 (trinta e dois mil euros)”.

E sob o nº 8, como não provado:

Com ressalva para o supra referido em 3), ao longo de alguns anos e até 12-08-2020, AA (ora Autora) e seu falecido marido EE entregaram a BB e CC (ora Réus) a quantia de € 71.480,00 (setenta e um mil, quatrocentos e oitenta euros), referida no documento intitulado «Declaração da Confição da Dívida do empréstimo», com o teor que consta do documento 1 apresentado com a petição inicial, tendo-se BB e CC (ora Réus) comprometido a restituir-lhes tal quantia de € 71.480,00 (setenta e um mil, quatrocentos e oitenta euros).

A Relação eliminou este facto dos não provados, e “corrigiu” a redacção do ponto 3, que passou a ser a seguinte:

3) Até data anterior a 12-08-2020, AA (ora Autora) e seu falecido marido EE entregaram a BB e CC (ora Réus), de empréstimo, a quantia global de €71.480 (setenta e um mil, quatrocentos e oitenta euros), tendo-se BB e CC (ora Réus) comprometido, naquela data, a restituir-lhes tal quantia de €71.480 (setenta e um mil, quatrocentos e oitenta euros) no dia 12-08-2021.

O acórdão recorrido justificou a sua decisão nos seguintes termos:

(…)

“O artigo 458.º do Código Civil refere-se pois à situação em que alguém reconhece uma dívida sem indicar a relação que está na origem da dívida. A presunção que a norma estabelece é a presunção de que a dívida tem uma causa jurídica. O que o credor fica dispensado de provar é a existência de relação fundamental, de causa para a dívida, uma vez que se presume que a dívida tem uma causa, é causal. Mas já não se presume qual seja essa causa em concreto e/ou a respectiva validade, motivo pelo qual, tendo presente o princípio da proibição dos negócios abstractos, se entende que o credor deve indicar a causa, não carece de a provar.

Por não ser essa a sua previsão, a norma não se aplica nas situações em que na declaração o devedor enuncia expressamente a causa da dívida reconhecida. Na verdade, se o devedor indica a causa da dívida reconhecida então não é necessário presumir a sua existência, pois a mesma resulta da própria declaração de dívida. Eventualmente pode é colocar-se a questão da necessidade de provar que essa indicação é falsa e que a causa da dívida é outra, designadamente para efeitos de prova da sua invalidade, mas isso já nada tem a ver com a disposição do artigo 458.º do Código Civil.

Sendo assim, o artigo 458.º do Código Civil não se aplica ao caso concreto.

Com efeito, como vimos, no documento está indicado que o montante da dívida confessada é relativo a mútuos feitos pela autora aos réus. Em face dessa redacção, não havia necessidade de presumir que a dívida tinha subjacente uma relação jurídica causal pois ela estava identificada no documento pela devedora.

(…)

Parece, com efeito, que se perante uma declaração unilateral onde não se indica nenhuma relação fundamental o credor fica dispensado de provar (não se cuida por ora da diferença entre dispensa de prova e dispensa de alegação, nem se aquela acarreta esta) a existência de relação fundamental, de uma causa para a dívida, o mesmo deve acontecer, por maioria de razão, nos casos em que no documento se indica uma relação fundamental, caso em se deverá presumir não que a dívida tem uma causa mas que a dívida tem a causa indicada.

A declaração constante de um documento escrito na qual uma pessoa se confessa devedor perante outra em razão de uma determinada causa constitui uma confissão extrajudicial escrita em documento particular. Na verdade, a confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária (artigo 352.º do Código Civil).

Nos termos do artigo 358.º do Código Civil a confissão extrajudicial, em documento particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a este documento e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena.

Nos termos do n.º 1 do artigo 376.º do mesmo diploma, o documento particular cuja autoria esteja reconhecida, como aqui sucede, uma vez que por confissão dos réus se provou que o documento foi subscrito por eles, faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.

Nessas circunstâncias, a declaração confessória faz prova plena do facto confessado, ex vi artigos 352.º, 358.º, n.º 2, 375.º, n.º 1, e 376.º do Código Civil. Essa prova plena só pode ser revertida mediante a arguição e prova da falsidade do documento ou através de meio de prova que demonstre não ser verdadeiro esse facto (artigo 347.º do Código Civil).

Acresce que nos termos do n.º 2 do citado artigo 376.º, também se consideram provados os factos compreendidos na declaração a medida em que forem contrários aos interesses do declarante. Por outras palavras, a prova plena abrange não apenas a existência da declaração escrita, como ainda o facto declarado, isto é, no caso concreto, que os réus devem à aqui autora a quantia de € 71.480 a título de empréstimos que esta lhes concedeu.

A prova plena não é uma prova invencível, inultrapassável.

Ao contrário do que sucede quando existe uma presunção legal do facto com a natureza de presunção inilidível, nos termos do artigo 347.º do Código Civil, a prova legal plena pode ser contrariada, mas somente por intermédio de meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto, sem prejuízo de outras restrições especialmente determinadas na lei.

Entre essas restrições conta-se o n.º 2 do artigo 393.º do Código Civil, segundo o qual quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio de prova com força probatória plena, como a confissão, não é admissível a prova por testemunhas.

Por outro lado, também n.º 1 do artigo 359.ºdo Código Civil estabelece que a confissão, nomeadamente a extrajudicial, pode ser declarada nula ou anulada, nos termos gerais, por falta ou vícios da vontade, acrescentando no n.º 2 que o erro, desde que seja essencial, não tem de satisfazer aos requisitos exigidos para a anulação dos negócios jurídicos.

