Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4883/17.7T8GMR.G1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPA EXCLUSIVA
CONCORRÊNCIA DE CULPA E RISCO
Data do Acordão: 04/13/2021
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - Em matéria de responsabilidade pelos danos resultantes de acidente causados por veículos de circulação terrestre (art. 503.º, n.º 1, do CC), a verificação de qualquer das circunstâncias referidas no art. 505.º do CC, nomeadamente ser o acidente imputável a facto, culposo ou não, do lesado, exclui a responsabilidade objectiva do detentor do veículo causador do acidente no círculo tutelado dos «riscos próprios do veículo», tendo em conta que esse comportamento interrompe o nexo de causalidade que, em relação ao dano, representa o risco do veículo.
II - O art. 505.º do CC admite, nomeadamente em face da salvaguarda do prescrito no art. 570.º do CC., o concurso da imputação do acidente ao lesado com o risco próprio do veículo, a fim de se repartirem quotas de responsabilidade, desde que: (i) o risco especial de circulação seja um risco agravado de funcionamento deficiente e/ou imprevidente da máquina ou das especificidades de perigo da circulação em concreto, que justifique e torne plausível, numa lógica equilibrada e racional do regime legal para tutela do lesado, especialmente quanto este apenas evidencia uma negligência de reduzida censurabilidade (culpa leve ou levíssima) e de diminuta relevância causal para a produção ou agravamento dos danos sofridos pelo próprio, uma comparticipação da parte lesante que responde independentemente de culpa; (ii) haja uma contribuição desse risco do veículo para a ocorrência do sinistro gerador dos danos, mobilizando-se um juízo de adequação e proporcionalidade atendendo à intensidade desses riscos próprios da circulação do veículo e à sua concreta relevância causal para o acidente.
III - Verificando-se um comportamento da vítima que, na conjugação da ilicitude decorrente da violação de regras estradais e da falta da diligência objectiva exigível na circulação automóvel, merecedor de juízo de censura a título de culpa, se revele a causa exclusiva do acidente/colisão e dos danos resultantes, por isso sendo-lhe unicamente imputável a produção do acidente, fica excluída a responsabilidade objectiva do condutor/veículo lesante, acolhida no art. 503.º, n.º 1, por aplicação do art. 505.º do CC.
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 4883/17………….G1.S1

Revista – Tribunal recorrido: Relação de ………, …… Secção Cível

Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I) RELATÓRIO

1. AA instaurou acção declarativa sob a forma de processo comum contra «Lusitânia – Companhia de Seguros, S.A.», pedindo a sua condenação a pagar ao Autor: A) a quantia de € 66,75 respeitante a despesas suportadas a título de tratamento médico, de enfermagem, de reabilitação e fármacos; B) a quantia de € 1.650,00 respeitante ao custo de reparação ou substituição do capacete, vestuário e demais equipamento que o autor trazia aquando do acidente; C) a quantia de € 5.085,34 correspondente ao preço de reparação do seu veículo motorizado; D) a título de privação de uso, a quantia de € 90,00 por cada dia de paralisação da viatura, desde a ocorrência do sinistro (…./…./2015) até à data em que foi reparada (…./…/2017), liquidando-se tais valores nessa data em € 19.680,00; E) a quantia de € 3.319,33 a título de ITA (retribuição e subsídios); F) a quantia de € 15.000,00 a título de indemnização pelo dano biológico decorrente da IPP de que o autor ficou atingido e da afectação da sua capacidade laboral; G) a quantia de € 15.000,00 a título de compensação dos danos não patrimoniais sofridos em virtude do acidente e das sequelas por ele deixadas; H) no pagamento dos respectivos juros moratórios, à taxa legal, desde a citação da ré e até integral e efectivo pagamento. Para tanto alegou que os valores peticionados correspondem aos danos de natureza patrimonial e não patrimonial que sofreu em virtude do acidente de viação no qual foi interveniente em …./…./2015, cuja ocorrência imputa à conduta voluntária, ilícita e culposa da condutora do veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula ….-….-BV, cuja responsabilidade civil se encontrava, na data do acidente, transferida para a ré seguradora mediante contrato de seguro.

O «Centro Distrital de …… do Instituto da Segurança Social, I.P.» deduziu contra a Ré o pedido de reembolso de subsídios de doença pagos ao autor no valor de € 1.177,69 (fls. 49 e ss dos autos).

A Ré apresentou a sua Contestação (fls. 55 e ss), alegando imputar ao Autor a culpa da respectiva ocorrência do acidente e invocando que a reparação dos danos sofridos pelo motociclo ultrapassa em quatro vezes o seu valor comercial à data do sinistro, para além de impugnar a matéria referente aos danos alegadamente sofridos pelo autor, visando assim a absolvição do pedido. A Ré apresentou ainda a sua impugnação em face do pedido do «Centro Distrital de …… do ISS, I.P.», invocando que não são cumuláveis as indemnizações peticionadas pelo autor e ISS.

2. Foi proferido despacho saneador, fixado o valor da causa, identificado o objecto do litígio e enunciados os factos provados e os temas da prova (fls. 104 e ss).

3. Depois de requerido pela Ré (fls. 135), foi proferido despacho a deferir o apensamento a estes autos do Processo n.º 639/18………., em que é Autor o «Centro Hospitalar do ………., E.P.E.» e Ré a «Lusitânia – Companhia de Seguros, S.A.» (a fls. 186).

4. O Autor requereu a ampliação do pedido (fls. 178 e ss), com pronúncia da Ré, devendo nesse sentido proceder-se à condenação da Ré a pagar-lhe indemnização a liquidar em execução de sentença por todas as despesas em consultas, tratamentos, intervenções cirúrgicas, a realizar no futuro, em consequência da sindesmopexia efectuada no tratamento da factura. Esta ampliação foi admitida e ainda foi aditado um facto à matéria controvertida (fls. 182).

5. Após realização da audiência de discussão de julgamento em várias sessões (fls. 201 e ss), o Juiz ….. do Juízo Central Cível de ……… (Tribunal Judicial da Comarca de ……..) proferiu sentença em 11/4/2019, cujo dispositivo decisório julgou:

(A) “parcialmente procedente o pedido formulado pelo Autor AA, condenando a Ré a pagar-lhe a quantia total de € 17.719,70 (dezassete mil, setecentos e dezanove euros e setenta cêntimos), acrescida de juros de mora contados à taxa legal, vencidos e vincendos sobre a quantia de € 10.219,70 (dez mil, duzentos e dezanove euros e setenta cêntimos) desde a data da citação, e vincendos sobre a quantia de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros) desde a presente data, em ambos os casos até efectivo e integral pagamento. Improcedente a parte restante do pedido formulado pelo Autor AA, de que se absolve a Ré”;

(B) “parcialmente procedente o pedido formulado pelo Autor “Centro Hospitalar do ………, E.P.E.”, condenando a Ré a pagar-lhe a quantia de € 859,38 (oitocentos e cinquenta e nove euros e trinta e oito cêntimos), acrescida de juros de mora contados à taxa legal, vencidos e vincendos, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento. Improcedente a parte restante do pedido formulado pelo Autor “CH……., EPE”, de que se absolve a Ré”;

(C) “parcialmente procedente o pedido formulado pelo Interveniente “Centro Distrital de ……. do Instituto da Segurança Social, IP”, condenando a Ré a pagar-lhe a quantia de € 588,85 (quinhentos e oitenta e oito euros e oitenta e cinco cêntimos), acrescida de juros de mora contados à taxa legal, vencidos e vincendos, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento. Improcedente a parte restante do pedido formulado pelo Autor “CD…. do ISS, IP”, de que se absolve a Ré”.

6. Inconformada, a Ré interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de ………… (TR…..). Em acórdão proferido em 17/12/2019, o TR…., em sede de impugnação da matéria de facto, (i) eliminou dos factos provados o facto n.º 16 e incluiu-o na matéria de facto não provada sob o n.º 5-A; (ii) eliminou dos factos não provados o facto n.º 9 e procedeu à sua inclusão nos factos provados sob o n.º 12-A, mantendo-se o facto não provado n.º 5; (iii) alterou o facto provado n.º 7; (iv) eliminou o ponto 14. dos factos não provados; quanto à subsunção jurídica, concluiu que “o acidente é apenas imputável ao lesado autor o que, nos termos do art. 505º do C.C., exclui a responsabilidade da condutora do veículo VB”. Dispôs, por isso, a procedência da apelação e a consequente absolvição da Ré dos pedidos contra si formulados pelo Autor, «Centro Hospitalar ………..» e «Instituto da Segurança Social».

7. Agora inconformado com a decisão de segundo grau, o Autor interpôs recurso de revista para o STJ, tendo em vista a condenação da Ré tal como consta da sentença de 1.ª instância, rematando as suas alegações com as seguintes Conclusões:

1. São fundamento do presente recurso de Revista o erro na fixação dos factos materiais da causa, que constitui matéria de direito por resultar da violação das regras de processo sobre a modificabilidade das decisões em matéria factual (cf. art. 662.º do CPC) e das regras de direito probatório material (mormente as constantes dos arts. 349.º, 351.º do CC e art. 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC); e o erro na interpretação e aplicação das regras substantivas de repartição de responsabilidade em matéria de colisão de veículos (cf. arts. 483.º, 487.º, 505.º e 506.º do CC).

2. Para que o Tribunal da Relação pudesse modificar a decisão proferida em matéria de facto, mister seria que o recorrente tivesse cumprido devidamente o seu ónus de impugnação, especificando, entre o mais, «os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida» (art. 640.º, n.º 1, al. b), do CPC).

3. E da mesma forma, ainda que aquele ónus tivesse sido observado pela recorrente – o que não se concede –, não poderia a Relação alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto a não ser que os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impusessem decisão diversa (cf. art. 662.º, n.º 1, do CPC).

4. Sublinha-se o lexema usado pelo legislador porque dele decorre o sentido que se quis atribuir ao recurso em matéria de facto: a Relação só deve alterar a decisão em matéria factual se as provas impuserem decisão diversa da que foi proferida, mas já não quando apenas razoavelmente a permitam ou consintam.

5. A limitação à modificabilidade da decisão em matéria de facto decorre da natureza dos recursos, que não são novos julgamentos sobre os factos, porventura feitos por juízes mais competentes, mas autênticos «remédios jurídicos» destinados a corrigir os erros de julgamento ou os vícios da decisão da instância inferior.

6. Nesta estabilidade das decisões em matéria factual se reconhece o prestígio e a confiança nos tribunais, que não mudam o sentido das suas decisões ao sabor de puras convicções subjetivas, pessoais e insondáveis.

7. No caso em apreço, nem o tribunal da primeira instância não proferiu decisão contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos que devesse ser corrigida, nem a Relação de ………. tinha base sólidas e objetivas que lhe permitissem alterar os factos fixados na sentença.

8. A Relação excedeu, por isso, os poderes que a lei lhe confere ao proceder à modificação da base factual, assim incorrendo em violação das leis do processo que cabe ao Supremo sindicar (cf. arts. 640.º, n.º 1, e 674.º, n.º 1, al. b), do CPC).

9. A Relação de ……… também incorreu em violação das normas de direito probatório material ao proceder a tal alteração apenas com base em inferências e presunções e ilações subjetivas que estão em manifesta contradição com os demais factos provados no processo e são desprovidas de todo o sentido lógico.

10. Na verdade, a decisão da Relação de alterar o sentido da resposta ao ponto 7.º dos factos provados (velocidade do motociclo) não assenta na prova produzida (porque o depoimento da condutora do VB não é prova na parte em que refere uma convicção pessoal sobre a velocidade a que circularia o CD, que ela nem viu e de cuja aproximação não se apercebeu), resultando antes de presunções judiciais estribadas em factos não provados (os supostos danos no automóvel, que nem sequer foram discutidos nos autos) ou contrárias à prova (à prova dos danos no motociclo, ponto 47.º dos factos provados; a distância de 2 metros a que ficou imobilizado o motociclo, ponto 17.º dos factos provados; os ferimentos ligeiros sofridos pelo autor, que apenas sofreu escoriações, traumatismo do nariz e do ombro e fratura da clavícula, ponto 24.º dos factos provados), e desprovidas de carácter lógico (como quando se afirma que não basta seguir a 50 km/hora para ultrapassar um veículo que segue a 40 km/hora, numa fila compacta de carros).

11. Assim, o Tribunal da Relação incorreu num verdadeiro erro de direito ao dar como provado que o motociclo circulava a uma velocidade superior a 50km/h, impondo-se que este Supremo Tribunal revogue a decisão proferida pela Relação na parte em que determinou a alteração da redação do ponto 7 dos Factos Provados e a eliminação do ponto 14 dos Factos Não Provados e, em conformidade, se proceda à repristinação da redação do Ponto 7 dos Factos Provados fixada pela primeira instância, fazendo-se novamente constar «7. Nas descritas circunstâncias de tempo e lugar, o Autor conduzia o motociclo …..-CD-….. pela Avenida ………….., atento o sentido …….. – …….. em que circulava, a uma velocidade de 50 km/hora (artigos 6.º e 7.º da PI)».

12. Por outro lado, o tribunal da Relação incorreu num verdadeiro erro de direito ao determinar a eliminação do facto provado n.º 16 e respetiva inclusão nos Factos Não provados como 5-A, uma vez que assentou tal segmento decisório em factos que não foram dados sequer como provados, sendo o raciocínio expandido para o efeito ilógico.

13. Para sustentar a eliminação dos Factos Provados o Ponto 16 partiu da premissa que BB tinha olhado para trás (sendo certo que tal facto não foi dado como provado), mais acrescentando ser perfeitamente possível não ter visto o autor, tanto que quando esta iniciou a manobra de viragem à esquerda o autor ainda não teria iniciado a ultrapassagem. Só que esta premissa, imaginada pelo tribunal e não suportada em elementos subjetivos, está em contradição com os factos dados como provados sob os pontos 11, 15, 18, 19 e 20 (de que resulta ter o autor já iniciado a ultrapassagem consecutiva de vários veículos quando a condutora do VB iniciou a manobra de mudança de direção, encontrando-se por isso visível à condutora do VB se ela tivesse olhado para trás e se tivesse certificado de que não circulavam veículos em ultrapassagem à sua retaguarda). Ademais, a decisão de dar não provado o facto do ponto 16 está em contradição com os pontos 7, 8 e 11 dos factos não provados (não se provou que a condutora do VB seguia com a atenção ao trânsito, não se provou que reduziu a velocidade ao abeirar-se do entroncamento, e não se provou que antes de iniciar a manobra de mudança de direção à esquerda tenha verificado que não se aproximava qualquer veículo e que a metade esquerda da faixa de rodagem estava livre).

14. Assim, em reposição da boa aplicação do direito impõe-se que este excelso tribunal revogue a decisão proferida pelo tribunal da Relação na parte em que determinou a eliminação do facto provado n.º 16 dos Factos Provados e a sua inclusão na matéria de facto não provada sob o n.º 5-A e consequentemente se repristine a valoração e inclusão de tal facto na matéria de Facto dada como Provada, fazendo-se novamente constar nos Factos Provados que: «16. A condutora do veículo ….-….-VB não se certificou, antes de iniciar a manobra descrita nos factos provados anteriores, da aproximação de outros veículos à sua retaguarda, nomeadamente do Autor que vinha em ultrapassagem pela metade esquerda da faixa de rodagem (artigos 19.º, 22.º, e 23.º da PI)».

