Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
38/17.9JAFAR.E1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: MANUEL AUGUSTO DE MATOS
Descritores: PERÍCIA
PERÍCIA MÉDICO-LEGAL
PARECER
IN DUBIO PRO REO
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
VÍCIOS DO ARTº 410.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
HOMICÍDIO QUALIFICADO
EXEMPLOS-PADRÃO
DESCENDENTE
ATENUAÇÃO ESPECIAL
MEDIDA CONCRETA DA PENA
INDIGNIDADE
Data do Acordão: 04/03/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DA FAMÍLIA / ALIMENTOS / DISPOSIÇÕES ESPECIAIS - DIREITO DAS SUCESSÕES / ABERTURA DA SUCESSÃO E CHAMAMENTO DOS HERDEIROS E LEGATÁRIOS.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - PROVA / PROVA PERICIAL - JULGAMENTO / AUDIÊNCIA / PRODUÇÃO DE PROVA - RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / TRAMITAÇÃO / RECURSO PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA / PODERES DE COGNIÇÃO.
DIREITO PENAL - CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / HOMICIDIO QUALIFICADO.
Doutrina:

- AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, Direito Penal, Parte Geral, 2.ª Edição, Coimbra Editora, p. 65-66;
- AUGUSTO SILVA DIAS, Crimes contra a vida e a integridade física, 2.ª Edição, revista e actualizada, AAFDL, 2007, p. 29.
- FERNANDO SILVA Direito Penal Especial, Crimes contra as Pessoas, Quid Juris, 2005, p.50,51,70 e71;
- FIGUEIREDO DIAS, Comentário Conimbricense do Código Penal, Volume I, p. 27-28 e 29, 158, 227 e ss. e 231 ; Direito Processual Penal, 2016, Almedina, p. 171, 209 e 210; As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Editorial Notícias, p. 306; O sistema sancionatório do Direito Penal Português, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, I, p. 815;
- GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 2014, Coimbra Editora, p. 446-447;
- JOÃO HENRIQUE GOMES DE SOUSA, A perícia técnica ou científica revisitada numa visão prático-judicial, Julgar, n.º 15, 2011, p. 29;
- LOURENÇO MARTINS, Droga e Direito, 1994, p. 111;
- LUÍS A. CARVALHO FERNANDES, Lições de Direito das Sucessões, 3.ª Edição, revista e actualizada, Lisboa 2008, Quid Juris, Sociedade Editora, p. 187;
- M. MIGUEZ GARCIA e J. M. CASTELA RIO, ACTAS, 1965, p. 129 ; Código Penal ,Parte Geral e Especial, 2015, 2.ª Edição, Almedina, p. 381 e 394;
- MARIA JOÃO ANTUNES, Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, p. 44;
- MARQUES FERREIRA, Jornadas de Direito Processual Penal: o novo código de processo penal, p. 219-270;
- PAULO DE SOUSA MENDES, Lições de Direito Processual Penal, 2015, Almedina, p. 222;
- PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal, 3.ª Edição actualizada, Universidade Católica Editora, p. 352 e 421;
- SANTOS CABRAL , Código de Processo Penal Comentado, 2016 – 2.ª Edição Revista, Almedina, p. 624-625;
- TERESA SERRA, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1990, p. 50, 63 e 64;
Direito Processual Penal, 2016, Almedina, p. 171.
Legislação Nacional:
- CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS N.º 2016.º, 2034.º, ALÍNEAS A) A D) E 2036.º;
- CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 674, N.º 3
- CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 127.º, 151.º, 152.º, N.º 1, 153.º 154.º, N.º 1, 158.º, N.1, 159.º, N.º 1, 160.º-A, 163.º, 358.º, N.ºS 1 E 3, 410.º, N.º 2, ALÍNEA A), B) E C), 432.º E 434.º,
- CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS N.ºS 72.º, N.º 1, 40.º, N.º 1 E 132.º, N.º 1, N.º 2, ALÍNEA A)
- CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA PORTUGUESA (CRP): -ARTIGOS 24.º. N.º 1 E 32.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 24-03-1999, PROCESSO N.º 176/99, IN CJSTJ 1999, TOMO 1, P. 24;
- DE 23-02-2000, PROCESSO N.º 1200/99, IN SJSTJ, SECÇÕES CRIMINAIS, ANO 2000, WWW.STJ.PT;
- DE 08-07-2004, PROCESSO N.º 111221/04 ;
- DE 07-12-2005, IN CJ, ASTJ, XIII; TOMO III, P. 224;
- DE 29-03-2006, PROCESSO N.º 651/06;
- DE 11-07-2007, PROCESSO N.º 1583/07;
- DE 16-10-2008, PROCESSO N.º 07P4725;
- DE 21-01-2009, PROCESSO N.º 08P4030;
- DE 25-06-2009, PROCESSO N.º 4262/06; IN SJSTJ, SECÇÕES CRIMINAIS ANO 2009, WWW.STJ.PT;
- DE 06-10-2010, PROCESSO N.º 936/08.0JAPRT.P1.S1;
- DE 13-10-2010, PROCESSO N.º 200/06.0JAAVR.C1.S1;
- DE 27-04-2011, PROCESSO N.º 7266/08.6TBRG.G1.S1;
- DE 20-10-2011, PROCESSO N.º 36/06.8GAPSR.S1;
- DE 15-12-2011, PROCESSO N.º 706/10.6PHLSB.S1;
- DE 05-06-2012, PROCESSO N.º 442/08.3GALSD.P1.S1, IN SJSTJ, SECÇÕES CRIMINAIS, ANO DE 2012, WWW.STJ.PT.
- DE 12-09-2012, PROCESSO N.º 1221/11.6JAPRT.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 18-10-2012, PROCESSO N.º 735/10.0JACBR.C1.S1;
- DE 29-05-2013, PROCESSO N.º 344/11.6JALRA.E1.S1;
- DE 04-07-2013, PROCESSO N.º 1243/10.4PAALM.L1.S1;
- DE 16-10-2013, PROCESSO N.º 36/11.6PJOER.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 08-01-2014, PROCESSO N.º 7/10.0TELSB.L1.S1;
- DE 27-02-2014, PROCESSO N.º 160/10.2GCVFR.S1, IN SJSTJ, SECÇÕES CRIMINAIS, 2014, WWW.STJ.PT;
- DE 25-06-2014, PROCESSO N.º 472/12.0JABRG.G1.S1;
- DE 03-07-2014, PROCESSO N.º 1081/11.7PAMGR.C1.S1;
- DE 12-03-2015, PROCESSO N.º 724/01.5SWLSB.L1.S1;
- DE 12-03-2015, PROCESSO N.º 418/11.3GAACB.C1.S1;
- DE 29-04-2015, PROCESSO N.º 791/12.6GAALQ.L2.S1;
- DE 27-05-2015, PROCESSO N.º 445/12.3PBEVR.E1.S1;
- DE 08-10-2015, PROCESSO N.º 417/10.2TAMDL.G1.S1;
- DE 30-03-2016, PROCESSO N.º 158/14.1PBSXL.L1;
- DE 29-03-2017, PROCESSO N.º 2183/14.3JAPRT.P1;
- DE 07-04-2017, PROCESSO N.º 52/15.4JAPDL.L1.S1;
- DE 20-09-2017, PROCESSO N.º 596/12.4JABRG.G2.S1;
- DE 22-11-2017, PROCESSO N.º 980/15.1PRPRT.P1.S1.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

- DE 29-06-2011, PROCESSO N.º 233/08.1PBGDM.P3,IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - Como se extrai do art. 152.º do CPP, o legislador português optou por um modelo de perícia preferencialmente pública, regra que apenas é afastada por impossibilidade ou inconveniência - arts. 152.º, 153.º 154.º, n.º 1, e 160.º-A do CPP, assim se consagrando um regime misto com prevalência de intervenção de organismos públicos, com a qualidade pericial a assentar numa certificação pública, sem exclusão da possibilidade hipotética de apresentação de perícias contraditórias quando não existam organismos públicos reconhecidos para a realização da perícia.
II - A especial relevância do juízo científico que se vê reflectida no art. 163.º do CPP está necessariamente relacionada com a especial credibilidade da perícia decorrente da sua natureza oficial.
III - A produção da prova pericial justifica-se quando a percepção ou a apreciação dos factos pressuponha o uso de conhecimentos em determinada área específica, normalmente não acessíveis à generalidade das pessoas, sendo-lhe atribuída uma força probatória reforçada, ainda que não absoluta.
IV - Por essa razão, o regime jurídico da prova pericial em processo penal visa garantir, por um lado, a isenção e a imparcialidade daqueles a quem deva ser confiada a sua produção e, por outro lado, a sua competência no ramo específico de saber que esteja em causa.
V - Não podem valer como prova pericial, e revestir o valor reforçado que lhe é próprio, as diligências que não tenham observado os formalismos prescritos pelos arts. 151º e seguintes do CPP, não podendo, em especial, ser consideradas perícias, no sentido jurídico-processual do termo, as declarações subscritas por profissionais de determinadas áreas, como seja a medicina, que frequentemente são juntas aos processos pelos sujeitos processuais particulares, tendo em vista a demonstração de factos que lhes aproveitam, elaborados por pessoas da sua escolha.
VI - Situam-se nesse universo de actos os «pareceres médico-legais» carreados para os autos pela defesa do arguido com base nos quais pretende infirmar o juízo probatório afirmativo emitido pelo Tribunal Colectivo com fundamento no relatório da autópsia da ofendida.
VII - O n.º 1 do art. 158.º do CPP dispõe sobre os meios à disposição dos sujeitos processuais para reagirem contra o resultado de uma diligência pericial, a saber, a prestação de esclarecimentos pelo seu autor, o que se mostra feito, ou a efectivação de nova perícia, por outro perito ou outros peritos, o que não aconteceu
VIII - Qualquer insuficiência de que o relatório da autópsia feita ao cadáver da ofendida possa enfermar sempre terá de ser resolvida a favor do arguido, em homenagem ao princípio da presunção de inocência, consagrado no nº 2 do art. 32º da CRP e o postulado «in dubio pro reo», que lhe está associado.
IX - Ainda assim, aquilo que é vedado ao arguido é valer-se dos referidos pareceres médicos como se de uma «contra perícia» ou de uma «perícia alternativa» se tratasse, se bem que tais pareceres não constituem meio de prova proibido e estão sujeitos ao princípio da livre apreciação do art. 127.º do CPP.
X - A disposição do n.º 1 do art. 152.º do CPP, cuja violação pelo acórdão do Tribunal Colectivo o recorrente invoca, não se aplica ao caso em apreço, porquanto, estando em causa uma diligência pericial médico-legal (autópsia), a competência para a sua realização é definida nos termos do nº 1 do art. 159º do CPP, que a defere ao INML, tendo essa regra sido observada no processado dos autos.
XI - No que se refere à questão de o Perito Médico subscritor do relatório da autópsia da ofendida não se encontrar investido da especialidade de medicina legal ou forense, mas sim de urologia, importa dizer que, a partir do momento em que o mesmo Clínico exerce funções de perito no INML e que está cometida a este Instituto a competência legal para a realização de autópsias médico-legais, a sua especialidade de origem é indiferente e as perícias por ele elaboradas têm o mesmo poder vinculativo.
XII - Como se dá nota no acórdão deste Supremo Tribunal de 08-10-2015, proferido no processo n.º 417/10.2TAMDL.G1.S1 – 3.ª Secção, «[é] jurisprudência constante deste Supremo Tribunal que “[d]ecidido o recurso pela Relação, ficam esgotados os poderes de apreciação da matéria de facto, tornando-se esta definitivamente adquirida, salvo se ocorrer algum dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, de que o STJ deva oficiosamente conhecer», não constituindo o «conhecimento desses vícios pelo Supremo Tribunal (…) mais do que uma válvula de segurança a utilizar pelo tribunal nas situações em que não seja possível tomar uma decisão sobre a questão de direito, por a matéria de facto se revelar ostensivamente insuficiente, ou se fundar em erro de apreciação, ou estar assente em premissas contraditórias».
XIII - O conhecimento das questões de facto, enquanto tais, encontra-se, assim, subtraído à apreciação do STJ que, sendo um tribunal de revista, apenas conhece de direito – arts. 432.º e 434.º do CPP, e, assim, quanto aos «princípios da livre apreciação da prova e de “in dubio pro reo”, ao STJ apenas é possível apurar da respectiva violação através da própria decisão: só da análise da matéria de facto e da sua fundamentação se poderá avaliar da eventual infracção destes princípios e nunca pelo exame das próprias provas que estejam recolhidas nos autos.
XIV - Se a decisão sobre a matéria de facto se encontra fundamentada, de tal modo que se consegue perceber o raciocínio feito pelas instâncias ao darem como provada determinada matéria, não foi violado o princípio da livre apreciação da prova.
XV - Qualquer um dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP tem de resultar do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugado com as regras da experiência, estando excluída, para o efeito, a consideração de quaisquer meios de prova produzidos em julgamento, salvo nos casos previstos designadamente no n.º 3 do art. 674.º do CPC, constituindo vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei, tratando-se de vícios da decisão e não do julgamento.
XVI - O conhecimento oficioso dos vícios do art. 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, não constitui mais do que uma válvula de segurança a utilizar naquelas situações em que não seja possível tomar uma decisão (ou uma decisão correcta e rigorosa) sobre a questão de direito, por a matéria de facto se revelar ostensivamente insuficiente, por se fundar em manifesto erro de apreciação ou ainda por assentar em premissas que se mostram contraditórias e por fim quanto se verifiquem nulidades que não se devam considerar sanadas.
XVII. Quanto ao vício previsto pela al. a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, o mesmo só ocorrerá quando da factualidade vertida na decisão se concluir faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitem, por sua ausência, um juízo seguro (de direito) de condenação ou de absolvição. Trata-se da formulação incorrecta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito correcta, legal e justa.
XVIII - Quanto ao vício previsto pela alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, verifica-se contradição insanável – a que não possa ser ultrapassada ainda que com recurso ao contexto da decisão no seu todo ou às regras da experiência comum – da fundamentação – quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios, e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão.
XIX - Quanto ao vício previsto pela al. c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, o mesmo verifica-se quando, partindo do texto da decisão recorrida, a matéria de facto considerada provada e não provada pelo tribunal a quo, atenta, de forma notória, evidente ou manifesta, contra as regras da experiência comum, avaliadas de acordo com o padrão do homem médio.
XX - A factualidade acolhida pelo Tribunal Colectivo e que o Tribunal da Relação confirmou mostra-se compatível com as regras da experiência comum, pois da leitura da motivação da matéria de facto e da apreciação da prova retratada pelo acórdão recorrido, em que assumiu particular relevo a prova pericial produzida, não corresponde a algo que, de facto, não possa ter ocorrido ou, dito por outras palavras, que, na perspectiva do padrão do denominado homem comum ou homem médio, surja como um evento inacreditável, inverosímil, completamente desconforme com a realidade da vida.
XXI - O recorrente, invocando implicitamente o erro notório na apreciação da prova, está, afinal, a impugnar a formação da convicção do tribunal recorrido na valoração da prova produzida e examinada, pondo em causa a livre apreciação da prova, sendo que tal não se coaduna com a apreciação dos vícios do artigo 410.º do CPP.
XXII - O princípio in dubio pro reo é um princípio geral, estruturante do processo penal, decorrente do princípio constitucional da presunção da inocência do arguido, assumindo, como tal e como qualquer outro princípio jurídico, a natureza de uma questão de direito de que o Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista, deve conhecer.
XXIII - Compulsadas, tanto a decisão recorrida, como também a decisão da 1.ª instância, não se detecta, tendo em atenção nomeadamente, a fundamentação da matéria de facto, qualquer dúvida quanto aos factos que se devia dar por provados ou não provados.
XXIV - A violação do princípio “in dubio pro reo” pressupõe que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou num estado de incerteza, de dúvida, quanto aos factos dados como provados e não provados; não tendo tal sucedido, o que o arguido pretende é que o tribunal colectivo, apesar de não ter tido dúvidas sobre o que considerou provado, deveria tê-las tido.
XXV - O critério da qualificação do homicídio está definido no nº 1 do art. 132.º do CP e consiste em tirar a vida a outrem em circunstâncias que revelem uma especial censurabilidade ou perversidade, encontrando-se enumeradas no n.º 2 do mesmo normativo algumas das circunstâncias que são susceptíveis de revelar especial censurabilidade, ou perversidade.
XXVI - Essas circunstâncias não funcionam de forma automática, interessando apurar se, no caso em apreço, não concorrerão outros factos que, apesar dos laços que unia o arguido à vítima (sua mãe), de grande afecto, revelassem uma incapacidade para vencer as contra motivações éticas ínsitas à relação que o ligava à sua mãe.
XXVII - O acórdão recorrido, confirmando a decisão da 1.ª instância, considerou verificada a circunstância qualificativa referida na al. a) do n.º 2 do art. 132.º do CP, segundo a qual, é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente ser descendente da vítima.
XXVIII - O instituto da atenuação especial da pena tem em vista casos especiais expressamente previstos na lei, bem como, em geral, situações em que ocorrem circunstâncias anteriores, contemporâneas ou posteriores ao crime que diminuem de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade de pena (correspondendo a necessidade de pena a exigências de prevenção), conforme dispõe o art. 72.º, n.º 1, do CP.
XXIX - Sendo seu princípio regulador a acentuada diminuição da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena, a atenuação especial da pena só pode ter lugar em casos extraordinários ou excepcionais, numa situação em que seja de concluir que a adequação à culpa e às necessidades de prevenção geral e especial não é possível dentro da moldura penal abstracta prevista para o tipo legal em causa.
XXX - A atenuação especial da pena só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar, sendo que, como se afirma no acórdão de 29-04-2015, proferido no processo n.º 791/12.6GAALQ.L2.S1 - 3.ª Secção, há incompatibilidade de atenuação especial de penas respeitantes a crimes com agravação com base na especial censurabilidade e perversidade.
XXXI - Na realização dos fins das penas – protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art. 40.º, n.º 1 do CP) –, nunca é demais frisar que as exigências de prevenção geral constituem, nos casos de homicídio, uma finalidade de primordial importância, pois a vida humana é o bem essencial, o valor fundamental, inviolável na expressão constitucional (art. 24.º, n.º 1, da CRP), sendo a comunidade abalada de forma muito intensa quando, por acto voluntário, se ofende a vida de um dos seus membros.
XXXII - Como se afirma no acórdão recorrido, o facto de o arguido, prestes a completar 65 anos de idade à data em que praticou os factos por que responde, nunca ter sido anteriormente condenado pela prática de crimes é revelador de um percurso pessoal consolidado na observância das regras de direito, pelo que a sua incriminada conduta dos presentes autos, não obstante a sua inegável gravidade, surge como um episódio isolado, donde resulta uma diminuição relevante do imperativo de prevenção especial que o caso suscita.
XXXIII - Salientando-se as exigências de prevenção geral que aqui se fazem sentir, mas sublinhando-se igualmente não serem prementes as exigências de prevenção especial suscitadas, tendo presentes todo o percurso de vida do arguido e que não se observam na comunidade sentimentos de rejeição, não obstante o crime praticado, considera-se que a pena de 12 anos e 4 meses de prisão satisfaz adequadamente aquelas exigências e é consentida pela culpa do recorrente.
XXXIV - A configuração da capacidade sucessória como requisito da vocação e a qualificação da indignidade como incapacidade deviam conduzir, em rigor, ao funcionamento automático do instituto. Verificada a condenação pelos crimes enumerados nas als. a) e b) do art. 2034.º do CC, ou praticados os ilícitos previstos nas suas als. c) e d), eles gerariam ipso facto, a indignidade.
XXXV - Não é este, todavia, o regime estatuído no CC, o que facilmente se apura a partir do seu art. 2016.º, norma que prevê a necessidade de uma acção destinada à declaração da indignidade, conclusão que se reforça com a nova redacção conferida ao art. 2036.º pela Lei 82/2014, de 30-12.
XXXVI - Em sede penal, mais se justifica, atentos os interesses em presença, o entendimento segundo o qual a declaração de indignidade não é um efeito necessário e automático da pena.
XXXVII - Por outro lado, o possível «efeito substantivo civil do crime», fundado na verificação dos pressupostos para a declaração da indignidade sucessória, deve figurar na acusação deduzida pelo MP, podendo convocar-se a justificação feita no AFJ 7/2008 que, não obstante se referir à omissão na acusação de uma pena acessória (no caso, a pena acessória de proibição de conduzir), tem aqui pertinência. Efectivamente, a omissão na acusação da possibilidade da declaração da indignidade sucessória em consequência do crime cometido pôs em causa as garantias de defesa do arguido.
XXXVIII - No caso em apreço, se é verdade que a acusação omite o efeito civil decorrente da prática do crime de homicídio sobre a mãe do arguido, o certo é que no julgamento em 1.ª instância, o Tribunal Colectivo proferiu despacho de alteração não substancial dos factos e da qualificação jurídica, nos termos do disposto no art. 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, tendo-se expressamente consignada na decisão do Tribunal Colectivo «[ter]-se procedido à comunicação da alteração não substancial dos factos e da possibilidade de se proceder à declaração de indignidade sucessória». Ficou, pois, acautelado o direito de defesa do arguido e respeitado o princípio do contraditório.
Decisão Texto Integral:

         Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

   

I – RELATÓRIO

         1. Por acórdão do Tribunal Colectivo do Juízo Central Criminal de Faro do Tribunal Judicial da Comarca de ..., proferido em 20 de Março de 2018 no Processo Comum nº 38/17.9JAFAR, foi decidido:

a)    Condenar o arguido pela prática de um crime homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º, n.os 1 e 2, alínea a), do Código Penal (e não nos termos em que vinha pronunciado pela alínea i) do n.º 2, do artigo 132.º), na pena de dezasseis anos de prisão;

b)    Declarar AA indigno para efeitos de capacidade sucessória relativamente a BB, nos termos do disposto nos artigos 2034.º do Código Civil e 69.º A do Código Penal.

         2. Desse acórdão, interpôs o arguido recurso para o Tribunal da Relação de Évora, através do qual:

        Impugnou a decisão sobre a matéria de facto, pedindo a sua absolvição;

         Subsidiariamente:

        - foi impugnado o juízo de enquadramento jurídico-penal dos factos, na parte relativa à qualificação do crime de homicídio;

         - foi pedida a condenação numa pena especialmente atenuada.   

        Por acórdão proferido em 25 de Setembro de 2018, deliberou o Tribunal da Relação de Évora:

a) Conceder provimento parcial ao recuso e revogar o acórdão recorrido, nos termos da alínea seguinte;

b) Condenar o arguido pela prática do crime de homicídio qualificado p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts 131.º e 132.º, nºs 1 e 2, al. a do CP, diminuindo a medida da pena para 14 anos de prisão;

Negar provimento ao recurso, quanto ao mais, e confirmar a decisão recorrida.

        3. Inconformado, recorre agora o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, rematando a respectiva motivação com as conclusões que se transcrevem:

         «CONCLUSÕES

1.ª O recorrente foi injustamente condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea a) do Código Penal, por ter entendido o Tribunal a quo que a sua conduta revela que conscientemente actuou com a intenção de tirar a vida à sua mãe e que o fez revelando especial censurabilidade e perversidade, com dolo a isso mesmo dirigido.

2.ª A decisão carece de fundamento legal e consubstancia violação de lei substantiva, concretamente em erro de interpretação e aplicação das normas legais aplicáveis, e redundando, consequentemente, em decisão manifestamente injusta, porque ilegal, tanto que resulta claro do acórdão recorrido que o Tribunal a quo formou a sua convicção em clara exorbitância do princípio da livre apreciação da prova e escudado no mais estrito formalismo no que à dita prova pericial carreada para os autos diz respeito. Violando desta forma o disposto nos arts. 127.º e 163.º do CPP.