Perante isso, os réus tinham a necessidade de afastar essa prova plena, o que podiam fazer por uma de duas vias: demonstrado que o facto confessado na declaração não é verdadeiro; demonstrado que a confissão (a declaração) enferma de um vício gerador da respectiva nulidade ou anulabilidade (v.g. ter sido obtida por coacção ou dolo).

Apurado que a declaração junta com a petição inicial tem o valor de confissão extrajudicial com força probatória plena do facto constante da declaração de confissão (anota-se que o afastamento da previsão do artigo 458.º do Código Civil já implicava a exclusão do óbice consagrado no n.º 2 desta disposição que, de todo o modo, conforme se explicou, não estaria demonstrado), uma vez que pelos réus não foi alegada a existência de qualquer vício da confissão susceptível de determinar a respectiva nulidade ou anulabilidade, o facto do ponto 8 só pode ser julgado não provado se se concluir os réus lograram demonstrar que o mesmo não é verdadeiro.

Não era a autora que tinha de provar esse facto, eram os réus que tinham de provar que o mesmo não era verdadeiro, sob pena de ele ter de ser julgado provado por confissão.

Ora a prova dessa falsidade ideológica pura e simplesmente não foi feita.

Os réus, com efeito, não produziram nenhum meio de prova suplementar, sendo certo que para isso deparavam-se com as limitações atrás assinaladas. Os seus depoimentos e declarações de parte são insusceptíveis de gerar essa demonstração, desde logo porque para demonstração da falsidade de uma confissão nunca poderiam ser aceites as declarações do próprio confessor … contrárias à confissão, na medida em que isso seria contrário aos princípios probatórios vigentes entre nós, ao destruir as preocupações de segurança que estão na génese do regime jurídico que atribui valor de confissão, com força probatória plena, às declarações de factos desfavoráveis. Mas ainda porque, no caso, as contradições entre os réus foram de molde a retirar-lhes a credibilidade que seria indispensável à demonstração da falsidade do que antes declararam por escrito.

Nesse contexto, afigura-se-nos que assiste razão à recorrente e que devidamente analisado o documento junto com a petição inicial e apurado o seu valor jurídico, o tribunal não pode deixar de julgar provado que a quantia global mutuada e em dívida ascendeu ao montante assinalado no documento de € 71.480.”

Como flui do exposto, determinante na decisão da Relação não foi a consideração de ter sido celebrado um contrato de mútuo no valor de € 71.480 entre a Autora e o seu falecido marido como mutuantes e os RR como mutuários, mas sim a subscrição por estes do documento intitulado «Declaração da Confição da Dívida do empréstimo», onde consta “declaro para os devidos e legais efeitos ser devedores da quantia de setenta e um mil e quatrocentos e oitenta euros”, que o acórdão recorrido entendeu constituir uma declaração confessória que faz prova plena do facto confessado, ex vi artigos 352.º, 358.º, n.º 2, 375.º, n.º 1, e 376.º do Código Civil.

Subjacente à declaração não está um único contrato de mútuo, mas vários empréstimos que acontecerem “ao longo de alguns anos”, sem que se tenha apurado o valor parcial de cada um deles.

Assim, embora o art. 1143º do CCivil exija que os mútuos de valor superior a €25.000,00 sejam celebrados por escritura pública ou documento particular autenticado e que os mútuos de valor superior a €2.500 sejam celebrados por documento assinado pelo mutuário, não se tendo provado o valor de cada um dos mútuos não se pode concluir que os contratos em questão são nulos, seja por vício de forma seja por pretensa infração do art. 63º-E da Lei Geral Tributária.

Neste sentido decidiu o acórdão do STJ de 17.04.2008, P. 08A545, “o facto de se ter provado que a autora emprestou à ré (…) várias quantias em dinheiro, com obrigação de restituição, sendo que, em acerto de contas, foi fixado por acordo entre eles o valor global da dívida em €99.759,58 (…) não significa, por si só, que nos encontremos perante um contrato de mútuo nulo, uma vez que embora o montante global seja efectivamente superior aos referidos no art. 1143º, não está assente que cada uma das quantias sucessivamente prestadas pela autora aos réus excedesse tais valores.”

É dizer que a Relação não incorreu em violação do direito probatório material, mostrando-se infundadas as conclusões 10, 11 e 12.

O teor da conclusão 13 é desmentida pelos factos provados sob os nºs 1 e 2, onde consta que “ao longo de alguns anos”, o casal composto pela Autora e seu falecido marido emprestou dinheiro, em numerário, aos Réus que usaram “esse dinheiro em benefício comum”.

Mas ainda que o mútuo estivesse ferido de nulidade por inobservância de forma, daí não se segue que os RR devessem ser absolvidos, pois, conforme jurisprudência pacífica do STJ, declarada a nulidade do contrato de mútuo o mutuário está obrigado a restituir o capital mutuado, com juros de mora a contar da citação, como consequência da declaração de nulidade, (cfr., entre outros, os acórdãos de 19.05.2005, P.05B1200, de 08.04.2010, P. 363/07, de 08.05.2013, P. 3229/09, www.dgsi.pt).

Com o que improcedem na totalidade as conclusões dos Recorrentes, não merecendo a decisão recorrida qualquer censura.

Decisão.

Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelos Recorrentes.

Lisboa, 08 de fevereiro de 2024

José Ferreira Lopes (relator)

Lino Ribeiro

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza