Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1300/05.9TBTMR.C1.S1
Nº Convencional: 6 ª SECÇÃO
Relator: FERNANDES DO VALE
Descritores: HERANÇA INDIVISA
HERANÇA JACENTE
ACEITAÇÃO DA HERANÇA
JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
IMPUGNAÇÃO
Data do Acordão: 09/12/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO - DIREITO DAS SUCESSÕES / ABERTURA DA SUCESSÃO / HERANÇA JACENTE / ACEITAÇÃO DA HERANÇA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - ACÇÃO / PARTES / PERSONALIDADE JUDICIÁRIA - PROCESSO / INSTÂNCIA.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, I Volume, 2ª ed. revista e ampliada, pp. 34 a 40.
- Baur, citado por Pessoa Vaz, Direito Processual Civil – Do Antigo ao Novo Código, pp. 337/338.
- Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, 3ª Ed., Vol. I, p. 5, nota 18.
- T. de Sousa, “Sobre o Sentido e a Função dos Pressupostos Processuais”, R.O.A., ano 49º, pp. 85 e segs., Introdução ao Processo Civil, pp. 84-86.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 217.º, N.º1, 2031.º, 2046.º, 2056.º, 2057.º, N.º2.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 5.º, 6.º, 288.º, N.º3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 14.12.94, COL/STJ – 3º/183;
-DE 15.01.04, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I - A herança indivisa e impartilhada só é dotada de personalidade judiciária se ainda não tiver sido aceite nem declarada vaga para o Estado, caso em que deverá ser qualificada de jacente (arts. 2046.º do CC e 6.º, al. a), 1.ª parte, do CPC)

II - A aceitação da herança pode revestir forma expressa ou tácita, nos termos, respectivamente, dos arts. 2056.º, n.º 2 e – para além do previsto no art. 2057.º, n.º 2 – 217.º, n.º 1, todos do CC.

III - Em acção de impugnação de escritura de justificação notarial instaurada por herança não jacente, mostrando-se que todos os respectivos herdeiros “intervieram” na mesma, tendo outorgado procuração forense ao ilustre advogado da autora e propondo-se esta defender e alcançar interesses e objectivos coincidentes com os daqueles, não deve ser decretada a absolvição da instância filiada na excepção dilatória de falta de personalidade judiciária da autora, caso a decisão deva ser integralmente favorável à autora e nenhum outro motivo a tal obste.

      

Decisão Texto Integral:

Proc. nº 1300/05.9TBTMR.C1.S1[1]

              (Rel. 127)[2]

                          Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça

1 – “Herança Indivisa aberta por óbito de AA”, representada pelos seus herdeiros, BB (entretanto, também falecido e representado pelos demais herdeiros habilitados), CC e marido, EE, e DD e mulher, FF, instaurou, em 12.10.05, na comarca de Tomar (com distribuição ao 2º Juízo), acção declarativa, com processo comum e sob a forma sumária (posteriormente convertida em ordinária), contra “Herança Indivisa aberta por óbito de GG e HH”, representada pelo seu cabeça de casal, II, pedindo que seja declarado que os referidos GG e HH não adquiriram o direito de propriedade sobre o imóvel descrito na escritura de justificação notarial referida no art. 7º da petição inicial (p. i.), o qual, por isso, não se transmitiu nem é pertença da herança-R, ordenando-se, consequentemente, o cancelamento do registo de aquisição efectuado com base em tal escritura – descrição nº 038334/150496 da freguesia da Serra – e de quaisquer outros que do mesmo dependam.   

       Em síntese, alegou serem falsas as declarações prestadas pelos referidos GG e HH, na dita escritura, de terem adquirido o prédio por usucapião, uma vez que o mesmo sempre foi propriedade de BB e mulher, AA, e, agora, da herança-A.

       A R. contestou, pugnando pela improcedência da acção e opondo que os falecidos GG e mulher e, actualmente, os seus herdeiros, vêm exercendo uma posse sobre o prédio em causa, há mais de 20 anos, pelo que, à data da escritura, tinham a seu favor o instituto da usucapião. Em reconvenção e para a hipótese de ser declarado que o GG e mulher não adquiriram o questionado direito de propriedade, pediu a indemnização de € 17 992,00, por benfeitorias realizadas no mesmo prédio.