3.ª Em resultado, viu o recorrente ser-lhe aplicada uma pena de catorze anos de prisão, quando, na verdade, se estava in casu perante escassa ou dúbia prova do preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do tipo criminal escolhido, o que impunha ao Tribunal a quo que não perdesse de vista, como irremediavelmente perdeu, o princípio in dubio pro reo, chegando mesmo nalguns aspectos o Acórdão recorrido a parecer aplicar um (ilícito) princípio in dubio contra reum.
4.ª Lido e relido o Acórdão recorrido, resulta claro que nenhuma das questões invocadas pelo recorrente no seu recurso antecedente foi ponderada e apreciada de forma crítica pelo Tribunal a quo e os factos que constituem o objecto do presente processo não se mostram, de todo, susceptíveis de integrar a previsão típica dos arts. 131.º e 132.º, n.os 1 e 2, al. a) do Código Penal.
5.ª É errado interpretar como esclarecida a causa da morte de BB e mais errado ainda entender como reveladoras as circunstâncias em que a mesma ocorreu; assim como é errado entender como estabelecido que o arguido, numa atitude de profundo desrespeito e desprezo pelo bem jurídico vida, e de especial distanciamento em relação a uma determinação normal do comportamento e de acordo com determinados padrões e valores de ordem social, é o responsável pela morte da sua mãe.
6.ª Trata-se aqui de um putativo crime sem móbil, como todos – todas as testemunhas, Tribunal de 1.ª instância e Tribunal de recurso – reconhecem, pelo que o recorrente é inocente. E é precisamente nos casos como o presente, em que a dúvida permanece (se bem que são ainda assim mais os indícios que apontam para a inocência do que aqueles que suportam um juízo de culpabilidade) que deve decidir-se pela absolvição.
7.ª A verdade é que, atenta a prova existente e mesmo os factos fixados, se correctamente interpretados, não se dissipou a dúvida razoável sobre a causa da morte da mãe do recorrente, nem muito menos se provou, para lá dessa mesma dúvida, que o trágico desfecho tenha resultado directamente da conduta (qual em concreto?) do recorrente, consciente e intencionalmente dirigida a esse fim.
8.ª E muito menos resulta dos autos, ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo, e entendeu ao arrepio das normas jurídicas aplicáveis, que a conduta do recorrente é passível de revelar especial censurabilidade ou perversidade. O Tribunal a quo, no acórdão recorrido, pronunciou-se em quatro vertentes essenciais, às quais correspondem os seguintes critérios decisórios que importa discutir e sindicar:
a)          Não aplicação do princípio in dubio pro reo. Para tal decidindo pela:
- Não ilisão da presunção de subtracção do juízo técnico científico da prova pericial à livre apreciação do julgador (163.º do CPP);
- Subvalorização da prova técnico-científica submetida pelo recorrente, ao abrigo da livre apreciação do julgador (127.º do CPP);
- Desconsideração (a ponto de à mesma se não referir, nem remotamente) da restante prova constante dos autos, ao abrigo da livre apreciação do julgador (127.º do CPP).
b)          Verificação de causas de especial censurabilidade ou perversidade de que depende a condenação pela prática de um crime de homicídio qualificado (art. 132.º, n.º 2 al. a) do CP), para tal accionando (ou ficcionando) uma putativa presunção (que entendeu não ilidir) de censurabilidade ou perversidade constante do supra referido preceito.
c)          Não verificação de quaisquer pressupostos de que depende a atenuação especial da pena (art. 72.º do CP), sem contudo fundamentar de forma minimamente satisfatória tal pronúncia, o que não permite, quanto a esta vertente, a extracção de qualquer critério decisório particular.
d)           Verificação dos pressupostos necessários à diminuição da medida da pena, (arts. 40.º, 71.º do CP), por minoração do grau de culpa do recorrente e ausência de antecedentes criminais atenta a sua idade, de onde resulta a diminuição do imperativo de prevenção especial da pena.

9.ª Em consequência, o Tribunal recorrido considerou provada a matéria constante dos pontos 18) a 36) dos factos dados como provados pelo Tribunal de 1.ª instância e que o recorrente entendeu, e entende, terem sido incorrectamente julgados. Ainda em consequência, o Tribunal recorrido considerou não provada a matéria constante das alíneas b), c), z), aa) e hh) dos factos dados como não provados pelo Tribunal de 1.ª instância e que o recorrente entendeu, e entende, terem sido incorrectamente julgados.

10.ª O princípio in dubio pro reo, enquanto “corolário fundamental do princípio da presunção de inocência”, em particular no que respeita à apreciação da prova, encontra consagração, quer a nível constitucional por via do artigo 32.º, n.º 2 CRP, quer a nível jurídico-internacional por via do artigo 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, quer ainda a nível comunitário por via do n.º 1 do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
11.ª Bem tem entendido a jurisprudência que a operacionalização do princípio in dubio pro reo se relacionada directamente com a convicção do julgador acerca do grau e da solidez da dúvida (e da certeza) que a prova recolhida no processo possibilita, dentro dos limites legais da sua apreciação e valoração.
12.ª Ora, sendo a finalidade do conjunto da prova formar a convicção do julgador sobre todos os elementos necessários para a decisão da causa, quando permanece, como in casu se verifica, a dúvida razoável e insuperável acerca da concretização, por parte do arguido, de um ato material criminoso, concretizador de um elemento intelectual e volitivo orientado para a finalidade concreta do tipo criminal em crise (elementos estes que carecem de prova igualmente capaz de afastar a dúvida razoável), não restaria ao Tribunal a quo qualquer outra decisão que não fosse a de fazer accionar o princípio in dubio pro reo.

13.ª Injustamente, assim não se decidiu no Acórdão recorrido, apesar de nada na prova carreada para os autos – científica, pessoal e documental – comprovar, com a certeza exigível a uma condenação, que tais elementos se encontram preenchidos.

Resulta claro que o Acórdão recorrido decidiu considerar provada a matéria constante dos pontos 18) a 36) dos factos dados como provados pelo Tribunal de 1.ª instância, muito, ou quase exclusivamente pelo que se fez constar do Relatório da autópsia médico-legal.

14.ª Sucede que, ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo, apesar da autópsia concluir que as lesões sofridas pela vítima que redundaram na sua morte são consentâneas com a existência de uma “acção traumática de natureza contundente”, a possibilidade de tal ter resultado de uma queda acidental – semelhante a tantas outras sofridas pela vítima, mas com desfecho mais grave – não pode ser afastada, devendo mesmo ser considerada como possível, razoável e até como mais provável.

15.ª Tal conclusão resulta de prova com teor técnico-científico e com valor substancial idêntico, não o considerar é assumir um (errado) entendimento híper-formalista do valor da prova.
16.ª Entende, erradamente, o Tribunal a quo que o cumprimento do formalismo genérico prescrito no art. 159.º do CPP é garante, sem mais, do valor reforçado da prova pericial. E o Acórdão recorrido socorre-se exactamente do mesmo (híper-formalista) argumento para desvalorizar a prova técnico-científica submetida pelo recorrente, referindo que, estando fora do âmbito dos arts. 151.º e ss. do CPP, então não goza de valor probatório reforçado, ficando sujeito à livre (des)apreciação do juiz.
17.ª Como se o referido princípio de livre apreciação ínsito no art. 127.º do CPP correspondesse a um princípio de livre condenação. Pelo contrário, tal princípio não deixa de ser escrutinável, de ter regras de aplicação, enfim, de ter limites (positivos e negativos) que controlem e temperem a decisão e que foram, in casu incumpridos.
18.ª O Tribunal a quo sobrevalorizou prova pericial que de pericial apenas retém o formalismo (o que, ainda assim é discutível) e, simultaneamente, desvalorizou prova técnico-científica fidedigna e contraditória com as conclusões da autópsia, que, ao abrigo da livre apreciação – quando exercida dentro dos limites impostos e exigidos – deveria ter valorizado.
19.ª Isto é, deveria o Tribunal a quo ter entendido elidir a presunção constante do art. 163.º do CPP, sujeitando a substância da prova pericial em causa ao princípio da livre apreciação, e também poderia, e deveria, ter, ao abrigo desse mesmo princípio, valorizado a substância da prova técnico-científica junta pelo recorrente, que contraria as conclusões da autópsia.

20.ª São vários os vícios substanciais que encerra a prova técnico-científica, que a descredibilizam e que, ao contrário do propalado no Acórdão recorrido, em última análise, resultam na violação do disposto nos arts. 151.º e seguintes do CPP, designadamente nos arts. 152, n.º 1, 157.º, n.º1 e 163.º, desde logo porque a autópsia não foi realizada segundo as normas da arte do INML, como aliás se encontra devidamente documentado nos autos, mas também porque o relatório identifica de forma incompleta e incorrecta diferentes lesões, não descrevendo as mesmas com a minúcia exigida (e.g. não refere dimensões, cor, estado geral, antiguidade, entre outras características). Estas razões bastariam para resultar evidente que ao procedimento da autópsia e ao respectivo relatório deveria ser subtraído o epítomo de prova pericial para efeitos do art. 163.º do CPP.

21.ª As verdadeiras conclusões quanto à causa de morte e ao possível e concreto envolvimento do recorrente na mesma, apenas poderiam atingir-se se todos os procedimentos técnico-científicos devidos tivessem sido cumpridos. Sucede que não foram cumpridas as principais, e fundamentais, etapas da autópsia médico-legal e da cadeia de custódia da prova, designadamente,

- não foi feito o exame do corpo no local;

- não foi realizada com proximidade temporal, tendo-se realizado três dias depois da morte;

- não foram realizados os exames imagiológicos exigidos que permitissem registar lesões internas que pudessem identificar os mecanismos dos traumas ou a sua dinâmica, assim como os sinais deixados pelo objecto ou agente contundente;

- não foram devidamente identificadas as lesões existentes (ou figuradas) e os seus desenhos, as deformações, os sulcos ou achados traumáticos (cortantes, perfurantes, corto perfurantes, contundentes);

- não são descritas as fracturas quanto ao tipo, à forma, às dimensões, localização anatómica e existência, ou não, de sinais de vitalidade da lesão, sendo disso exemplo a ausência de exames radiológicos ou, pelo menos, da descrição dos sinais nas estruturas ósseas ou de identificação do tempo de evolução das lesões;

- não são documentados ou descritos os sinais positivos de morte, o que impossibilita a melhor estimativa do momento da sua ocorrência;

- não foi feita a recolha e análise da informação/documentação disponível - policial, clínica, social ou outra, desde logo sobre os antecedentes da mãe do arguido - não foi disponibilizado ou pedido sequer relatório de informação social, designadamente familiar.

22.ª Isto é, aquela prova que o Acórdão recorrido entende dever manter o carácter de prova pericial (e o respectivo valor probatório acrescido) corresponde a trabalho mínimo. Conclusão que não se altera (bem pelo contrário, apenas se reforça) através das explicações genéricas do seu autor em sede de julgamento.

23.ª Apesar de não se encontrarem subtraídos à livre apreciação do julgador (o que não equivale a dizer que possam ou devam ser pura e simplesmente ignorados, ou grosseiramente treslidos) os dois Pareceres técnico-científicos juntos pelo recorrente, elaborados por duas Médicas Especialistas em Medicina Legal e Forense independentes, ambas com experiência e curriculum vasto na área, isto é, reunindo a competência técnica que esteve, infelizmente, em falta na autópsia, contrariam frontalmente a conclusão a que chegou o Acórdão recorrido.

24.ª Em concreto, analisado o conteúdo desses mesmos pareceres, resulta evidente que:
- a autópsia violou, de forma manifesta e grosseira, os requisitos mínimos de qualidade e rigor exigíveis ao caso;
- que o relatório da autópsia extrapola conclusões que não pode extrapolar;
- o relatório deixa por concluir factos essenciais favoráveis à tese da queda acidental, que inocenta o arguido e outros, contrária à tese defendida na decisão recorrida, isto é, à tese do envolvimento de mão criminosa, no qual se baseou a sua condenação.

25.ª Resultando evidente dos Pareceres Médico-Legais juntos pelo Recorrente que o Acórdão recorrido não apenas incorreu em erro de apreciação da prova, como, erradamente, julgou suficiente para a decisão a matéria dada como provada, quando esta é, manifestamente insuficiente!

26.ª Portanto, quando se refere no Acórdão recorrido que é a inexistência de lesões defensivas o principal argumento para sustentar a maior probabilidade de uma queda acidental, pura e simplesmente não se está a ser rigoroso. Lendo os Pareceres em causa, resulta evidente que, não só não se afasta a queda acidental (e tal deveria ser suficiente para absolver, especialmente quando nada na restante prova permite também afastar esta tese), como esta é a tese com maior probabilidade, designadamente porque:
- há elementos (hemorragia e edema) que apontam para uma morte diferida e não imediata;
- a fractura na face é uma fractura linear como as que são causadas principalmente por acidentes de trânsito e quedas” e não em “mosaico” ou “teia de aranha”, o que sugere um “impacto de baixa energia, como o decorrente de uma queda inferior à própria altura”;

27.ª Quando se debruçou o Tribunal a quo sobre a ausência de lesões defensivas nos membros superiores da vítima, incorreu em erro notório na apreciação da prova. É verdade que, em caso de agressão, uma pessoa com a fragilidade da mãe do recorrente poderia, em tese, não ter condições para se defender. Todavia tal, implicaria um ato insidioso que o Tribunal de primeira instância entendeu, bem, não se encontrar provado. E assim sendo também o Tribunal a quo deveria ter concluído que uma ausência de defesa também é passível de ocorrer nas quedas acidentais (como tantas vezes ocorrera com a mãe do recorrente no passado, com menores consequências).

28.ª O que não pode fazer-se é, como fez o Acórdão recorrido, defender que a mãe do recorrente teria características físicas, psíquicas e motoras diferentes para reagir em caso de queda ou em caso de agressão não insidiosa. Tal dualidade de interpretações, movendo tudo e nada fixando, ultrapassada todos os limites do princípio da livre apreciação da prova, violando o art. 127.º do CPP.

29.ª Mais, foi o próprio autor da autópsia que reconheceu, no seu depoimento, que a ausência de defesa tanto se poderá colocar num caso de agressão, como num caso de queda acidental. Sucede que as regras técnicas da experiência, como indica o Parecer elaborado pela Dra. CC, indica que a maior probabilidade reside do lado da queda acidental.

30.ª E de pouco ou nada vale encetar, como se fez no Acórdão recorrido, uma dúbia distinção entre “gestos reflexos e involuntários de autoprotecção” e “actuações voluntárias para se resguardar de uma agressão”, para concluir que a inexistência de qualquer dos tipos aponta no sentido da agressão. Nada, em lado nenhum dos autos se reporta a tal distinção e muito menos permite inferir conclusão semelhante!

31.ª Já no que diz respeito à tipologia das fracturas (“linear” versus “tareia de aranha”) conclui o Acórdão recorrido que esta é apenas dominada pelos especialistas, mas que “de acordo com a formulação do parecer, tratar-se-á de uma regra meramente tendencial, pelo que não é de molde a desmentir a convicção formada pelo Tribunal de julgamento, com base no relatório da autópsia”, resulta evidente que a razoabilidade, a tendência, a probabilidade, só é valorizada em desfavor do recorrente, como se aplicasse um (ilegítimo) princípio in dubio contra reum.

32.ª Mais, como resulta claro da opinião de dois médicos especialistas – leia-se médicos especialistas na área médica em causa – diferentes e independentes entre si “os achados (...) implicam que após o traumatismo a vítima tenha estado viva o tempo suficiente para surgirem as alterações descritas, podendo inferir-se claramente e de forma inequívoca, que a morte da vítima não foi imediata”!!

33.ª Em suma, a autópsia não pode ser considerada como uma prova pericial na acepção técnica e jurídica do termo (por referência aos arts. 151.º e seguintes do CPP), porque não se cumpriram diversos procedimentos básicos e elementares para um exame do género, como a literatura científica internacional e as próprias guidelines do INML para este tipo de procedimento.

34.ª O cumprimento escrupuloso das leges artis no procedimento pericial técnico-científico é exigível, sindicável e injuntivo, porque é um garante da decisão correta, acertada, rigorosa e justa. E este escrutínio cabia ao Tribunal a quo, que se demitiu de o realizar de forma crítica.

35.ª Ora, o que o Acórdão recorrido fez foi assumir, erradamente, que o valor reforçado da prova pericial resulta do mero cumprimento formal do art. 159.º do CPP (lido em conjugação com o disposto no art. 163.º do CPP), mesmo reconhecendo que in casu as legis artis não foram respeitadas.

36.ª E somou outro erro ao erro anterior quando comparou, já ao abrigo do art. 127.º do CPP, os resultados da autópsia e da prova técnico-científica junta pelo recorrente, treslendo esta última a ponto de subverter as conclusões que aí se expendem, o que é uma claríssima violação dos limites paramétricos do próprio princípio da livre apreciação da prova.

37.ª Portanto, de acordo com o Acórdão recorrido, as conclusões da autópsia em crise estão simultaneamente abrangidas e subtraídas da livre apreciação do julgador, consoante a conveniência (leia-se, para a condenação), o que constitui um erro jurídico-qualificativo inaceitável.

38.ª Isto porque, para que se apreciasse a mesma ao abrigo do art. 127.º do CPP, seria necessário ilidir a presunção constante do art. 163.º do CPP que o Acórdão recorrido expressamente julgara não ilidida.

39.ª Concluindo:
- Não existem no processo elementos que permitam afastar uma tese de queda acidental como estando na origem da morte da mãe do recorrente;
- não existem, nas mesmas fontes, elementos que permitam concluir que a tese de intervenção de terceiro – isto e, de crime – é aquela que é mais provável;
- Existem, nas mesmas fontes, elementos que permitem concluir que a tese da queda acidental é aquela que é mais provável.
40.ª O que impõe que, em respeito por qualquer interpretação legítima do disposto nos arts. 151.º e ss. do CPP, máxime no art. 162.º, e no art. 127.º do mesmo diploma, se absolva o recorrente por recurso ao princípio in dubio pro reo.

41.ª A isto acresce o facto de ter o Tribunal a quo ignorado olimpicamente a restante prova forense e testemunhal. Desde logo o facto de a investigação ter chegado à recolha de vestígios hemáticos através da precisa e voluntária indicação do recorrente, do local onde a mãe caíra, identificando especificamente os degraus da escada onde o sangue viria a ser encontrado. Mais, que foi o recorrente que, quando perguntado pelo remanescente da estátua que colocara no lixo, indicou voluntariamente onde o mesmo poderia ser encontrado.

42.ª Mais ainda, tendo a mãe caído acidentalmente e tendo o recorrente ajudado a mesma a levantar-se e tendo colocado a mesma na cama, não surpreende que se tenham encontrado vestígios do sangue da mãe na camisola que o arguido vestia, assim como não surpreende que este tenha limpo as escadas com papel de cozinha, e as pernas feridas da mãe com papel higiénico, ou o chão com papel de cozinha.

43.ª Nada disto surpreende ou pode ser afastado, razão pela qual se não pode, como fez o Tribunal a quo, de forma acrítica, embarcar na ficção de uma tese alternativa, apenas porque a mesma conduz a um terminus compadecente com intervenção criminosa.

44.ª De facto, uma vez mais atenta a prova produzida, desde logo e à cabeça a resultante dos pareceres médico-legais supra discutidos, não é de excluir, mas sim de valorizar como provável, que BB tenha caído acidentalmente nessa noite, sendo essa a causa da sua morte, morte essa que terá ocorrido, não de forma imediata, mas diferida no tempo, quando esta já não se encontrava na presença do recorrente, e isto porque de outro modo não teria sido possível a formação de qualquer hematoma e do edema na sua face, sendo expectável, isso sim, a formação de livores cadavéricos, que não se observaram.

45.ª E que também é provável e razoável que, perante a queda, o recorrente, na sua aflição que era a aflição de todos os dias, não se apercebeu então, à noite, da existência de qualquer “deformação no maxilar”, ou de qualquer hematoma. Até porque nem na manhã do dia seguinte, em plena luz do dia, uma profissional de saúde “habituada a ver fracturas expostas” se conseguiu aperceber imediatamente da fractura exposta resultante da pancada que terá sido causa da morte da vítima. Pelo contrário, só após o toque é que se apercebeu que algo havia de “estranho”, tendo nesse momento mobilizado o queixo da vítima e, não pode excluir-se, porventura exposto de forma mais significativa o tipo ósseo em causa.

46.ª Já quanto à presença de um pingo de sangue da mãe do recorrente na estátua, a mesma nada prova também, desde logo porque, também nas mesmas escadas onde caiu a estátua, terá caído a mãe do recorrente, local onde se encontraram vestígios hemáticos. E também assim na camisola do recorrente (entretanto colocada, junto com a restante roupa a lavar), o que sugere e indicia que a origem daquele vestígio poderá ser indirecta.

47.ª Mais, o vestígio hemático recolhido na estátua de cerâmica apresentava uma forma punctiforme, sugestivo de contaminação através de uma gota única e não de um esguicho, feixe ou quantidade dispersa, como certamente seria o caso se tivesse sido este o objecto usado numa pancada que tivesse provocado a lesão fatal na vítima.

48.ª Mas, também a infundada tese da estatueta poder ser a arma do alegado crime não colhe porque este objecto tem uma espessura muito fina, incapaz de provocar ferimentos equivalentes aos provocados, que são muito mais condicentes com o contacto na com a pedra de mármore da escada, em resultado de uma queda acidental.

49.ª À probabilidade deste juízo acresce a total e completa ausência de móbil para o crime, que o próprio Tribunal a quo dá por verificada. Se algo ficou amplamente provado nos presentes autos (e que todos reconhecem) é a relação pacífica e harmoniosa que o recorrente sempre manteve com a sua mãe.

50.ª Consequentemente, não se configura como provável, ou sequer possível, que o recorrente, com a estrutura psicológica que possuía e possui, pautada por uma bondade natural e por uma tendencial imaturidade emocional, tenha tido o discernimento de decidir-se por tirar a vida da sua mãe, pessoa por quem nutria um afecto extremo. Não restam dúvidas de que o recorrente, no momento posterior à morte da mãe, estava desorientado, a sentir-se perdido e a precisar de ajuda.

51.ª A verdade é que ressalta evidente que o mesmo não sabe como a mãe morreu, procurando e verbalizando (com as suas dificuldades de expressão) diferentes explicações que, na sua ingenuidade, conjectura como possíveis causas da morte da mãe. Sucede que tal incapacidade de expressão, de explicação e de memória não pode, em caso algum, fazer-se equivaler à culpa do recorrente.

52.ª Ora, sendo este o único verdadeiro complemento à leitura e valorização que o Tribunal a quo fez da prova técnico-científica, resulta evidente que a condenação constante do Acórdão recorrido é carente de base legal, violando, destarte, os arts. 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, al. a) do Código Penal.

53.ª Mais, os factos constantes da alínea aa) – referentes às alterações psíquicas sofridas pelo recorrente decorrentes do síndrome de burnout - dados como não provados pelo tribunal de primeira instância e assim mantidos no Acórdão recorrido deviam, para além de terem sido levados pelo Tribunal a quo à matéria de facto provada, também servir para explicar, ou pelo menos contextualizar e desvalorizar a conduta e declarações do recorrente, após ver morrer a sua mãe.

54.ª Aliás, muito espanta que o Acórdão recorrido se deixe cair na incoerência de dar como provado tal síndrome de burnout (cfr. ponto 71 dos factos provados) e, ao mesmo tempo, entender que inexiste prova científica de alterações psíquicas daí decorrentes, o que é, em si mesmo, patente e grosseira contradição insanável da fundamentação.