15. No mesmo sentido, não existindo outros elementos de prova que corroborem ou confiram credibilidade às declarações da condutora BB no que ao acionamento do pisca e aproximação do eixo longitudinal diz respeito, pelo contrário tais declarações são contraditadas pelos depoimentos do autor e da testemunha CC, não poderia o Tribunal da Relação ter precedido à alteração da matéria de facto neste ponto, declarando axiomaticamente que o depoimento da mesma lhe pareceu ser mais isento, desinteressado; pelo que ao fazê-lo incorreu em verdadeiro erro de direito na valoração critica feita da prova.

16. Assim, em reposição da boa aplicação do direito impõe-se a revogação da decisão proferida pelo tribunal da Relação na parte em que determinou a eliminação do facto não provado n.º 9 dos Factos Não Provados e a sua inclusão nos factos provados sob o n.º 12-A, fazendo-se novamente constar nos Factos Não Provados que «9. Ao mesmo tempo que acionou o sinal luminoso de pisca – piscado lado esquerdo do seu veículo e se aproximou da linha longitudinal contínua que divide as duas metades da faixa de rodagem (artigos 10.º, 11.º, e 25.º da Contestação)».

17. Procedendo este Supremo Tribunal de Justiça à reposição da decisão factual proferida pela primeira instância, porquanto a sua modificação pela Relação de ……….. traduz a violação das regras processuais sobre a modificabilidade da decisão em matéria de facto e a violação de normas de direito probatório material, será de manter incólume a aplicação de direito efetuada pelo Juízo Central de ………., concluindo-se pela repartição da culpa causal do acidente entre o Autor e a condutora do veículo segurado pela ré (cfr. art. 506.º, n.º 2 do CC), de igual monta para cada um deles (50% vs 50%).

18. Sem prejuízo do que antecede, e ainda que se entenda ser de manter a configuração dos factos resultante do acórdão recorrido, sempre importa corrigir a errada interpretação e aplicação ao caso das normas dos artigos 483.º, 487.º, 505.º e 506.º do CC.

19. Não obstante a ultrapassagem constituir uma manobra proibida em zonas de entroncamento, o condutor que pretende mudar de direção para a esquerda nesse entroncamento não está dispensado de observar as prescrições que regulamentam a execução de tal manobra, designadamente certificando-se previamente da segurança da respetiva execução e sinalização.

20. É que também a mudança de direção à esquerda é uma manobra perigosa porque implica tomar uma via confluente daquela em que se segue, razão pela qual o condutor, para além de estar obrigado a fazer o sinal regulamentar e a aproximar-se do eixo da via com a necessária antecipação de modo a não deixar dúvidas sobre a sua intenção aos restantes utentes da estrada, em caso algum deve iniciar tal manobra sem previamente se assegurar que da sua realização não resulta perigo ou embaraço para o trânsito (art. 35.º do CE).

21. A circunstância de condutora do VB ter acionado o pisca-pisca e se ter abeirado do eixo da via não significa que não tenha violado as regras estradais na mudança de direção à esquerda e, em particular, não exclui que tenha agido sem a atenção e o cuidado que lhe são impostos na realização de manobras perigosas, dessa forma contribuindo para a produção do acidente (arts. 11.º, n.º 3, e 35.º do CE).22. O facto de a condutora do veículo segurado pela ré não se ter apercebido da aproximação do motociclo, apesar de ele ter iniciado a manobra de ultrapassagem com anterioridade e ter já ultrapassado os dois automóveis que precediam o VB (pontos 11, 18, 19, e 20 dos factos provados), revela que a indicada condutora seguia com desatenção ao trânsito que se processava e não agiu com as cautelas devidas na realização de uma manobra perigosa como é a mudança de direção à esquerda.

23. Por outro lado, não ficou provado que a condutora do VB tenha adotado esses cuidados. Concretamente, não ficou provado que: 7. BB conduzia, na ocasião do acidente, com atenção ao trânsito (art. 5º da contest.); 8. Ao aproximar-se do entroncamento da Rua ……….., a condutora do veículo VB diminuiu a velocidade do seu veículo (art. 9º da contest.); 11. Antes de dirigir a frente do VB para a metade esquerda da faixa de rodagem, em direcção à Rua …………, BB verificou que não se aproximava qualquer veículo a circular em sentido contrário e que a metade esquerda da faixa de rodagem estava livre (art. 14º da contest.).          

24. Em face do que antecede, deve concluir-se, como a primeira instância, que o acidente ficou a dever-se à ação conjugada do comportamento culposo de ambos os intervenientes, e não ao comportamento isolado do autor, porque ao não proceder com a atenção e cautela devidas, a condutora do VB incorreu em violação dos artigos 11.º, n.º 3, e 35.º do CE.

25. Na definição da medida de repartição das responsabilidades de cada um dos condutores deve entrar-se em linha de conta com o critério de prioridade temporal, devendo o conflito entre a ultrapassagem e a manobra de mudança de direção deverá ser resolvido a favor do primeiro que iniciou uma dessas manobras.

26. O "critério temporal", como princípio geral de orientação, é o que se extrai da conjugação de diversas normas do Código da Estrada e o que melhor se adequa com o princípio da confiança, inerente ao tráfego rodoviário.

27. Se o condutor de um determinado veículo muda de direção à esquerda entrando na metade esquerda da fixa de rodagem onde outro veículo efetua manobra de ultrapassagem, a sua contribuição causal para o acidente não pode deixar de ter-se como decisiva e pelo menos igual à do condutor que efetuou a ultrapassagem proibida. E isto na medida em que o condutor que está a ser ultrapassado é o único que tem a derradeira oportunidade de evitar o acidente – olhando para trás ou para o lado imediatamente antes de virar e refreando a manobra para impedir a colisão.

28. Em face do que antecede, considera-se adequada a repartição de culpas na proporção de metade efetuada pelo tribunal a quo, sendo certo que numa situação idêntica à dos presentes autos o Supremo Tribunal de Justiça foi mais longe tendo repartido a culpa na proporção de 70% para o condutor que muda de direção e de 30% para o condutor que ultrapassa (cf. acórdão proferido em 10/04/2014, no processo 805/10.4TBPNF.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt).

29. A conclusão seria a mesma ainda que se aventasse que a condutora do automóvel segurado pela ré agiu sem culpa – hipótese que apenas se conjetura por dever de patrocínio –, em virtude da concorrência entre a culpa do lesado e a responsabilidade pelo risco, nos termos do artigo 503.º, n.º 1, do CC.

30. É jurisprudência assente do STJ que o regime normativo decorrente do estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 505.º e 570.º do CC deve ser interpretado, em termos atualistas, como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre culpa do lesado e risco do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura.

31. Nesse sentido, importa formular um juízo de adequação e proporcionalidade perante as circunstâncias de cada caso concreto que não conduzirá a um automático e necessário apagamento das consequências de um risco relevante da circulação do veículo, apenas pela circunstância de ter ocorrido alguma falta do próprio lesado, inserida na dinâmica do acidente.

32. No caso concreto, o resultado desta ponderação é, sem margem para dúvidas, no sentido da responsabilização pelo menos em partes iguais do autor e da condutora do VB, e, em consequência, na condenação da ré no pagamento de 50% do valor da indemnização pelos danos sofridos pelo autor.

A Ré apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência da revista e a confirmação do acórdão recorrido.

Foram colhidos os vistos legais.

Cumpre apreciar e decidir.

           

II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS

1. Objecto do recurso
Vistas as Conclusões para o efeito de identificar a matéria integrante do objecto recursivo (arts. 635º, 2 a 4, 639º, 1 e 2, do CPC), estas são as questões a apreciar e resolver:
— impugnação da decisão proferida pelo acórdão recorrido em matéria de facto por alegado incumprimento dos deveres previstos no art. 662º, 1, do CPC na reapreciação da matéria de facto, sindicável nos termos do art. 674º, 1, b), do CPC;
— impugnação da decisão em matéria de facto por alegada ofensa de regras de direito probatório material, de acordo com os arts. 374º, 3, 2.ª parte, 682º, 2, 2ª parte, do CPC;
— contradição na decisão sobre a matéria de facto, sindicável nos termos do art. 682º, 3, do CPC;
[estas três questões serão tratadas num só ponto, ainda que autonomamente, como se impõe]

— erro na interpretação e aplicação das regras legais de repartição de responsabilidade em matéria de acidente e colisão entre veículos, a fim de decifrar se há concorrência de responsabilidades ou responsabilidade exclusiva do Autor lesado (condutor do motociclo).
Desconsidera-se a sindicação do ónus de alegação previsto pelo art. 640º, 1, b), do CPC, alegada pelo Recorrente na sua Conclusão 2., uma vez que essa seria uma questão nova que não mereceu pronúncia por parte da Relação – antes se julgaram verificados os ónus previstos nesse art. 640º e, assim, legitimada estava a reapreciação pretendida pela Ré apelante – e é, por isso, aqui insusceptível de ser discutida enquanto reapreciação do decidido pelo acórdão recorrido.

2. Factualidade

Depois de modificada a matéria de facto, a Relação deu como provados os seguintes factos:

1. No dia …./…./2015, cerca das 11h45m, na Avenida ……….., na freguesia de ………, concelho de ……….., ocorreu um acidente de viação que consistiu na colisão entre os seguintes intervenientes: o motociclo da marca …………, com a matrícula …..-CD-…., pertencente e conduzido pelo aqui autor; e o veículo ligeiro de passageiros de marca …….., com a matrícula …..-….-VB pertencente e conduzido por BB (art. 1º a 3º e 5º da p.i.);

2. A Avenida ………., nas imediações do local por onde circulavam os veículos tripulados pelo autor e por BB e atento o seu sentido de marcha, forma um entroncamento à esquerda com a Rua ………. (art. 10º da p.i.);

3. No local do embate, a Avenida ………… configura uma estrada com dois sentidos de trânsito, sem separador central (art. 27º da p.i.);

4. Nas zonas da Avenida …………. imediatamente anterior e posterior ao local do embate, os dois sentidos de trânsito são divididos por uma linha longitudinal contínua aposta no meio da faixa de rodagem, só interrompida no sítio do aludido entroncamento com a Rua ………., onde a linha divisória é descontínua (art. 6º da contest.);

5. No local do acidente há casas e estabelecimentos comerciais a marginar a via, encontrando-se apostos nas respectivas margens, antes do local, em ambos os sentidos de trânsito, sinais indicadores de velocidade máxima permitida de 50 km/hora (art. 18º e 19º da contest.);

6. À data do sinistro era de dia e o piso encontrava-se conservado e seco (art. 28º e 29º da p.i.);

7. Nas descritas circunstâncias de tempo e lugar, o autor conduzia o motociclo ….-CD-…. pela Avenida …………, atento o sentido ……… – ……….. em que circulava, a uma velocidade não concretamente apurada, mas superior a 50 km/hora (art. 6º e 7º da p.i.); [Alterado pela Relação.]

8. O autor levava o capacete colocado na cabeça (artigo 8º da p.i.);

9. O veículo automóvel …..-…...-VB, conduzido por BB, seguia à frente do autor, no mesmo sentido de marcha deste (artigo 9º da p.i.);

10. BB conduzia o ….-….-VB pela metade direita da faixa de rodagem da Avenida …………, atento o sentido de marcha V.N. de ………-…….. com uma velocidade de cerca de 40 km/hora (art. 3º a 5º da contest.);

11. Na altura, circulavam à retaguarda do veículo VB mais dois veículos automóveis pela mesma avenida e no mesmo sentido (art. 8º da contest.);

12. BB pretendia mudar de direcção para o seu lado esquerdo e passar a circular com o VB pela Rua ……….. (art. 17º da p.i. e 12º da contest.);

12-A. Esta condutora accionou o sinal luminoso de pisca-pisca do lado esquerdo do seu veículo e aproximou-se da linha longitudinal contínua que divide as duas metades da faixa de rodagem (art. 10º, 11º e 25º da contest.); [Aditado pela Relação.]

13. Ao chegar ao local do entroncamento com a Rua ………., BB dirigiu a frente do seu veículo para a metade esquerda da faixa de rodagem, em direcção a esta rua (art. 17º da p.i. e 14º da contest.);

14. E, dessa forma, iniciou o atravessamento da metade esquerda da faixa de rodagem, invadindo e obstruindo a linha de trânsito do …..-CD-….. conduzido pelo autor que naquele momento ultrapassava pela esquerda (artigos 18º e 19º da p.i.);

15. Que embateu com a frente do motociclo ….-CD-…. na parte lateral esquerda, desde a porta do condutor até ao pára-choques frontal, do veículo ….-…..-VB, quando ambos se encontravam na metade esquerda da faixa de rodagem atento do seu sentido de marcha (art. 24º da p.i. e 15º da contest.);

16. [Eliminado pela Relação]

17. O espelho retrovisor lateral esquerdo do veículo ….-….-VB encontrava-se partido na base (art. 20º da p.i.);

18. Momentos antes, enquanto circulava naquela avenida, o autor pretendeu ultrapassar com o motociclo …..-CD-…., o ….-74-…. e os outros dois veículos que precediam no mesmo sentido de marcha (art. 11º da p.i., 8º e 20º da contest.);

19. O autor accionou o sinal de mudança de direcção (“pisca”) da esquerda do ….-CD-…., aproximou-se do eixo da via, transpondo-o e passando a circular na faixa de rodagem da esquerda atento o seu sentido de marcha (art. 14º da p.i.);

20. Iniciando a ultrapassagem em cadeia dos veículos que precediam e circulavam à retaguarda do veículo VB (art. 20º da contest.);

21. Sem previamente atentar na proximidade de um entroncamento e na linha longitudinal contínua que dividia as metades da faixa de rodagem (art. 21º e 22º da contest.);

22. Antes do embate, o autor pisou e transpôs essa linha longitudinal contínua para passar a circular pela metade esquerda da faixa de rodagem (art. 22º da contest.);

23. Em consequência da colisão, o motociclo …..-CD-….. e o autor que nele circulava caíram ao chão e foram arrastados cerca de 2 metros até ficarem imobilizados na via (art. 25º e 98º da p.i.);

24. Por causa do embate, da projecção e do arrastamento no chão do corpo do autor, este sofreu lesões nos membros superiores e na face, nomeadamente: traumatismo do nariz e ombro direito; fractura da clavícula direita, no seu terço externo, com desvio; e várias escoriações nas mãos (art. 35º, 36º e 98º da p.i.);

25. Para diagnóstico e tratamento das lesões o autor teve de ser imediatamente transportado em ambulância para o Hospital de ………., onde deu entrada no Serviço de Urgência, foi observado por médicos da especialidade de ortopedia, tendo realizado vários exames de diagnóstico, como raio-x ao crânio, ao tórax, aos ombros e aos ossos do nariz (art. 37º e 38º da p.i.);

26. Uma vez que à data não havia vagas para internamento em ortopedia, o autor recebeu alta hospitalar com indicação de que deveria voltar ao hospital a …./…./2015 para ser submetido a necessária intervenção cirúrgica à clavícula direita (art. 40º da p.i.);

27. No dia …../…../2015, pelas 17 horas, o autor regressou a casa com o braço direito imobilizado e elevado ao nível do peito – imobilização gerdy –, bem como com a prescrição de toma de medicamentos analgésicos (artigo 41º da p.i.);

28. A ……/…./2015, o autor voltou ao Hospital de …………., onde ficou internado até …../…./2015 para procedimento cirúrgico, tendo sido submetido, no dia …./…./2015, a uma intervenção cirúrgica de ortopedia de redução fechada de fractura com fixação interna da clavícula direita (art. 42º e 43º da p.i.);