       Houve resposta em que a A. reiterou o, inicialmente, alegado e pugnou pela improcedência da reconvenção, cujos fundamentos fácticos impugnou.

       Foi proferido despacho saneador tabelar, com subsequente e irreclamada enunciação da matéria de facto tida por assente e organização da pertinente base instrutória (b. i.).

       Prosseguindo os autos a sua tramitação, veio, a final, a ser proferida (em 18.01.12) sentença que decidiu:

                                            “…julgo a presente acção provada e procedente e, em consequência:

       Declaro que GG e HH não adquiriram por usucapião o direito de propriedade sobre o prédio rústico, composto de terra de mato e vinha, com a área de 2 120 m2, no sítio do Roxio, freguesia da Serra, concelho de Tomar, a confrontar do Norte com a sociedade “... Lda”, JJ, LL, MM, NN, OO e outra, do Sul com estrada, do Nascente com PP e do Poente com estrada, inscrito na matriz predial sob o art. 510 da Secção X, descrito na escritura de justificação notarial celebrada em 15 de Janeiro de 1996 no Primeiro Cartório da secretaria notarial de Tomar;

       Determino o cancelamento do registo de aquisição efectuado, na Conservatória do Registo Predial de Tomar, com base naquela escritura (descrição nº 03834/150496) e de quaisquer outros que dele dependam.

       Julgo a reconvenção não provada e improcedente e, em consequência, absolvo os AA. Herança indivisa aberta por óbito de AA e de BB, CC e DD, do pedido reconvencional”…

       A Relação de Coimbra, por acórdão de 11.12.12, julgou improcedente a apelação interposta pela R.-reconvinte.

       Daí a presente revista por esta interposta, visando a revogação do acórdão recorrido, conforme alegações culminadas com a formulação das seguintes e relevantes conclusões:

                                                      /

A – A personalidade judiciária consiste na susceptibilidade de ser parte em juízo V. art. 5º nº 1 do Código de Processo Civil;

B – Quem tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária V. art. 5º nº 2 do Código de Processo Civil;

C – Uma HERANÇA INDIVISA, não se confunde com uma HERANÇA JACENTE;

D – A herança jacente caracteriza-se por, estando já aberta, não ter sido aceite, nem declarada vaga a favor do Estado;

E – A herança indivisa pressupõe serem já conhecidos os herdeiros e a respectiva aceitação;

F – A herança indivisa também não constitui um património autónomo quando já são conhecidos os seus titulares;

G – Assim, a HERANÇA INDIVISA não tem, nem personalidade jurídica, nem capacidade judiciária;

H – Por isso, não é susceptível de ser parte por si só em juízo; - V. art. nº 1 do Código de Processo Civil;

I – Não é possível confundir a herança indivisa com os seus herdeiros;

J – Estes, só em conjunto, podem demandar e ser demandados;-   V. art. 2091º do Código Civil;

K – No caso em recurso, não podem, os herdeiros, substituir-se como partes, às heranças indivisas sob pena de se violar o principio da estabilidade da instância consagrado no art. 268º do Código de Processo Civil;

L – A declaração genérica no despacho saneador de que as partes estão dotadas de capacidade e personalidade judiciária não transita em julgado;

M – Constitui excepção dilatória a falta de personalidade ou de capacidade judiciária de alguma das partes, excepção de que o Tribunal de 1ª instância deveria ter conhecido imediatamente; - V. art. 494º al. c) do Código de Processo Civil;

N – Essa excepção é do conhecimento oficioso do Tribunal e dela pode conhecer-se até ao trânsito em julgado da sentença. - V. art. 495º do Código de Processo Civil;

O – A invocada excepção dilatória dá lugar à absolvição da instância; - V. art. 493º nº 2 do Código de Processo Civil;

P – Ao decidir nos termos em que decidiu, essa sentença violou o disposto nos artigos 5º nºs 1 e 2, 6º e 9º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil e 2091º do Código Civil.