55.ª Mas revela também nova dificuldade do Acórdão recorrido em articular o disposto nos artigos 127.º, 151.º e 163.º do CPP. Não pode o Acórdão recorrido desqualificar por completo a avaliação psicológica forense realizada ao recorrente. Impõe-se concluir que o relatório psicológico em causa é prova científica e que assim devia ter sido tratado (e valorizado) no Acórdão recorrido e não foi, resultando em violação dos artigos supra referidos. E mesmo assim não sendo considerado, devia, pelo menos, ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova ter sido valorizado, uma vez que este não é um princípio sem limites: não é um princípio de livre ignorância da prova.

56.ª O recorrente não matou a mãe, não escondeu qualquer indício, nem iludiu qualquer investigação. Se o seu discurso não apresentou a coerência reputada pelo Tribunal a quo como exigível, tal não pode, atendendo sempre à relação umbilical existente entre o arguido e a sua mãe, servir para o reputar de homicida (ou muito menos homicida perverso), esquecendo que o trauma tem, na coerência da memória e do discurso, efeitos directos concretos.

57.ª Incoerência memorativa não equivale a culpa, inconsistência discursiva não equivale, de modo algum, a uma confissão, expressa ou tácita. Incoerência ou reconstrução da história pode significar muitas coisas – exaustão, esquecimento, confusão, dúvida, negação, abandono, solidão - não significa necessariamente e, neste caso, não certamente - dissimulação da culpa no seu sentido jurídico-penal. O que nos leva sempre à violação do princípio in dubio pro reo no Acórdão recorrido.

58.ª Não estando minimamente preenchidos in casu os elementos objectivos e subjectivos – designadamente os elementos intelectual e volitivo do dolo - do tipo criminal de homicídio simples, muito menos se encontram preenchidos os respectivos elementos – maxime o dolo específico - referente ao crime de homicídio qualificado, pelo qual foi o arguido, recorrente, condenado.
59.ª Mesmo a ser entendido como verdade (o que não se concede), que foi a conduta do recorrente que resultou na morte da sua mãe, o certo é que o caso concreto não evidencia a existência de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente apta a qualificar a sua conduta nos termos do n.º 1 do art. 132.º, do CP.
60.ª É entendimento unanimemente consagrado na doutrina e na jurisprudência que a verificação de um dos exemplos-padrão do n.º 2 do art. 132.º não implica, mas somente indicia, a existência de especial censurabilidade ou perversidade. Tais indícios têm, sempre, de ser confirmados através de uma ponderação global das circunstâncias do facto e da atitude do agente nelas expressa, e isso exige uma ponderação final da atitude deste no momento da prática do facto e dos motivos presentes na sua origem.
61.ª O que o aplicador tem de fazer é, tão só, partir da situação tal como ela foi representada pelo agente e, a partir dela, perguntar se a situação, tal como foi representada, corresponde a um exemplo-padrão ou a uma situação substancialmente análoga; e se, em caso afirmativo, se comprova uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. Concretamente no que respeita aos exemplo-padrão elencados no n.º 2 do art. 132.º, os mesmos posicionam-se não enquanto elementos constitutivos do tipo de ilícito homicídio, mas antes como elementos constitutivos do tipo de culpa, e é nessa sede que carecem de ser valorados e devidamente ponderados no caso concreto.

62.ª Sucede que o Tribunal a quo apenas tece considerações que apontam para uma quase-automaticidade, ou uma automaticidade a priori, ou mesmo uma presunção de verificação (isto porque é do senso comum presumir que mãe e filho nutrem amor e respeito mútuo) dos pressupostos do n.º1 do art. 132.º do CP através da verificação da cláusula-tipo constante da al. a) o n.º 2 do mesmo preceito. Ora tal entendimento é tudo menos “ponto assente” na jurisprudência dos tribunais superiores portugueses (e na doutrina, bem entendido).

63.ª A interpretação jurídica realizada pelo Tribunal a quo no Acórdão recorrido, não encontra adesão, sequer remota, ao entendimento que tem sido, a este propósito, expendido pelos Tribunais Superiores ou defendido pela doutrina jurídica. Ao contrário do que afirma o Acórdão recorrido, não existe, na correta interpretação normativa da al. a) do n.º2 do art. 132.º do CP (em conjugação com o n.º 1 do mesmo preceito), qualquer censurabilidade ou perversidade a priori, apenas afastável pela prova de inexistência de vínculos afectivos ou laços emocionais entre, in casu, mãe e filho.

64.ª Repare-se na incoerência: o Tribunal a quo não valoriza o profundo amor e respeito que caracterizavam a relação do recorrente com a mãe (apesar de os reconhecer “abundantemente” provados), para, ao abrigo do princípio de livre apreciação da prova ínsito no art. 127.º do CPP, entender pela inverosimilhança do crime e pela permanência da dúvida que imporia a absolvição daquele por recurso ao princípio in dubio pro reo, mas, contudo, sobrevaloriza tais características para fazer operar, de forma extensiva, abusiva e absolutamente desligada do Direito, uma cláusula de quasi-automaticidade, automaticidade a priori, ou presunção de censurabilidade e perversidade que entendeu ficcionar, sem provas nem factos.

65.ª Resulta, pois, clara, a contradição insanável entre a fundamentação expendida no Acórdão recorrido e a decisão aí plasmada. Ao contrário do que defende o Acórdão recorrido, a qualificação do crime de homicídio (operada pela conjugação do disposto nos n.ºs 1 e 2 do art. 132.º do CP), não é um ponto de partida, é um ponto de chegada.

66.ª Para concretizar a operatividade do disposto nos n.ºs 1 e 2 al. a) do art. 132.ºdo CP impõe-se que se prove que a concreta conduta do agente, quando inserida na concreta relação em causa, revele especial censurabilidade e perversidade.

67.ª Não se pode fazer incidir um juízo de censura prévia acrescida sobre uma conduta inserida numa relação de afiliação onde impere o respeito e o amor, em comparação com a mesma conduta quando inserida numa tal relação de afiliação, mas onde impere, por exemplo, o desrespeito, o desinteresse, o desamor, ou mesmo, no limite, o ódio ou a violência.
68.ª Tal seria realizar uma interpretação da letra e do espírito dos n.ºs 1 e 2 al. a) do CP que não é minimamente razoável. Razão pela qual, violou o Acórdão recorrido estes mesmos preceitos, contrariando não apenas a letra e o espírito da lei, como o espírito da própria ordem jurídica. Quando muito, sempre sem conceder, a origem dos fatais acontecimentos estaria num estado de afecto do arguido motivado por circunstâncias várias e pelo esgotamento, resultante do síndrome de burnout de que padecia.
69.ª O artigo 133.º do Código Penal, referindo-se ao homicídio privilegiado, consagra uma atenuação especial da culpa e da pena do agente que pratica o facto numa das circunstâncias típicas nele previstas. O privilegiamento assenta, aí, numa cláusula de exigibilidade diminuída legalmente concretizada, num especial tipo de culpa: estados de afecto ou motivações socialmente atendíveis e não censuráveis que provoquem, em concreto, uma diminuição sensível da culpa do agente.
70.ª Em suma, na especial intensidade do estado emocional que se apodera do agente e nas limitações que esse mesmo estado traz à sua capacidade psicológica para dominar os seus impulsos e determinar a sua vontade em conformidade com os ditames do Direito e ordem social.
71.ª Um forte estado de afecto emocional provocado por uma situação pela qual o agente não pode ser censurado e que limita a sua capacidade de se motivar concretamente pela proibição, produzindo no agente uma momentânea e violenta perturbação do seu psiquismo, com alterações somáticas e fenómenos neurológicos e motores bem patentes.
72.ª Por outro lado, a emoção que domina o agente tem de ser compreensível, i.e., socialmente tolerável ou respeitável. Para avaliar a compreensibilidade da emoção, a mesma de ser avaliada na perspectiva de um observador objectivo e correspondente ao mesmo tipo social do agente, analisando-se se a situação vivenciada pelo agente é ou não adequada a produzir uma emoção semelhante numa pessoa do mesmo tipo social.
73.ª Nestes termos, será de entender menos exigível o controlo emocional a quem fica “fora de si” numa determinada situação se concluirmos que uma pessoa do mesmo tipo social experimentaria uma reacção emotiva em tudo semelhante se colocada numa situação idêntica. Falamos, no caso concreto, de um estado de afecto que tanto pode ser explicado por uma ruptura da estrutura cognitiva e emocional do arguido, como por um processo de agudização da sua incapacidade de resolução de conflitos numa situação de extrema vulnerabilidade passional.
74.ª O arguido Amândio Pereira tem, por tudo isto, de ver a sua culpa atenuada não apenas em função da situação objectiva que viveu, mas principalmente em função do real estado emocional em que se encontrava. A ter sido cometido, o que se não concede mas se conjectura apenas por mera cautela de patrocínio, o crime perpetrado pelo arguido foi-o, efectivamente, no âmbito de um estado de afecto, de uma emoção compreensível que, mais do que isso, e à luz de tudo o que deixou exposto, atenua sensivelmente a sua culpa.
75.ª É, por fim, evidente que situações podem existir em que concorram, ao mesmo tempo, elementos privilegiadores do art. 133.º com elementos constitutivos de um exemplo-padrão previsto no art. 132.º. No entanto, a natureza das cláusulas previstas no art. 133.º do Código Penal faz, pois, com que o preceito, uma vez preenchido, como sucede in casu, impeça a aplicação do art. 132.º do mesmo Código. As cláusulas de culpa diminuída são materialmente incompatíveis com a culpabilidade exigida implicitamente pelo art. 131.º e, positivamente, pelo art. 12.º, n.º 1.
76.ª Decidindo-se pela responsabilidade penal do recorrente, há, por tudo, que proceder-se a uma alteração da qualificação jurídica atribuída aos factos em discussão, subsumindo-os à previsão do artigo 133.º do Código Penal e, nesse sentido, condenando-se o arguido Amândio Pereira não num crime de homicídio qualificado, mas num crime de homicídio privilegiado.
77.ª O princípio in dubio pro reo, enquanto corolário fundamental do princípio da presunção de inocência, encontra-se intrinsecamente ligado ao princípio da culpa e é violado se, não estando o juiz convencido sobre a existência dos pressupostos de culpabilidade do agente, ele pronuncia uma sentença de condenação. E, no caso concreto, de forma alguma poderia o tribunal a quo ter-se recuado a admitir a verificação de uma dúvida razoável sobre a existência de um estado de afecto que diminua sensivelmente a culpa do arguido e a exigibilidade que sobre si impendia de se conformar com um comportamento fiel ao direito.
78.ª A existência, pelo menos, de uma dúvida quanto a esse respeito é inegável, porquanto nele, efectivamente, se mostram verificados, pelo menos, fortíssimos indícios de algumas das cláusulas do art. 133.º do CP. Tais indícios devem, evidentemente, beneficiar da aplicação do princípio in dubio pro reo, quanto mais não seja porque, subsistindo uma dúvida sobre a verificação das circunstâncias do art. 133.º, assente em indícios materiais, é materialmente impossível fundamentar-se a convicção necessária para aplicar ao caso concreto os arts. 131.º e 132.º do CP.
79.ª O princípio in dubio pro reo, quando aplicado a normas favoráveis, faz com que as dúvidas sobre a sua verificação conduzam a que as respectivas cláusulas favoráveis produzam o seu efeito tal como se tivesse logrado produzir sobre elas uma prova completa. A existência de dúvidas fundadas sobre a aplicação das cláusulas do art. 133.º mostra-se mais do que suficiente para afastar a aplicação quer do regime do homicídio simples, quer do regime do homicídio qualificado.
80.ª Em síntese, a incompatibilidade material dos artigos em causa implica [...] que verificada a existência de indícios das cláusulas do art. 133.º não existirá a “convicção para além de qualquer dúvida razoável” sobre o grau de culpa necessário para aplicar o art. 131.º ou o art. 132.º. Por tudo isto, na ausência de dúvida sobre a condenação mas na dúvida sobre a verificação das cláusulas privilegiantes do art. 133.º do CP, sempre deveria o tribunal a quo ter decidido pro reo, qualificando a conduta do arguido no quadro do homicídio privilegiado.
81.ª Já quanto ao tipo, à espécie e à medida da pena, se, por um lado, o Acórdão recorrido cita de forma rigorosa o seu padrão aferidor, por outro aplica-se de forma absolutamente desproporcionada o mesmo, violando dessa forma o disposto nos arts. 40.º, 71.º, 72.º e 73.º do Código Penal, desde logo porque, e apesar de ter dado provimento ao recurso anterior apresentado pelo recorrente e reduzido em dois anos a pena de prisão que lhe fora imposta, ainda entende o Tribunal a quo serem bastante elevadas as exigências de prevenção geral e especial, quando, na verdade, tais exigências se não revelam, de forma alguma, particularmente elevadas no caso presente.

82.ª Veja-se, a este propósito, o que foi dado como provado acerca do sentimento presente da comunidade em relação ao recorrente. A condenação do recorrente, porque injusta, quando muito, se causou algum alarme na comunidade, foi pelo facto de se não encontrar um único membro que acredite na sua culpa. Mais, também no que diz respeito à integração deste na sociedade, não estando esta comprometida não se vislumbram quaisquer particulares exigências de prevenção especial.

83.ª Mais, o recorrente goza de variadas e profundas atenuantes, como são, entre outros, o seu carácter e personalidade pacíficos e altruístas, a relação de proximidade, carinho e respeito que mantinha com a mãe, o dever e o sentido de comunidade expressos no trabalho de voluntariado que sempre exerceu, a ausência de antecedentes criminais nas mais de seis décadas de vida, o exímio cumprimento do regime de reclusão a que se encontra submetido à ordem do presente processo

84.ª Assim, sendo e por estas razões, impõe-se, em caso de condenação – o que não concede mas que se conjectura por mera cautela de patrocínio – a aplicação de uma pena particularmente atenuada, que considere, em toda a sua expressão, âmbito e alcance passado, presente e futuro, considerando particularmente a saúde débil e a esperança de vida do recorrente. Apenas assim se respeitando e não violando, como fez o Acórdão recorrido, o disposto nos arts. 40.º, 71.º, 72.º e 73.º do Código Penal.  

85.ª Assumindo-se como meramente exemplificativas e não automáticas as circunstâncias atenuantes da pena consignadas no art. 72.º do CP, não se compreende como pode o Acórdão recorrido rebater que as condições do recorrente se não enquadram nessa mesma previsão sem que fundamente tal entendimento, o que, em si mesmo, configura omissão de pronúncia intolerável. Tal ausência de fundamentação (o que não permite a extracção de um critério decisório particular) resulta também em violação do disposto no art. 375.º, n.º1 do CPP, uma vez que preclude a sindicância da decisão de forma informada.

86.ª Mesmo tendo o Acórdão recorrido entendido estarem verificados os pressupostos necessários à diminuição da medida da pena (por recurso aos arts. 40.º e 71.º do CP), por minoração do grau de culpa do recorrente e ausência de antecedentes criminais atenta a sua idade, de onde resulta a diminuição do imperativo de prevenção especial da pena, ainda assim é nosso entendimento que devia o Tribunal a quo  ir mais longe.

87.ª Assumindo (sem conceder) que a moldura penal para o crime de homicídio qualificado tem como limite inferior os doze anos de prisão, julgamos que está amplamente provado nos autos, para lá de qualquer dúvida minimamente razoável, que este é um caso onde impõe a aplicação da pena mínima, por ser esta a única verdadeira medida de razoabilidade.

Em suma

88.ª O arguido, ora recorrente, não é um homicida. Foi e assim se mantém, agora apenas em dimensão imaterial, um filho dedicado, atento, extremoso, carinhoso e zeloso, que tudo fez, até ao limite das suas forças para proporcionar à sua mãe, pessoa a quem dedicou toda a sua vida, a vida mais confortável e feliz possível. Destes factos estão os autos repletos de prova e prova cabal. Pelo contrário, de factos que o incriminem e que apontem, para lá da dúvida razoável, para uma tese que tem no seu centro o seu envolvimento na morte da sua mãe, designadamente recorrendo a uma estatueta presente em casa para disferir diversas pancadas nas suas costas e cabeça, não se fez prova convincente.

89.ª Mais, fez-se, isso sim, prova diversa e prova que dá conta da estranheza, da improbabilidade e da sinuosidade de tal tese, em contraponto com uma outra alternativa, mais provável e mais consentânea com o passado e o presente contexto, em que a mãe do arguido sofrera, como tantas outras vezes no passado, uma queda acidental. Razão pela qual se impõe a correcção do Acórdão recorrido, repondo-se, como é de Justiça, a legalidade concretizada na absolvição do recorrente, por aplicação correta do disposto nos arts. 13.º, 14.º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, al. a) do Código Penal.

90.ª Caso assim se não entenda, o que apenas se conjectura por mera cautela de patrocínio, sempre se impõe a sua condenação, não pela prática do crime de homicídio qualificado, mas sim de homicídio simples, por referência aos mesmos supra citados preceitos legais. Ou, caso ainda assim se não entenda, sempre se impõe a sua condenação, não pela prática do crime de homicídio qualificado, mas sim de homicídio privilegiado, por referência ao art. 133.º do CP. E, se ainda assim se não entender, o que, por maioria de razão, apenas também se conjectura por mera cautela de patrocínio, impõe-se, in casu, a aplicação de uma atenuação especial ou diminuição significativa da pena, nos termos do disposto nos arts. 40.º, 71.º, 72.º e 73.º do Código Penal, permitindo-lhe que cumpra a sua pena na comunidade.

Razões pelas quais se impõe a reposição da Verdade, como é de Justiça e o impõe a Legalidade, concretizada na absolvição do recorrente, por aplicação correta do disposto nos arts. 13.º, 14.º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, al. a) do Código Penal. Caso assim se não entenda, o que apenas se conjectura por mera cautela de patrocínio, sempre se impõe a sua condenação, não pela prática do crime de homicídio qualificado, mas sim de homicídio simples, por referência aos mesmos supra citados preceitos. E, se ainda assim se não entender, o que, por maioria de razão, apenas também se conjectura e salvaguarda por mera cautela de patrocínio, impõe-se, in casu, a aplicação de uma atenuação especial da pena, ou, no limite a diminuição significativa da medida da pena, nos termos do disposto nos arts. 40.º, 71.º, 72.º e 73.º do Código Penal.

Requer, muito respeitosamente, o recorrente a Vossas Excelências a realização de audiência oral junto deste Colendo Supremo Tribunal de Justiça, para discussão de todos os pontos constantes da motivação e conclusões do presente recurso.

Por fim, far-se-á Justiça concedendo-se provimento ao presente recurso, revogando a decisão recorrida e, em consequência, absolvendo-se o recorrente da condenação e da pena em que foi injustamente condenado ou, no limite, assim não se entendendo, o que não se concede, mas se invoca apenas por mera cautela de patrocínio, condenando o mesmo pela prática do crime de homicídio simples, atenuando-se especialmente, ou, no limite, diminuindo-se significativamente a medida da correspondente pena, permitindo-lhe que cumpra a sua pena na comunidade.»

         4. Respondeu o Ministério Público, dizendo:

«O arguido recorre do douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora em que foi mantida a decisão proferida em primeira instância, no sentido de o condenar pela autoria material de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º, nº 1 e 132º, nº 2, alínea a), do Código Penal, apenas divergindo da pena a aplicar, diminuindo-a de 16 para 14 anos de prisão.

Discorda da douta decisão recorrida alegando que “a mesma carece de fundamento legal e consubstancia violação da lei substantiva, concretamente em erro de interpretação e aplicação das normas legais aplicáveis e redundando, consequentemente, em decisão manifestamente injusta, porque ilegal”.

Pese embora o recurso para esse Alto Tribunal só possa versar reexame de matéria de direito, nos termos do artigo 434º do Código de Processo Penal e sem prejuízo do disposto no artigo 410º, nº 2 e 3, o recorrente não se coíbe de arremeter contra a decisão sobre a matéria de facto do Tribunal a quo.

Concretamente, e quanto ao reexame da matéria de direito, o arguido insurge-se quanto ao facto de o Tribunal a quo ter considerado verificada a circunstância qualificativa constante da alínea a) do nº 2 do citado artigo 132º, não ter considerado a existência dos pressupostos contidos no artigo 72º do Código Penal, além de ser excessiva a pena concretamente aplicada.

Entende, ainda, verificarem-se os vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova.

Relativamente à primeira das questões suscitadas, diremos o seguinte.

Nos termos do artigo 132º, nº 2, alínea a), do Código Penal,

2 - É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
a) Ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima;

        Sendo certo que o arguido era filho da vítima e que os exemplos-padrão constantes do nº 2 do citado artigo 132º não são de funcionamento automático, a filiação será a circunstância que menos celeuma levanta, uma vez que conforme se diz na decisão recorrida “a qualificação só deixará de operar na hipótese de os laços de afecto e respeito inerentes à referida relação familiar, por alguma razão, não necessariamente imputável ao agente passivo, não existam ou tenham deixado de existir” pelo que e “Consequentemente, inexiste razão para afastar, no caso concreto em apreço, a qualificação do crime de homicídio, por via da al. a) do nº 2 do art. 132º do CP, improcedendo a pretensão recursiva, nesta parte”.

         No que concerne à segunda das questões levantadas, a da eventual atenuação da pena, dispõe o artigo 72º do Código Penal:

1 - O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.

2 - Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:

a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;

b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
    c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
 d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.
  3 - Só pode ser tomada em conta uma única vez a circunstância que, por si mesma ou conjuntamente com outras circunstâncias, der lugar simultaneamente a uma atenuação especialmente prevista na lei e à prevista neste artigo.

Da matéria de facto provada não resulta qualquer circunstância que permita o arguido beneficiar da atenuação da pena prevista no preceito legal, supra, referido.

De facto, nem a ilicitude do facto, intensidade do dolo ou a natureza do crime, integrantes da matéria de facto provada, permitem conduzir a essa opção legal.

Igualmente não colhe a argumentação expendida pelo arguido sobre a existência dos vícios da decisão.

Na realidade, os vícios a que se reporta o nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal têm que resultar, forçosamente, do texto da decisão recorrida o que, manifestamente, não é o caso.

Conforme resulta do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 18 de Julho de 2013,

I. A insuficiência para decisão da matéria de facto provada não se confunde com a insuficiência da prova para os factos que erradamente foram dados como provados. Na primeira critica-se o Tribunal por não ter indagado e conhecido os factos que podia e devia, tendo em vista a decisão justa a proferir de harmonia com o objecto do processo; na segunda censura-se a errada apreciação da prova levada a cabo pelo Tribunal: teriam sido dados como provados factos sem prova para tal.

II. O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art. 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, consiste numa carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão segura de direito, sobre a mesma. No fundo, é algo que falta para uma decisão de direito, seja a proferida efectivamente, seja outra, em sentido diferente, que se entenda ser a adequada ao âmbito da causa.


            Por sua vez, existe erro notório na apreciação da prova quando
“… esse erro seja tão claro que o homem médio, a quem as normas jurídicas se dirigem, dele se dê conta com a simples leitura do texto da decisão”, não existindo esse erro “…quando o que o recorrente invoca não é mais do que uma discordância quanto ao enquadramento da matéria provada e quanto ao valor a dar aos aspectos de natureza pessoal…” – respectivamente Acórdãos do STJ de 10/12/96 e 6/11/97, in www.dgsi.pt.

No mesmo sentido o Acórdão desse Alto Tribunal, de 2 de Fevereiro de 2011, quando se refere que

I. O erro notório na apreciação da prova, vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Porém, o vício, terá de constar do teor da própria decisão de facto, não da motivação dessa decisão, ou da fundamentação de direito.