29. O autor teve alta hospitalar a …./…./2015, passando a ser seguido em consulta externa até …./…./2016 (art. 44º da p.i.);

30. Até …../…./2016, o autor foi ainda submetido a tratamentos de enfermagem e a consultas de ortopedia (art. 45º da p.i.);

31. Em consequência das lesões sofridas no acidente, o autor ficou a padecer das seguintes sequelas definitivas: membro superior direito: cicatriz na face anterior do ombro, na região clavicular direita com ligeiro afundamento com 3 cms; ligeiro desnível de ombros (direito menor que esquerdo); rigidez ligeira do ombro com abdução e elevação a cerca de 130º e rotações limitadas (mais rotação interna); consegue levar a mão direita à nuca, ao ombro oposto e à região lombar, com ligeira dificuldade; cotovelo e punho com boas mobilidades; pronosupinação do punho conservada e simétrica (art. 46º, 55º a 59º, 68º e 69º da p.i.);

32. Em consequência do acidente o autor: a) sofreu um período de Défice Funcional Temporário Total de 9 dias; b) sofreu um período de Défice Temporário Parcial de 133 dias; c) sofreu um período de Repercussão Temporária na Actividade Profissional Total de 142 dias; d) sofreu um quantum doloris de grau 4, numa escala de gravidade crescente de 1 a 7; e) sofre de Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 3 pontos, compatível com o exercício da actividade habitual, mas implica esforços suplementares ligeiros; f) sofre Dano Estético Permanente de grau 2, numa escala de gravidade crescente de 1 a 7; h) sofre de Repercussão Permanente nas Actividades Desportivas e de Lazer de grau 2, numa escala de gravidade crescente de 1 a 7 (art. 46º, 55º a 59º, 68º e 69º da p.i.); 33. O autor poderá sofrer, no futuro, de complicação de sindesmoplexia efectuada no tratamento da fractura (cfr. aditamento por despacho proferido a 09/10/2019 (fls. 182 dos autos);

34. Antes do acidente, o autor era um homem sadio e escorreito, sem nenhuma limitação profissional (art. 48º da p.i.);

35. À data do acidente, exercia as funções de ……… e ……… na empresa “I………….. – Serralharia Ferro Alumínio, Lda.”, sediada na Zona Industrial …………, Pavilhão ……., em ………, concelho de …………., vínculo profissional que ainda hoje se mantém (art. 49º da p.i.);

36. O autor era um profissional reputado e considerado por todos os colegas de trabalho, subordinados e clientes (art. 50º da p.i.);

37. E tinha gosto e prazer nas tarefas que desempenhava, por se sentir um profissional bem preparado e saber que as exercia com competência e brio profissional (art. 51º da p.i.);

38. No exercício dessas funções, o autor auferia um rendimento mensal de € 721,50 (setecentos e vinte e um euros e cinquenta cêntimos), assim repartidos: a) a quantia de € 650,00 (seiscentos e cinquenta euros), a título de retribuição base; b) a quantia diária de € 3,25 (três euros e vinte e cinco cêntimos), a título de subsídio de alimentação (art. 52º da p.i.);

39. Em consequência do acidente e das lesões sofridas, o autor sente dores no ombro direito quando faz esforços mais acentuados (art. 57º da p.i.).

40. Enquanto ……….., actividade que ainda mantém, cabe ao autor, entre outras tarefas, a fabricação e colocação de portões, portas e janelas, a montagem de vidros que, atentas as dimensões e material com que são fabricados, são pesados (art. 60º e 61º da p.i.);

41. No exercício da respectiva actividade profissional, o autor tem de transportar de um lado para o outro, com a força das mãos e braços, máquinas do seu ofício, bem como pegar, erguer, aguentar/segurar os objectos produzidos e colocá-los no sítio onde se destinam a ser aplicados (art. 62º da p.i.);

42. A manipulação de tais equipamentos requer força de mãos, esforços de preensão e manipulação ao nível dos membros superiores e implica a adopção de posturas que exigem flexão, pressão e força dos membros superiores (art. 63º e 64º da p.i.);

43. No tratamento médico, de enfermagem, e de reabilitação dos ferimentos causados pelo acidente sofrido, o autor despendeu a quantia global de € 66,75 (sessenta e seis euros e setenta e cinco cêntimos), assim discriminada: a) A quantia de € 28,00 (vinte e oito euros), a título de Taxa Moderadora no Centro de Saúde ACES …….. – USF ……..; b) A quantia de € 38,75 (trinta e oito euros e setenta e cinco cêntimos), a título de Taxa Moderadora no Centro Hospitalar …………, EPE (art. 73º da p.i.);

44. O tratamento médico e medicamentoso a que o autor foi sujeito no Centro Hospitalar ………., às lesões sofridas no acidente de viação em apreço, importou na despesa de € 1.718,77 (mil setecentos e dezoito euros e setenta e sete cêntimos), que o autor foi notificado a pagar (art. 74º e 26º, respectivamente, das p.i. dos autos principais e dos autos apensos);

45. Por força do sinistro, ficaram danificados o fato, as luvas e as botas que o Autor envergava, bem como o capacete, um telemóvel de marca iPhone e outro de linha branca que transportava, no valor total de € 1.650,00 (mil seiscentos e cinquenta euros), assim discriminado: capacete € 200,00; botas € 160,00; fato € 800,00; luvas € 40,00; telemóvel Iphone € 400,00; telemóvel linha branca € 50,00 (art. 76º da p.i.);

46. O motociclo com a matrícula …..-CD-….. sofreu os danos cuja reparação ascendeu a € 5.085,34 (cinco mil e oitenta e cinco euros e trinta e quatro cêntimos) (art. 77º e 78º da p.i.);

47. No acidente ficaram destruídos a carenagem, o radiador, ambas as bainhas, jante, o “t” da forqueta, os discos do travão, a viseira e o guarda-lamas dianteiro do motociclo com a matrícula …..-CD-…. (art. 39º da contest.);

48. O custo da reparação do ….-CD-…. foi estimado, sem desmontagem, em € 8.314,03, podendo aumentar em cerca de 10% após a desmontagem (art. 39º e 40º da contest.);

49. O motociclo …..-CD-….. é da marca …….., modelo ……., ………., do ano de ………., com cilindrada de 1000 cc e tinha percorrido, à data do acidente, cerca de 25.000 Km (art. 84º da p.i., 41º e 42º da contest.);

50. Após o acidente, o salvado foi avaliado em € 902,00 (art. 45º da contest.);

51. A ré considerou economicamente desaconselhável a reparação do ....-CD-… (art. 46º da contest.);

52. À data do sinistro, o valor de mercado do ….-CD-…., atentas as suas características de marca, modelo, série, ano de fabrico e quilómetros percorridos era de € 5.500,00 (cinco mil e quinhentos euros) (art. 85º da p.i., 43º e 44º da contest.);

53. Em consequência do embate sofrido, o …..-CD-…. ficou imobilizado na via e impedido de circular desde então (art. 86º da p.i.);

54. Por precisar do motociclo para as suas deslocações, o autor mandou proceder à sua reparação em …./…./2017, pagando o custo correspondente (art. 87º da p.i.);

55. O ….-CD-…. era diariamente utilizado pelo autor para se deslocar de casa para o seu local de trabalho e, bem assim, sozinho ou acompanhado, nas suas deslocações de lazer, aos fins-de-semana e em férias (art. 88º da p.i.);

56. Em virtude do acidente, o autor teve de passar a usar o automóvel de que também é proprietário nas suas deslocações quotidianas (art. 89º da p.i.);

57. O autor tinha e tem gosto na sua mota (art. 93º da p.i.);

58. A circunstância de não poder utilizar a viatura causou ao autor frustração e desgosto (art. 94º da p.i.);

59. O custo do aluguer de um motociclo com as mesmas características do ….-CD-…., por período superior a 30 dias, é não inferior a € 50,00 (cinquenta euros)/dia (IVA incluído à taxa em vigor) (art. 55º da p.i.);

60. No momento do acidente, durante o período de internamento hospitalar, com a intervenção cirúrgica, período pós-operatório e tratamentos subsequentes, o autor sentiu dores e sofrimento físico, quantificáveis em 4 numa escala de 7 pontos (art. 99º da p.i.);

61. O autor sentiu desgosto pelas marcas visíveis de escoriações e fracturas e sente desgosto pela marca visível e permanente da cirurgia a que foi submetido, em partes do corpo diariamente expostas e notadas pelos outros – como o rosto e o membro superior (art. 100º e 103º da p.i.);

62. O autor sente desgosto pelas sequelas definitivas e pelo Défice Funcional Permanente de padece (art. 102º da p.i.);

63. Entre BB, na qualidade de tomadora, e a ré Lusitânia, na qualidade de seguradora, foi celebrado o contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, válido e eficaz à data do acidente, titulado pela apólice nº ………, junta a fls. 86 e ss., tendo por objecto o veículo de matrícula ….-….-VB;

64. O Centro Distrital de …….. do Instituto da Segurança Social, I.P. pagou a AA a quantia de € 1.177,69 (mil, cento e setenta e sete euros e sessenta e nove cêntimos), a título de subsídio de doença referente ao período de …./…./2015 a …./…../2016 (cfr. certidão junta a fls. 50V);

65. O autor nasceu a …./…./1974 (cfr. certidão de assento de nascimento junta a fls. 108 dos autos).

Foram considerados factos não provados:

1. Nas descritas circunstâncias de tempo e lugar, o autor conduzia o ciclomotor ….-CD-…. atento ao restante trânsito da estrada e à sua condução (art. 6º e 7º da p.i.);

2. O autor certificou-se, antes de iniciar a manobra descrita nos factos provados números 19 e 20, que à retaguarda nenhum outro veículo iniciara ou sinalizara a intenção de ultrapassagem (art. 11º da p.i.).

3. E, bem assim, que à sua frente nenhum veículo iniciara ou sinalizara a intenção de viragem à esquerda e que nenhum veículo que circulava sentido contrário iniciara ou sinalizara a intenção de ultrapassagem (art. 12º da p.i.).

4. No instante em que o ….-CD-…. já tinha ultrapassado mais de metade do veículo automóvel ….-….-VB, foi embatido na sua metade direita pelo VB (art. 16º e 24º da p.i.).

5. BB realizou a manobra descrita no facto provado nº 13 súbita e repentinamente, sem sinalizar luminosamente o intento de mudar de direcção e sem reduzir a velocidade do VB (art. 17º e 21º da p.i.);

5-A. A condutora do veículo ….-….-VB não se certificou, antes de iniciar a manobra descrita nos factos provados anteriores, da aproximação de outros veículos à sua retaguarda, nomeadamente do autor que vinha em ultrapassagem pela metade esquerda da faixa de rodagem (art. 19º, 22º e 23º da p.i.); [Aditado pela Relação; eliminação do facto provado 16.]

6. O espelho retrovisor lateral esquerdo do VB não permitia a BB ver o trânsito existente à sua retaguarda (art. 20º da p.i.);

7. BB conduzia, na ocasião do acidente, com atenção ao trânsito (art. 5º da contest.);

8. Ao aproximar-se do entroncamento da Rua ………, a condutora do veículo VB diminuiu a velocidade do seu veículo (art. 9º da contest.);

9. [Eliminado pela Relação]

10. Quando a condutora do VB reduziu a velocidade, os veículos que circulavam à sua retaguarda reduziram a velocidade a que circulavam (art. 13º da contest.);

11. Antes de dirigir a frente do VB para a metade esquerda da faixa de rodagem, em direcção à Rua ……….., BB verificou que não se aproximava qualquer veículo a circular em sentido contrário e que a metade esquerda da faixa de rodagem estava livre (art. 14º da contest.);

12. O VB foi embatido pelo motociclo do autor quando já tinha a frente a entrar na Rua ……… (art. 15º da contest.);

13. O autor não atentou na manobra de mudança de direcção para o lado esquerdo que o veículo VB já efectuava e que atempadamente sinalizara com o sinal de pisca-pisca do lado esquerdo (art. 13º da contest.);

14. [Eliminado pela Relação]

15. Em virtude do sinistro ocorrido, o autor não consegue segurar e transportar as máquinas necessárias à sua actividade, carecendo da ajuda de outros colegas de trabalho para o efeito, tem muita dificuldade em pegar, elevar e segurar portões, janelas e portas que é sua função aplicar nos locais a esse fim destinados, não o podendo fazer sem a ajuda de colegas de trabalho (art. 65º e 66º da p.i.);

16. O autor tem também dificuldades em trabalhos que exijam uma maior força e pressão dos dedos, como seja o da colocação de borrachas nas janelas e ficção, sendo que neste tipo de trabalho, quando o executa, tem de o suspender varias vezes para descansar, o que não sucedia antes do sinistro (art. 67º da p.i.);

17. As sequelas resultantes do acidente são incompatíveis com o exercício da actividade habitual de ……….. do autor que foi relegado para execução de tarefas menos exigentes do ponto de vista físico, limitando-se a ajudar os seus colegas e a transportar equipamento leve (art. 68º da p.i.);

18. Em virtude do sinistro, o autor não consegue efectuar trabalhos que impliquem erguer, aguentar o peso e transportar com a força das mãos os diferentes tipos de matérias-primas, máquinas, equipamentos, objectos e produtos finais próprios da respectiva profissão que importem esforço dos braços e/ou lombar (art. 70º da p.i.);

19. O autor é acometido diariamente de dores lombares e nos membros superiores, as quais se intensificam com movimentação corporal e que apenas são ultrapassadas com a toma frequente de analgésicos (art. 71º da p.i.);

20. Em consequência do acidente e das lesões sofridas, o autor mantém dores persistentes no ombro direito, agravadas por mudanças climáticas e em decúbito lateral direito (art. 57º da p.i.).

21. O uso do veículo automóvel pelo autor, nas suas deslocações, implica maior gasto de combustível e o dispêndio de mais tempo em deslocações (art. 90º da p.i.);

22. O autor viu-se obrigado a alterar a planificação dos seus horários, levantando-se mais cedo e chegando a casa mais tarde do que acontecia antes do acidente (art. 91º da p.i.);

23. A condição física actual do autor é fonte de angústia, vergonha, baixa autoestima e complexos de inferioridade (art. 103º da p.i.);

24. Em virtude das referidas lesões, o autor é acometido de dores frequentes no membro superior direito, agravadas por mudanças climáticas, esforços mais acentuados e posicionamento em decúbito lateral direito –o que lhe importa a toma recorrente de analgésicos (art. 104º da p.i.);

25. Para além disso, o autor tem dificuldade em virar-se na cama durante a noite, o que lhe afecta a qualidade do sono (art. 105º da p.i.);

26. A circunstância de estar frequentemente acometido por dores e ter dificuldade em dormir tornou o autor numa pessoa mais irritável, impaciente, com tendência sorumbática e com menos disponibilidade para as interacções familiares e sociais (art. 106º da p.i.);

27. A ré foi notificada pelo CH…… a pagar o valor descrito no facto provado nº 44.

3. O direito aplicável

3.1. Sindicação do art. 662º e aplicação dos arts. 674º, 3, 2ª parte, e 682º, 3, do CPC quanto à decisão da matéria de facto 

3.1.1. Na vertente adjetiva contemplada pelo art. 674º, 1, b), do CPC, está no âmbito do poder cognitivo do STJ o controlo dos parâmetros adoptados pela Relação na reapreciação da decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal de 1.ª instância, nos termos do art. 662º, 1, do CPC. Ou seja, averiguar se, ao conversar ou alterar/aditar a matéria de facto considerada provada e não provada pela 1.ª instância, o acórdão da Relação desrespeitou a lei processual que estabelece os pressupostos e os fundamentos em que se deve mover a reapreciação da prova. No entanto, esta sindicação tem como limite inexorável a irrecorribilidade imposta pelo art. 662º, 4, dirigida à actuação em 2.º grau de jurisdição da ponderação e crítica da prova de apreciação livre.