       Nestes termos, deverá dar-se provimento ao recurso revogando-se a douta sentença recorrida e, em consequência, absolver-se a recorrente da instância, como é imperativo da lei e da JUSTIÇA.

       Inexistem, nos autos, contra-alegações.

       Corridos os vistos e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.

                                                     *

2 – A Relação teve por provados os seguintes factos:

                                                     /

1 – Por escritura pública, denominada “Habilitação”, outorgada em 05.09.05, no Cartório Notarial a cargo do licenciado JASMC, BB declarou ser cabeça de casal da herança aberta por óbito de AA, falecida, em 04.04.05, mais declarando que esta deixou, por seus únicos e universais herdeiros, o declarante, seu cônjuge, e os seus filhos, CC e DD (A);

2 – Em 30.03.04, faleceu HH , no estado de casada com GG (B);

3 – Em 27.04.04, faleceu GG, no estado de viúvo de HH (C);

4 – Por escritura pública, denominada “Justificação”, celebrada, em 15.01.96, no 1º Cartório da Secretaria Notarial de Tomar, GG e mulher, HH, QQ, RR e SS declararam que os dois primeiros, com exclusão de outrem, eram donos e legítimos possuidores do prédio rústico, composto de terra de mato e vinha, com a área de 2 120 m2, no sítio de Roxio, freguesia da Serra, concelho de Tomar, a confrontar, do Norte, com a sociedade “... Lda”, JJ, LL, MM, NN, OO e outra, do Sul, com estrada, do Nascente, com PP e, do Poente, com estrada, inscrito na matriz predial sob o art. 510 da Secção X, omisso na Conservatória do Registo Predial, por o possuírem, há mais de vinte anos, sem a menor oposição de quem quer que fosse, desde o seu início; mais declararam que a posse daquele prédio não estava titulada mas era pacífica e de boa fé, por não haver sido adquirida por meios violentos e por os mesmos ignorarem se, com o seu exercício, prejudicavam o direito de outrem; e, bem assim, declararam que essa posse era revelada por actos característicos como, por exemplo, o pagamento de impostos e contribuições, e foi sempre exercida, sem interrupção e ostensivamente, com conhecimento de toda a gente, sendo, por isso, ainda, uma posse contínua e pública (D);

5 – Na Conservatória do Registo Predial de Tomar, encontra-se descrito, na freguesia de Serra, sob o nº 03834/150496, um prédio rústico, sito em Roxio, composto de terra de mato e vinha, com a área de 2 120 m2, a confrontar, do Norte, com a sociedade “... Lda”, JJ, LL, MM, NN, OO e outra, do Sul, com estrada, do Nascente, com PP e, do Poente, com estrada, inscrito na matriz predial sob o art. 510 da Secção X (E);

6 – O direito de propriedade sobre o prédio dito em D) encontra-se, registralmente, inscrito a favor de GG e mulher, HH, através da Ap. 06/150496, a que coube a cota G-1, “por usucapião” (F);

7 – GG e mulher, HH, a partir de 1970, começaram a limpar o prédio dito em D) e F) (1º);

8 – Roçaram o mato e as silvas, já que o terreno se encontrava abandonado (2º);

9 – Lavraram a terra e adubaram-na (3º);

10 – Plantaram bacelos (4º);

11 – GG ne mulher, HH, a partir de 1970, plantaram 800 cepas no prédio dito em D) e F) (5º);

12 – O valor de mercado dessas 800 cepas, actualmente, é de € 4 500,00 (6º);

13 – Com o crescimento das videiras, houve necessidade de colocar estacas para as atar, o que fizeram (7º);

14 – Tendo, para esse efeito, colocado 208 pilares em pedra, com 1,50 metros de altura, destinados a armação da vinha e respectivo arame (8º);

15 – Os pilares de pedra têm, actualmente, um valor aproximado de € 416,00, que está já integrado no valor constante de 12 (9º)