        O que resulta da argumentação do arguido é que este não concorda com a apreciação da prova feita pelo Tribunal a quo, o que não é a mesma coisa dos pretendidos vícios da decisão até porque, como anteriormente se disse, ao Tribunal ad quem está vedada a reapreciação da matéria de facto, que se considera assente.

Por fim, e quanto à medida concreta da pena.

Conforme se deixou dito, ao arguido foi-lhe imposta uma pena de 14 anos de prisão.

A respectiva moldura penal situa-se entre os 12 e os 25 anos de prisão.

Tendo em atenção, designadamente, o grau elevado de intensidade do dolo e de ilicitude, os critérios de prevenção geral e especial, a pena de 14 anos imposta, porque próxima do mínimo legal, mostra-se ponderada e adequada ao circunstancialismo considerado provado.

Pelo exposto, somos do entendimento de que o recurso não merece provimento e, em consequência, ser de manter nos precisos termos a douta decisão recorrida.»

5. Foi requerida a realização de audiência «para discussão de todos os pontos constantes da motivação e conclusões».

6. Realizada a audiência, cumpre decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Delimitação do objecto do recurso

O âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí enunciadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410.º n.º 2, do Código de Processo Penal, doravante CPP,

O recorrente pretende, através deste recurso, a sua absolvição, dizendo, subsidiariamente, não se evidenciar «a existência de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente apta a qualificar a sua conduta nos termos do n.º 1 do art. 132.º do CP», pugnando ainda, nos mesmos termos subsidiários, pela verificação do homicídio privilegiado. É questionada igualmente a medida da pena.

2. Os factos:

O Tribunal Colectivo considerou provada e não provada a seguinte matéria de facto, o que obteve confirmação pelo Tribunal da Relação no acórdão de que se recorre:

A – Factos provados:

1.      O arguido é filho de ... e de BB.

2.      BB nasceu no dia ... de 1924.

3.      O arguido viveu durante a maior parte da sua vida no n.º ....

4.     Depois do pai falecer, entre os 9 e os 10 anos de idade do arguido, viveu na companhia da mãe.

5.      Com quem sempre manteve uma ligação muito próxima.

6.      O arguido cuidava da mãe e realizava as tarefas domésticas.

7.      A residência em que o arguido residia com a mãe é uma moradia, em banda, de tipologia T2, composta de rés-do-chão e primeiro andar.

8.      Acedendo-se ao piso inferior através da porta principal, o qual é constituído por uma sala comum, e à direita daquela, na perspectiva da entrada, um hall com acesso ao lanço de escadas de escadas em pedra mármore, comunicação ao piso superior, encontrando-se à esquerda daquele a porta de acesso à cozinha.

9.      Ao 1.º andar acede-se através do dito lanço de escadas, em forma de “L”, situando-se, à direita, um corredor com dois quartos (interiores) contíguos – o primeiro deles ocupado pelo arguido e o último pela mãe - e uma casa de banho ao fundo.

10.    O arguido ajudava a mãe a deslocar-se pela casa, segurando-a pelas mãos.

11.    E, a subir e a descer, diariamente, as escadas que efectuavam a ligação entre o rés-do-chão e o primeiro andar.

12.    Em regra, quando a mãe descia as escadas, o arguido colocava-se à sua frente e virado para ela, segurando-lhe as mãos para a ajudar.

13.    Para subir, em regra, BB colocava-se “de gatas”, e o arguido posicionava-se por detrás dela, umas vezes empurrando-a levemente e outras segurando-a, para que não caísse.

14.    No dia 18 de Janeiro de 2017, BB ficou todo o dia na sala, sentada no sofá, junto ao aquecedor e a ver televisão.

15.    À noite, jantaram os dois nessa mesma sala, e estiveram a ver televisão.

16.    Em hora não concretamente apurada, mas depois das 21 horas, no intervalo de um jogo de futebol a que assistiram, o arguido ajudou a mãe a levantar-se e a deslocar-se até às escadas de acesso ao 1.º andar, onde se localizava o quarto daquela, para que aí pernoitasse.

17.    Colocando-se, junto dela, enquanto BB subia as escadas.

18.    A dado passo, nas escadas, o arguido agarrou uma estatueta em cerâmica, com cerca de 30 centímetros de comprimento, desferiu com ela pancadas, na zona da cabeça e das costas de BB.

19.    Uma das pancadas foi da esquerda para a direita, atingindo-a na cabeça.

20.    Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, sofreu BB as seguintes lesões:

- NA CABEÇA: ferida incisa da região mandibular esquerda com 4 cms, com exposição de topos ósseos, em relação com fractura cominutiva complexa da mandíbula. Equimose peri-orbitária esquerda com abaulamento. Hematoma do couro cabeludo parietal esquerdo e direito.

Infiltração hemorrágica do couro cabeludo na região temporal esquerda e parietais. Infiltração peri-orbitária esquerda e malar. Infiltração mandibular hemorrágica.

Fractura do osso temporal esquerdo. Infiltração hemorrágica da mastóide.

- NO PESCOÇO: equimose com 3 cms na face direita.

Infiltração hemorrágica à direita; infiltração hemorrágica do esterno-cleido-mastoideu.

- NO TÓRAX: equimose com 2 e 3 cms no hemitorax esquerdo. Equimose modelada com 7 cms, no hemitorax antero-lateral direito.

Infiltração hemorrágica direita com 5 cms anterior e 7 cms lateral direita.

Fractura direita do arco posterior e arco anterior da 6ª COSTELA. Fractura da grelha costal no 5.º arco anterior direito e 6.º arco anterior à esquerda.

21.    As lesões traumáticas crânio encefálicas e faciais descritas, foram produzidas por mecanismos de acção directa de natureza contundente, que incidiram sobre a região lateral direita do queixo (fractura da mandíbula), região periorbital esquerda e região temporal esquerda, com fractura linear.

22.    A contusão crânio-encefálica, com hemorragia encefálica, foi a causa da morte de BB, com politraumatismos, fractura e sangramento.

23.    Não querendo ser responsabilizado pela morte de sua mãe, o arguido decidiu eliminar na casa a existência de quaisquer vestígios susceptíveis de o relacionar com a morte daquela, e criar a convicção em todos que se tratara de uma morte natural/acidental.

24.    O arguido transportou o corpo de sua mãe para o quarto da mesma, localizado no primeiro andar.

25.    Despiu-lhe as roupas ensanguentadas, limpou o sangue que ainda permanecia no corpo daquela com vários pedaços de papel higiénico, que deitou depois para o balde do lixo existente na casa de banho.

26.    E deixou-a com os boxers, a camisola de lã que trazia junto ao corpo, e as meias de lã.

27.    Depois, deitou o corpo de BB em decúbito lateral esquerdo, sobre o colchão da cama (sem qualquer lençol ou resguardo), com a face esquerda sobre uma almofada.

28.    E tapou-o com um lençol, dois cobertores e um édredon, deixando a face a descoberto.

29.    Colocou a prótese dentária (inferior e superior) daquela sobre a mesa-de-cabeceira.

30.    A dado passo o arguido deslocou-se para o piso inferior onde lavou e limpou o sangue que cobria os degraus da escada, utilizando toalhas de cozinha em papel para limpar alguns resíduos hemáticos e apanhou os dois fragmentos da estatueta com que atingiu a mãe e que continham sangue.

31.    Os quais, lançou para dentro de um contentor de lixo público, localizado no exterior da residência, mas na mesma rua, a cerca de vinte metros de distância.

32.    Os restantes fragmentos em número de sete, o arguido apanhou e deitou, juntamente com as toalhas de cozinha em papel, para o balde do lixo localizado no interior do armário da cozinha, sob o lava loiça.

33.    O arguido despiu a camisola interior de algodão de cor branca e de manga comprida, que apresentava a extremidade da manga esquerda ensanguentada e depositou-a na máquina de lavar roupa e colocou esta em funcionamento, com outra roupa.

34.    O arguido agiu do modo supra descrito com o propósito de tirar a vida a BB, sabendo que esta era sua mãe e que o instrumento que utilizou para o efeito – uma estatueta em cerâmica com cerca de 30 centímetros de comprimento – a repetição das pancadas, e as zonas que visou no corpo daquela, eram idóneos a produzir o resultado que pretendia.

35.    O arguido quis usar a estatueta nas condições supra descritas, bem sabendo que assim tirava a vida a sua mãe.

36.    Agiu o arguido, em todas as circunstâncias descritas, de forma livre, voluntária e consciente, plenamente conhecedor da censurabilidade da sua conduta, que sabia proibida e punida por lei.

         Das condições pessoais do arguido

37.    O processo de crescimento e desenvolvimento do arguido decorreu num quadro sociofamiliar pautado por regras ditas normativas sem quaisquer incidentes a destacar.

38.    Filho único ficou órfão de pai com nove anos de idade, tendo nesta sequência ficado aos cuidados da figura parental feminina que sempre assumiu as responsabilidades no seu processo de desenvolvimento.

39.    Com cerca dezasseis anos de idade completou o antigo 5.º ano de liceu em Loulé.

40.    O enquadramento familiar sempre se pautou pela existência de laços afectivos com a mãe, com a participação activa do arguido na dinâmica do agregado, coadjuvando nas tarefas domésticas e em todas as actividades de relevo.

41.    Em ..., com cerca de dezassete anos, AA, começou a efectuar algumas tarefas indiferenciadas, sem qualquer vínculo e/ou contratualização, na repartição de finanças, recebendo ao final do mês pequenas quantias como gratificações do auxílio prestado.

42.   Quando completou dezoito anos, após concurso para recrutamento de funcionários, entrou no quadro de efectivos da referida repartição de Finanças, de onde se ausentou para cumprimento do serviço militar obrigatório (SMO) entre Julho de 1973 e Outubro de 74.

43.    Após completar o SMO regressou ao seu posto de trabalho, em ..., onde desempenhou de forma contínua as suas funções até à aposentação, em 31 de Dezembro de 2007.

44.    Considerado um funcionário competente na realização das tarefas atribuídas, de fácil relacionamento interpessoal, com os superiores hierárquicos, colegas e público em geral, criou e fortaleceu ao longo do seu percurso laboral, na comunidade local, laços de amizade e solidariedade. Foram mencionadas algumas características pessoais, tais como a dedicação, disponibilidade e o rigor na realização das tarefas.

45.    Em 1974, após cumprimento do SMO começou a sua ligação ao LDC, inicialmente, com responsabilidades ao nível do futebol juvenil e, alguns anos depois, com funções na própria direcção do clube, assumindo funções de secretário-geral, situação que mantinha no momento da detenção.

46.   À data dos factos que deram origem ao presente processo, AA, residia na actual morada. Trata-se de uma casa de rés-do-chão e 1.º andar, de construção antiga, sita na malha urbana da cidade de Loulé, com condições suficientes de habitabilidade, propriedade do arguido por herança dos progenitores.

47.   O enquadramento familiar (fundamentalmente, alicerçado na relação arguido / progenitora) sempre se pautou por laços de solidariedade e interajuda, encontrando-se o arguido sempre presente em momentos de maior necessidade da mãe, nomeadamente por motivos de saúde.

48.   AA recebe uma pensão de reforma de mil e quinhentos (valor ilíquido), montante considerado pelo próprio como suficiente para assegurar as despesas com a sua manutenção e sobrevivência. Não foram apresentadas outras despesas fixas mensais para além das advindas com a alimentação, consumos de electricidade, gás e comunicações.

49.    O arguido é pessoa favoravelmente referenciada na comunidade, de fácil relacionamento interpessoal, socialmente integrado, e com funções activas e participativas em eventos de índole desportiva, promovidos pelo ... Desportivo Clube.

50.    Não foram apuradas situações problemáticas no seu percurso profissional, nem registo de ocorrências na autoridade policial da zona de residência.

51.    Os elementos da sua referência são provenientes da comunidade local, pessoas socialmente integradas, onde predominam laços de parceria e solidariedade. Pese embora AA disponha de uma rede alargada de suporte social não há alusão a referências ao nível familiar consistentes, para além da sua progenitora.

52.    Os factos que estiveram na origem dos presentes autos e consequente privação da liberdade do arguido não determinaram comportamentos de rejeição na comunidade envolvente, nem se identificaram sinais de estigma.

53.    AA revela capacidades de análise e previsão das consequências dos seus actos vivendo com constrangimento a actual situação de privação de liberdade e os motivos da actual sujeição a julgamento.

54.    No cumprimento da medida de coacção tem revelado capacidade no cumprimento de regras, respeitando rigorosamente os compromissos e obrigações inerentes à situação de confinamento.

55.    O apoio dos amigos tem-se revelado de primordial importância durante este período para a sua estabilidade emocional e funcional. Recebe visitas diárias de amigos e conhecidos que lhe asseguram, não só, aquisição de bens de primeira necessidade, jornais, tabaco, como também, pequenos momentos de confraternização e/ou convívio no seu próprio domicílio.

56.    Transversal a todo o trajecto pessoal de AA, existe um percurso profissional activo com indicadores de hábitos de trabalho e desempenhos responsáveis. A este nível destaca-se a capacidade revelada pelo arguido na assunção de compromissos, o que lhe permitiu manter um percurso profissional regular, granjeando uma imagem social e familiar adequada.

57.   Inexistem no seu percurso vivencial situações reveladoras de comportamento agressivo ou violento, surgindo a situação aqui em causa como inédita face ao comportamento dominante do arguido.

58.    O arguido é considerado por aqueles que com ele privam pessoa pacata, pacífica, sociável e activa, participando, desde criança em actividades desportivas e em grupo.

59.    Características que manteve durante a adolescência e juventude, épocas da sua vida em que passou bastante tempo no exterior com os seus amigos, em convívios e passeios, sempre respeitando e sendo respeitado.

60.    Amigos que ainda mantém nos dias de hoje, círculo onde se incluem, ... e DD.

61.   Motivado pelo seu interesse no desporto, o arguido tornou-se dirigente do Clube ..., em cargos que exerceu durante vários anos.

62.    No âmbito destas funções associativas, em regime de voluntariado, o arguido passava bastante tempo no Clube, principalmente desde que se reformou.

63.   Regularmente, o arguido ausentava-se do clube, ausências motivadas pelas suas idas a casa, ou estadas prolongadas nesta, no sentido de cuidar da mãe.

64.    O arguido trabalhou no serviço de repartição de finanças de ... durante 37 anos e meio, tendo-se reformado há 10 anos, evidenciando um bom enquadramento profissional, sendo por todos muito querido e extremamente respeitado, porque cumpridor e conciliador.

65.   Manteve uma relação de profissionalismo, de respeito, de colaboração, de afecto e de amizade com todos os colegas de trabalho.

66.    BB interpelada por várias vezes pelo arguido no sentido de poder ir para um lar para ter outro tipo de acompanhamento, manifestou sempre a vontade de permanecer ao cuidado do filho.

67.    O arguido sempre demonstrou grande preocupação com o estado de saúde da mãe.

68.    O arguido nunca casou.

69.    O arguido mantinha com a mãe uma relação de "fusionalidade" e edipiana.

70.    Desde data não concretamente, mas após o Verão de 2016, BB, embora ainda tivesse capacidade de locomoção, dependia do filho para a ajudar a realizar todas as tarefas, desde tarefas relacionadas com a sua higiene pessoal, até à sua alimentação.

71.    O arguido vivenciava uma situação de stress e de sofrimento psicológico, potenciador de exaustão e até mesmo de depressão, evidenciando sintomas associados à síndrome de burnout.

72.    O ora arguido sentia que não tinha escolha senão ser ele próprio a assumir a total responsabilidade pela saúde e bem-estar da mãe, pois não queria contrariar a vontade da mesma, que reiterava não querer ir para um lar.

73.    O arguido não tinha qualquer ajuda no auxílio que a mãe necessitava.

74.    BB dava quedas na residência.

75.    Por vezes sofria de pequenos traumatismos, pequenas escoriações e de alguns hematomas visíveis.           

*

Dos antecedentes criminais

76.    O arguido não tem antecedentes criminais.

B - Factos não provados:

                     

a)      Desde que nasceu o arguido vivesse sempre no nº 13 da Rua São João de Brito, em Loulé, primeiro na companhia de ambos os progenitores;

b)      No final do Verão de 2016, mais precisamente a partir do mês de Setembro, BB começasse a evidenciar sérias dificuldades de locomoção;

c)      O referido em b) levou a que o arguido passasse mais tempo em casa;

d)      No dia 18 de Janeiro de 2017, e à semelhança do que acontecia há já cerca de quatro meses, o arguido passasse todo o dia em casa na companhia da mãe;

e)      Com as portas e janelas fechadas e trancadas;

f)       À noite, jantaram os dois nessa mesma sala, tendo visto parte do jogo da Taça de Portugal entre o Covilhã e o Guimarães, e o início do jogo de futebol (Benfica x Leixões), que começou cerca das 20h30, na “Sport TV”;

g)      O arguido ajudou a mãe a levantar-se às 21 horas e 20 minutos;

h)      O arguido no momento em que iniciaram a subida das escadas tivesse formulado o propósito de lhe tirar a vida;

i)       Na prossecução de tal desígnio, o arguido esperasse que a mãe subisse o primeiro lanço de escadas;

j)       Fosse no momento em que BB alcançou o sexto degrau e se preparava para contornar à esquerda, o arguido agarrasse na estatueta em cerâmica;

k)      A estatueta se encontrasse no parapeito interior da janela localizada à direita do início do dito lanço de escadas;

l)       BB se encontrasse “de gatas” no momento em que o arguido agiu como descrito em 18. dos factos provados;

m)     O primeiro golpe fosse o descrito em 19. dos factos provados;

n)      O arguido tivesse desferido os golpes quando a mãe se encontrava de costas para ele;

o)      As pancadas fossem desferidas de cima para baixo;

p)      O que tornava impossível a defesa por parte de BB;

q)      O arguido só parasse de desferir golpes quando a estatueta se partiu;

r)       O arguido ignorasse qualquer reacção de defesa de sua mãe;

s)       A morte de BB tivesse ocorrido nas escadas;

t)       Quando o arguido transportou a mãe para o quarto de dormir a mesma estivesse já sem vida e com a hemorragia estancada;

u)      Após o descrito em 29. o arguido se deslocasse de seguida para o piso inferior;

v)      O arguido utilizasse uma esfregona e o respectivo balde para proceder à limpeza descrita em 30 dos factos provados;

w)     Os restantes fragmentos por serem de pequenas dimensões ficassem esquecidos e o arguido só os encontrasse quando regressou a casa;

x)      Após colocar a máquina de lavar roupa em funcionamento o arguido se deitasse e dormisse;

y)      O arguido soubesse que ao agir como descrito tornava impossível a defesa por parte de BB;

z)      No momento da prática dos factos o arguido fosse incapaz de compreender o alcance/desvalor dos seus actos e estivesse privado da capacidade de se autodeterminar de acordo com essa avaliação ou que essa capacidade se encontrasse condicionada ou diminuída por uma alteração da percepção da realidade;

aa)     O arguido sofreu alterações bioquímicas na composição cerebral, causadas por um estado de grande sobrecarga e exaustão física e psíquica permanente e crescente;

bb)    À data da prática dos factos Rosa Pinguinha tentasse subir sozinha as escadas;

cc)     Apesar de se tentar agarrar ao corrimão, se desequilibrasse e caísse, batendo nas arestas dos degraus;

dd)    BB caísse na noite de 18 de Janeiro de 2017;

ee)     BB tivesse caído das escadas quando esta já não se encontrava na presença do arguido;

ff)     Nessa noite, BB rolasse das escadas abaixo, sem amparo;

gg)    Pelo período de um ano BB vivesse e trabalhasse em França, e durante o qual o arguido viveu com os avós maternos;

hh)    Durante todo o longo tempo de duração desta vivência próxima com a mãe, que durou quase sete décadas, não se registou qualquer episódio agressivo, violento ou, sequer, desrespeitador no âmbito do normal relacionamento entre mãe e filho;

ii)      Sendo o arguido sempre respeitoso para com os professores;

jj)      O arguido mantivesse uma relação de respeito, colaboração e proximidade com o marido de .....e com a filha ....;

kk)    Também as antigas colegas das Finanças .... e .... mantenham uma relação de amizade próxima com o arguido, tendo mesmo levado a cabo várias deslocações à residência do arguido;

ll)      O arguido nunca tivesse querido casar;

mm)  A estatueta se partisse por ter caído quando o arguido desceu as escadas depois de ter deitado a sua mãe.

         C – Motivação da decisão de facto

A convicção do tribunal formou-se com base no conjunto da prova produzida em audiência, conforme se vai descrever, salientando-se desde já que, porque ligados ao princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º do Código de Processo Penal e não a uma qualquer presunção “de jure ou iuris tantum”, inadmissível em direito penal, é perfeitamente aceitável recorrer às denominadas “presunções naturais” ligadas ao “princípio da normalidade ou da regra geral” e às “chamadas máximas da vida e regras da experiência” (cfr. Figueiredo Dias, cit. por Lourenço Martins, in Droga e Direito, 1994, pág. 111) – como também se pronunciou o Ac. do S.T.J. de 2/4/86, B.M.J. 356, pág. 122, onde se refere que “as ilações que as instâncias extraem dos factos constituem uma forma correcta de avaliação de conduta dos réus, na medida em que sejam meras consequências ou prolongamentos daqueles factos”, ou, na actualidade, o Ac. da R.P. de 29/06/2011, publicado na internet, em www.dgsi.pt/jtrp, com o nº de Proc. 233/08.1PBGDM.P3, onde se refere, nomeadamente, que “as presunções naturais são, afinal, o produto das regras de experiência; o juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto”.

Assim:

O apuramento do facto do ponto 1. resulta da certidão do assento de nascimento de fls. 495.

Quanto ao ponto 2. teve-se em consideração os dados que consta da base de dados de identificação civil.

Para apuramento dos factos descritos em 3. e 4. atentou-se nos depoimentos das testemunhas ........,.....,.......,....., ...... e DD, todos amigos do arguido, tendo privado com ele ao longo de anos, que atestaram que o arguido vivia com a mãe, na referida morada há vários anos (excluindo-se que tal ocorria desde o nascimento do arguido, por não se ter produzido prova sobre tal facto – matéria que ficou vertida em a) e gg);

No que tange aos pontos 4. (não se sabendo a data exacta em que ocorreu o falecimento do pai), 5., 6., bem como a situação pessoal descrita nos pontos 37. a 68., 70. e 73. os depoimentos das mesmas testemunhas atestaram de modo impressivo que existia uma ligação próxima entre o arguido e a sua mãe, sendo ele que cuidava dela e que fazia as tarefas domésticas, bem como as suas características pessoais e profissionais (neste caso ..... e ......, também colegas de trabalho, tendo-se referido de modo claro sobre o arguido no local de trabalho), o modo como o mesmo se insere na comunidade e como é considerado por todos, o que se mostra de modo sustentado também assinalado no relatório social de fls. 976 a 978. Dos depoimentos de todas as testemunhas resulta igualmente que o arguido condicionava a sua vida social para dar apoio à mãe, sempre preocupado quando ela ficava só e sempre cuidando dela até em termos de acompanhamento médico (como resultou do depoimento da testemunha .... ......). Do relatório social extrai-se, igualmente, o cumprimento escrupuloso da medida de coacção a que se encontra sujeito. Considerou-se ainda o teor da avaliação psicológica de fls. 618 a 639, no que tange aos pontos 69., 71. e 72. cuja entrevista ocorreu em Julho de 2017 (faz-se notar que sendo hoje comummente aceite que os cuidadores informais sofrem de stress, evidenciando sintomas associados a esgotamento, maxime quando são os únicos cuidadores, na data da entrevista o arguido já se encontrava na situação de confinamento há meses, o que também origina situação de stress e sofrimento psicológico).