O Recorrente insurge-se contra o acórdão recorrido uma vez que “proferiu decisão contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos que devesse ser corrigida” e, ademais, sem “bases sólidas e objetivas que lhe permitissem alterar os factos fixados na sentença”.
Vejamos.

O acórdão recorrido – no que mais interessa, relativamente à matéria de facto provada – aditou o facto provado 12-A. (por eliminação do anterior facto não provado 9.), alterou o facto provado 7. e eliminou o facto provado 16. (incluindo-o como facto não provado 5-A.).

Assim discorreu:
      
“- Facto provado nº 16

Quanto à prova referente à dinâmica do acidente temos apenas as declarações de parte do autor (não inteiramente coincidentes com o alegado na petição), o depoimento da testemunha BB, condutora do veículo de matrícula ….-…..-VB, o teor da participação do acidente onde constam as declarações dos condutores colhidas logo após o acidente e o croqui e as fotos juntas aos autos (que mostram o posicionamento final dos veículos e os danos sofridos por estes).

Face ao referido pelos dois condutores, contraditório no que concerne ao facto da condutora se ter ou não certificado da aproximação de outros veículos na sua rectaguarda, entendemos que não é de considerar provado este facto nº 16. Com efeito, e desde logo, sendo um facto alegado pelo autor incumbia-lhe a sua prova, o que o mesmo não fez, sendo que não aludiu sequer a este facto nas suas declarações, nem se vislumbra como pudesse atestar que a condutora não adoptou tal comportamento. Acresce que tal facto foi negado por esta num depoimento que foi mais sereno, desinteressado e coincidente com as suas declarações à PSP, razões pelas quais merece mais credibilidade. O facto de o espelho lateral esquerdo do VB estar partido na base e seguro com fita-cola não invalida que, através do mesmo, a mesma pudesse ver a rectaguarda. E mesmo tendo olhado para trás é perfeitamente possível não ter visto o autor que ainda não teria iniciado a ultrapassagem.

Assim, é de determinar a eliminação deste facto provado e a sua inclusão na matéria de facto não provada sob o nº 5-A.

Pelas mesmas razões que conferem credibilidade ao depoimento da condutora do VB afigura-se-nos ser de dar como provado que a mesma fez “fez pisca” pelo que é de eliminar o facto não provado nº 9 e proceder à sua inclusão nos factos provados sob o nº 12-A sendo de manter o facto não provado nº 5.

- ponto 7 dos factos provados

Atentas as declarações da condutora do VB que referiu que o motociclo “vinha com força”, os danos significativos no automóvel, bem como a extensão de danos no motociclo (constantes no ponto 47 dos factos provados e cuja reparação importou em mais de € 5.000,00) afigura-se-nos que fica demonstrado que o motociclo vinha animado de velocidade seguramente superior a 50 km/h. Acresce que, se a condutora seguia a cerca de 40 km/h, o motociclo, para ultrapassar os veículos que o precediam tinha necessariamente que circular a uma velocidade superior (e não ligeiramente superior) que permitisse fazer tal manobra.

Pelo exposto, este ponto passa a ter a seguinte redacção:

“7. Nas descritas circunstâncias de tempo e lugar, o autor conduzia o motociclo ….-CD-….. pela Avenida …….., atento o sentido …….. – …….. em que circulava, a uma velocidade não concretamente apurada, mas superior a 50 km/hora (art. 6º e 7º da p.i.);”.
     Consequentemente é de eliminar o ponto 14 dos factos não provados.”

Daqui resulta que o acórdão recorrido procedeu à análise da prova relevante, nomeadamente documental, testemunhal e depoimentos/declarações de parte sem valor confessório, utilizando, mesmo que sumariamente, um método relacional, dotado de crítica racional e alinhando o conjunto factual na sua globalidade. Também recorre a presunção judicial ou natural para levar a cabo a alteração do facto provado 7.. Não se demitiu nem se refugiou em critérios imprecisos nessa análise, antes se realiza uma convicção própria, reflectida na forma e nas razões com que se funda a modificação e aditamento da matéria de facto. Assim se corporizou e assumiu a 2.ª instância como um verdadeiro e próprio segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise, ainda que sem as virtualidades óbvias da 1.ª instância, mas com autonomia volitiva e decisória nessa sede, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostraram acessíveis com observância do princípio do dispositivo[1]. Regendo-se no domínio da livre apreciação da prova e sem se vislumbrar que tenha desrespeitado a força plena de qualquer meio de prova, imposta por regra vinculativa extraída de regime do direito probatório material – logo, actuação insindicável nos termos do art. 662º, 4, do CPC.
Por outro lado – e esta é uma faceta crítica do controlo adjectivo-processual do art. 662º, 1, do CPC –, é manifesto que a fundamentação trazida pelo acórdão recorrido não se esvaiu em considerações genéricas ou alusões vagas à tarefa de reapreciação fáctica para concluir sobre o mérito de tal impugnação; antes deu-se cumprimento aos princípios reitores do art. 662º, 1 («deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa»), em ligação com o art. 607º, 4 e 5, do CPC.

Improcedem, assim, as Conclusões 3. a 8. e 16.

3.1.2. O preenchimento do art. 674º, 3, 2ª parte, do CPC («O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.») é susceptível de ser convocado em revista nos termos do art. 682º, 2, do CPC – «A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674º.» –, como hipótese residual em face da regra de cognição do STJ prevista pelo art. 682º, 1, do CPC – «Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado.» Ou seja, excepcionalmente (ou, se quisermos, muito limitadamente), a revista pode incidir sobre a reapreciação da matéria de facto considerada pela Relação se for invocada a violação de norma legal que exija prova vinculada para a existência do facto ou norma legal que fixe a força probatória de determinado meio de prova, considerados como vícios de direito em sede de direito probatório a conhecer no âmbito dos poderes do STJ.

Assim posto, em relação aos factos que resultem da livre apreciação da prova, o Supremo não tem qualquer possibilidade de os reapreciar em sede de recurso de revista.
Não obstante.
Tem sido jurisprudência constante do STJ que, por via da válvula de escape residual de reapreciação da matéria de facto prevista no referido art. 674º, 3, 2ª parte, amparada no art. 682º, 2, 2.ª parte, isto é, no domínio do erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais relevantes, a revista possa servir legitimamente para controlar o uso da construção de presunções judiciais utilizadas pelas instâncias, tendo em vista verificar a violação de norma legal (nomeadamente os arts. 349º e 351º do CCiv.), a sua coerência lógica e a fundamentação probatória de base quanto ao facto conhecido[2].

Neste encalce, do objecto recursivo consta o ataque à presunção judicial operada pelo acórdão recorrido, no que respeita à velocidade a que circulava o motociclo conduzido pelo Autor no momento da colisão com o veículo automóvel segurado pela Ré, no que respeita à alteração do facto provado 7. – cfr. Conclusões 9. a 11.
Pois bem.
A presunção consiste na dedução, na inferência, no raciocínio lógico por meio do qual se parte de um facto certo, provado ou conhecido (“base da presunção”), e se chega a um facto desconhecido (“facto presumido”) – art. 349º do CCiv. A presunção judicial, natural ou de facto funda-se nas regras práticas da experiência e da probabilidade, ou seja, nos ensinamentos decorrentes da observação (empírica) dos factos[3].

A possível intervenção do STJ em sede de revista no campo das presunções judiciais reside apenas no âmbito da identificação de vícios na formação desse juízo dedutivo (ou, numa outra perspectiva, indutivo), susceptíveis de ter afectado a estrutura lógica da dedução ou indução reconstrutiva, através da qual se permite comprovar a realidade de um facto a partir da prova da existência de um outro facto (facto-base, instrumental ou indiciário). Se – e apenas só se – a presunção não for legalmente admitida (artigo 351º do CC), se partir de factos não provados (artigo 349º do CC) ou se padecer de evidente ilogismo, o STJ pode invalidar o uso da presunção.
Será que usou o acórdão recorrido desse método dedutivo-empírico para definir a alteração do facto provado 7. de forma ilegítima?
Esta é a passagem relevante:
“Atentas as declarações da condutora do VB que referiu que o motociclo “vinha com força”, os danos significativos no automóvel, bem como a extensão de danos no motociclo (constantes no ponto 47 dos factos provados e cuja reparação importou em mais de € 5.000,00) afigura-se-nos que fica demonstrado que o motociclo vinha animado de velocidade seguramente superior a 50 km/h. Acresce que, se a condutora seguia a cerca de 40 km/h, o motociclo, para ultrapassar os veículos que o precediam tinha necessariamente que circular a uma velocidade superior (e não ligeiramente superior) que permitisse fazer tal manobra.”

Não vislumbramos aqui que o facto presumido – “velocidade seguramente superior a 50 Km/h” – esteja ferida por um manifesto ilogismo ou pela consideração indevida de um facto conhecido tendo em conta a sua fundamentação probatória. Em especial, cremos que o acórdão recorrido (i) ao referir-se aos danos produzidos no motociclo – baseados no facto provado 47., também em conjugação com os factos provados 46. e 48., devidamente documentados –, (ii) aos danos sofridos pelo automóvel, a que se reporta o facto provado 15. (sem os enunciar, porém) e (iii) à velocidade a que seguia o veículo automóvel com que o motociclo colidiu – baseado no facto provado 10. –, assim como de facto instrumental que resulta da instrução da causa (declarações da condutora do veículo segurado pela Ré), nos termos do art. 5º, 2, a), do CPC, expressamente assumidos pela fundamentação do acórdão recorrido para construir a presunção que utilizou para a alteração do facto provado 7., são suficientes para que a dedução lógica e fundada na experiência e probabilidade não mereçam censura, à luz do que exige os arts. 349º e 351º do CCiv., e em cumprimento do ónus de exposição, na motivação da decisão, do percurso que o conduziu à formulação do juízo probatório (neste caso fundado na referida presunção) sobre os factos essenciais (art. 607º, 4, 2ª parte, ex vi arts. 663º, 2, 679º, CPC)[4].

3.1.3. Note-se ainda que, nas Conclusões 12. a 15., o Recorrente alega que “a decisão de dar não provado o facto do ponto 16 está em contradição com os pontos 7, 8 e 11 dos factos não provados”. Por isso, pretende que em sede de revista se revogue a decisão de eliminação do facto provado n.º 16. e se promova a sua inclusão como facto provado não provado 5-A. e se proceda à sua repristinação como facto provado, nomeadamente porque, na perspectiva do Recorrente, “não existindo outros elementos de prova que corroborem ou confiram credibilidade às declarações da condutora BB no que ao acionamento do pisca e aproximação do eixo longitudinal diz respeito, pelo contrário tais declarações são contraditadas pelos depoimentos do autor e da testemunha CC, não poderia o Tribunal da Relação ter precedido à alteração da matéria de facto neste ponto, declarando axiomaticamente que o depoimento da mesma lhe pareceu ser mais isento, desinteressado; pelo que ao fazê-lo incorreu em verdadeiro erro de direito na valoração crítica feita da prova”.

No entanto, desta alegação resulta que – como se viu previamente – estamos sempre no âmbito de apreciação de prova livre, em exercício legítimo da Relação nos seus poderes de reapreciação, insindicável nos termos do art. 662º, 4, do CPC, estabilizando-se por esta via como matéria de facto dada como assente pelas instâncias.

Por seu turno, não julgamos estar, no que respeita ao comportamento de ambos os condutores na dinâmica factual antes da colisão, perante uma reponderação que tenha afectado de forma essencial a congruência factual subjacente ao litígio e, com isso, tenha inviabilizado a correcta aplicação do direito – o que poderia, numa última frente de excepcionalidade de tratamento da matéria de facto fixada pelo acórdão da Relação impugnado, atribuir o exercício da competência do art. 682º, 3, do CPC (devolução ao tribunal recorrido «quando o Supremo Tribunal de Justiça entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito»).

De uma banda, a eliminação do facto 16. (“A condutora do veículo ….-….-VB não se certificou, antes de iniciar a manobra descrita nos factos provados anteriores, da aproximação de outros veículos à sua retaguarda, nomeadamente do autor que vinha em ultrapassagem pela metade esquerda da faixa de rodagem.”) não retira coerência ao acervo factual constante dos factos provados 7. (alterado pela Relação) a 15., incluindo o aditado facto provado 12-A., quanto à dinâmica sequencial do acidente.

De outra, não se vê dissonância, na perspectiva da análise crítica feita pela Relação da prova pertinente, na conjugação dos factos não provados 5-A. (anterior facto provado 16.) com os factos não provados 7, 8 e 11, sempre na perspectiva de análise da descrição do comportamento da condutora do veículo segurado pela Ré.

Improcedem, por isso, também por esta perspectiva, as Conclusões 12. a 15.

3.2. A responsabilidade pelo acidente e consequentes danos causados ao Autor

3.2.1. Sobre esta questão, as instâncias chegaram a resultados decisórios que não coincidiram – o que, desde já, se intui como compreensível em razão da significativa modificação da matéria de facto sobre a dinâmica e intervenção dos condutores dos veículos envolvidos no acidente. Tal originou que a divergência das instâncias radicasse na apreciação da imputação e da culpa pela causação do acidente, questão que, em sede de matéria de direito, é a única submetida a apreciação nesta revista.

*

Para a 1.ª instância, num quadro factual distinto do que foi ponderado pela Relação, após as modificações já analisadas, estas foram as conclusões essenciais:

— a “condutora do veículo segurado não se certificou, antes de iniciar a manobra de mudança de direcção, da aproximação de outros veículos à sua retaguarda, nomeadamente do Autor que vinha em ultrapassagem pela metade esquerda da faixa de rodagem. Ao assumir a inesperada trajectória de atravessamento da metade esquerda da faixa de rodagem, sem verificar previamente se o podia fazer sem embaraço para o restante trânsito em circulação pela faixa de rodagem, nomeadamente do que se processava à sua retaguarda, a condutora do veículo segurado pela Ré deu causa ao acidente, na medida em que bloqueou a linha de trânsito que o motociclo do Autor tomava, durante a ultrapassagem aos veículos que seguiam à sua frente em marcha mais lenta, entre os quais o segurado pela Ré. A condutora do veículo de matrícula VB, segurada pela Ré, agiu assim culposamente, desrespeitando o dever de cuidado que um cidadão médio e diligente, na sua concreta situação teria usado (cfr. n.º 2, do art. 487º, do C.C.) violando simultaneamente o disposto nos artigos 35º e 44º, n.º 1, ambos do Código da Estrada”;

— “Sucede que também o Autor não agiu com cuidado que se lhe impunha, violando o disposto nos artigos 13º, n.º 1, 38º, n.os 1 e 3, 41º, n.º 1, al.ª c), do Código da Estrada, na medida em que iniciou manobra de ultrapassagem em cadeia dos dois veículos que precediam e circulavam à retaguarda do veículo VB, sendo sua intenção ultrapassar também este, próximo de um entroncamento e onde a faixa de rodagem dispunha apenas de duas vias de trânsito, uma para cada sentido, sendo dividida por uma linha longitudinal contínua que os separa, manobra que lhe estava vedada e que também foi causal do acidente, na medida em que a colisão do CD no VB só ocorreu porque aquele se encontrava em ultrapassagem a outros veículos que circulavam no mesmo sentido de marcha, transitando pelo espaço da faixa de rodagem situado à esquerda destes.”;

— “Deste modo, há uma repartição da culpa causal do acidente entre o Autor e a condutora do veículo segurado pela Ré (cfr. art. 506º, n.º 2 do C.C.), que se considera ser de igual monta para cada um deles.”  