16 – Podaram as videiras e fizeram tratamentos com fertilizantes e adubos (10º);

17 – Colheram as uvas (11º);

18 – GG e mulher praticaram os actos descritos em 1º e 11º, anualmente, no contexto descrito nas respostas aos nº/s 38 a 40 (12º)

19 – GG e mulher afundaram o poço existente no dito prédio, em cerca de 2,5 metros, cimentaram o fundo do poço e limparam-no (13º);

20 – O que importou na quantia de € 450 (14º);

21 – E colocaram 5 anéis em cimento no poço (15º);

22 – Cada anel de cimento importou na quantia de € 43,00 (16º);

23 – Vedaram o terreno, em toda a volta, com pilares e rede zincada, com 1,25 metros por 1,00 metro, numa extensão de 90 metros (17º);

24 – O que importou na quantia de € 500,00 (18º);

25 – Colocaram um portão em tubo e rede (19º);

26 – O que importou na quantia de € 125,00 (20º);

27 – Na parte Sul e Poente, fizeram uma parede em blocos de cimento, com 25 metros por 0,50 metros (21º);

28 – No que despenderam a quantia de € 125,00 (22º);

29 – BB e mulher, AA, amanharam e cuidaram das árvores – oliveiras e figueiras – e da vinha do prédio dito em D) e F) (36º);

30 – O que fizeram, durante todos os anos, pelo menos até 1970, data em que foram viver para os E.U.A. (37º);

31 – Antes de embarcarem para os E.U.A., BB e mulher incumbiram GG, seu conhecido e vizinho, de ficar a cuidar e zelar os seus dois terrenos (38º);

32 – Sendo um desses terrenos o referido em D) e F), na altura identificado como sito em Carvalhal (39º);

33 – E outro sito em Pai Cabeça (40º);

34 – Em 10 de Novembro de 1975, GG escreveu uma carta a BB, na qual declarou que este o incumbira de, quanto ao prédio sito em Carvalhal, lavrar a terra, empedrar o poço e pôr bacelos (41º);

35 – E mais declarou que tinha ficado acordado que ele, GG, ficaria a explorar a terra até à dívida – das despesas efectuadas – ficar paga (42º);

36 – E, bem assim, que, uma vez que BB resolvera vender o prédio, não estando ele, GG, interessado em comprar, quem comprasse teria de lhe dar Esc. 4 000$00 de trabalho efectuado (43º);

37 – O documento de fls. 22 e 23 foi escrito e assinado por II, a pedido de GG (46º).

                                                   *

3 - Perante o teor das conclusões formuladas pela recorrente – as quais (exceptuando questões de oficioso conhecimento não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objecto e delimitam o âmbito do recurso (arts. 660, nº2, 661º, 672º, 684º, nº3, 690º, nº1 e 726º todos do CPC na pregressa e, aqui, aplicável redacção[3]) –, constata-se que a questão por si suscitada e que, no âmbito da revista, demanda apreciação e decisão por parte deste Tribunal de recurso tem, exclusivamente, a ver com a arguida falta de personalidade judiciária dos sujeitos processuais. Questão esta a abordar, também pela complementar razão de ser de conhecimento oficioso e haver sido objecto de mera apreciação genérica no despacho saneador que afirmou a personalidade judiciária das partes (Fls. 80) – arts. 494º, al. c), 495º e 510º, nº3.

       Apreciando:

                                                  *

4I – Nos termos do disposto no art. 5º, nº1, “A personalidade judiciária consiste na susceptibilidade de ser parte”, ou seja, na possibilidade de requerer ou de contra si ser requerida alguma providência de tutela jurisdicional.

       Como emerge do preceituado no nº2 do citado art. 5º, “Quem tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária”. O que constitui consagração do princípio da tendencial coincidência entre a personalidade judiciária e a personalidade jurídica.

       Porém, destoando desta tendencial coincidência, prevê-se no sequente art. 6º que, além do mais, “Têm ainda personalidade judiciária:…a)- A herança jacente e os patrimónios autónomos semelhantes cujo titular não estiver determinado”.