Para apuramento dos factos vertidos nos pontos 7., 8. e 9. considerou-se o teor da análise ao local de fls. 121 a 129, no que tange à configuração da residência onde o arguido e a sua mãe habitavam.

O arguido não prestou declarações em audiência de julgamento, tendo sido reproduzidas as declarações por este prestadas em sede de primeiro interrogatório judicial, as quais podem ser atendidas uma vez que se mostram cumpridos os requisitos estabelecidos no art. 357.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal.

Diga-se, desde já, e de modo impressivo que dúvidas não há que o arguido vivia com a sua mãe, numa relação vista por todos como harmoniosa e de colaboração, principalmente nos últimos anos, mercê da idade da mãe e da fragilidade a ela inerente, maxime problemas de saúde que vivenciou, como um acidente vascular cerebral em 2007.

Quanto à matéria dos pontos 72. e 73. consideraram-se as declarações do arguido e o que resulta da globalidade das testemunhas amigos do arguido, que referem sempre o arguido como sendo a pessoa que tratava da mãe e sentia essa obrigação (corroborado pela avaliação psicológica).

Do mesmo modo, a prova produzida foi concordante no sentido que o arguido é considerado por aqueles que com ele privam, desde a juventude, como pessoa pacata, pacífico, sociável, trabalhador diligente, bom colega, pessoa empenhada com gosto pelo desporto, tendo praticado desporto em criança e na juventude e tendo sido dirigente desportivo.

Quanto ao modo de deslocação pela casa, subida e descida das escadas (pontos 10. a 13.) considerou-se o referido pelo arguido em sede de primeiro interrogatório judicial, o que se mostra conforme com a idade da vítima e dificuldade de locomoção referidas (neste sentido o depoimento da testemunha Ana Cristina Pinguinha, com quem o arguido e a sua mãe passaram o Natal de 2016, que atestou a debilidade da senhora, sem embargo nunca a tenha visto a subir as escadas, excluindo-se a matéria que ficou vertida em b) e c) (não se tendo produzido prova que fosse partir da referida data, nem do agravamento da situação de dificuldade de locomoção, nem da alteração dos hábitos do arguido), por não ter sido confirmada desse modo). Decorre ainda das regras da experiência comum tendo em conta que a forma e largura das escadas (o que é perceptível nas fotografias) era necessário que fosse prestado auxílio nas subidas e descidas. Também se apura que a vítima sofreu, anteriores, quedas na habitação e pequenos traumatismos, escoriações e hematomas (para além das declarações do arguido, o relatório de autópsia também o confirma quando faz referência a datações anteriores, com uma ou duas semanas), o que ancorou a prova dos pontos 74. e 75..

Quanto ao que aconteceu no dia 18 de Janeiro de 2017, vejamos.

De acordo com as declarações prestadas pelo arguido em sede de primeiro interrogatório judicial, ele e a sua mãe estiveram a jantar e ele viu um jogo de futebol na televisão. No intervalo do jogo o arguido ajudou a mãe a levantar-se e a deslocar-se até às escadas de acesso ao primeiro andar, onde se localizava o quarto daquela para que ela dormisse. Como acontecia, desde pelo menos há alguns meses, a mãe colocou-se “de gatas” e o arguido posicionou-se atrás dela, para que ela não caísse.

O arguido afirma que durante a subida das escadas “na curva” a mãe caiu, não tendo visto onde ela bateu, mas como ela disse que estava bem continuaram a subir. No topo das escadas ela tornou a cair e levantou-se logo. Após o arguido foi com ela para a casa de banho. Depois, já no quarto, despiu-a e vestiu-a e deitou-a tendo ela afirmado que se encontrava bem.

Quando o arguido desceu as escadas para o rés-do-chão, o cortinado encalhou na estatueta que caiu, tendo o arguido apanhado e deitado os fragmentos no contentor do lixo da rua.

Mais tarde apercebeu-se da existência de outros fragmentos que colocou no caixote do lixo do interior da habitação.

No dia seguinte, foi ao quarto da mãe e ela não respondeu, tocou-lhe e notou que estava um pouco fria.

De seguida abriu a janela do quarto dela para ver se estava alguém na rua e não viu ninguém. Então telefonou, primeiro, para uma colega que trabalhou com ele nas finanças e cujos marido e filho têm uma agência funerária e depois ligou para o 112.

Por sua vez, conclui-se no relatório de autópsia, após a descrição das lesões que BB apresentava, que a contusão e hemorragia encefálica, por grave lesão crânio-encefálico (traumatismo crânio-encefálico com fractura), foram a causa directa, necessária e adequada da morte de BB.

O perito médico que fez a autópsia prestou esclarecimentos em audiência, tendo confirmado quer as lesões descritas no relatório, quer as respectivas conclusões (relatório de autópsia médico-legal de fls. 502 a 505).

O arguido juntou aos autos um parecer médico-legal, da autoria de Rosa Madeira, médica especialista em medicina legal e um parecer de autópsia médico-legal, da autoria de CC, médica especialista em Medicina Legal e Forense.

No primeiro, a autora afirma que o documento de verificação do óbito não descreve nem alude às características dos sinais positivos de morte consecutivos à cessação das funções vitais, o que impossibilita determinar a hora aproximada da morte e o tempo entre a produção das lesões traumáticas e a morte, pelo que não se pode concluir por morte imediata. Mais se afirma que “a localização, as características e a multiplicidade das lesões traumáticas do cadáver, descritas no relatório de autópsia, apesar de poderem permitir concluir que as mesmas resultaram de acção traumática múltipla de grande violência, não excluem que tais lesões traumáticas tenham resultado de queda. Por um lado, as lesões traumáticas descritas no cadáver a nível dos membros inferiores (joelhos e pernas) são indiciadoras de terem resultado de queda. Por outro lado, a inexistências de lesões traumáticas localizadas nos membros superiores – lesões de defesa passiva ou activa, são pelo contrário, mais consentâneas com queda acidental.”

No segundo, o qual teve por base, nos termos referidos no preâmbulo do mesmo o relatório médico-legal e os relatórios da Polícia Judiciária (reportagem fotográfica da autópsia), afirma-se que não é possível concluir que a morte da vítima tenha sido imediata, porquanto “Os focos de contusão hemorrágica descritos no encéfalo implicam que tenha havido um período mais ou menos longo, após o trauma, durante o qual os pequenos vasos continuaram a sangrar para o tecido encefálico com consequente formação dos focos de contusão.”;  “(…) a presença, do que parece ser, uma colecção de hematomas subdurais, sobre os lobos cerebrais frontais e na base do crânio (não descritos no relatório da autópsia). Para a formação destes hematomas é necessário que tivesse havido período de sobrevida, ou seja que a vítima se mantivesse viva e que a hemorragia continuasse durante algum tempo.” (…) “Tendo em conta o descrito afirma-se que “é possível perceber que na fase a seguir ao evento traumático ter-se-ão iniciado os fenómenos hemorrágicos ao nível do tecido encefálico e das meninges. Num período inicial, os microfocos de contusão encefálicos e a hemorragia subdural, não são suficientes para acusar a morte imediatamente (como por exemplo numa laceração completa da artéria aorta ou do tronco cerebral), mas que paulatinamente, à medida que a hemorragia vai decorrendo, causarão uma alteração do estado de consciência com evolução para coma e posterior morte.”

Por sua vez, quanto à fractura da mandíbula começa por referir-se que não há registo das dimensões da mesma, e apenas se observa o topo ósseo em exteriorização. Sustenta-se no parecer que “(…) essa fractura não poderá ser considerada como responsável por uma morte imediata, podendo, no entanto causar uma morte diferida, pelo choque hipovolémico decorrente de hemorragia ou pela entrada de sangue na via aérea e eventual asfixia. Assim é possível que, após o evento traumático, a vítima se tenha conseguido levantar e deslocar-se até à cama, onde acabou por falecer.”

Relativamente às lesões descritas e a sua adequação com uma queda frontal/lateral com a cabeça e face sobre os degraus de mármore aduz-se que:

1 - A fractura exposta da mandíbula pode ter ocorrido por trauma directo com impacto da face sobre as escadas, ao falharem os membros superiores ou mesmo os inferiores, quando se apoiava;

2 - Os hematomas do couro cabeludo bilaterais são também compatíveis com uma queda, mesmo ao subir as escadas, uma vez que, após o impacto sobre a face, sendo a cabeça uma estrutura anatómica com algum peso, é normal que rode para o lado e sofra impactos laterais, à medida que vai descendo e embatendo pelas escadas, tratando-se de impactos secundários, perfeitamente admissíveis numa queda de escadas com desníveis sucessivos;

3 - Não se pode excluir que a equimose periorbitária esquerda se tenha formado por acção da gravidade após um impacto frontal/lateral durante uma queda por embate da face sobre uma superfície dura.

4 - A fractura do osso temporal esquerdo é uma fractura linear, causadas principalmente por acidentes de trânsito ou quedas.

5 - A maioria das lesões traumáticas está ao nível da cabeça, sendo estas que são dominantes em quedas, independentemente da altura.

6 - A ocorrência de lesões traumáticas (escoriações, equimoses e fracturas de arcos costais) podem ser encontradas em quedas, ademais pessoas idosas, devido à osteoporose e diminuição da musculatura, são mais propensas a sofrer fracturas da parede torácica após um traumatismo.

7 - A ausência de lesões traumáticas nos membros superiores é perfeitamente compatível com uma queda acidental, causando estranheza na hipótese de agressão, dado que o normal é haja uma reacção natural das vítimas de se protegerem.

8 - Dada a idade e o sexo da vítima (factores de risco de osteoporose) é aceitável que mesmo uma queda de pouca altura e com baixa energia seja suficiente para explicar as lesões traumáticas da cabeça e da face, face à fragilidade e diminuição da densidade óssea.

Afirma-se que no caso em apreço “não se pode excluir que as lesões traumáticas pudessem ter sido provocadas por um a queda frontal/lateral, com impacto da face num degrau de mármore e posterior lateralização, quando a idosa se encontrava a usar as escadas de mármore, estreitas e inclinadas de casa”, sublinhando-se que se trata de uma vítima com idade avançada e condições patológicas associadas (antecedentes de AVC grade, caquexia com atrofia muscular, provável osteoporose e fragilidade cutânea e vascular) e por isso, com predisposição acrescida para traumatismos da superfície corporal por quedas no chão e embates frequentes em objectos/móveis durante a movimentação/mobilização.”.

Posto isto.

O perito médico, Aníbal Acácio Neves Coutinho, esclareceu em que condições realizou autópsia e quais os exames efectuados (estudos toxicológicos e radiografias). Esclareceu que não é possível datar a hora da morte. Porém, pela natureza (gravidade) das lesões, ausência de sinais agónicos e idade da vítima pode concluir-se que a morte foi imediata (o que é diferente de morte instantânea), a seguir a mecanismo traumático de natureza contundente. Quanto à causa da morte foi o traumatismo facial encefálico. Deu conta que as lesões do cadáver não são compatíveis com a queda em escadas, uma vez que não houve retropulsão nos braços e pernas, fazendo notar que as lesões craneo-faciais apontam para um mecanismo traumático dirigido da direita para a esquerda, uma vez que a ferida da mandíbula apresenta uma projecção para a esquerda. Esclareceu que as lesões nos membros inferiores eram pré-existentes e que a inexistência de lesões de defesa pode ser devida à idade (o que permitiu o apuramento da matéria descrita em 19., 20., 21. e 22.).

Diga-se, desde já, quanto à norma procedimental (recomendações quanto aos procedimentos gerais de realização de autópsia) que não se cura aqui de apreciar se a autópsia nos autos realizada cumpriu na íntegra as recomendações estabelecidas. De todo o modo, a eventual não observância de prescrições administrativas (que não se vislumbra) não é capaz de afectar o resultado material da autópsia médico-legal realizada. Faz-se notar que o exame do corpo no local onde a morte ocorreu não é imperativo, nem sempre, aliás, é possível.

Quanto à especialidade do Senhor perito também não cumpre tecer quaisquer considerações adicionais, na medida em que o mesmo é o perito nomeado, encontrando-se a exercer as mencionadas funções.

Entende-se que os pareceres apresentados não colocam em crise o relatório de autópsia, face aos esclarecimentos prestados pelo senhor perito. Note-se que os pareceres referem que as lesões não são incompatíveis com uma queda, salientando principalmente a inexistência de lesões defensivas nos membros superiores. Resulta das regras da experiência comum que nem sempre as pessoas têm capacidade de reacção, bastando para isso que não se apercebam que vão ser atingidas e sendo-o ficando de imediato na impossibilidade de resistir. Não podendo no caso concreto perder de vista a idade da vítima e as fragilidades físicas que a mesma apresentava. E sem embargo os pareceres sustentem que as lesões são compatíveis com uma queda é claro da leitura dos mesmos que partem do princípio que a cabeça caiu, rodou e sofreu impactos laterais, à medida que na queda vai descendo e embatendo nas escadas (o que não foi referido pelo arguido em sede de primeiro interrogatório judicial – só surgindo na contestação, no ponto 55).

Donde, em síntese, os pareceres apresentados não põem em causa a autópsia, limitam-se a afirmar que as lesões também são compatíveis com determinado tipo de quedas. Simplesmente para o caso é completamente irrelevante, pois que a restante prova infirma totalmente que tenha existido qualquer queda, designadamente com as características referidas naqueles pareceres. Aliás, é o próprio arguido quem nas suas declarações põe em causa o tipo de queda que vem invocado na contestação, sendo certo que a descrição dos factos que ele fez no primeiro interrogatório é absolutamente incompatível com as lesões sofridas pela mãe. A mãe nunca poderia dizer que estava bem e queria ir dormir, com fractura exposta da mandíbula, fracturas das costelas e fractura do osso temporal esquerdo, uma vez que as dores seriam absolutamente insuportáveis. Ademais, a forma descrita das quedas por ele relatadas nunca poderiam causar as lesões com aquela configuração, mesmo tendo em conta a configuração das escadas e o material das mesmas.

Diga-se que a questão da morte ser imediata (questão suscitada nos pareceres) também se mostra irrelevante, pois a vítima podia ter ficado a agonizar quer fosse por ter caído, quer fosse pela agressão infligida pelo arguido e a ter deixado assim até morrer.

Mas vejamos a restante prova, uma vez que o relatório de autópsia não pode ser analisado isoladamente.

É incontroverso que a vítima faleceu no interior da residência e que na mesma apenas se encontravam ela e o arguido.

O arguido no dia 19 de Janeiro de 2017, pelas 08:18:44 horas realizou uma chamada para o número 000000 da amiga e ex-colega de trabalho, 000000 (exame pericial realizado ao telemóvel de fls. 91 a 116). A destinatária, não atendeu e devolveu a chamada ao arguido, pelas 08:20:21 horas, como resulta do mesmo exame e é confirmado pela mesma (vide fls. 95 e 94). De acordo com o referido pela testemunha, amiga do arguido, ele disse que a mãe tinha caído e estava morta, e ele precisava de ajuda. Ao que ela respondeu que iria pedir ao filho (este e o marido são sócios de uma agência funerária) para se deslocar a casa do arguido. ...... telefonou ao filho, a testemunha...... e este por sua vez telefonou ao arguido a dizer que se ia deslocar para casa dele. Nesta conversa o arguido disse-lhe que a mãe parecia estar morta. .....a perguntou se o arguido tinha chamado o INEM, tendo este respondido afirmativamente. Chegado ao local, o arguido encontrava-se na rua e aguardaram a comparência do INEM, o que aconteceu cerca de cinco minutos depois de ter chegado ao local. A testemunha só viu marcas no corpo e não conseguiu ver a cara da mãe do arguido porque estavam duas pessoas do INEM à sua frente.

De seguida o arguido fez um telefonema para a testemunha Ana Cristina Pinguinha do Nascimento Ramos, do telefone fixo da residência, com o número 289 463 260. A esta testemunha o arguido disse que foi junto da mãe e que a mesma não responde. A testemunha disse ao arguido para contactar o INEM.

Como resulta da ficha de atendimento (fls. 186 a 191) o arguido pelas 08:26:25 horas (fazendo-se ressalva da diferença horária, a fls. 186) realizou uma chamada para o INEM, tendo referido que pensa que a mãe deve ter morrido e a dado passo refere que a mãe caíra das escadas no dia anterior (como resulta da gravação junta aos autos).

Quando a enfermeira do INEM, N........., chegou ao local a vítima encontrava-se deitada na sua cama, em decúbito lateral, tapada até meio da cara, sendo que ao retirar a roupa da cama se apercebeu que apresentava a face roxa e não respirava, tendo reportado ao médico, através de telefone, que a vítima apresentava uma fractura e na sequência da pergunta se suspeitava de morte violenta afirmou: “Eu nunca vi nada assim” (tal conversa, como se extrai da sua audição é feita na presença do arguido e, por essa razão, algo contida). A testemunha aguardou pela comparência da Guarda Nacional Republicana e foi ela que os conduziu ao primeiro andar.

Por sua vez, a testemunha ......., militar da Guarda Nacional Republicana, que se deslocou ao local, referiu a posição em que a vítima se encontrava, a roupa que trajava, as lesões visíveis que apresentava, tendo garantido que o local ficou preservado até à comparência da Polícia Judiciária.

A testemunha ........., Inspector da Polícia Judiciária, que se deslocou ao local, a solicitação da Guarda Nacional Republicana, confirmou a inspecção realizada ao local (nos termos do relatório de inspecção judiciária de fls. 53 a 60 e análise ao local e fotografias do local e do hábito externo do cadáver de fls. 119 e 164), atestando os ferimentos que a vítima apresentava, os vestígios que foram recolhidos e os locais onde o foram.

Decorre do depoimento do Inspector da Polícia Judiciária, ........, corroborado pela inspecção ao local, que no interior do balde do lixo da cozinha foram encontrados vários fragmentos de uma estatueta. Como a mesma não estava completa procedeu-se a uma busca e é, nessa sequência, dentro do contentor de lixo na rua (situado a cerca de vinte, trinta metros da residência do arguido) que foram encontrados dois fragmentos de uma estatueta da casa. Os fragmentos encontrados no exterior permitiam completar a estatueta (correspondência efectuada como resulta de fls. 144).

A testemunha deu conta dos locais onde foram recolhidos vestígios.

A saber:

Em papéis de cozinha que se encontrava no balde de lixo da cozinha e em pedaços de papel higiénico no balde de lixo da casa de banho. Nos referidos papéis foram encontrados vestígios hemáticos de BB (exame pericial de fls. 352 a 354).

Em um fragmento da estatueta (encontrado no contentor público) foram encontrados vestígios hemáticos de BB (fotografias de fls. 145 e exame pericial de fls. 352 a 354).

Nos degraus foram encontrados igualmente vestígios hemáticos que como afirmou a testemunha ......, técnico especialista, que extraiu as fotografias que constam no relatório de inspecção, afirmou não eram visíveis à vista desarmada, o que também foi confirmado pelo Inspector ....... – o relatório de recolha de vestígios biológicos encontra-se a fls. 174.

A testemunha ......, Inspector da Polícia Judiciária, esteve presente no local e procedeu ao exame no local.

Todas as testemunhas depuseram de forma clara, circunstanciada sobre os factos dos quais tinham conhecimento directo, sendo, por essa razão credíveis.

Em face da prova produzida, apurou-se que BB, mãe do arguido, apresentava, para além do mais, uma fractura exposta do maxilar, com perfuração da pele pelo osso, com sangramento, fracturas das costelas e na região periorbital esquerda e região temporal esquerda com fractura linear. Ora, a existência destas lesões só por si tornam absolutamente inverosímil a versão do arguido, ao afirmar reiteradamente em sede de primeiro interrogatório judicial que a mãe lhe disse que se encontrava bem, tendo falado com ele normalmente. Mas ainda que se pudesse conceder que tal tivesse ocorrido, não é crível que o arguido não se tivesse apercebido que a mãe apresentava uma fractura exposta da mandíbula com aquelas características (note-se que o arguido afirma ter estado com a mãe na casa de banho, de seguida conduzindo-a ao quarto, onde a sentou na cama para a vestir). Por outro lado, o relato que o arguido faz das quedas, nos dois momentos, não é compatível com as lesões apresentadas, pois que não é sublinhada qualquer violência na queda, não é referido, por exemplo, que caiu e bateu em vários degraus – até porque não seria compatível com a descrição que é feita da subida, com a mãe de gatas e ele atrás, nem com a conduta posterior ao não pedir auxílio médico. Note-se que o arguido disse não se ter apercebido de qualquer sangramento.

E o mesmo relato também não torna compreensível a existência de vestígios hemáticos da mãe num fragmento da estatueta, uma vez que o mesmo refere que foi após ter descido que a mesma se partiu.

E sendo assim, o tribunal convenceu-se que os factos se passaram nos termos que ficaram vertidos nos pontos 17., 18., 19., 23., 24., 25., 26., 27., 28., 29., 39., 31., 32. e 33.. Na verdade, as lesões que BB apresentava denotam que foram provocadas por acção traumática múltipla de natureza contundente, o que é compatível com o uso da estatueta de cerâmica, a qual, por sua vez, contém vestígios hemáticos da vítima, num fragmento encontrado no contentor no exterior da habitação (que a versão do arguido deixa por explicar). Donde, o arguido desferiu várias pancadas com a referida estatueta, quando se encontrava nas escadas com a sua mãe, na forma descrita.

Tais lesões provocaram sangramento, o que também é corroborado pela existência de papéis (de cozinha e higiénico) com vestígios hemáticos, encontrados em dois locais da residência.

Razão pela qual e necessariamente (por se ter considerado o supra exposto, face às razões aduzidas), considerou-se como não provada a matéria descrita em bb), cc), dd), ee), ff) e mm).

Com base nas declarações do arguido considerou-se a matéria que ficou descrita nos pontos 14., 15 e 16..

A camisola que se encontrava no interior da máquina de lavar, já lavada, também se encontrava ensanguentada.

O arguido transportou a mãe até ao quarto, onde a deitou e cobriu.

O tribunal não consegue afirmar de modo peremptório que as pancadas desferidas tenham ocorrido no momento em que BB subia as escadas de “gatas” e com o arguido atrás dela, sendo possível conceber que tal não tenha ocorrido dessa exacta forma, porque a vítima podia estar de pé, apoiada, porque o arguido podia ter passado para a parte da frente - razão pela qual se considerou a factualidade em l) e n).

Não se produziu prova segura e cabal que o arguido desferisse as pancadas quando a mãe se encontrava no sexto degrau (sendo claro que tal ocorreu nas escadas, face aos vestígios hemáticos recolhidos, os quais tiveram de ser limpos pelo arguido, uma vez que não eram visíveis à vista desarmada) – daí se considerando não provada a matéria vertida em j). Com a descrita limpeza e o deitar da mãe na cama o arguido pretendia, como se infere de modo claro das referidas condutas, eliminar a existência de vestígios susceptíveis de o relacionar com a morte, criando a convicção que se tratara de uma morte acidental e natural.

Também não se mostra possível afirmar o número de pancadas, a sua sequência e o modo como foram desferidas e qual a razão para o arguido ter parado, para além da descrita em 19. (a qual é possível face à retropulsão, nos termos do esclarecimentos prestados pelo perito médico). Termos em que se considerou a factualidade descrita em o), p) e q) como não provada.

Também não é possível afirmar que a vítima estivesse morta nas escadas, porquanto como já se referiu a morte imediata não significa instantânea, significa num curto lapso de tempo. Ora, o tribunal não tem elementos para afirmar que esse lapso de tempo já se havia completado quando o arguido deitou a sua mãe – matéria vertida em s) e t).