Após reapreciação e alteração da matéria de facto, com destaque para a eliminação do facto provado 16. e o aditamento do facto provado 12-A., o acórdão recorrido chegou a outra conclusão.

Vejamos como alicerçou a isenção de qualquer responsabilidade do condutor do veículo segurado pela Ré e a atribuiu em exclusivo ao Autor.  

“Apurou-se que, no dia …./…./2015, pelas 11H45, na Avenida ………., ………., ocorreu um acidente de viação que se consubstanciou na colisão entre o motociclo da marca ………., com a matrícula …..-CD-…., pertencente e conduzido pelo aqui autor e o veículo ligeiro de passageiros de marca …….., com a matrícula ….-…..-VB pertencente e conduzido por BB.

Da matéria de facto dada como provada resulta que a condutora do VB seguia a uma velocidade de cerca de 40 km/h, pretendendo mudar de direcção para a esquerda e passar a circular na R. ……….., accionou o sinal luminoso de pisca-pisca do lado esquerdo do seu veículo, aproximou o veículo do eixo da via e iniciou o atravessamento da hemifaixa esquerda, onde o seu veículo foi embatido pelo motociclo na parte compreendida entre a porta do condutor e ao pára-choques.

Assim, não se vislumbra que a mesma tenha violado qualquer norma estradal, designadamente a obrigação de se abster de actos que prejudiquem o exercício da condução com segurança, de assinalar a mudança de direcção, de regular a velocidade do veículo à manobra que pretendia efectuar, à aproximação de um entroncamento e ao local, de se aproximar do eixo da via (art. 11º nº 2, 21º nº 1, 24º, 25º nº 1 f), 27º nº 1, 44º, nº 1 do Código da Estrada (C.E.), aprovado pelo Dec.-Lei nº 44/2005 de 23 de Fevereiro).

Acresce que o seu comportamento não é culposo uma vez que, em face das circunstâncias específicas do caso, não se vê como devia e podia ter agido de outro modo de molde a evitar o embate.

No que concerne à conduta do autor verificamos que este, animado de velocidade superior a 50 km/h, accionou o pisca, iniciou manobra de ultrapassagem aos veículos que o precediam transpondo a linha longitudinal contínua e passando a circular na hemifaixa contrária embateu frontalmente no veículo VB que estava a mudar de direcção à esquerda.

Violou a obrigação de não transposição da linha longitudinal contínua resultante do disposto no art. 6º, nº 1 do C.E. e art. 60º nº 1 M1 do Decreto Regulamentar nº 22-A/98 de 01 de Outubro, bem como do art. 41º nº 1 c) do C.E. e violou a obrigação de adequar a velocidade ao local e ao tráfego resultante dos art. 24º nº 1, 25º, nº 1 c) e 27º nº 1 do C.E.. Acresce que não adoptou o dever de cuidado imposto pelos art. 35º e 38º nº 1, nº 2 a) do C.E..

(…)

Assim, se é certo que a prática pelo autor das referidas contra-ordenações no momento do embate – ultrapassagem num local proibido e excesso de velocidade que não permitiu parar no espaço livre e visível à sua frente – não responsabiliza necessária e automaticamente o mesmo pela produção do acidente, no caso em apreço, tais condutas ilícitas correspondem a condutas passíveis de causarem acidente do tipo que a lei quis prevenir e evitar ao tipificá-las como contra-ordenação e revelam-se causas adequadas à produção dos danos verificados.

O autor não logrou afastar esta presunção de culpa.

Pelo exposto, o acidente é apenas imputável ao lesado autor o que, nos termos do art. 505º do C.C., exclui a responsabilidade da condutora do veículo VB procedendo, deste modo, a apelação.”

                       

Aqui chegados, importa tomar posição sobre a contribuição que cada um dos condutores revelou para a ocorrência da colisão dos veículos, para se aferir se a culpa/imputação do acidente foi exclusiva do condutor do motociclo ou se a responsabilidade é de repartir por ambos os condutores envolvidos e em que medida.


3.2.2. Esta apreciação não encontra obstáculo na lei.
O STJ, como tribunal de revista, aplica definitivamente aos factos fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado – art. 682º, 1, do CPC –, cabendo às instâncias, salvo as excepções conhecidas de conhecimento de matéria de facto – alegadas e inclusivamente analisadas no caso, sem sucesso –, a fixação dos factos disponíveis para a subsunção jurídica pertinente.
É jurisprudência consensual deste STJ que, no que toca aos acidentes causados por veículos de circulação terrestre, está subtraída à apreciação e sindicação em último grau as questões relativas à dinâmica do acidente e ao modo discursivo como ele evoluiu e se consumou como evento mais ou menos complexo, uma vez que se integram tais questões nos parâmetros da matéria de facto. Está igualmente fora dos poderes de cognição do STJ extrair ilações ou conclusões que dos factos provados possam retirar-se sobre essa dinâmica do acidente – como pretende o Recorrente, nomeadamente nas Conclusões 20., 22. e 27.–, as quais cabem, em exclusivo, às instâncias, em particular ao tribunal da Relação que, em sede dos factos, julga por regra em último grau.
Não obstante, é também entendimento pacífico que, assente essa matéria factual, é matéria de direito sindicável pelo STJ em revista o “juízo que envolve a determinação e aplicação de regras legais, pois quando a lei torna dependente da inobservância de deveres gerais de diligência a responsabilidade do agente, a decisão sobre essa observância ou inobservância traduz-se na aplicação de uma norma legal”[5] – como é, portanto, a determinação e graduação da responsabilidade dos condutores de veículos, fundada na ilicitude derivada da violação de deveres jurídicos prescritos em leis ou regulamentos (maxime, deveres objectivos de cuidado), nomeadamente impostos pelo Código da Estrada (DL 114/94, de 3 de Maio) e regulamentação conexa em sede de “direito estradal”. Para essa determinação e sua graduação é, portanto, legítima a intervenção do STJ para verificar “se o (concreto) agente actuou com o grau de diligência que lhe era exigível para evitar o dano, e que a lei fixa fazendo apelo àquela que (abstractamente) teria um homem médio, colocado nas circunstâncias concretas do caso”[6].

3.2.3. Para o juízo de imputação a fazer, é nevrálgico mobilizar o encadeamento determinado pelos factos provados 2. a 5., 7. e 9. a 22. (com eliminação do 16. pelo acórdão recorrido, como vimos, e sem considerar, para este efeito, o facto provado 17.):

— “A Avenida …………, nas imediações do local por onde circulavam os veículos tripulados pelo autor e por BB e atento o seu sentido de marcha, forma um entroncamento à esquerda com a Rua …………”;

— “No local do embate, a Avenida ………… configura uma estrada com dois sentidos de trânsito, sem separador central”;

— “Nas zonas da Avenida ……….. imediatamente anterior e posterior ao local do embate, os dois sentidos de trânsito são divididos por uma linha longitudinal contínua aposta no meio da faixa de rodagem, só interrompida no sítio do aludido entroncamento com a Rua ………, onde a linha divisória é descontínua”

— “No local do acidente há casas e estabelecimentos comerciais a marginar a via, encontrando-se apostos nas respectivas margens, antes do local, em ambos os sentidos de trânsito, sinais indicadores de velocidade máxima permitida de 50 km/hora”;

— “Nas descritas circunstâncias de tempo e lugar, o autor conduzia o motociclo …-CD-…. pela Avenida ………., atento o sentido ………. – ……….. em que circulava, a uma velocidade não concretamente apurada, mas superior a 50 km/hora”;

“O veículo automóvel …..-…..-VB, conduzido por BB, seguia à frente do autor, no mesmo sentido de marcha deste”;

“BB conduzia o ….-…..-VB pela metade direita da faixa de rodagem da Avenida ………, atento o sentido de marcha …….-…….. com uma velocidade de cerca de 40 km/hora”;

“Na altura, circulavam à retaguarda do veículo VB mais dois veículos automóveis pela mesma avenida e no mesmo sentido”;

“BB pretendia mudar de direcção para o seu lado esquerdo e passar a circular com o VB pela Rua ……….”;

“Esta condutora accionou o sinal luminoso de pisca-pisca do lado esquerdo do seu veículo e aproximou-se da linha longitudinal contínua que divide as duas metades da faixa de rodagem”;

“Ao chegar ao local do entroncamento com a Rua ………, BB dirigiu a frente do seu veículo para a metade esquerda da faixa de rodagem, em direcção a esta rua”;

E, dessa forma, iniciou o atravessamento da metade esquerda da faixa de rodagem, invadindo e obstruindo a linha de trânsito do ….-…..-17 conduzido pelo autor que naquele momento ultrapassava pela esquerda”;

“Que embateu com a frente do motociclo …..-CD-….. na parte lateral esquerda, desde a porta do condutor até ao pára-choques frontal, do veículo ….-…..-VB, quando ambos se encontravam na metade esquerda da faixa de rodagem atento do seu sentido de marcha”;

“Momentos antes, enquanto circulava naquela avenida, o autor pretendeu ultrapassar com o motociclo …..-CD-…., o ….-…..-VB e os outros dois veículos que precediam no mesmo sentido de marcha”;

“O autor accionou o sinal de mudança de direcção (“pisca”) da esquerda do ….-CD-…, aproximou-se do eixo da via, transpondo-o e passando a circular na faixa de rodagem da esquerda atento o seu sentido de marcha”;

“Iniciando a ultrapassagem em cadeia dos veículos que precediam e circulavam à retaguarda do veículo VB”;

“Sem previamente atentar na proximidade de um entroncamento e na linha longitudinal contínua que dividia as metades da faixa de rodagem”;

“Antes do embate, o autor pisou e transpôs essa linha longitudinal contínua para passar a circular pela metade esquerda da faixa de rodagem”.

           

Assumem igualmente significado para serem aqui atendidos alguns dos factos não provados (1. a 3., 5. a 6.):

“Nas descritas circunstâncias de tempo e lugar, o autor conduzia o ciclomotor ….-CD-…. atento ao restante trânsito da estrada e à sua condução”;

“O autor certificou-se, antes de iniciar a manobra descrita nos factos provados números 19 e 20, que à retaguarda nenhum outro veículo iniciara ou sinalizara a intenção de ultrapassagem”;

“E, bem assim, que à sua frente nenhum veículo iniciara ou sinalizara a intenção de viragem à esquerda e que nenhum veículo que circulava sentido contrário iniciara ou sinalizara a intenção de ultrapassagem”;

“BB realizou a manobra descrita no facto provado nº 13 súbita e repentinamente, sem sinalizar luminosamente o intento de mudar de direcção e sem reduzir a velocidade do VB”;

“A condutora do veículo …-74-…. não se certificou, antes de iniciar a manobra descrita nos factos provados anteriores, da aproximação de outros veículos à sua retaguarda, nomeadamente do autor que vinha em ultrapassagem pela metade esquerda da faixa de rodagem”;

“O espelho retrovisor lateral esquerdo do VB não permitia a BB ver o trânsito existente à sua retaguarda”.

É com base neste encadeamento que se encontra o cerne da inversão do julgado pela Relação, no que toca ao comportamento da condutora do veículo segurado pela Ré, que, sendo excluída a sua ilicitude e culpa, conduziu à seguinte asserção:

“Da matéria de facto dada como provada resulta que a condutora do VB seguia a uma velocidade de cerca de 40 km/h, pretendendo mudar de direcção para a esquerda e passar a circular na R. ………, accionou o sinal luminoso de pisca-pisca do lado esquerdo do seu veículo, aproximou o veículo do eixo da via e iniciou o atravessamento da hemifaixa esquerda, onde o seu veículo foi embatido pelo motociclo na parte compreendida entre a porta do condutor e ao pára-choques. (…) não se vislumbra que a mesma tenha violado qualquer norma estradal, designadamente a obrigação de se abster de actos que prejudiquem o exercício da condução com segurança, de assinalar a mudança de direcção, de regular a velocidade do veículo à manobra que pretendia efectuar, à aproximação de um entroncamento e ao local, de se aproximar do eixo da via (art. 11º nº 2, 21º nº 1, 24º, 25º nº 1 f), 27º nº 1, 44º, nº 1 do Código da Estrada (C.E.), aprovado pelo Dec.-Lei nº 44/2005 de 23 de Fevereiro).

Acresce que o seu comportamento não é culposo uma vez que, em face das circunstâncias específicas do caso, não se vê como devia e podia ter agido de outro modo de molde a evitar o embate.”

           