       A transcrita estatuição advém da redacção que ao mencionado preceito legal foi dada pelo art. 1º do DL nº 180/96, de 25.09, prescrevendo-se, diferentemente, na correspondente redacção anterior, que “A herança cujo titular ainda não esteja determinado e os patrimónios autónomos semelhantes, mesmo que destituídos de personalidade jurídica, têm personalidade judiciária”.

       Relevando, “in casu”, aquela primeira redacção, uma vez que, tanto a AA, como o seu viúvo, BB, faleceram após 03.04.05 – cfr. art. 2031º do CC – impõe-se saber o que deve ser entendido por “herança jacente”, uma vez que, como se doutrinou no Ac. deste Supremo, de 15.01.04, de que foi relator o preclaro Cons. Salvador da Costa e acessível em www.dgsi.pt, “a herança indivisa não se subsume, para efeito de lhe ser atribuída personalidade judiciária, ao conceito legal de património autónomo semelhante cujo titular não esteja determinado”.

       Ora, nos termos do disposto no art. 2046º do CC, “Diz-se jacente a herança aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado”.

       Coincidindo a abertura da sucessão, como já acentuado, com o momento da morte do seu autor (art. 2031º do CC), decorre do preceituado no art. 2056º do mesmo Cod. que a aceitação pode ser expressa ou tácita, sendo a mesma havida como expressa quando nalgum documento escrito o sucessível chamado à herança declara aceitá-la ou assume o título de herdeiro com a intenção de a adquirir. E, segundo Lopes Cardoso[4], “a aceitação é tácita quando o herdeiro pratica algum facto de que necessariamente se deduz a intenção de aceitar, ou de tal natureza que ele não poderia praticá-lo senão na qualidade de herdeiro”.

                                                   /

II – Aplicando o que ficou expendido ao caso debatido nos autos, temos de concluir que a herança-R. deve ser qualificada como jacente, uma vez que os autos não fornecem elementos probatórios de que a mesma tenha sido aceite pelos respectivos herdeiros, os quais, aliás, não se mostram suficientemente determinados, já que a R. – cfr. art. 2º da respectiva contestação – põe em causa que aqueles sejam apenas os que a A. identifica no art. 5º da respectiva p. i., antes lhes aditando a neta, TT, filha do seu pré-falecido filho, UU. Ou seja, inexistindo aceitação expressa da referida herança por parte dos respectivos herdeiros, também não pode sustentar-se, perante os inexpressivos elementos facultados pelos autos, que tal aceitação tenha ocorrido de forma tácita, nos termos decorrentes do preceituado no art. 217º, nº1 do CC, pelo que tal herança jacente é, nos termos referidos, dotada de personalidade judiciária.

       Não assim, porém, no que toca à herança-A., relativamente à qual tem de entender-se que ocorreu aceitação tácita por parte dos respectivos herdeiros.

       Na realidade, para além destes se mostrarem identificados na correspondente escritura de habilitação documentada de fls 8 a 10, os mesmos outorgaram, em nome próprio e na assumida qualidade de herdeiros daquela herança, procuração forense ao ilustre advogado da A., o que pressupõe, necessariamente, que tenham aceite, tacitamente, a mesma herança: trata-se de factualidade que, com toda a probabilidade, revela ou manifesta a prévia ocorrência da questionada aceitação (art. 217º, nº1, do CC).

       O que nos encaminharia, fatal e inexoravelmente, para o acolhimento da posição sustentada pela recorrente, com as inerentes e inevitáveis consequências.

       Não obstante, perante o quadro fáctico-jurídico emergente dos autos, assim o não entendemos.

                                              /

III – No último quartel do século XX e já no longínquo ano de 1994, em acórdão relatado pelo saudoso Cons. Cura Mariano, foi, lucidamente, entendido e decidido que “Embora se trate de uma herança indivisa, tendo intervindo na acção… todos os herdeiros, como o objectivo dela foi o de defender os bens da herança, evitando a sua saída do respectivo acervo, improcede a arguição da sua ilegitimidade” – Ac. do STJ, de 14.12.94 – COL/STJ – 3º/183.