Do mesmo modo, não se produziu prova em que momento o arguido formulou o propósito de tirar a vida à sua mãe e que na prossecução de tal desígnio esperasse que a mãe subisse o primeiro lance de escadas - razão pela qual se considerou tal factualidade como não provada, em h), i).

Não foi produzida qualquer prova em audiência sobre a matéria que ficou a constar das alíneas d) (quanto à permanência todo o dia em casa e fazendo-o há quatro meses), e), g) (quanto à hora exacta), f) (quanto aos exactos jogos de futebol visionados), k) (localização da estatueta), u) (momento exacto em que o arguido desce para o rés-do-chão), v) (quanto aos utensílios usados na limpeza), w) (relativamente à razão para permanecerem no local os fragmentos mais pequenos), x) (quando se deitou), gg), hh), ii), jj) e kk) e ll).

No que tange à matéria vertida em r) e y) não se produziu prova segura da sua verificação, uma vez que face às razões já expendidas não seja possível afirmar que o arguido desferiu as pancadas com a mãe “de gatas”.

*

Especificamente quanto aos factos atinentes aos elementos subjectivos e à ilicitude, para além de ter resultado da própria postura e declarações do arguido em sede de primeiro interrogatório judicial e dos depoimentos das testemunhas, amigos do arguidos há vários anos, que aquele é imputável e tem consciência dos actos que pratica, no que concerne ao momento em que ocorreram os factos, tendo-se em conta ainda, quanto ao elemento subjectivo, designadamente no que respeita à intenção do arguido, o que decorre de presunção judicial decorrente das circunstâncias que envolveram os factos ocorridos, nomeadamente a circunstância de o arguido ter atingido a mãe na zona da cabeça, zona esta que qualquer pessoa de condição mediana tem presente que é uma parte do corpo que sendo atingida pode provocar a morte, até em face da idade da vítima, tudo isto apreciado à luz das regras da normalidade e da experiência comum, consideradas no âmbito do princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º do C.P.P..

Note-se que não foi produzida qualquer prova da matéria que ficou vertida em z) e aa), tendo-se considerado ao invés, face às razões aduzidas, o que consta no parágrafo anterior.

A ausência de antecedentes criminais resulta do certificado de registo criminal.

3. Apreciação

3.1. A prática dos factos

O recorrente, tal como fizera no recurso para o Tribunal da Relação, persiste, essencialmente, na desvalorização para efeitos de convicção do tribunal do relatório médico-pericial da autópsia feita à ofendida BB (invocando «vários vícios substanciais» que, em seu entender, a mesma encerra) e dos esclarecimentos prestados pelo seu autor e na concomitante valorização de dois pareceres médicos juntos aos autos pela defesa do arguido.

Como decorrência, sustenta que:

«-      Não existem no processo elementos que permitam afastar uma tese de queda acidental como estando na origem da morte da mãe do recorrente;

-        não existem, nas mesmas fontes, elementos que permitam concluir que a tese de intervenção de terceiro – isto e, de crime – é aquela que é mais provável;

-        Existem, nas mesmas fontes, elementos que permitem concluir que a tese da queda acidental é aquela que é mais provável» (conclusão 39.ª).

O que, segundo o recorrente:

«[…] impõe que, em respeito por qualquer interpretação legítima do disposto nos arts. 151.º e ss. do CPP, máxime no art. 162.º, e no art. 127.º do mesmo diploma, se absolva o recorrente por recurso ao princípio in dubio pro reo» (conclusão 40.ª).

Após se consignar expressamente no acórdão recorrido ter-se procedido à audição do registo sonoro dos meios de prova gravados, relevantes para a apreciação da impugnação da matéria de facto, afirma-se aí que resulta claro da motivação da decisão de facto, supra transcrita, que «o relatório da autópsia médico-legal, complementado com os esclarecimentos prestados pelo Exº Perito que o elaborou, foi determinante na emissão pelo Tribunal Colectivo de um juízo probatório no sentido de as lesões físicas, que causaram a morte da ofendida BB, lhe terem sido infligidas por uma acção voluntária de terceiro, ou seja, aquilo que vulgarmente se denomina uma agressão, tendo deixado excluída a eventualidade de as mesmas lesões terem sido provocadas por causa acidental, mormente uma queda».

Indo mais longe, refere-se ali, «diremos que o restante contexto probatório reunido, a começar pelas declarações do próprio arguido, exclui que, na hipótese de as lesões terem sido fruto de acção agressiva, o agente desta tenha sido outrem que não o arguido, na medida em que, na noite de 18 para 19/1/2017, quando a causa da morte de BB (qualquer que ela tenha sido) ocorreu, apenas o arguido e a ofendida se encontravam na residência onde o decesso da segunda teve lugar».

Perante a relevância que a prova pericial assumiu para a formação da convicção do tribunal quanto à causa da morte da ofendida, justifica-se uma referência particular a tal meio de prova que tem lugar, conforme prescreve o artigo 161.º do CPP, «quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos».

Sendo que, o artigo 18.º, n.º 1, da Lei n.º 45/2004, de 19 de Agosto, estipula a obrigatoriedade da autópsia médico-legal nos casos em que haja suspeitas de morte violenta (homicídio) ou cuja origem seja desconhecida.

O n.º 1 do artigo 159.º do CPP confere competência para a realização das perícias médico-legais ou forenses, que se situem nas atribuições do Instituto Nacional de Medicina Legal (INML), às delegações deste e aos gabinetes médico-legais.

Aqui chegados, cumpre desde já deixar bem claro que não assiste razão ao recorrente nas considerações que tece sobre alegados vícios formais e substanciais que, segundo o mesmo, descredibilizam a prova técnico-científica.

A este propósito, cumpre dizer que a autópsia médico-legal ao cadáver da vítima foi realizada com respeito das disposições constantes dos artigos 159.º do CPP e 18.º do Regime Jurídico das Perícias Médico-Legais e Forenses, aprovado pela Lei n.º 45/2004, de 19 de Agosto, tendo sido executada, justamente, por médico agregado ao Gabinete Médico-Legal e Forense do Sotavento Algarvio do Instituto de Medicina Legal.

Aliás, quer no decurso do inquérito, quer durante a instrução por ele requerida, nunca o arguido invocou quaisquer vícios ou irregularidades da perícia médico-legal realizada.

A prova pericial realizada neste processo assume, pois, o valor probatório específico que lhe assinala o artigo 163.º do CPP:

1 - O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.

2 - Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.

Como se extrai do artigo 152.º do CPP, o legislador português optou por um modelo de perícia preferencialmente pública, regra que, como observa JOÃO HENRIQUE GOMES DE SOUSA, apenas é afastada por impossibilidade ou inconveniência — artigos 152.º, 153.º 154.º, n.º 1, e 160.º-A do Código de Processo Penal», assim se consagrando um regime misto com prevalência de intervenção de organismos públicos, com a qualidade pericial a assentar numa certificação pública, sem exclusão da possibilidade hipotética de apresentação de perícias contraditórias quando não existam organismos públicos reconhecidos para a realização da perícia.

Ora, como sublinha este autor, «a especial relevância do juízo científico que se vê reflectida no artigo 163.º do Código de Processo Penal está necessariamente relacionada com a especial credibilidade da perícia, que o legislador entendeu estar ligada à sua natureza oficial».

Isto é, conclui o autor que se vem acompanhando, o legislador português no campo das perícias forenses previstas nos artigos 151.º seguintes do Código de Processo Penal, também por obrigação sistemática decorrente da atribuição ao juiz de julgamento de um poder-dever de investigação, excluiu — em regra — um regime de perícias adversariais, privadas, assente na possibilidade de as “partes” no processo, designadamente assistentes e arguidos, apresentarem as suas próprias perícias ou de serem outras entidades, que não as designadas pelo tribunal ou por estabelecimentos oficiais reconhecidos por lei, a realizar as perícias.

Ou seja, o meio de prova “perícia” não tem forma livre mas antes uma forma vinculada, de cariz - em regra - marcadamente público.

Essa característica marcadamente pública é reforçada pela previsão do artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 45/2004, de 19-08, ao estabelecer que as perícias médico-legais são realizadas, obrigatoriamente, nas delegações e gabinetes médico-legais do Instituto Nacional de Medicina Legal»[1].

Como também salienta SANTOS CABRAL, convocando argumentos constantes do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 133/2007, «à autoridade judiciária incumbe rodear a produção da prova pericial das condições necessárias a que dela se retire a verdade material, processualmente válida. Na decorrência desse objectivo do processo penal, o sistema português adoptou um regime de perícia oficial – não contraditória – essencialmente disciplinada pelos artigos 152.º, n.º 1 e 154.º, n.º 1, do citado Código [CPP], no domínio do qual o perito é um perito do Tribunal, sujeito ao mesmo dever de imparcialidade e de busca da verdade material que oneram a actividade judiciária»[2].

Como se refere o acórdão sob recurso:

«A produção do tipo de prova, que agora nos ocupa justifica-se quando a percepção ou a apreciação dos factos pressuponha o uso de conhecimentos em determinada área específica, normalmente não acessíveis à generalidade das pessoas, sendo-lhe atribuída uma força probatória reforçada, ainda que não absoluta.

Por essa razão, o regime jurídico da prova pericial em processo penal visa garantir, por um lado, a isenção e a imparcialidade daqueles a quem deva ser confiada a sua produção e, por outro lado, a sua competência no ramo específico de saber que esteja em causa.

Nesta ordem de ideias, a lei de processo faz depender a produção da categoria de provas a que nos reportamos de prévia decisão da autoridade judiciária, que, na fase processual de inquérito, é o MP, e comete a sua execução a entidades oficiais, a não ser em caso de impossibilidade ou quando a execução da perícia pela entidade normalmente competente para o efeito possa colocar em cheque o obtenção das finalidades que se pretendem alcançar com este tipo de prova, delegando-se nessas hipóteses a diligência pericial em entidades que ofereçam equivalentes garantias de isenção, imparcialidade e competência técnico-científica.

Assim sendo, não podem valer como prova pericial, e revestir o valor reforçado que lhe é próprio, as diligências que não tenham observado os formalismos prescritos pelos arts. 151º e seguintes do CPP.

Em especial, não podem ser consideradas perícias, no sentido jurídico-processual do termo, as declarações subscritas por profissionais de determinadas áreas, como seja a medicina, que frequentemente são juntas aos processos pelos sujeitos processuais particulares (arguidos, assistentes e partes civis), tendo em vista a demonstração de factos que lhes aproveitam, elaborados por pessoas da sua escolha.

Situam-se nesse universo de actos os «pareceres médico-legais» carreados para os autos pela defesa do arguido, respectivamente, a fls. 677 a 680 e a fls.939 a 956, sem menoscabo da credibilidade e competência das Exªs Clínicas que os subscrevem, com base nos quais pretende infirmar o juízo probatório afirmativo emitido pelo Tribunal Colectivo com fundamento no relatório da autópsia da ofendida (fls. 502 a 505).

O nº 1 do art. 158º do CPP dispõe sobre os meios à disposição dos sujeitos processuais para reagirem contra o resultado de uma diligência pericial, a saber, a prestação de esclarecimentos pelo seu autor, o que se mostra feito, ou a efectivação de nova perícia, por outro perito ou outros peritos, o que não aconteceu.

No momento actual, a realização de nova autópsia da ofendida encontrar-se-á, pela própria natureza das coisas, prejudicada, em razão do processo de decomposição que o seu cadáver necessariamente terá entretanto sofrido, sempre partindo do princípio que não foi submetido ao rito fúnebre de cremação.

De todo o modo, qualquer insuficiência de que o relatório da autópsia feita ao cadáver da ofendida possa enfermar sempre terá de ser resolvida a favor do arguido, em homenagem ao princípio da presunção de inocência, consagrado no nº 2 do art. 32º da CRP e o postulado «in dubio pro reo», que lhe está associado.

Ainda assim, aquilo que é vedado ao arguido é valer-se dos referidos pareceres médicos como se de uma «contra-perícia» ou de uma «perícia alternativa» se tratasse, se bem que tais pareceres não constituem meio de prova proibido e estão sujeitos ao princípio da livre apreciação do art. 127º do CPP.

A disposição do nº 1 do art. 152º do CPP, cuja violação pelo acórdão do Tribunal Colectivo o recorrente invoca, não se aplica ao caso em apreço, porquanto, estando em causa uma diligência pericial médico-legal (autópsia), a competência para a sua realização é definida nos termos do nº 1 do art. 159º do CPP, que a defere ao INML, tendo essa regra sido observada no processado dos autos.

Quanto ao nº 1 do art. 157º do CPP, não se vislumbra que o seu normativo tenha sido transgredido, na medida em que foi elaborado e junto ao processo relatório da diligência pericial questionada, situando-se a discordância do arguido ao nível das conclusões desse relatório que foram acolhidas no acórdão recorrido.

No que se refere à questão repetidamente evocada pelo recorrente, ainda que sem retirar dela consequências claras, de o Exº Perito Médico subscritor do relatório da autópsia da ofendida não se encontrar investido da especialidade de medicina legal ou forense, mas sim de urologia, apenas se nos oferece dizer que, a partir do momento em que o mesmo Clínico exerce funções de perito no INML e que está cometida a este Instituto a competência legal para a realização de autópsias médico-legais, a sua especialidade de origem é indiferente e as perícias por ele elaboradas têm o mesmo poder vinculativo.

Acerca do poder vinculativo da prova pericial, interessará ter em consideração aquilo que se expende na fundamentação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/10/2013, relatado pelo Exº Conselheiro Dr. Santos Cabral, proferido no processo nº 36/11.6PJOER.L1.S1 e disponível em www.dgsi.pt (transcrição com diferente tipo de letra):

Na verdade, dispõe o normativo do artigo 163 do CPP que o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial se presume subtraído à apreciação do julgador. Porém, a presunção é elidível na medida em que pode ser afastada quando a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, desde que seja (devidamente) fundamentada essa divergência.

Este dispositivo converge com a lição de Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, I vol., pp. 209 e 210) que, já no domínio do CPP de 1929, sustentava que «se os dados de facto que servem de base ao parecer estão sujeitos à livre apreciação do juiz – que, contrariando-os, pode furtar validade ao parecer – já o juízo científico ou parecer propriamente dito só é susceptível de uma crítica igualmente material e científica. Quer dizer: perante um certo juízo cientificamente provado, de acordo com as exigências legais, o tribunal guarda a sua inteira liberdade no que toca à apreciação da base de facto pressuposta; quanto, porém, ao juízo científico, a apreciação há-de ser científica também e estará, por conseguinte, subtraída em princípio à competência do tribunal – salvo casos inequívocos de erro, mas nos quais o juiz terá então de motivar a sua divergência».

 A nível da valoração da prova pericial no processo penal, ao permitir-se (apesar da presunção do nº 1 do artigo 163º do CPP) a divergência fundamentada, acaba por não se anular, de forma absoluta, a margem de apreciação livre do julgador. Pode-se afirmar que a pré-fixada valoração da prova pericial convive com o princípio da livre apreciação da prova, não obstante (só a nível da presunção contida no nº 1 do artigo 163º) ser configurada como uma sua “excepção”.

Porém, qualquer divergência relevante não se basta com uma apreciação genérica e pouco consistente, sob pena de se incorrer numa inadmissível valoração subjectiva ou na falta de fundamentação. Nos termos do artigo citado o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador, dispondo o nº 2, do mesmo preceito legal que, sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência. 

A presunção que o artigo consagra não é, como refere Germano Marques da Silva (Ob. cit., vol. II, p. 198.), uma verdadeira presunção, no sentido de ilação que a lei tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido; o que a lei verdadeiramente dispõe é que, salvo na existência de fundamento em crítica material da mesma natureza, isto é, científica, técnica ou artística, o relatório pericial se impõe ao julgador.

Não é necessária uma contraprova, basta a valoração diversa dos argumentos invocados pelos peritos e que são fundamento do juízo pericial. Considera Marques Ferreira que se trata de uma presunção “natural” a qual, por conseguinte, cederá mediante contraprova. Efectivamente, não seria lógico que, pelo menos nas perícias em que houvesse votos de vencido (art. 157º, nº 5 do CPP), se pretendesse impor ao tribunal um juízo científico com valor probatório pleno, cedendo apenas perante a prova do contrário (Meios de prova In: Jornadas de Direito Processual Penal: o novo código de processo penal. – p. 219-270 Ob. cit., p. 259).    

                      

De acordo com a orientação interpretativa consagrada no Aresto agora citado e com a qual concordamos, o juízo pericial (médico-científico, no caso em apreço) impõe-se ao Tribunal, a menos que este o afaste com apoio em argumentos científicos da mesma natureza.

O relatório da autópsia da ofendida BB remata com as seguintes conclusões médico-legais:

                     1- A morte de BB foi devida a contusão e hemorragia encefálica

                       2- As lesões traumáticas descritas no hábito externo e no hábito interno, denotam acção traumática de natureza contundente e terão produzido a morte de forma imediata, por grave lesão crânio-encefálica.

                       3- O cadáver apresenta múltiplas lesões traumáticas, nos joelhos, tórax, face e crânio. A sua localização, características e número permitem afirmar que foram produzidas por acção traumática múltipla e de grande violência, com elevada probabilidade por acção de terceiros.

                       4- A etiologia médico-legal da morte estabelece-se como a prática de homicídio, acrescentando-se que a queda, é excluída como causa, visto o cadáver não ter lesões nos membros superiores e devido às características e localização das lesões traumática.

                       5- À data da morte não se encontrava sobre a influência de etanol, estupefacientes, medicamentos ou outros tóxicos.

                       6- Não se observaram outros sinais de violência externa recente.

                     

Para melhor compreensão passaremos a transcrever os pareceres médicos, carreados para o processo pela defesa do arguido, começando pelo que se encontra a fls. 677 a 680 e é subscrito pela Drª..........:

«III. DISCUSSÃO/CONCLUSÕES MEDICO-LEGAIS

Da análise da documentação que nos foi facultada pode concluir-se objectivamente, o que se segue.

1. A morte de BB foi devida às lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas, da face e torácicas

2. Estas lesões traumáticas resultaram de traumatismos múltiplos de natureza contundente, de grande intensidade

3, Estas lesões traumáticas são causa adequada de morte.

4. O documento de verificação do óbito não descreve nem sequer alude, às características dos sinais positivos de morte consecutivos à cessação das funções vitais nomeadamente, arrefecimento, desidratação, rigidez e livores cadavéricos Consequentemente. não é possível determinar qual a hora aproximada da morte, isto é, o tempo decorrido entre a produção das lesões traumáticas e a morte,

A determinação da data/hora aproximadas da morte - tanatocronodiagnóstico - só é possível quando no documento de verificação do óbito constam descritas as características dos sinais positivos de morte

Nesta conformidade, não é possível concluir qual o período de tempo decorrido entre a produção que as lesões traumáticas e a morte, não podendo concluir-se que as mesmas "terão produzido a morte de forma imediata (sublinhado nosso), por grave lesão crânio-encefálica" a BB,

5. O cadáver de BB apresentava lesões traumáticas múltiplas, todas elas produzidas por traumatismo violento natureza contundente:

na cabeça, descritas predominantemente à esquerda;

no pescoço, exclusivamente descritas à direita,

no tórax, predominantemente à direita:

nos membros inferiores, lesões aparentemente distribuídas de forma semelhante e bilateral.

Não foram observadas lesões nos membros superiores,

A localização, as características e a multiplicidade das lesões traumáticas do cadáver, descritas no relatório de autópsia, apesar de poderem permitir concluir que as mesmas resultaram de acção traumática múltipla de grande violência, não excluem que tais lesões traumáticas tenham resultado de queda,

Por um lado, as lesões traumáticas descritas no cadáver a nível dos membros inferiores (joelhos e pernas) são indiciadoras de terem resultado de queda

Por outro lado a inexistência de lesões traumáticas localizadas nos membros superiores - lesões de defesa passiva ou activa - são, pelo contrário, mais consentâneas com queda acidental.

6. Face ao exposto, causa de morte: localização, multiplicidade e características das lesões descritas no relatório de autópsia, não é possível concluir medico-legalmente, com segurança, qual a etiologia médico-legal/circunstâncias das lesões traumáticas que foram causa da morte de BB».

         Seguidamente, iremos transcrever o parecer junto a fls. 939 a 954, da autoria da Drª CC:

DISCUSSÃO

A análise do caso em apreço suscita os seguintes comentários:

1. TEMPO DE SOBREVIDA

Não é possível concluir que a morte da vítima tenha sido imediata, atendendo aos achados autópticos descritos no relatório de autópsia e baseado na reportagem fotográfica da autópsia

(Relatório exame da PJ n° 26/2017-JFC), designadamente:

1.1 Os focos de contusão hemorrágica descritos no encéfalo implicam que tenha havido um período mais ou menos longo de vida, após o trauma, durante o qual os pequenos vasos continuaram a sangrar para tecido encefálico com consequente formação dos focos de contusão. Se a morte tivesse sido imediata os focos de contusão seriam microscópicos ou inexistentes, não sendo possível observá-los durante a autópsia, sem o auxílio de meios complementares de diagnóstico (neste caso, estudo histopatológico que não foi efectuado);

1.2 Nas fotos 21, 22, 23 e 26 (da reportagem fotográfica da autópsia - Relatório exame da PJ nº 26/2017-JFC) é possível constatar a presença, do que nos parece ser, uma colecção de hematomas subdurais, sobre os lobos cerebrais frontais e na base do crânio (não descritos no relatório de autópsia). Para a formação destes hematomas é necessário que tivesse havido período de sobrevida, ou seja, que a vítima se mantivesse viva e que a hemorragia continuasse durante algum tempo. Assim, o que referimos no ponto anterior aplica-se de forma semelhante também aqui, uma vez que após um trauma com morte imediata teríamos "apenas" uma hemorragia subdural em toalha (com pouca espessura) e não seria possível a formação de um hematoma (uma colecção de sangue). Acresce ainda que, os referidos hematomas parecem ter alguns sinais de organização, uma vez que aparentam estar revestidos por uma fina membrana e têm pouca mobilidade pois mantêm-se aderentes às estruturas descritas, sem ceder à acção da gravidade. Mais uma vez, para a correta datação das hemorragias/hematomas subdurais seria essencial a realização de meios complementares de diagnóstico, com estudo histopatológico de fragmentos de hemorragia e das meninges (que não foi efectuado na presente autópsia). Acresce ainda que a descrição de "Meninges: Hemorrágicas" é claramente insuficiente, na medida em que não é referida a meninge envolvida (epidural, subdural ou subaracnoideia), local/distribuição da hemorragia (em que zonas do encéfalo e/ou calote) e dimensões. Mais ainda por se tratar de um caso que poderia vir a ser tratado como de suspeita de homicídio, com traumatismo crânio-encefálico

1,3 Tendo em conta o que foi descrito nos pontos anteriores, é possível perceber que na fase a seguir após o evento traumático ter-se-ão iniciado os fenómenos hemorrágicos ao nível do tecido encefálico e das meninges. Num período inicial, os microfocos de contusão encefálicos e a hemorragia subdural, não são suficientes para causar a morte imediatamente (como por exemplo numa laceração completa da artéria aorta ou do tronco cerebral), mas que paulatinamente, à medida que a hemorragia vai decorrendo, causarão uma alteração do estado de consciência com evolução para coma e posterior morte,

1.4 A fractura da mandíbula é descrita como cominutiva. Não há, porém, registo das dimensões da mesma, sendo que nas fotos 29, 30, 41 e 42 (da reportagem fotográfica do exame do local - Relatório exame da PJ nº 2017-021) apenas se observa topo ósseo em exteriorização, Assim, essa fractura não poderá ser considerada como responsável por uma morte imediata, podendo, no entanto, causar uma morte diferida, pelo choque hipovolémico decorrente de hemorragia ou pela entrada de sangue na via aérea e eventual asfixia, Assim, é possível que, após o evento traumático, a vítima se tenha conseguido levantar e deslocar-se até à cama, onde acabou por falecer.