Ora, considerando os factos que vêm como provados – e é com estes e apenas com estes que poderemos averiguar da subsunção jurídica ao direito aplicável –, não merece proceder a invocação da imputação causal do acidente ao condutor do veículo automóvel ligeiro, com ou sem culpa, tendo por base as regras, demandadas pelo circunstancialismo factual do acidente/colisão, tal como enunciadas, particularmente, nos arts. 11º, 2 («Os condutores devem, durante a condução, abster-se da prática de quaisquer atos que sejam suscetíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança.»), 35º, 1 («O condutor só pode efetuar as manobras de ultrapassagem, mudança de direção ou de via de trânsito, inversão do sentido de marcha e marcha atrás em local e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito.»), e 44º, 1 («O condutor que pretenda mudar de direção para a esquerda deve aproximar-se, com a necessária antecedência e o mais possível, do limite esquerdo da faixa de rodagem ou do eixo desta, consoante a via esteja afeta a um ou a ambos os sentidos de trânsito, e efetuar a manobra de modo a entrar na via que pretende tomar pelo lado destinado ao seu sentido de circulação.»), do Código da Estrada.         
Em particular, desta última injunção – que determina a regra básica de actuação em caso de mudança de direcção para a esquerda: aproximação com antecedência e o mais possível do limite esquerdo da faixa de rodagem e efectuar a manobra pelo lado esquerdo do seu sentido de circulação – é manifestamente inviável asseverar que o condutor do veículo segurado pela Ré, tendo cumprido esse dever – cfr. factos provados 12., 12-A. e 13. –, não tenha agido com a atenção, a cautela e o cuidado (diligência objectiva) que lhe são impostos pelos arts. 11º, 2, e 35º, 1, do Código da Estrada, contribuindo, mesmo que só em parte, para a verificação do acidente – como alega o Recorrente. Sendo manobra de especial risco, a exigir prudência e antecipação da situação de perigo na dinâmica do tráfico rodoviário, comprova-se que essa diligência foi cumprida e, atento o seu sentido de marcha e quando já se encontra com a frente do veículo orientada para a circulação para a rua à esquerda, é embatido pelo motociclo do lesado que circulava no mesmo sentido e em ultrapassagens sucessivas, sendo ainda comprovado que o embate se deu na “parte lateral esquerda, desde a porta do condutor até ao pára-choques frontal, do veículo .....-….-VB, quando ambos se encontravam na metade esquerda da faixa de rodagem atento o seu sentido de marcha”.
Igualmente não resulta do encadeamento factual que essa diligência tenha sido infringida pelo facto de, alegadamente, a ultrapassagem encetada pelo Autor ser anterior à manobra do condutor do veículo segurado pela Ré. Com efeito, a referência feita no facto provado 18. (em que se alude ao início da ultrapassagem do motociclo do Autor a três veículos, sendo o último o veículo segurado pela Ré) a “momentos antes” à conduta descrita do veículo automóvel compreende-se como referida à vontade de ultrapassar os três veículos que tinha à sua frente no mesmo sentido da marcha – o facto prova o momento temporal da pretensão de ultrapassar; a actuação física e mecânica subsequente descreve-se depois (e, portanto, também temporalmente depois) nos factos provados 19. e 20. Por isso, não fica provado que esta ultrapassagem fosse anterior, simultânea ou posterior ao início e execução da manobra de mudança de direcção para a esquerda do condutor do veículo segurado pela Ré e, por isso, implicando que este condutor tivesse que estar ciente da ultrapassagem que se verificava à sua retaguarda para efeitos do cuidado exigível na sua manobra.
Por fim, mesmo que assim fosse – isto é, início da ultrapassagem e ocupação da metade esquerda da faixa de rodagem em momento anterior –, é mister realçar que sempre haveria que considerar a existência de um lapso espacial de circulação na linha de trânsito em que confluíram ambos os veículos, o que torna compatível como razoável – ou, pelo menos, verosímil – o entendimento de que a manobra de mudança de direcção teria sido empreendida com a adequação necessária a uma conduta em conformidade com princípios de cautela e segurança na condução do veículo.
Note-se que, como foi sublimado pelo Ac. do STJ de 6/5/2008, as infracções estradais praticadas pelos intervenientes em acidente de viação podem desligar-se da sua ocorrência; o fundamental é verificar “a gravidade das infracções e a forma determinante, num juízo de causalidade, que as mesmas tiveram na produção do sinistro”[7]. Por isso, no caso dos autos, em toda a dinâmica factual relevante – apenas na exacta medida da sua apreciação para o juízo de imputação e repartição da responsabilidade no acidente – avulta como facto a sublinhar a circunstância de o Autor ter feito a ultrapassagem “sem previamente atentar na proximidade de um entroncamento e na linha longitudinal contínua que dividia as metades da faixa de rodagem” (facto provado 21.) e, em acrescento, ter pisado e transposto essa linha “para passar a circular pela metade esquerda da faixa de rodagem” (facto provado 22.). Ou seja, tal significa que, para além da ilicitude rodoviária-estradal, o Autor lesado, na sua perspectiva de circulação, olvidou a dupla manobra do condutor e do veículo que tinha à sua frente: por um lado, a montante, a colocação do veículo na metade esquerda da faixa de rodagem de ambos os condutores; por outro lado, a jusante, a manobra de circulação no entroncamento, a cargo do condutor do veículo automóvel, tendo em vista assumir a nova rua à esquerda. Ora, nestas circunstâncias, impunha-se que o condutor do motociclo redobrasse a atenção posta na condução de forma a evitar o embate com pessoas ou coisas e, além do mais, moderasse a velocidade – v. o art. 18º, 1, do Código da Estrada («O condutor de um veículo em marcha deve manter entre o seu veículo e o que o precede a distância suficiente para evitar acidentes em caso de súbita paragem ou diminuição de velocidade deste, tendo em especial consideração os utilizadores vulneráveis.»). O que, neste último detalhe, não fez; antes circulou com velocidade superior à máxima permitida – cfr. factos provados 5. e 7. –, o que naturalmente não permitiu conformar com outro critério a sua circulação – repare-se também nas especificidades da via: “No local do acidente há casas e estabelecimentos comerciais a marginar a via”: facto provado 5. – às especificidades de circulação do veículo automóvel que surge à sua frente no movimento de ultrapassagem, em violação do art. 24º, 1, do Código da Estrada (que estabelece um princípio geral em matéria de velocidade, determinando que o condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente) e do art. 25º, 1, do mesmo Código da Estrada (que impõe ao condutor que modere especialmente a velocidade, de entre outras situações, nas localidades ou vias marginadas por edificações, nos entroncamentos e locais de visibilidade reduzida: als. c) e h)). É legítimo considerar que, além do mais, a moderação de velocidade do condutor do motociclo, em função das circunstâncias que não representou, poderia ter evitado a colisão com o veículo automóvel segurado pela Ré.

Ainda mais.

O ciclomotorista lesado resolveu ultrapassar o veículo automóvel pela esquerda, quando ambos, nas circunstâncias referidas, se encontravam na metade esquerda da faixa de rodagem atento o seu sentido de marcha e já depois de o condutor do veículo automóvel ter mudado de direcção para o seu lado esquerdo, se ter aproximado da linha longitudinal contínua que divide as duas metades da faixa de rodagem e dirigido a frente do seu veículo para a metade esquerda da faixa de rodagem, para mudar de direcção, o que impedia a manobra de ultrapassagem do motociclo – v. arts. 38º, 1 («O condutor de veículo não deve iniciar a ultrapassagem sem se certificar de que a pode realizar sem perigo de colidir com veículo que transite no mesmo sentido ou em sentido contrário.»), 2, a) («O condutor deve, especialmente, certificar-se de que a faixa de rodagem se encontra livre na extensão e largura necessárias à realização da manobra com segurança.») e 41º, 1, g) («É proibida a ultrapassagem sempre que a largura da faixa de rodagem seja insuficiente.»), do Código da Estrada.
Deste modo, não é de sustentar que um condutor medianamente diligente e hábil – in casu, do veículo segurado pela Ré – pudesse ter evitado, depois de cumprir o que objectivamente lhe era de exigir na mudança de direcção, ou, pelo menos, contribuir para evitar que nessa mudança de direcção um veículo à sua retaguarda, em ultrapassagem de veículos, viesse a embater e a colidir no seu veículo.

Claro que se poderá sempre dizer que a conduta deste condutor foi condição naturalística do evento, na medida em que se não tivesse feito a manobra de mudança de direcção o acidente não teria ocorrido. Mas convenhamos que, também se recorrermos em termos de causalidade adequada à formulação negativa com que o art. 563º do CCiv. encontra a sua previsão de eleição, não há como negar que o facto deste condutor, na incidência factual que releva o definido pela 2.ª instância, não se afigura, em geral e em abstracto, de acordo com as regras da experiência comum e pela ordem natural das coisas, causa adequada da colisão, nas circunstâncias em que a mesma ocorreu. Antes se deve imputar essa adequação à condução negligente e em infracção estradal do condutor do motociclo, em face da análise cuidadosa da envolvência da sua circulação e do que enfrentava na vanguarda da via em termos da sua progressão cautelosa e segura.


3.2.4. Tudo ponderado, é de concluir que o evento imputável ao veículo automóvel segurado pela Ré não se enquadra em situação de responsabilidade extra-contratual por facto ilícito, nos termos gerais (e delituais) do art. 483º, 1, do CCiv.
Ao invés, é de entender que a ocorrência do acidente se verifica na esfera de responsabilidade pelo risco inerente à condução de veículos de circulação terrestre, aplicando-se o regime da responsabilidade plasmado nos arts. 503º a 508º do CCiv. – acidentes causados por tais veículos –, que, vista a regulação, é um caso de responsabilidade objectiva (independentemente de culpa: art. 487º, 2, CCiv.), sem que, no entanto, não se prescinda ou se atenda à culpa (responsabilidade subjectiva) em algumas situações disciplinadas nesse regime (v. arts. 503º, 3, 507º, 508º, 1, sempre do CCiv.).
O art. 503º, 1, do CCiv. reza assim: «Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.» Nesta fórmula legal de risco do veículo cabem os danos provenientes dos acidentes provocados pelo veículo em circulação (atropelamento de pessoas, colisão com outro veículo, destruição ou danificação de coisas), como pelo veículo estacionado, sendo irrelevante que o acidente ocorra nas vias públicas ou fora delas. Fora da esfera dos danos indemnizáveis pela responsabilidade objectiva ficam os que não têm conexão com os riscos específicos do veículo por serem estranhos aos meios de circulação ou transporte terrestre como tais, ou seja, os que foram causados pelo veículo como poderiam ter sido provocados por qualquer outra coisa móvel.[8]  

Por sua vez, rege o art. 506º quanto à previsão de “colisão de veículos”: «1. Se da colisão entre dois veículos resultarem danos em relação aos dois ou em relação a um deles, e nenhum dos condutores tiver culpa no acidente, a responsabilidade é repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos; se os danos forem causados somente por um dos veículos, sem culpa de nenhum dos condutores, só a pessoa por eles responsável é obrigada a indemnizar. 2. Em caso de dúvida, considera-se igual a medida da contribuição de cada um dos veículos para os danos, bem como a contribuição da culpa de cada um dos condutores.».

Dispõe o art. 505º, 1, do CCiv. que «a responsabilidade fixada pelo nº 1 do artigo 503.º [riscos próprios do veículo] só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro (…).», “no sentido de o acidente se apresentar como consequência de facto atribuível ou devido ao lesado ou a terceiro. É irrelevante que estes se mostrem ou não susceptíveis de culpa, que a sua conduta geradora do sinistro mereça ou não censura. Portanto, o problema nada tem a ver com a verificação da imputabilidade em sentido técnico (arts. 488.º e 489.º). (…) Por regra, será censurável, mas crê-se que, perante as valorações a que se procedeu, e nelas conta a certeza, o legislador fixou como exclusivo pressuposto a exigência de que o facto do lesado constitua a causa única do acidente (…)”[9]. Por outras palavras, “o que está em jogo (…) não é dizer se o facto é ou pode ser censurado ao agente, (…) mas simplesmente definir os factos que, na forma objectiva em como tiveram lugar, são susceptíveis de interromper o nexo de causalidade que, em relação ao dano, representa o risco do veículo” e, portanto, imputar ao facto do lesado a “causalidade do acidente”[10] e afastar a responsabilidade do condutor do veículo (transferida para a seguradora). De todo o modo, a relação entre culpa e risco pode e deve ser atendida: demonstrada a culpa efectiva e exclusiva do lesado (condutor ou não de veículo em colisão) na produção do acidente (dolo ou negligência), sem culpa do agente lesante (pois a sua esfera de imputação está no domínio objectivo dos «riscos próprios do veículo»), fica naturalmente afastada a sua responsabilidade objectiva ou pelo risco.

Esta análise é crucial para se perceber que a conjugação dos arts. 503º, 1, e 506º do CCiv. confere um regime-regra em que não se demanda a culpa efectiva de qualquer dos condutores dos veículos intervenientes numa colisão para que seja decretada a respectiva responsabilização no domínio do risco do veículo (a não ser que algum dos condutores esteja onerado pela presunção de culpa consagrada no art. 503º, 3, do CCiv.), desde que – e apenas só nessas circunstâncias – o acidente não tenha sido provocado exclusivamente por facto do lesado (culposo ou não) ou de terceiro, assim como por causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.       

*

O mesmo art. 505º, 1, do CCiv. – que, sublinhe-se, não compreende necessariamente a ponderação da culpa do agente lesado, mas não a pode desconsiderar se se demonstra –, salvaguarda de todo o modo a aplicação do art. 570º, desde logo para os que casos em há culpa do lesado e/ou do terceiro em concurso com a culpa do lesante: «1 – Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.» Assim, se há culpa exclusiva do sujeito (condutor) lesado, nomeadamente por inobservância das regras do Código da Estrada aplicáveis e exigíveis na circulação do veículo, sem qualquer contribuição causalmente adequada dos riscos próprios do veículo, a exclusão de responsabilidade não precisa de recorrer à habilitação legal do art. 570º, 1; ao invés, se o acidente tiver simultaneamente como causa um facto culposo do condutor (que excede o risco pressuposto art. 503º, 1, do CCiv. e o abrange na ilicitude do art. 483º, 1, do CCiv.) e um facto culposo da vítima lesada, cabe ao tribunal recorrer ao art. 570º, 1, para aferir os termos da indemnização em face desse concurso de responsabilidades culposas[11].

Essa remissão (e sua explicação interpretativa) para o art. 570º, 1, do CCiv. foi usada como um dos motes para a consolidação de uma interpretação – que ganhou foros de actualista ou progressista, com crescente incorporação na jurisprudência do STJque, em superação da interpretação tradicional[12], legitima o concurso da imputação do acidente a facto (culposo ou não) do lesado e do risco inerente ao veículo automóvel: submete-se a repartição da responsabilidade por ambos os intervenientes e a sucessiva quantificação da indemnização de acordo com a ponderação prevista no art. 570.º do CC, sempre que o sinistro releve uma conexão causal com os riscos próprios do veículo, de modo que, portanto, o acidente não seja de imputar exclusivamente a factores relativos à esfera de conduta do lesado, de terceiro ou de situações de forma maior. Essa visão – relembre-se – foi inaugurada pelos estudos de ADRIANO VAZ SERRA, antes e depois do CCiv. de 1966, acentuando inclusivamente a diferenciação de culpas do lesado[13], aceite pioneiramente e a título principal pelo “leading case” exposto no Ac. do STJ de 4/10/2007[14] e deveras estimulada pela legislação da União Europeia em sede de harmonização da disciplina do seguro de responsabilidade civil automóvel (em nome da protecção das vítimas de acidentes de viação)[15].

Um dos seus principais defensores, antes e depois do propugnado pelo aresto precursor de 2007, foi JOÃO CALVÃO DA SILVA[16], que destacou o – absolutamente determinante – valor internormativo dessa referência inicial do art. 505º para o art. 570º do CCiv.:

A ressalva do art. 570º feita na 1.ª parte do art. 505.º é para aplicar à responsabilidade fixada no n.º 1 do art. 503.º; a responsabilidade fixada no n.º 1 do art. 503.º é a responsabilidade objectiva; logo, a concorrência entre a culpa do lesado (art. 570.º) e o risco da utilização do veículo (art. 503.º) resulta do disposto no art. 505.º, que exclui a responsabilidade pelo risco quando o acidente for imputável (leia-se, unicamente devido, com ou sem culpa), ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte (leia-se, exclusivamente) de causa de força maior. E a parte final do art. 505.º, a só poder ser lida “quando resulte única e exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo” – caso em que os danos não são provenientes dos riscos próprios do veículo e seu condutor (art. 503.º, n.º 1, in fine), porquanto a força maior será causa externa, imprevisível e inevitável –, favorece e impõe reforçadamente a interpretação de a responsabilidade fixada no n.º 1 do art. 503.º apenas ser excluída quando o acidente for unicamente imputável ao próprio lesado ou a terceiro. Mais: não faz sentido interpretar a 1.ª parte do art. 505.º (“sem prejuízo do disposto no artigo 570.º”) como aplicável “havendo culpas de ambas as partes”, pois a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do art. 503º não assenta na culpa do detentor do veículo e o concurso da conduta culposa do detentor/condutor com um facto culposo do lesado está previsto directamente no art. 570.º. Pelo que, em face de um art. 505.º sem a ressalva inicial (“sem prejuízo do disposto no artigo 570.º”), o caso de concorrência entre facto ilícito do detentor/condutor do veículo e facto culposo do lesado não deixaria de ser regido seguramente pela disposição do art. 570.º”, “permitindo ao juiz sopesar suas gravidades [do risco próprio do veículo] e contributos causais e assim moldar o an e o quantum respondeatur”;

“Vale por isto por dizer que (…) a aplicação do art. 570.º decorre directamente do art. 505.º e não do facto de a situação da concorrência entre risco do veículo e culpa do lesado ser análoga ou paralela à prevista no art. 570.º. Numa palavra conclusiva, o art. 505.º deve ser lido assim:

Sem prejuízo do disposto no art. 570.º (leia-se, sem prejuízo do concurso da culpa do lesado e, “a fortiori”, sem prejuízo do concurso de facto não culposo do lesado), a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido (com culpa ou sem culpa) unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo”.[17]