       Em causa estava, então e também, a impugnação duma escritura de justificação notarial, cuja subsistência acarretaria os inerentes prejuízos para o acervo hereditário que com tal impugnação se visou defender.

       Um tal entendimento, perfilhado no domínio de legislação muito mais tributária de rígidos conceitos contidos em contornos meramente formais, por maioria de razão se impõe, no caso debatido nos autos, perante similar situação fáctica surgida, já em pleno século XXI, sob a égide de legislação muito menos tributária de meros e rígidos conceitos formais, em detrimento e com ostracismo dos verdadeiros interesses e valores a que aqueles servem de simples indumentária jurídica.

       Na realidade, são proclamações constantes do Preâmbulo do DL nº 329-A/95, de 12.12:

--- “Garantia de prevalência do fundo sobre a forma”, entre as linhas mestras do modelo de processo perfilhado;

--- Atribuição ao processo civil de natureza “verdadeiramente instrumental no que toca à perseguição da verdade material, em que nitidamente se aponta para uma leal e sã cooperação de todos os operadores judiciários”, constituindo aquele “nem mais nem menos do que uma ferramenta posta à disposição dos seus destinatários para alcançarem a rápida, mas segura, concretização dos seus direitos”;

--- “Ter-se-á de perspectivar o processo civil como um modelo de simplicidade e de concisão, apto a funcionar como um instrumento, como um meio de ser alcançada a verdade material pela aplicação do direito substantivo, e não como um estereótipo autista que a si próprio se contempla e impede que seja perseguida a justiça, afinal o que os cidadãos apenas pretendem quando vão a juízo”;

--- “É, assim, o processo civil um instrumento ou talvez mesmo uma alavanca no sentido de forçar a análise, discussão e decisão dos factos e não uma ciência que olvide esses factos para se assumir apenas como uma teorética de linguagem hermética, inacessível e pouco transparente para os seus destinatários”.

       E, na mesma linha de pensamento, Abrantes Geraldes[5], para além de acentuar o que já ficou destacado, pondera, designadamente:

“--- O que dificilmente se compreende é que algumas normas (ou certas práticas processuais assentes em rotinas nem sempre legalmente fundadas) estabeleçam uma inversão clara dos valores e transformem o processo civil num fim em si mesmo, em vez de ser um simples veículo para alcançar os objectivos para que foram criados os tribunais”;

--- “Baur, citado por Pessoa Vaz, afirmava também que «o processo é um meio para a declaração do direito substancial e como tal deve manter-se. O conhecimento e a exacta aplicação do direito material ocupam o primeiro posto, doutra forma vem a falhar a justificação social do processo que se torna um “moinho que mói em vão”» (in “Direito Processual CivilDo Antigo ao Novo Código”, pags. 337/338);

--- “T. de Sousa[6], no âmbito da lei adjectiva precedente,…propugnava uma interpretação restritiva das consequências emergentes da falta de determinados pressupostos processuais, valorizando soluções substanciais em detrimento das formais”;

--- “…deve ser averiguado se o fim último das mesmas” (excepções dilatórias) “é a tutela de interesses de ordem pública ou, pelo contrário, a simples protecção dos interesses das partes”;

--- “No trabalho que fez publicar na Revista da Ordem dos Advogados, T. de Sousa praticamente limita à competência absoluta as situações em que se visam tutelar interesses de ordem pública”;

--- “No horizonte do legislador, ao consagrar uma solução que amplifica a instrumentalidade do direito adjectivo, estiveram excepções ligadas a pressupostos subjectivos, tais como a capacidade judiciária, a falta de patrocínio judiciário obrigatório, a legitimidade e o interesse em agir, ou ainda a excepção de litispendência, em que a opção entre a absolvição da instância ou o conhecimento de mérito (aqui incluindo o conhecimento de excepções peremptórias) dependerá da verificação do último requisito legal: decisão integralmente favorável à parte visada pela excepção dilatória”;

--- Acrescentando: “Faltando o patrocínio judiciário activo, apesar de o juiz ter promovido a superação dessa excepção, e existindo motivos para absolver o R. do pedido, é esta a solução que deve ser adoptada e não a que deriva do art. 33º. Do mesmo modo que, se apesar da manutenção de ausência do referido patrocínio, o resultado objectivo do processo for inteiramente favorável ao autor (v. g., porque o réu não contestou ou porque os factos provados sustentam integralmente o pedido formulado pelo autor, apesar de desacompanhado do apoio técnico conferido pelo patrocínio judiciário), não existe razão legal ou justificação racional para absolver o réu da instância, impondo-se ao juiz a condenação no pedido”.