Ou seja, os achados acima descritos implicam que após o traumatismo a vítima tenha estado viva o tempo suficiente para surgirem as alterações descritas, podendo inferir-se, claramente e de forma inequívoca, que a morte da vítima não foi imediata.

2. ETIOLOGIA MÉDICO-LEGAL DO TRAUMATISMO

Natureza das lesões traumáticas

Relativamente às lesões traumáticas descritas no relatório de autópsia e observadas nas fotografias do exame do local e da autópsia (Relatório de exame da PJ nº 2017-021 e Relatório exame da PJ nº 26/2017-JFC respectivamente), quase todas denotam ter sido produzidas por mecanismo de natureza contundente, definindo-se como o trauma que ocorre por acção de uma superfície dura, mais ou menos extensa, com esmagamento dos tecidos. Dizemos "quase todas" porque não se compreende a descrição de "Ferida incisa da região mandibular esquerda, com 4 cm, com exposição dos topos ósseos, em relação com fractura cominutiva complexa da mandíbula", no Hábito Externo - cabeça, do relatório de autópsia. Com efeito, dizer que se trata de uma ferida incisa e posteriormente nas conclusões B - 2 referir que "As lesões traumáticas descritas no hábito externo e no hábito interno, denotam acção traumática de natureza contundente ..." é, no mínimo, contraditório. As feridas incisas são provocadas por mecanismo de natureza cortante, por acção de um gume afiado. Já o mecanismo de natureza contundente é adequado a produzir trauma contuso, tais como equimoses, hematomas ou lacerações. Depois, também é estranha a descrição de "região mandibular esquerda", "com 4 cm", "fractura cominutiva complexa da mandíbula" e "fractura cominutiva exposta da mandíbula" uma vez que nas fotos 29, 30, 41 e 42 (da reportagem fotográfica do exame do local _ Relatório exame da PJ nº 2017 -021), apenas se observa uma ferida (contusa?), que no máximo aparenta ter 1 cm de comprimento, localizada ligeiramente à esquerda da linha média (e não na região mandibular esquerda) e com exteriorização de um dos topos ósseos, não se observando uma fractura cominutiva e/ou complexa. Constata-se, portanto, que foi feita uma descrição claramente incompleta da fractura da mandíbula, não nos parecendo que tenha sido feita dissecção da face, essencial para o esclarecimento da mesma. Assim, a descrição correta das lesões traumáticas (tipo, forma, cor, dimensões e local anatómico) e sua adequação com o mecanismo traumático é um dos princípios básicos da patologia forense, fundamentais para esclarecer a causa de morte e etiologia médico-legal.

Relativamente às lesões descritas e sua adequação com uma queda frontal/lateral com a cabeça e face sobre degraus de mármore:

2.1 A fractura exposta da mandíbula pode ter ocorrido por trauma directo com impacto da face sobre as escadas, ao falharem os membros superiores ou mesmo os membros inferiores, quando se apoiava. De realçar que, apesar de se tratar de uma estrutura resistente, no caso em apreço temos um osso fragilizado pela rarefacção óssea devido à osteoporose e ausência de dentes (a vitima usava próteses dentárias superior e inferior).

2.2 Os hematomas do couro cabeludo bilaterais são também compatíveis com uma queda, mesmo ao subir as escadas, uma vez que, após o impacto sobre a face, sendo a cabeça uma estrutura anatómica com algum peso, é normal que rode para o lado e sofra impactos laterais à medida que vai descendo e embatendo pelas escadas, tratando-se de impactos secundários, perfeitamente admissíveis numa queda de escadas com desníveis sucessivos.

2.3 As equimoses periorbitárias podem ser produzidas essencialmente por 3 mecanismos nomeadamente, impacto directo sobre a referida região anatómica do olho ou por drenagem inferior para a zona do olho por acção da gravidade após lesão do couro cabeludo na região frontal conforme foto 16 (da reportagem fotográfica da autópsia - Relatório exame da PJ nº 26/2017 -JFC). Ou seja, no caso em concreto não se pode excluir que a equimose periorbitária esquerda se tenha formado por acção da gravidade após um impacto frontal/lateral durante uma queda por embate da face sobre uma superfície dura.

2.4 A fractura do osso temporal esquerdo, que está descrita de forma incompleta na autópsia (tipo e dimensões), mas que presumimos observar-se na foto 19 (da reportagem fotográfica da autópsia - Relatório exame da PJ nº 26/2017 -JFC), é uma fractura linear, como as que são causadas principalmente por acidentes de trânsito e quedas. Na hipótese de agressão com impacto focal directo (como num murro ou manipulação de um instrumento), são mais frequentes as fracturas em "mosaico" ou "teia de aranha", muitas vezes associada a afundamento ósseo sobre o encéfalo, o que não é o caso. Podemos mesmo dizer que, tendo em conta o facto de a região temporal ser uma das zonas da calote mais finas, a fractura poderá ter surgido com um impacto de baixa energia, como o decorrente de uma queda inferior à própria altura.

Não nos causa, portanto, estranheza que a maioria das lesões traumáticas seja ao nível da cabeça, uma vez que, segundo a bibliografia consultada, as lesões na cabeça são dominantes em quedas fatais, independentemente da altura. Acresce ainda que os impactos da cabeça tendem a ocorrer em quedas acidentais porque o centro de gravidade do corpo está na sua parte superior.

2.6 No relatório de autópsia estão descritas lesões traumáticas torácicas no Exame do Hábito Externo _ Tórax: "Equimose com 2 e 3 cm no hemitórax esquerdo. Equimose modelada com 7 cm, no hemitórax antero-lateral direito". Mais uma vez se constata uma inexactidão na descrição dos achados, não só nas dimensões, mas porque também se tratam de equimoses e é necessário descrever a coloração das mesmas, no sentido as datar. Por exemplo, se forem equimoses já com áreas amareladas ou esverdeadas não podem ser consideradas contemporâneas com a data da morte.

Também não se percebe a descrição do hábito interno, nas alíneas "Clavícula, cartilagens e costelas" de "5a e 6a anteriores e 6a posteriores ... 6a anterior", que se presumem serem fracturas, mas que não estão descritas como tal.

A lesão descrita como "Equimose modelada com 7 cm, no hemitórax antero-lateral direito" presume-se que corresponda à lesão evidenciada na foto 4 (da reportagem fotográfica da autópsia - Relatório exame da PJ n° 26/2017-JFC), que a ser figurada, poderá corresponder ao embate no ângulo das escadas (fotos 8 e 9 da reportagem fotográfica do exame do local - Relatório exame da PJ n° 2017-021).

Relativamente a ocorrência de lesões traumáticas torácicas (escoriações, equimoses e fracturas de arcos costais) está descrito na literatura que podem ser encontradas na maioria das quedas, sendo que as fracturas podem ser solitárias, mas normalmente são bilaterais Além disso, pessoas idosas, devido à osteoporose e diminuição da musculatura, são mais propensas a sofrer fracturas da parede torácica após um traumatismo.

2.7 Já a ausência de lesões traumáticas nos membros superiores é perfeitamente compatível com uma queda acidental, uma vez que estas só ocorrem se a vitima embater com os membros em objectos durante a queda (como numa queda de altura elevada) ou se fizer alguma tentativa de aparar a queda, sendo esta última difícil de concretizar numa queda de escadas. Com efeito, é aceitável que a vítima tenha caído desamparada e embatido com a face nos degraus, justamente porque os membros superiores ou mesmo os membros inferiores não conseguiram suster o peso do tronco/cabeça e colapsararn, permitindo o trauma da face. Por outro lado, a inexistência de lesões dos membros superiores na hipótese de agressão causa estranheza, dado que é normal que durante uma qualquer agressão haja uma reacção natural das vítimas de se protegerem com os membros superiores, daí surgindo as lesões de defesa. Os locais clássicos das lesões de defesa são as mãos e antebraços, que são instintivamente levantados para proteger os olhos, face e cabeça. No presente caso, dado o mecanismo de natureza contundente, seria expectável a presença de equimoses, como tentativas de defesa, nos antebraços, punhos e mãos. E essas lesões não existem.

2.8 Mais se informa que, dado tratar-se de uma pessoa com idade avançada (pós-menopausa) e do sexo feminino, que constituem os factores de risco mais importantes de osteoporose, é aceitável que mesmo uma queda de pouca altura e com baixa energia seja suficiente para explicar as lesões traumáticas da cabeça e face, face à fragilidade e diminuição da densidade óssea.

2.9 Conclui-se dizendo que apesar de nas quedas existir uma relação directa entre o aumento da altura e a gravidade das lesões traumáticas, tal não significa que uma queda de 2 metros de altura provoque sempre lesões traumáticas mais graves do que uma queda de 1 metro de altura. Há factores que provocam uma enorme variabilidade neste tipo de trauma, tais como: zona do corpo atingida, variação interpessoal (idade e patologias), dureza e área da superfície do embate. No presente caso, tendo em conta a idade avançada, as comorbilidades (osteoporose, caquexia, antecedentes de AVC) é perfeitamente admissível que uma queda de baixa altura tenha provocado as lesões descritas, nomeadamente em escadas tão íngremes e de mármore.

2.10 Assim, no caso em apreço, não se pode excluir que as lesões traumáticas pudessem ter sido provocadas por uma queda frontal/lateral, com impacto da face num degrau de mármore e posterior lateralização, quando a idosa se encontrava a usar as escadas de mármore, estreitas e inclinadas de casa.

 3. OUTRAS LESÕES TRAUMÁTICAS

3.1 No relatório de autópsia esta descrita uma "Equimose com 3 cm na face direita" no Exame do Hábito Externo - Pescoço, sendo que mais uma vez se constata uma caracterização incorrecta, não sendo possível saber a forma da equimose e se os "3 cm" são de comprimento, de diâmetro ou se falta outra das dimensões da lesão. Acresce ainda que, da nossa análise da documentação fotográfica não foi possível observar a referida equimose, nomeadamente na foto 31 (da reportagem fotográfica da autópsia - Relatório exame da PJ n° 26/2017-JFC), que mostra justamente a superfície corporal em questão. Também aqui se verifica uma incorrecção durante a realização da autópsia pois os órgãos do pescoço foram simplesmente removidos através de uma incisão mento-púbica. Para uma correta observação e descrição das lesões traumáticas cervicais e do pescoço é necessário efectuar uma alteração da técnica de abertura do pescoço e respectiva dissecção por planos. Também no pescoço, desta vez ao nível do Hábito Interno - Pescoço, não há qualquer referência presença/ausência de fracturas do osso hióide e das cartilagens tiróide e cricóide (elementos anatómicos da laringe), o que não se percebe, face à suspeita de acção de terceiros na morte da vítima.

Adicionalmente, não nos podemos esquecer que, tratando-se de uma vítima com idade avançada e condições patológicas associadas (antecedentes de AVC grave, caquexia com atrofia muscular, provável osteoporose e fragilidade cutânea e vascular) existe uma predisposição acrescida, em relação à população em geral, para traumatismos da superfície corporal provocados por quedas no chão e embates frequentes em objectos/móveis, durante a movimentação/mobilização. Está ainda descrita uma situação de limitação funcional, com difícil locomoção, agravada no último ano e meio.

CONCLUSÕES

É, pois, nosso parecer que, apesar das irregularidades irreparáveis nos procedimentos de realização e de registo da autópsia analisada, não é possível excluir que a morte tenha sido causada por um acidente involuntário, uma vez que não há achados autópticos que permitam, com grau de certeza, afirmar que esta resultou de acção dirigida de terceiro».

            

O segundo dos pareceres médicos transcritos vem acompanhado de um documento denominado «Norma Procedimental – Recomendações quanto aos Procedimentos Gerais de Realização de Autópsia» aprovado pelo Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses.

            

Afigura-se-nos que o Tribunal «a quo» no acórdão em crise procedeu a uma discussão adequada e correcta dos argumentos expendidos nos pareceres médicos oferecidos pela defesa do arguido Amândio Pereira.

Antes de mais, importa considerar que foi determinante da emissão pelo Exº Perito Médico, que efectuou a autópsia, de um juízo no sentido de excluir uma eventual queda como causa das lesões traumáticas, que provocaram a morte de BB, a circunstância de a falecida não apresentar lesões nos membros superiores.

Tal asserção consubstancia não só um juízo científico, mas também constitui um dado da experiência comum, pelo que a sua bondade é controlável mesmo por pessoas não dotadas de conhecimentos específicos na matéria.

Na verdade, qualquer pessoa tem a noção que, quando se dá uma queda, projecta-se as mãos, em acto reflexo, na direcção do solo ou de outro obstáculo que se aproxime, de forma a proteger o resto do corpo.

Neste contexto, são sempre os membros superiores (mãos e braços) que recebem o primeiro impacto da queda, pelo que são características desses casos as chamadas «feridas de defesa» naquelas partes do corpo, que, não foram detectadas na ofendida ao ser autopsiada.

Ora, no que se refere à ausência de lesões nos membros superiores, a argumentação desenvolvida nos pareceres médicos carreados pelo ora recorrente não parece, salvo o devido respeito, convincente no sentido reverter o juízo formulado no relatório da autópsia, pelo menos em cotejo com o restante contexto probatório do processo e, desde logo, com as declarações do próprio arguido, apesar da sua manifesta falta de credibilidade, já que é dele a única versão dos factos disponível.

Assim, alega-se nos referidos pareceres que a ausência de lesões de defesa nos membros superiores é justamente indiciadora de as lesões traumáticas, que causaram a morte da ofendida, terem sido provocadas por queda, pois aquelas tenderiam a existir no caso de a vítima ter sido alvo de alguma acção agressiva contra sua integridade física, por parte de terceiro.

Em matéria de lesões de defesa, convém distinguir cuidadosamente entre duas realidades que não devem ser confundidas: uma coisa são os gestos reflexos e involuntários de auto-protecção, parte de alguém que cai; outra coisa são as actuações voluntárias para se resguardar de uma agressão contra si dirigida por outrem.

Dada sua natureza de acto reflexo, as actuações da primeira categoria tenderão sempre a verificar-se, mesmo estando em causa uma pessoa de idade muito avançada e padecendo de diversos factores de debilitamento.

Quanto às lesões de defesa voluntária, a sua ocorrência depende, como é óbvio, de uma multiplicidade de factores.

Algumas das actuações defensivas voluntárias tenderão a envolver, embora não exclusivamente, o uso dos membros superiores, por exemplo, o agredido levantar mãos e os braços, a fim de aparar golpes contra si desferidos.

De acordo com resultado da autópsia da ofendida esta não apresentava lesões que pudessem ser identificadas como «lesões de defesa», de uma categoria ou de outra.

A matéria de facto provada não é particularmente precisa ou detalhada a sobre o «modus operandi» seguido pelo arguido para infligir à ofendida as lesões, que lhe tiraram a vida, pelo não é possível ajuizar em que maior ou menor medida ela terá tido oportunidade de defender da actuação agressiva de que foi vítima.

De todo o modo, ressalta claro do mesmo acervo factual que o arguido e a ofendida sua mãe desenvolveram uma relação de profunda confiança e cumplicidade alicerçada em ter ele sempre vivido com a mãe, de que quem é filho único, ter a progenitora enviuvado quando ele era ainda criança e não ter voltado a casar, ter o arguido passado a cuidar da sua mãe quando esta atingiu a velhice.

Não há notícia de qualquer situação conflitual entre o arguido e a ofendida, que pudesse ter impelido o primeiro tirar a vida à segunda.

Embora não se tenha demonstrado que o arguido tenha seguido o procedimento descrito nas alíneas m), n) e o) da matéria não provada para agredir a ofendido, em termos de tornar impossível a defesa por parte desta, é ainda assim plausível que o arguido, atento o evocado contexto relacional entre ambos, tenha logrado infligir à ofendida as lesões que a vitimaram, sem que ela tivesse tido a mínima hipótese de defesa, colhendo-a de surpresa, o que também é potenciado pela idade muito avançada da vítima e do seu debilitamento físico.

Nesta conformidade, teremos de concluir que a ausência de «lesões de defesa» nos membros superiores da ofendida exclui que lesões letais por ela sofridas sejam resultado de queda, mas não que tem sido produzidas por acção agressiva de outrem.

Num dos pareceres médicos em confronto, é dito que a fractura do osso temporal esquerdo da ofendida é linear, como as que são principalmente causadas por acidentes de trânsito e quedas, quando na hipótese de agressão com impacto focal directo (como num murro ou na manipulação de um instrumento) são mais frequentes as fracturas em «teia de aranha» ou em mosaico.

Trata-se de uma matéria que, como é óbvio, vai muito além de qualquer experiência comum e que só é dominada pelos especialistas.

Contudo, de acordo com formulação do próprio parecer, tratar-se-á de uma regra meramente tendencial, pelo que não é de molde a desmentir a convicção formada pelo Tribunal de julgamento, com base no relatório da autópsia.

No mesmo parecer, é também aventada a possibilidade de algumas lesões apresentadas pela ofendida quando foi autopsiada, na cabeça e no tronco, como hematomas e fracturas de costelas, terem sido provocadas por queda.

Tal eventualidade é viável, em abstracto, mas colide, conforme fez salientar o Tribunal «a quo», com a única versão dos factos disponível e essa é aquela que o arguido forneceu, nas declarações prestadas.

Segundo a narrativa do arguido, a sua mãe caiu por duas vezes, ao subir a escada de gatas e com ele a segurá-la por detrás, enquanto a hipótese tratada no parecer médico pressupõe uma queda escada abaixo.

Os pareceres em presença criticam ainda ao autor da autópsia feita à ofendida inobservância de numerosos procedimentos recomendados pelo INML para a boa realização dessas diligências.

Todavia, não vislumbramos que a inobservância desses procedimentos ponha em causa os fundamentos do juízo probatório emitido pelo Tribunal Colectivo sobre a origem das lesões, que puseram termo à vida de BB, que é, em substância, o que se discute na impugnação «sub judice».

Tudo visto, reconhecendo a dificuldade e a delicadeza do tema, concluiremos que dos pareceres médicos juntos pela defesa do recorrente não resultam argumentos de ordem científica que invalidem o juízo pericial emitido no relatório da autópsia da ofendida BB.

Aqui chegados, teremos de salientar, ao nível exame crítico da prova, a manifesta inverosimilhança da versão factual sustentada pelo arguido, como fez o Tribunal «a quo».

Com efeito, disse o arguido que, quando a sua mãe caiu ao subir as escadas, lhe perguntou se estava bem, a que ele respondeu que sim, após o que conduziu à casa de banho e ao quarto de dormir onde a deixou.

As fracturas apresentadas pela ofendida não eram de molde a ser causadas por uma queda ao subir a escada de gatas, mesmo tendo em conta a idade dela, o seu estado de debilitamento e a osteoporose que a afectava, e, na hipótese de terem ocorrido, seguramente a mãe do arguido não lhe teria respondido que estava bem, pois as dores seriam demasiado intensas.

A versão de sustentada nas declarações do arguido tem também pressuposto que tenha ocorrido uma «tremenda coincidência» de se ter acidentalmente partido, na noite em que a sua mãe sofreu as lesões que foram causa do seu decesso, um objecto (estatueta), existente na residência de ambos, que, pelas suas características, era idóneo a ser utilizado como instrumento de agressão e no qual foi encontrado um vestígio de sangue da ofendida.

Na motivação do recurso, o arguido faz apelo aos factos que se provaram acerca sua personalidade, das suas condições de vida e do seu relacionamento com a sua mãe no sentido de demonstrar que não poderia ter tirado a vida à sua progenitora, acrescendo que não tinha móbil plausível para o fazer.

Antes de mais, é evidente que a circunstância de um arguido se mostrar socialmente integrado, a todos os níveis, ter um bom relacionamento com as outras pessoas e ser portador de uma personalidade conformada aos valores vigentes não é óbice a que o Tribunal formule um juízo probatório afirmativo sobre os factos integradores da sua responsabilidade, quando haja prova objectiva que aponte nesse sentido, como é o caso.

Confrontada a matéria de facto provada, verifica-se que dela não consta, em bom rigor, o móbil da apurada conduta do arguido.

É sabido que toda a conduta humana tem uma motivação e que o acto puramente gratuito é uma abstracção filosófica.

Contudo, o facto de não se ter apurado a respectiva motivação não obsta que possa fazer-se a prova dos factos integradores de um crime nas suas vertentes objectiva e subjectiva.

Nesta conformidade, teremos de concluir que inexistem razões que justifiquem a reversão do juízo probatório afirmativo emitido pelo Tribunal Colectivo, relativamente aos factos descritos nos pontos 18 a 36 da matéria assente.

Quanto aos factos não provados impugnados pelo recorrente, tão pouco procede a impugnação em apreço, pois não existe deles a mínima prova e nem sequer o arguido, a bem dizer, a indicou.

Em particular, no que se refere à factualidade vertida nas alíneas z) e aa), sempre diremos que procedemos à audição do registo sonoro das declarações prestadas pelo arguido no seu primeiro interrogatório judicial, as únicas que foram valoradas como meio de prova, as quais foram produzidas em 26/1/2017, sensivelmente uma semana depois da ocorrência da conduta incriminada, e, em momento nenhum, o ora recorrente deixou transparecer que pudesse não estar completamente consciente de todas as implicações dos seus actos.

De todo o modo, a demonstração positiva dos factos descritos naquelas alíneas sempre teria de ser feita com fundamento em prova de natureza científica, a qual não existe.»

A análise empreendida pelo Tribunal recorrido nas considerações que se deixaram transcritas merece a nossa inteira concordância, pois constitui fundamentação bastante para o juízo formulado no sentido da confirmação da factualidade assente na 1.ª instância.

Vem a propósito que nunca é de mais reafirmar que, de acordo com o disposto no artigo 46.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, «Fora dos casos previstos na lei, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito».

Por seu lado, o artigo 434.º do CPP, em matéria de conhecimento de recursos, circunscreve os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça ao reexame da matéria de direito, sem prejuízo do disposto do artigo 410.º, n.ºs 2 e 3, do mesmo Código.

Constitui jurisprudência constante e uniforme deste Supremo Tribunal (desde a entrada em vigor da Lei n.º 58/98, de 25 de Agosto) a de que o recurso da matéria de facto, ainda que circunscrito à arguição dos vícios previstos nas alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 410.º, tem de ser dirigido ao Tribunal da Relação e que da decisão desta instância de recurso, quanto a tal vertente, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

O Supremo Tribunal de Justiça tem, pois, os seus poderes de cognição estrita e pontualmente fixados no citado artigo 434.º, do CPP, limitados ao exclusivo reexame da matéria de direito, não podendo intrometer-se no reexame da matéria de facto, sem prejuízo do disposto no artigo 410.º,  n.os 2 e 3, do CPP.

«Daí resulta, como justamente se sublinha no acórdão deste Supremo Tribunal, de 04-07-2013 (Proc. n.º 1243/10.4PAALM.L1.S1 – 3.ª Secção), que ao recorrente é vedado erigir a divergência factual com o decidido, a convicção adquirida nesse domínio, em fundamento de recurso para este STJ, porque não teve contacto à vista com as provas, do qual deriva, após a sua produção, reexame e análise crítica, a convicção probatória do Tribunal, que não tem que coincidir com a da parte, modelada, como bem se entende, à luz do seu interesse, a fixação do acervo factual».