3.2.5. Perante estas duas compreensões essenciais da articulação do art. 505º com o art. 570º do CCiv., seja qual for a melhor opção interpretativa, o certo é que o julgamento a fazer no caso dos autos permanecerá invariável.
Com efeito, é pressuposto da última das construções – que afasta a pura e simples exoneração de responsabilidade objectiva do art. 505º – a existência de situações em que a própria circulação automóvel, mesmo com obediência e cumprimento das regras estradais, cria um risco especial de acidente (entroncamentos com estradas de intenso movimento, proximidade de curvas fechadas, manobras de entrada ou saída de parques ou propriedades de veículos de grandes dimensões, circulação destes veículos em estradas com largura inferior a 6 metros, etc.), uma vez que tais situações podem contribuir tanto ou mais para o acidente (e respectivos danos) que a falta de atenção ou o relativo excesso de velocidade ou outra infracção imputável ao lesado, nomeadamente se também condutor de veículo que intervém no acidente[18]. Mesmo assim, esse risco especial não pode ser apenas e só o que resulta da colocação nessas circunstâncias físicas, geográficas e mecânicas de um veículo como máquina em circulação. Terá que ser um risco agravado, para além da força cinética do veículo, traduzido em funcionamento deficiente e/ou imprevidente da máquina (por ex., a falta repentina dos travões, o rebentamento de um pneu) ou em especificidades de perigo da circulação/utilização em concreto (por ex., um piso escorregadio ou oleoso, o súbito aparecimento de um obstáculo na estrada)[19], que justifique e torne plausível – numa lógica equilibrada e racional do regime legal para tutela do lesado, especialmente quanto este apenas evidencia uma negligência de reduzida censurabilidade  (culpa leve ou levíssima)[20] e de diminuta relevância da sua eficiência causal para a produção ou agravamento dos danos sofridos pelo próprio – uma comparticipação (ou concausalidade) da parte lesante, condutora/detentora do veículo, que responde independentemente de culpa[21]. E que haja uma contribuição comprovada e cabal desse risco causalmente adequado do veículo para a ocorrência do sinistro gerador dos danos a indemnizar, a fim de se apurar as respectivas quotas de responsabilidade. Ou seja, “desde que o acidente apresente ainda uma conexão significativa com os riscos próprios do veículo”, valorando-se, “em cada situação concreta, se a actividade geradora de risco foi, ainda que minimamente, causa adequada do dano”, através de factos do qual resulte um “efectivo aporte de risco adveniente da circulação daquela viatura na via pública”, sem que baste a alusão à “aptidão típica de um automóvel para a criação de riscos”[22]. Se assim é, cabe ao julgador “formular um juízo de adequação e proporcionalidade, perante as circunstâncias de cada caso concreto, pesando (…) a intensidade dos riscos próprios da circulação do veículo e a sua concreta relevância causal para o acidente”, e, por outro lado, “valorando a gravidade da culpa imputável ao comportamento, activo ou omissivo, do próprio lesado e determinando a sua concreta contribuição causal para as lesões sofridas, de modo a alcançar um critério de concordância prática”, que obvie a “um automático e necessário apagamento das consequências de um risco relevante da circulação do veículo, apenas pela circunstância de ter ocorrido alguma falta do próprio lesado, inserida na dinâmica do acidente”[23].
Pois bem.
Verifica-se pela exposição anteriormente indicada que essa demandada contribuição relevante, porque agravada, dos riscos atendíveis do veículo lesante não subsiste no caso concreto. E, por isso, é de aderir ao que o acórdão recorrido conclui sobre a ilicitude e culpa do Autor (ainda que não necessariamente tendo por base uma presunção de culpa derivada da ilicitude traduzida nas violações dos deveres impostos pelo Código da Estrada) para lhe atribuir a causa única e exclusiva do acidente.

De facto, os factos ponderados e os demais provados e valorizados no acórdão sob censura impunham ao condutor lesado do motociclo um dever acrescido de cuidado na condução e as suas violações das normas do Código da Estrada foram manifestas e grosseiras, de modo a enfatizar que não foram observadas as regras de prudência exigíveis em face de uma patente exposição ao perigo e ao risco do dano (“possibilidade auto-lesiva”, ainda para mais numa situação de risco acrescido inerente à condução de motociclos e de verificação previsível)[24]. De tal modo que a conduta já descrita do Autor fê-lo submeter-se, na sua manobra de ultrapassagem, antecedente da colisão, a uma “assunção excessiva de riscos” ou de “exposição deliberada a um risco muito grave”, que denuncia a gravidade suficiente para se lhe imputar em exclusivo, com culpa – reprovação da sua conduta tendo em conta que poderia e deveria ter actuado diferentemente, de acordo com as circunstâncias concretas e em função do critério comum da diligência de um «um bom pai de família», homem normal e medianamente cuidadoso e prudente (art. 487º, 2, CCiv.) –, a responsabilidade pelo acidente[25]. O acidente, brevitatis causa, acaba por resultar da conjugação da velocidade acima do permitido, da sua falta de atenção ao que se passava à sua frente em face da manobra de ultrapassagem, das infracções estradais que revelou e do comportamento temerário que nelas precipitou, o que constitui negligência causal para a colisão operada.

Por seu turno, verifica-se que o veículo lesante circulava a uma velocidade reduzida, o seu condutor cumpriu as regras estradais para a manobra feita de mudança de direcção e não se demonstra que tivesse exibido incúria ou desleixo quanto à atenção exigível para a verificação da circulação na sua retaguarda, nela envolvendo a do motociclo que com ele colidiu.

Tal confronto causal do acidente é de molde a concluir que o acidente/colisão, sendo de atribuir exclusivamente à actuação culposa da vítima/condutor do motociclo, não permite que se pondere, para a sua eclosão, de um risco qualificado inerente à circulação do veículo envolvido no acidente, uma vez que a potencialidade de perigo que, mesmo numa circunstância mais propícia a sinistro automóvel – mudança de direcção num contexto de entroncamento em via recta –, comporta a sua circulação, foi alheia ao sinistro. Naquelas circunstâncias de tempo e modo, não se pode considerar ter ocorrido a concorrência de um risco causalmente adequado, porque sem a gravidade suficiente, para promover o resultado danoso, sofrido assim por imputação culposa e exclusiva a cargo da vítima.

A similar conclusão têm chegado outras decisões jurisprudenciais, relativas a situações em que se ponderou em sentido afirmativo a “culpa exclusiva” do lesado, de modo que teremos neles conforto para seguir uma orientação que confere homogeneidade de tratamento à exoneração de responsabilidade por força da imputação única do sinistro à conduta do lesado/vítima.

Entre elas, atenta a similitude factual e para conclusão, atentemos no Ac. do STJ de 27/3/2017[26]:

“Se um veículo automóvel, com vista à mudança de direcção à esquerda, se coloca no eixo da via, abrandando a marcha para 5 km/hora, liga o sinal luminoso à esquerda e, certificando-se que não se aproxima qualquer veículo, na retaguarda ou em sentido contrário, inicia aquela manobra, vindo a ser embatido por um motociclo, que resolve ultrapassá-lo pela esquerda quando aquele ocupava já a hemi-faixa do lado esquerdo, é de concluir que a culpa na ocorrência do acidente se deve exclusivamente ao condutor do motociclo. / Ocorrendo, assim, um acto ou comportamento da vítima que se revele a causa exclusiva do acidente e do dano, sendo-lhe unicamente imputável, fica excluída a responsabilidade objectiva ou pelo risco”.
*
Tudo visto e escrutinado, atendendo à matéria de facto por fim dada como assente, exclui-se a imputação de qualquer responsabilidade ao condutor do veículo segurado pela Ré enquanto responsabilidade objectiva, assente nos perigos ou riscos, de natureza geral, próprios da utilização e circulação do veículo automóvel, acolhida no art. 503º, 1, por aplicação do art. 505º, 1, sempre do CCiv. (e só este, pois, sem repartição de responsabilidade, não se convoca a aplicação do art. 570º, 1, do CCiv.), o que preclude a pretensão de responsabilizar a Ré seguradora pelos danos que, infelizmente e em medida necessariamente de lamentar, ocorreram na esfera do Autor em virtude da colisão.
Improcedem, assim, as Conclusões 17. a 32. invocadas pelo Recorrente em abono da revista.

                                                                      

III) DECISÃO

Em harmonia com o exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pelo Recorrente.

STJ/Lisboa, 13 de Abril de 2021

Ricardo Costa (Relator)

                       

Nos termos do art. 15º-A do DL 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo art. 3º do DL 20/2020, de 1 de Maio, e para os efeitos do disposto pelo art. 153º, 1, do CPC, declaro que o presente acórdão, não obstante a falta de assinatura, tem o voto de conformidade do Senhor Juiz Conselheiro que é 1.º Adjunto neste Colectivo.

António Barateiro Martins

Ana Paula Boularot (Com declaração de voto em anexo)

SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).

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PROC 4883/17.7T8GMR.G1.S1

6ª SECÇÃO

DECLARAÇÃO DE VOTO

Não obstante vote a decisão, não acompanho a fundamentação.

Porquanto.

A Ré no recurso de Apelação que interpôs para o Tribunal da Relação de ………, impugnou a sentença de primeiro grau, em primeira linha, no que à matéria de facto dizia respeito, tendo pugnado pela alteração dos seguintes factos:

O facto nº 16 dos factos provados deveria considerar-se como facto não provado, passando a integrar a matéria de facto não provada; o aludido facto tem a seguinte redacção:  «16. A condutora do veículo ….-….-VB não se certificou, antes de iniciar a manobra descrita nos factos provados anteriores, da aproximação de outros veículos à sua retaguarda, nomeadamente do autor que vinha em ultrapassagem pela metade esquerda da faixa de rodagem (art. 19º, 22º e 23º da p.i.);»

O facto nº 7 dos factos provados, com o seguinte teor  «7. Nas descritas circunstâncias de tempo e lugar, o autor conduzia o motociclo ….-CD-…. pela Avenida ………., atento o sentido …….. – ……… em que circulava, a uma velocidade de 50 km/hora (art. 6º e 7º da p.i.);», deveria ser parcialmente alterado no sentido de ficar a constar «Nas descritas circunstâncias de tempo e lugar, o Autor conduzia o motociclo ….-CD-…. pela Avenida ………., atento o ……. – …….. em que circulava com uma velocidade não concretamente apurada, mas superior a 50 Km/hora».

O facto nº 9 dos factos não provados, com a seguinte redacção. «9. Ao mesmo tempo que accionou o sinal luminoso de pisca-pisca do lado esquerdo do seu veículo e se aproximou da linha longitudinal contínua que divide as duas metades da faixa de rodagem (art. 10º, 11º e 25º da contest.);», deveria passar a ser considerado facto provado.

O Acórdão recorrido aceitou a fundamentação da Recorrente, alterou em conformidade a materialidade factual e eliminou ainda o facto nº14 - «14. O autor imprimia ao CD, na ocasião do acidente, velocidade superior a 60 Km/h (art. 17º da contest.);» - dos factos não provados, tendo em consequência das modificações factuais introduzidas, alterado o dispositivo e absolvido a Ré, ali Recorrente do pedido contra ela formulado.

Irresignado com tal desfecho recorreu o Autor de Revista, cujo objecto indicou ser, além do mais, «- o erro na fixação dos factos materiais da causa, que constitui matéria de direito por resultar da violação das regras de processo sobre a modificabilidade das decisões em matéria factual (cf. art. 662.º do CPC) e das regras de direito probatório material (mormente as constantes dos arts. 349.º, 351.º do CC e art. 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC);».

O Acórdão produzido, assinalou do seguinte modo as questões a tratar:

«1. Objecto do recurso

Vistas as Conclusões para o efeito de identificar a matéria integrante do objecto recursivo (arts. 635º, 2 a 4, 639º, 1 e 2, do CPC), estas são as questões a apreciar e resolver:

— impugnação da decisão proferida pelo acórdão recorrido em matéria de facto por alegado incumprimento dos deveres previstos no art. 662º, 1, do CPC na reapreciação da matéria de facto, sindicável nos termos do art. 674º, 1, b), do CPC;

— impugnação da decisão em matéria de facto por alegada ofensa de regras de direito probatório material, de acordo com os arts. 374º, 3, 2.ª parte, 682º, 2, 2ª parte, do CPC;

— contradição na decisão sobre a matéria de facto, sindicável nos termos do art. 682º, 3, do CPC;

[estas três questões serão tratadas num só ponto, ainda que autonomamente, como se impõe]

— erro na interpretação e aplicação das regras legais de repartição de responsabilidade em matéria de acidente e colisão entre veículos, a fim de decifrar se há concorrência de responsabilidades ou responsabilidade exclusiva do Autor lesado (condutor do motociclo).».

Dispõe o artigo 662º nº 1, do CPCivil que «A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.», acrescentando o seu nº4 «Das decisões da Relação previstas nos n.ºs 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.».

Por seu turno preceitua o artigo 682º do CPCivil no que tange às competências do Supremo Tribunal de Justiça «1 - Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado. 2 - A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674.º.».

Quer dizer, em termos de julgamento factual, no que à economia da decisão proferida diz respeito, os poderes do STJ estão assim limitados a situações de concreta sindicância se tiver sido invocada uma violação das regras substantivas de direito probatório, nos termos do artigo 674º, nº 3, do CPCivil, bem como poderão abranger igualmente o controlo efectivo da Lei adjectiva na fixação da matéria de facto dada como provada e não provada, nos termos do artigo 674º, nº 1, alínea b) daquele mesmo diploma legal, embora com a restrição que decorre do nº4 do artigo 662º supra extractado.

Daqui se abarca que este Órgão jurisdicional pode sancionar uma má utilização pelo segundo grau dos índices aludidos no nº4 do artigo 607º do CPCivil («Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.»), mas já não poderá imiscuir-se no juízo apreciativo formulado pelo julgador ao abrigo do nº5, primeira parte, do mesmo artigo («O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto;»), cfr neste sentido os Ac de 3 de Novembro de 2009 (Relator Moreira Alves) e de 24 de Setembro de 2013 (Relator Azevedo Ramos), in www.dgsi.pt.

A factualidade que foi objecto de pronunciamento por banda do Tribunal da Relação estava, como está, sujeita ao princípio da livre apreciação, inexistindo qualquer facto que careça de prova tabelada e, assim sendo, a mesma poderia ter sido obtida através de presunções judiciais, como deflui do disposto no artigo 351º do CCivil, sendo que esta foi utilizada para a alteração da materialidade assente no ponto 7.

Como decorre inequivocamente do excurso explicativo encetado em sede de apreciação da impugnação factual que foi suscitada ao Tribunal da Relação, aí foi dado cabal cumprimento às regras adjectivas atinentes à fundamentação, cfr artigo 607º, nº4 do CPCivil, como se impunha, não se vislumbrando qualquer ilogicidade, que ponha em causa a modificação factual operada naquele supra indicado ponto, através do uso de uma construção lógico-dedutiva.

O Recorrente, como se antolha vítreo do seu acervo conclusivo, com excepção da invocação de um «mau uso» de uma presunção judicial, para se proceder à alteração do ponto 7., limita-se a efectuar críticas genéricas à reponderação que foi feita pelo segundo grau, a qual no seu entendimento não poderia ter ocorrido da forma como ocorreu, sendo certo que não lhe aponta de forma certeira quais as violações procedimentais de que padece.