                                                   /

IV – No caso dos autos, sem dúvida que não nos confrontamos com uma situação em que a herança-A. possa ser qualificada de jacente, uma vez que a mesma foi, tacitamente, aceite pelos respectivos herdeiros (art. 2046º do CC).

       No configurado quadro fáctico-jurídico, convocando os transcritos ensinamentos doutrinais e as mencionadas traves mestras que presidiram à reforma processual de 95/96, entendemos que, não obstante a herança-A. seja, “in casu”, desprovida de personalidade judiciária, mostram-se salvaguardados os interesses que os herdeiros deveriam prosseguir caso a acção tivesse sido por si instaurada, tanto mais que todos eles outorgaram procuração forense ao ilustre advogado da A., tendo em vista a consecução do desiderato que a A. deveria alcançar caso fosse, judiciariamente, personalizada.

       Ou seja, estando em causa a protecção dos interesses dos herdeiros da A. e nenhum outro motivo obstando ao conhecimento do mérito da causa – cuja decisão foi e deverá manter-se integralmente favorável à mesma A., atenta a respectiva fundamentação, por nós integralmente perfilhada –, a subsistente excepção dilatória de falta de personalidade judiciária da A. não poderá acarretar a absolvição da instância (art. 288º, nº3), antes devendo manter-se a douta sentença que julgou procedente a acção.  

       Improcedem, assim, no essencial e na medida exposta, as conclusões formuladas pela recorrente.

                                                   *

5Sumário:

                    I – A herança indivisa e impartilhada só é dotada de personalidade judiciária se ainda não tiver sido aceite nem declarada vaga para o Estado, caso em que deverá ser qualificada de jacente (arts. 2046º do CC e 6º, al. a), 1ª parte, do CPC).

                   II – A aceitação da herança pode revestir forma expressa ou tácita, nos termos, respectivamente, dos arts. 2056º, nº2 e – para além do previsto no art. 2057º, nº2 – 217º, nº1, todos do CC.

                 III – Em acção de impugnação de escritura de justificação notarial instaurada por herança não jacente, mostrando-se que todos os respectivos herdeiros “intervieram” na mesma, tendo outorgado procuração forense ao ilustre advogado da A. e propondo-se esta defender e alcançar interesses e objectivos coincidentes com os daqueles, não deve ser decretada a absolvição da instância filiada na excepção dilatória de falta de personalidade judiciária da A., caso a decisão deva ser integralmente favorável à A. e nenhum outro motivo a tal obste. 

                                                 *

6 – Na decorrência do exposto, acorda-se em, com a aduzida fundamentação, negar a revista.

      Custas pela recorrente.

                                                  /

                                     Lx 12/09/13      

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[1]  Processo distribuído, neste Tribunal, em 30.04.13.
[2]  Relator: Fernandes do Vale (18/13)
   Ex. mos Adjuntos
   Cons. Marques Pereira
   Cons. Ana Paula Boularot
[3]  Como os demais que, sem menção da respectiva origem, vierem a ser citados.
[4]  In “Partilhas Judiciais”, 3ª Ed., Vol. I, pags. 5, nota 18).
[5]  In “Temas da Reforma do Processo Civil”, I Volume, 2ª ed. revista e ampliada, pags. 34 a 40.
[6]  In “Sobre o Sentido e a Função dos Pressupostos Processuais”, R.O.A., ano 49º, pags. 85 e segs, “Introdução ao Processo Civil”, pags. 84-86.