A tese que faz vencimento, transcrevendo a fundamentação do Acórdão recorrido em sede de reponderação da materialidade factual, exerce uma fiscalização positiva da mesma, concluindo pela bondade do corolário a que se chegou, violando os parâmetros estabelecidos para o julgamento em sede de Revista, aludidos nos nºs 1 e 2 do artigo 682º e conhece, não podendo conhecer, do fundo de tal modificação, nº4 do artigo 662º, este como aquele do CPCivil.

No que concerne à solução jurídica a que se chegou no segundo grau, posto que a factualidade não poderia ser objecto de modificação por este Supremo tribunal de Justiça, obviamente que deveria ser mantida sem mais. 

(Ana Paula Boularot)

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[1] V. por todos ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 662º, págs. 284 e ss, 290.
[2] V. ABRANTES GERALDES, Recursos… cit., sub art. 674º, págs. 406 e ss; na jurisprudência do STJ, v., a título de exemplo, os Acs. de 25/11/2014, processo n.º 6629/04.0TBBRG.G1.S1, Rel. FERNANDO PINTO DE ALMEIDA, 29/9/2016, processo n.º 286/10.2TBLSB.P1.S1. Rel. TOMÉ GOMES, e de 11/4/2019, processo n.º 8531/14.9T8LSB.L1.S1, Rel. ROSA TCHING, in www.dgsi.pt.
Bem mais restritivo na doutrina se encontra, quanto à sindicação dessa construção dedutiva inerente às presunções judiciais, JOSÉ LEBRE DE FREITAS, “Ónus do recorrente que impugne a decisão de facto. Controlo pelo STJ do uso de presunções judiciais”, ROA, 2019, I/II, págs. 147 e ss, 153-154.
[3] V. ANTUNES VARELA/J. MIGUEL BEZERRA/SAMPAIO E NORA, Manual de processo civil, 3.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1985, págs. 500 e ss.
[4] V., em suporte, ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil, Vol. I, Parte geral e processo de declaração, Artigos 1º a 702º, Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 607º, pág. 719.
[5] Assim se pronunciou o Ac. do STJ de 25/2/2010, processo n.º 174/04.5TBOVER.S1, Rel. SERRA BAPTISTA, in www.dgsi.pt.
[6] V. o Ac. do STJ de 21/3/2012, processo n.º 6123/03.7BVFR.P1.S1, Rel. MARIA DOS PRAZERES BELEZA, in www.dgsi.pt.
[7] Processo n.º 08A1279, Rel. URBANO DIAS, in www.dgsi.pt.
[8] V., por todos e ainda com toda a actualidade, PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil anotado, Volume I (Artigos 1.º a 761.º), com a colaboração de M. Henrique Mesquita, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987, sub art. 503º, págs. 514-515.
[9] ALMEIDA COSTA, Direito das obrigações, 12.ª ed., Almedina, Coimbra, 2009, pág. 638, salientando-se a imputação a título exclusivo da causa do acidente/evento.
[10] ANTUNES VARELA, Das obrigações em geral, Volume I, 10.ª ed., Almedina, Coimbra, 2000, págs. págs. 675, 678-660 (o art. 505º trata de “um problema de causalidade, que consiste em saber quando é que os danos verificados no acidente não devem ser juridicamente considerados como um efeito do risco próprio do veículo, mas sim como uma consequência do facto praticado pela vítima”), 695-696 (“mesmo que não se faça prova da culpa do demandado, o tribunal pode averiguar se o pedido procede à sombra da responsabilidade pelo risco”); JORGE RIBEIRO DE FARIA, Direito das obrigações, II Volume, Almedina, Coimbra, 2001 (reimp.), págs. 70 e ss, em esp. 72-73, 74 (a quem pertencem as transcrições, com sublinhado nosso).
Note-se que ANTUNES VARELA sempre se destacou, em vários escritos, com impacto notório na adesão jurisprudencial maioritária, por não colocar a tónica na culpa exclusiva ou única do lesado – como aqui se fez – para a actuação da exoneração de responsabilidade do condutor do veículo lesante, uma vez que o concurso da “vítima”, ainda que mínima, seria suficiente para a exclusão de responsabilidade pelo risco, tendo em conta a interrupção do nexo de causalidade, sem consideração pela inerência dos riscos da circulação rodoviária: “a culpa do lesado na produção do dano, não havendo culpa do agente, exclui sistematicamente a obrigação de reparação desse dano” (Das obrigações em geral, Volume I cit., págs. 677-678). Com isso fechava a porta ao concurso do perigo especial do veículo com o facto do terceiro ou da vítima e a consequente possibilidade de repartição da responsabilidade ou atenuação da obrigação de indemnizar fundada no risco, sendo esta automaticamente excluída sempre que o dano pudesse ser imputado causalmente à conduta (ainda que não culposa) do lesado – v., em complemento, PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil anotado, Vol. I cit., sub art. 505º, págs. 517-518. Favoráveis, entre outros, RUI DE ALARCÃO, Direito das obrigações, FDUC, Coimbra, 1983, pág. 329, ANTÓNIO PINTO MONTEIRO, Cláusulas limitativas e de exclusão de responsabilidade, Coimbra, 1985, pág. 93 e nt. 176, LUÍS MENEZES LEITÃO, Direito das obrigações, Volume I, Introdução. Da constituição das obrigações, 15.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018 (reimp.: 2020), págs. 375-376; aparentemente, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de direito civil português, Volume II, Direito das obrigações, Tomo III, Gestão de negócios, enriquecimento sem causa, responsabilidade civil, Almedina, Coimbra, 2010, pág. 676, RUI SOARES PEREIRA, Código Civil comentado, II, Das obrigações em geral (artigos 397.º a 873.º), Almedina, Coimbra, 2021, sub art. 505º, pág. 470.

[11] PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil anotado, Vol. I cit., sub art. 505º, págs. 517-518, ANTUNES VARELA, Das obrigações em geral, Volume I cit., págs. 676-677, ALMEIDA COSTA, Direito das obrigações cit., pág. 639 e nt. 1.
[12] Cfr. supra, nt. (10).

[13] V. “Conculpabilidade do prejudicado”, BMJ n.º 86, 1959, págs. 155 e ss, em esp. 160-161, 165-167, “Fundamento da responsabilidade civil (em especial, responsabilidade por acidentes de viação terrestre e por intervenções lícitas)”, BMJ nº 90, 1959, págs. 162 e ss, em esp. 166, 168, “Acórdão do STJ de 14 de Junho de 1966 – Anotação ”, RLJ n.os 3332 a 3334, 1967, pág. 364 e nt. 1, 372-373 e nt. 2 (“se a culpa do lesado for leve, o acidente não é só causado por essa culpa, mas também pelos riscos especiais criados pela utilização do veículo”), “Acórdão do STJ de 20 de Janeiro de 1968 – Anotação”, RLJ n.º 3383, 1969, nt. 1 – pág. 22. Recorde-se, para conclusão já com a vigência do CCiv., o recurso que o Professor de Coimbra fazia à aplicação analógica do art. 570º do CCiv. Imediatamente após, FRANCISCO PEREIRA COELHO, Obrigações – Sumários das Lições ao Curso de 1966-1967, FDUC, Coimbra, 1967, págs. 169 e ss.
[14] Processo n.º 07B1710, Rel. SANTOS BERNARDINO, in www.dgsi.pt.
[15] Cfr. Directivas 72/166/CEE, do Conselho, de 24/4/72, 84/5/CEE, do Conselho, de 30/12/83, 90/232/CEE, do Conselho, de 14/5/90, 2000/26/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16/5/2000 e 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11/5/2005 (transposta parcialmente entre nós pelo DL 291/07, de 21 de Agosto), depois codificadas pela Directiva 2009/103/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16/9/2009. Para análise e reflexos, v. JOÃO CALVÃO DA SILVA, “S. T. J., Acórdão de 4 de Outubro de 2007. (Concorrência entre risco do veículo e facto do lesado: o virar de página?), RLJ n.º 3946, 2007, págs. 52 e ss; JORGE SINDE MONTEIRO, “Direito dos seguros e direito da responsabilidade civil. Da legislação europeia sobre o seguro automóvel e sua repercussão no regime dos acidentes causados por veículos. A propósito dos Acórdãos Ferreira Santos, Ambrósio Lavrador (e o.) e Marques de Almeida, do TJUE”, RLJ n.º 3977, 2012, págs. 82 e ss.
[16] V., em conjunto, “S. T. J., Acórdão de 1 de Março de 2001”. (Acidentes de Viação: Concorrência do risco com a culpa do lesado (art. 505.º); limites máximos da responsabilidade objectiva (art. 508.º) e montantes mínimos obrigatórios do seguro; indemnização e juros de mora (arts. 506.º, n.º 2, e 805.º, n.º 3), RLJ n.os 3924 e 3925, 2001, págs. 115 e ss; “S. T. J., Acórdão de 4 de Outubro de 2007. (Concorrência entre risco do veículo e facto do lesado: o virar de página?), loc. cit., págs. 50 e ss, 58 e ss – com ilustração de vários regimes legais com positivação do concurso da culpa do lesado com o risco da actividade do agente e a pertinente unidade do sistema jurídico nas condições do tempo de aplicação da norma (art. 9º do CCiv.).

[17] Antes e depois, convergentes com esta leitura, com variações sobre a imputação culposa do lesado e a natureza do risco de circulação do veículo, v. JORGE SINDE MONTEIRO (com propostas de lege ferenda), “Responsabilidade por culpa, responsabilidade objectiva, seguro de acidentes”, RDE n.os 6/7, 1980/1981, págs. 139 e ss, ID., “Introdução”, págs. 66, nt. 201 – págs. 67-68 e nt. 206 bis – págs. 73-74, “Responsabilidade por culpa, responsabilidade objectiva, seguros de acidentes”, págs. 148 e ss, Estudos sobre a responsabilidade civil, II, Almedina, Coimbra, 1983, ID., “Direito dos seguros e direito da responsabilidade civil…”, loc. cit., págs. 103-104, 124 e ss; JOSÉ BRANDÃO PROENÇA, A conduta do lesado como pressuposto e critério de imputação do dano extracontratual, Almedina, Coimbra, 1997 (reimp. 2007), págs. 266 e ss, 811 e ss, ID. “Responsabilidade pelo risco do detentor do veículo e conduta do lesado – a lógica do ‘tudo ou nada’? – Ac. do STJ de 6.11.2003, Proc. 565/03”, CDP n.º 7, 2004, págs. 25 e ss; ALMEIDA COSTA, Direito das obrigações cit., nt. 1 – pág. 639; ANA PRATA, “Estudos em comemoração dos cinco anos (1995-2000) da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, págs. 348 e ss; MAFALDA MIRANDA BARBOSA, Do nexo de causalidade ao nexo de imputação. Contributo para a compreensão da natureza binária e personalística do requisito causal ao nível da responsabilidade civil extracontratual, Vol. II, Principia, Cascais, 2013, nt. 1760 – págs. 802-803, ID., “A aplicação analógica das hipóteses de responsabilidade pelo risco”, Estudos a propósito da responsabilidade objectiva, Principia, Cascais, 2014, págs. nt. 204 – 116-117 (“o que o artigo 505º faz é concretizar a esfera de risco delimitada pelo artigo 503º CC”); MARIA DA GRAÇA TRIGO, “Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade civil por acidente de viação», Estudos dedicados ao Professor Doutor Bernardo da Gama Lobo Xavier, Volume I, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, pp. 495 e ss; RAÚL GUICHARD, Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações – Das obrigações em geral, coord.: José Brandão Proença, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, sub art. 505º, págs. 416-417 (pelo menos quando a culpa do lesado não é grave ou não é passível de censura).  
[18] Neste sentido, v. o Ac. do STJ de 15/1/2013, processo n.º 21/1998.P1.S1, Rel. SALRETA PEREIRA, in www.dgsi.pt.
[19] E que, portanto, ainda se referem a circunstâncias relativas ao funcionamento do veículo nos seus “riscos próprios”, ainda que provocados por um facto externo, sob pena de cairmos, fora desse âmbito, na «causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo»: assim, LUÍS MENEZES LEITÃO, Direito das obrigações, Volume I cit., pág. 377; RAÚL GUICHARD, Comentário ao Código Civil… cit., sub art. 505º, págs. 417-418; RUI SOARES PEREIRA, Código Civil comentado, II cit., sub art. 505º, págs. 480-481 (“só nos casos de força maior estaremos perante os limites imanentes a uma razoável imputação do risco, o que permite concluir que o [art.] 505.º terá uma função aclaradora do [art.] 503.º”.
[20] Suportando este entendimento: Ac. do STJ de 11/7/2013, processo n.º 97/05.7TBPVL.G2.S1, Rel. FONSECA RAMOS, in www.dgsi.pt.
[21] V. o que o Ac. do STJ de 17/5/2012 (processo n.º 1272/04.7TBGDM.P1.S1, Rel. ABRANTES GERALDES, in www.dgsi.pt) sentenciou: “O mero facto naturalístico de o acidente ter envolvido um veículo automóvel, como corpo em movimento, com determinado peso e dimensões, dotado de inércia, não pode ser considerado determinante de um risco causalmente adequado ao acidente, perdendo todo o relevo, quer em termos absolutos, quer em termos relativos”.
Na doutrina, sobre o impacto das condições traduzidas num mero risco genérico (importante para aferir da “marginalização da condição colocada pelo autor material do dano – e que é a problemática inerente aos preceitos dos artigos 505.º e 570.º, 2”), v. JOSÉ BRANDÃO PROENÇA, A conduta do lesado… cit., págs. 447-449.
[22] Neste sentido delimitador, v., com essas transcrições relevantes, o Ac. do STJ de 27/6/2019, processo n.º 589/14.7T8PVZ.P1.S1, Rel. RAIMUNDO QUEIRÓS, em que o aqui Relator foi 1.º Adjunto.
[23] Aqui seguimos as relevantes asserções do Ac. do STJ de 1/6/2017, processo n.º 1112/15.1T8VCT.G1.S1, Rel. LOPES DO REGO, in www.dgsi.pt, que adoptou a segunda das (antes descritas) visões interpretativas do art. 505º do CCiv. (“(…) o regime normativo decorrente do estatuído nas disposições conjugadas dos arts. 505º e 570º do CC deve ser interpretado, em termos actualistas, como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre culpa do lesado e risco do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura – o que nos afasta do resultado que decorreria de uma estrita aplicação da denominada tese tradicional: ou seja, não pode, neste entendimento, excluir-se à partida que qualquer grau de culpa do lesado (nomeadamente do utente das vias públicas mais vulnerável) no despoletar do acidente, independentemente da gravidade do facto culposo e do grau da sua efectiva contribuição para o sinistro, deva, sem mais, excluir automaticamente a responsabilidade decorrente, no plano objectivo, dos riscos próprios da circulação do veículo, independentemente da intensidade destes e do grau em que contribuíram causalmente, na peculiaridade do caso concreto, para o resultado danoso”).
[24] Neste sentido conformador de comportamentos causadores da exoneração da responsabilidade do detentor do veículo, para a adequada interpretação do art. 505º do CCiv., v. JOSÉ BRANDÃO PROENÇA, “O tratamento mais favorável dos lesados culpados no âmbito dos danos corporais por acidentes de viação”, Estudos dedicados ao Prof. Doutor Mário Júlio de Almeida Costa, Universidade Católica Editora, Lisboa, Lisboa, 2002, págs. 830-831, 833, 836.

[25] JORGE SINDE MONTEIRO, “Direito dos seguros e direito da responsabilidade civil…”, loc. cit., págs. 128-129.
[26] Processo n.º 136/07.7TBTMC.P1.S1, Rel. GRANJA DA FONSECA, in www.dgsi.pt (pontos III. e IV. do Sumário).