Continuando a seguir o citado acórdão:

«Esse papel incumbe às instâncias às quais é viabilizado aquele contacto, numa relação apelidada já de proximal, pela aproximação aos meios de prova, particularmente ao testemunhal, cuja especificidade, pela forma multifacetada de prestação, é essencialmente apreensível, mais na 1.ª instância do que na 2.ª instância, esta podendo conhecer de facto e de direito, nos termos do art.º 428.º, do CPP, contudo o seu julgamento se cinge aos pontos de facto indicados no condicionalismo do art.º 412.º n.º 3, do CPP.

E a Relação fecha, em definitivo, como regra, o ciclo do conhecimento da matéria de facto, seja por aquele conhecimento limitado, seja ainda pelos poderes de modificabilidade que lhe são outorgados no art.º 432.º, a), e c), seja pelo conhecimento oficioso dos vícios previstos no art.º 410.º n.º 2, do CPP.

E neste último âmbito, parificadamente com o reconhecido para este STJ, na observância do AFJ, de 19.10.95, in DR, Série A, de 28.12.95, atenta a natureza de tais vícios, de gravidade, comprometendo a lógica do decidido, a credibilidade das decisões judiciais ante os seus destinatários próximos e a comunidade mais ampla de cidadãos, que aguarda dos tribunais, decisões acertadas e justas, só assim se lhes impondo na sua missão de julgar.

Essas anomalias situam-se ao nível da matéria de facto, da lógica jurídica, são impeditivas de bem se decidir, viciando o silogismo judiciário, criando disfuncionalidades, incoerência interna nos termos da decisão, como se decidiu nos Acs. deste STJ, de 7.12.2005, CJ, Acs. STJ, XIII; T III, 224 e de 29.3.2006, in P.º n.º 651/06 -3.ª Sec.

Como igualmente se dá nota no acórdão deste Supremo Tribunal de 08-10-2015, proferido no processo n.º 417/10.2TAMDL.G1.S1 – 3.ª Secção, que o agora relator subscreveu como adjunto, «[é] jurisprudência constante deste Supremo Tribunal que “[d]ecidido o recurso pela Relação, ficam esgotados os poderes de apreciação da matéria de facto, tornando-se esta definitivamente adquirida, salvo se ocorrer algum dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, de que o STJ deva oficiosamente conhecer», não constituindo o «conhecimento desses vícios pelo Supremo Tribunal (…) mais do que uma válvula de segurança a utilizar pelo tribunal nas situações em que não seja possível tomar uma decisão sobre a questão de direito, por a matéria de facto se revelar ostensivamente insuficiente, ou se fundar em erro de apreciação, ou estar assente em premissas contraditórias», pelo que «[o] conhecimento das questões de facto, enquanto tais, encontra-se, assim, subtraído à apreciação do STJ que, sendo um tribunal de revista, apenas conhece de direito – arts. 432.º e 434.º do CPP», e, assim, quanto aos «princípios da livre apreciação da prova e de in dubio pro reo, ao STJ apenas é possível apurar da respectiva violação através da própria decisão: só da análise da matéria de facto e da sua fundamentação se poderá avaliar da eventual infracção destes princípios e nunca pelo exame das próprias provas que estejam recolhidas nos autos – cf. Ac. de 28-05-2008, Proc. n.º 1218/08», pelo que «[s]e a decisão sobre a matéria de facto se encontra fundamentada, de tal modo que se consegue perceber o raciocínio feito pelas instâncias ao darem como provada determinada matéria, não foi violado o princípio da livre apreciação da prova»[[3]].

Qualquer um dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP «tem de resultar, nos termos da lei, do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugado com as regras da experiência, estando excluída, para o efeito, a consideração de quaisquer meios de prova produzidos em julgamento, salvo nos casos previstos designadamente no n.º 3 do art. 674.º do CPC» [[4]], «são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei, tratando-se de vícios da decisão e não do julgamento [[5]]».

        

O conhecimento oficioso dos vícios do artigo 410.º, n.os 2 e 3, do CPP, não constitui mais do que uma válvula de segurança a utilizar naquelas situações em que não seja possível tomar uma decisão (ou uma decisão correcta e rigorosa) sobre a questão de direito, por a matéria de facto se revelar ostensivamente insuficiente, por se fundar em manifesto erro de apreciação ou ainda por assentar em premissas que se mostram contraditórias e por fim quanto se verifiquem nulidades que não se devam considerar sanadas.

Desta feita e no seguimento do entendimento supra vertido, impõe-se oficiosamente verificar se a decisão recorrida padece dos vícios do artigo 410º, n.os 2 e 3, do CPP.

Como decorre expressamente deste normativo, os vícios do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, todos eles relativos ao julgamento da matéria de facto, têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

Quanto ao vício previsto pela alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, o mesmo só ocorrerá quando da factualidade vertida na decisão se concluir faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitem, por sua ausência, um juízo seguro (de direito) de condenação ou de absolvição. Trata-se da formulação incorrecta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito correcta, legal e justa.

Assim o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP, verifica-se quando a matéria de facto é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada, porque o tribunal não esgotou os seus poderes de indagação em matéria de facto; ocorre quando da factualidade vertida na decisão se verifica faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ou absolvição. Insuficiência em termos quantitativos, porque o tribunal não esgotou os seus poderes de indagação em matéria de facto.

Quanto ao vício previsto pela alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, verifica-se contradição insanável – a que não possa ser ultrapassada ainda que com recurso ao contexto da decisão no seu todo ou às regras da experiência comum – da fundamentação – quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios, e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão.

Quanto ao vício previsto pela alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, o mesmo verifica-se quando, partindo do texto da decisão recorrida, a matéria de facto considerada provada e não provada pelo tribunal a quo, atenta, de forma notória, evidente ou manifesta, contra as regras da experiência comum, avaliadas de acordo com o padrão do homem médio.

Revertendo para o acórdão recorrido, entendemos que o mesmo não padece dos vícios previstos nas várias alíneas do n.º 2 do artigo 410.º do CPP.

No que respeita ao vício da alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP de modo algum podemos concluir que a matéria de facto dada como provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada. Cumpre referir que este vício não se confunde com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida, questão do âmbito da livre apreciação da prova (artigo 127.º do CPP), subtraída aos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça.

A matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido é suficiente para fundamentar a decisão de condenação do arguido, conforme resulta do texto da decisão recorrida.

Quanto ao vício a que alude alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, temos como certo que também não se verifica.

Conforme bem esclarece o acórdão deste Supremo Tribunal de 12-03-2015, proferido no processo n.º 418/11.3GAACB.C1.S1 - 3.ª Secção:

 «O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão verifica-se quando no texto da decisão constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspectiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respectivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito».

Inexiste qualquer contradição na medida em que através de um raciocínio lógico e racional consegue-se, pelo texto da decisão recorrida, apreender o motivo devido ao qual se chega à factualidade dada como provada (bem como não provada), sendo esta factualidade conjugável e consentânea entre si e também com a respectiva decisão de condenação do arguido.

Não tem, pois, razão o recorrente quando sustenta uma contradição entre o facto dado como provado sob o n.º 71 e o facto dado como não provado em aa). Trata-se de factualidade referente a diferentes contextos ou perspectivas, como bem resulta da motivação do Tribunal Colectivo.

Por outro lado, não assiste razão ao requerente quando pretende – conclusão 55.ª equiparar, ao nível da respectiva valoração, o relatório da avaliação psicológica à prova pericial.

Cumpre dar nota de que a avaliação psicológica, cujo relatório se encontra junto a fls. 618 a 642, foi solicitada pelo Ex.mo Mandatário do arguido e não ordenada por qualquer autoridade judiciária.

Não se encontram, pois, preenchidos os pressupostos já enunciados para que seja atribuída a tal relatório de avaliação psicológica o valor probatório que assiste, nos termos legais, à prova pericial.

Como salienta PAULO PINTO DEALBUQUERQUE, «a prova pericial distingue-se do parecer da autoria de um “técnico”. Só o perito nomeado pela autoridade judiciária pode produzir uma perícia. O “técnico” escolhido pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis pode produzir um parecer, cuja junção aos autos pode ser requerida pelos referidos sujeitos processuais.

A distinção é de suma importância prática, porque aos “exames” e aos “pareceres” não se aplica o critério fixado no artigo 163.º para o valor da prova pericial»[6].

Quanto ao vício previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP:

O erro notório na apreciação da prova, trata-se de um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão, erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental. Para ocorrer este vício, as provas evidenciadas pela simples leitura do texto da decisão têm que revelar claramente um sentido e a decisão recorrida extrair ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial.

É um vício intrínseco da sentença, isto é, que há-de resultar do texto da decisão recorrida, de tal forma que, lendo-o, logo o mesmo cidadão comum se dê conta que os fundamentos são contraditórios entre si, ou com a decisão tomada.

Se a discordância do recorrente for apenas quanto à forma, isto é, como o tribunal valorou a prova e decidiu a matéria de facto, tal traduz-se em impugnação de matéria de facto apurada - que se integra em objecto de recurso sobre a matéria de facto - e que os recorrentes exerceram no recurso interposto para a Relação, e por isso não podem vir novamente repristinar, ainda que em crítica ao acórdão recorrido - o da Relação - por extravasar os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça (artigo 434.º do CPP), conforme acima já fizemos referência.

Conforme se elucida no acórdão do STJ de 12-03-2015, proferido no processo n.º 724/01.5SWLSB.L1.S1 - 3.ª Secção:

«O erro notório na apreciação da prova só ocorre quando se retira de um facto dado como provado, algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou, quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, notoriamente violadora das regras da experiência comum e da lógica, que ressalta à vista de qualquer pessoa de formação média, perante a simples leitura da decisão recorrida. O recorrente impugna a convicção do tribunal, com a valoração feita das provas, mas tal desiderato não se confunde com os vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP, que têm de resultar do texto da decisão recorrida, ainda que em conjugação com as regras da experiência comum, sem recurso a quaisquer elementos exteriores à decisão. Erro de julgamento sobre valoração das provas só em recurso da matéria de facto pode ser questionado. Sendo que o tribunal competente para a apreciação do facto é exclusivamente o Tribunal da Relação, como resulta do disposto no art. 428.º do CPP.»

Seguimos a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, que defende que o vício de erro notório na apreciação da prova, tem que resultar do texto da decisão recorrida, sem usar elementos externos à própria decisão[7] - a não ser factos contraditados por documentos que façam prova plena – documentos autênticos – cfr. defendido, entre outros, nos acórdãos do STJ de 25-06-2009 (Proc. n.º 4262/06 - 3.ª Secção)[8], e  de 06-10-2010, Proc. n.º 936/08.0JAPRT.P1.S1 - 3.ª Secção, que assume que:

«Os vícios da matéria de facto que integram as categorias das alíneas a), b) e c) do nº 2 do artigo 410º do CPP, não obstante a diversidade de elementos, revertem todos a inconsistências no domínio da prova, ou mais precisamente, no processo lógico e racional de formação da convicção sobre a prova.

O “erro notório na apreciação da prova” constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio.

A incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas e apreciada não por simples projecções de probabilidade, mas segundo as regras da “experiência comum”. Em síntese de definição, estes são os elementos que hão-de conformar a apreciação, em cada caso, sobre a ocorrência do mencionado vício.

O vício tem de resultar, como se salientou, do texto da decisão recorrida, «por si só ou conjugada com as regras da experiência comum», isto é, sem a utilização de elementos externos à decisão (salvo se os factos forem contraditados por documento que faça prova plena), não sendo, por isso, admissível recorrer a declarações ou a quaisquer outros elementos que eventualmente constem do processo ou até da audiência.

Para avaliar da não arbitrariedade (ou impressionismo) e da racionalidade da convicção sobre os factos, há que apreciar, de um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção), e de outro, a natureza das provas produzidas e dos meios, modos ou processos intelectuais, utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção de determinada conclusão.»

Ora, do texto da decisão recorrida e apenas deste, em conjugação com as regras da experiência comum, não se extrai algum erro notório da apreciação da prova.

A factualidade acolhida pelo Tribunal Colectivo e que o Tribunal da Relação confirmou mostra-se compatível com as regras da experiência comum, pois da leitura da motivação da matéria de facto e da apreciação da prova retratada pelo acórdão recorrido, em que assumiu particular relevo a prova pericial produzida, não corresponde a algo que, de facto, não possa ter ocorrido ou, dito por outras palavras, que, na perspectiva do padrão do denominado homem comum ou homem médio, surja como um evento inacreditável, inverosímil, completamente desconforme com a realidade da vida.

Com efeito, de acordo com as regras da experiência comum, não se afigura desconforme com a realidade da vida ou como uma conclusão inverosímil, todos os factos que as instâncias fixaram, dando-os como como provados.

Sublinha-se, uma coisa é a existência de erro notório na apreciação da prova e outra coisa é a valoração da prova que conduziu à matéria de facto fixada nas instâncias.

O recorrente, invocando implicitamente tal vício, afinal está a impugnar a formação da convicção do tribunal recorrido na valoração da prova produzida e examinada, pondo em causa a livre apreciação da prova, sendo que tal não se coaduna com a apreciação dos vícios do artigo 410.º do CPP.

Pois que o que pretende é afirmar que a decisão recorrida deveria ter extraído da prova produzida uma conclusão diferente daquela que consta da decisão.

Nesta perspectiva, deparamo-nos com impugnação da matéria de facto a qual se encontra excluída do conhecimento do Supremo Tribunal de Justiça, como impõe o artigo 432.º do CPP.

Verifica-se assim que o Tribunal recorrido, como já o fizera o Tribunal Colectivo, explica o seu raciocínio e o mesmo apresenta-se lógico e razoável, à luz das regras da experiência comum, para dar como provado que:

«A dado passo, nas escadas, o arguido agarrou uma estatueta em cerâmica, com cerca de 30 centímetros de comprimento, desferiu com ela pancadas na zona da cabeça e das costas de BB» (facto 18);

«Uma das pancadas foi da esquerda para a direita, atingindo-a na cabeça» (facto 19);

Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, sofreu BB as lesões descritas no relatório da autópsia (facto 20);

«As lesões traumáticas crânio encefálicas e faciais descritas, foram produzidas por mecanismos de acção directa de natureza contundente, que incidiram sobre a região lateral direita do queixo (fractura da mandíbula), região periorbital esquerda e região temporal esquerda, com fractura linear» (facto 21);.

«A contusão crânio-encefálica, com hemorragia encefálica, foi a causa da morte de BB, com politraumatismos, fractura e sangramento» (facto 22)».

Não tendo convencido a versão apresentada pelo arguido no sentido da ocorrência de uma queda acidental da vítima.

A motivação da matéria de facto da decisão recorrida, supra transcrita, apresenta um raciocínio plausível e razoável à luz do homem médio para dar como provados e não provados os factos, não se descortinando o mínimo sinal de qualquer erro na apreciação da prova, decorrente do texto do acórdão recorrido, nem de violação do princípio in dubio pro reo, como pretende o recorrente ter sucedido, questão que se examina de seguida.

3.2. A violação do princípio in dubio pro reo

Invoca o recorrente que o Tribunal «a quo» ao ter julgado os factos por si impugnados transgrediu o princípio in dubio pro reo.

Quanto a esta questão e revisitando considerações expendidas no acórdão de 27-04-2017, proferido no processo n.º 52/15.4JAPDL.L1.S1 – 3.ª Secção, relatado pelo ora relator, cumpre dizer o seguinte:

O princípio in dubio pro reo é um princípio geral, estruturante do processo penal, decorrente do princípio constitucional da presunção da inocência do arguido, assumindo, como tal e como qualquer outro princípio jurídico, a natureza de uma questão de direito de que o Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista, deve conhecer.

Tal princípio significa, segundo PAULO DE SOUSA MENDES, que «a dúvida sobre os pressupostos de facto da decisão a proferir deve ser valorada a favor da pessoa visada pelo processo»[9].

De acordo com este princípio, citando-se MARIA JOÃO ANTUNES, «o tribunal deve dar como provados os factos favoráveis ao arguido, quando fica aquém da dúvida razoável, apesar de toda a prova produzida»[10]. A dúvida que fique aquém da razoável deverá ser valorada, prossegue a mesma autora, de forma favorável ao arguido, tanto mais que este se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação.

Convocando o acórdão deste Supremo Tribunal, de 08-01-2014 (Proc. n.º 7/10.0TELSB.L1.S1 – 3.ª Secção), associou-se a este princípio a natureza exclusiva de «princípio referente à prova dos factos, ligado à sua valoração pelas instâncias, com o fundamento de que escapam a este STJ a refracção das provas na convicção do julgador, os elementos influentes na sua formação que só ele pela sua subtileza, atenção, emoção e inteligência pode apreender, proporcionados pela oralidade e imediação. O princípio valia ao nível da dúvida razoável com relação aos factos, desde que se alcançasse que o tribunal incorreu naquele estado e não o declarou seja porque não atentou na sua sucumbência seja porque era uma consequência de erro notório na apreciação da prova e não extraiu a consequência derivada da sua infracção.

O princípio serve para controlar o procedimento do tribunal quando teve dúvidas em termos de matéria de facto e não para controlar as dúvidas que o recorrente entende que o tribunal recorrido não teve.

Como se refere no acórdão que se vem acompanhando:

«Baseado no princípio constitucional da presunção de inocência (art.º 32.º n.º 2, da CRP), constituindo um limite normativo da livre convicção probatória, assume vertente de direito, passível de controle deste STJ, quando ao debruçar-se sobre o conjunto dos factos, procura detectar se se decidiu contra o arguido, não declarando a dúvida evidente já porque esta resultava de uma valoração emergente da simples texto da decisão recorrida por si ou de acordo com as regras da experiência, de acordo com aquilo que é usual acontecer, já por incurso em erro notório na apreciação da prova.- cfr. Ac. do STJ, de 8.7.2004 , P.º nº 111221/04 - 5.ª Sec.

Nesta conformidade este STJ tem afirmado, nem sempre com uniformidade, o seu teor de princípio de direito, por ele controlável, de afirmação de regra de decisão, pilar de uma convicção sã e escorreita, que só o é quando o juiz ele próprio já não tem dúvidas, no dizer de Eberardt Schmidt, pois que se se lhe suscitam várias possibilidades que, conscientemente, não logra remover, trilha ainda o caminho da incerteza, deve actuar o princípio».

Neste conspecto, devendo ser o princípio in dubio pro reo configurado como princípio de direito, como princípio jurídico atinente à avaliação e valoração da prova, certo é também que, como tem sido reconhecido, ele tem uma íntima correlação com a matéria de facto, em cujo domínio ele é verdadeiramente operativo, aí assumindo toda a relevância prática.

Para PAULO DE SOUSA MENDES, [o] princípio só diz respeito à prova da questão-de-facto»[11].

Nesta perspectiva, como se lê no acórdão deste Supremo Tribunal, de 27-04-2011 (Proc. n.º 7266/08.6TBRG.G1.S1 – 3.ª Secção), «a violação do princípio in dubio pro reo, que dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, só pode ser sindicado pelo STJ dentro dos seus limites de cognição, devendo, por isso, resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, só se verifica quando seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção.

Inexistindo dúvida razoável na formulação do juízo factual que conduziu à condenação do arguido, fica afastado o princípio do in dubio pro reo e da presunção de inocência, sendo que tal juízo factual não teve por fundamento uma imposição de inversão da prova, ou ónus da prova a cargo do arguido, mas resultou do exame e discussão livre das provas produzidas e examinadas em audiência, como impõe o artigo 355º nº 1 do CPP, subordinadas ao princípio do contraditório, conforme artº 32º nº 1 da Constituição da República».

Em sentido muito próximo, veja-se o acórdão deste Supremo Tribunal, de 05-06-2012 (Proc. n.º 442/08.3GALSD.P1.S1 - 5.ª Secção»[12]:

«O STJ, enquanto tribunal de revista, conhece exclusivamente sobre matéria de direito (art. 434.º do CPP). Se a alegação da violação do princípio in dubio pro reo e, por essa via, do princípio da presunção da inocência, constitui, em certa perspectiva, uma questão de direito, já está fora dos poderes de cognição do STJ, por constituir questão de facto, a alegação de que o tribunal se deparou com uma dúvida insanável acerca da verificação de um ou mais factos e que a resolveu contra o arguido».

Em suma, como lapidarmente se refere no acórdão de 29-05-2013, proferido no processo n.º 344/11.6JALRA.E1.S1 – 3.ª Secção, «o STJ só pode sindicar a aplicação do princípio in dubio pro reo quando da decisão recorrida resulta que o tribunal a quo ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido».

Ora, compulsadas, tanto a decisão recorrida, como também a decisão da 1.ª instância, não se detecta, tendo em atenção nomeadamente, a fundamentação da matéria de facto, qualquer dúvida quanto aos factos que se devia dar por provados ou não provados.

A violação do princípio in dubio pro reo pressupõe que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou num estado de incerteza, de dúvida, quanto aos factos dados como provados e não provados.

Como não é manifestamente o caso, «o recorrente só pode pretender que, apesar de o Colectivo da 1.ª instância [tal como o Tribunal da Relação] não ter tido dúvidas sobre o que considerou provado, deveria tê-las tido» (acórdão de 27-02-2014 (Proc. n.º 160/10.2GCVFR.S1 - 5.ª Secção)[13]. Mas isso, lê-se neste acórdão, «não constitui qualquer vício da decisão recorrida, mas antes discordância do recorrente para com ela».

Ora, a divergência do recorrente quanto à avaliação e valoração das provas feitas pelo tribunal recorrido é irrelevante.

Como também, a este propósito, se considera no acórdão de 06-12-2006, proferido no proc. n.º 06P3651 – 3.ª Secção, «o STJ só pode sindicar a aplicação do princípio in dubio pro reo quando da decisão impugnada resulta, por forma evidente, que o tribunal recorrido ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido, posto que, saber se o tribunal recorrido deveria ter ficado em estado de dúvida é uma questão de facto que exorbita os poderes de cognição do STJ enquanto tribunal de revista».

Como justamente se afirma no acórdão recorrido:

«O postulado «in dubio pro reo» constitui um afloramento, ao nível da apreciação da prova, do princípio da presunção da inocência, constitucionalmente consagrado (art. 32º nº 2 da CRP), e obriga o Tribunal julgar não provado qualquer facto desfavorável ao arguido sempre que subsista uma dúvida racional, razoável e insanável sobre a sua existência.

Segundo vimos entendendo, só nos encontraremos perante uma dúvida justificativa do apelo ao princípio «in dubio pro reo» nos casos em que, depois de efectuado o exame crítico da prova permaneça em aberto uma hipótese factual alternativa à probanda, que não seja de rejeitar por desconforme aos critérios que presidem à valoração probatória, mormente, a experiência comum, a normalidade das coisas e a lógica geralmente aceite.

Tudo visto, e salvo melhor opinião, julgamos ter ficado demonstrado, através da análise da prova feita pelo Tribunal Colectivo e por nós corroborada, salvaguardado o poder vinculativo reforçado atribuído à prova pericial, que não subsiste espaço lógico para outra hipótese factual que não aquela que foi julgada provada pelo Tribunal «a quo».

Consequentemente, impõe-se concluir que o juízo probatório emitido no acórdão sob recurso, na parte impugnada pelo recorrente, não viola a regra «in dubio pro reo», nem o princípio de presunção da inocência, fracassando tal impugnação.»

Do exposto, não podemos, no âmbito dos poderes de cognição deste Tribunal e tendo em conta a fundamentação da decisão de facto, concluir que esta tenha sido proferida em violação do princípio in dubio pro reo, reafirmando-se que a decisão recorrida não evidencia qualquer dúvida em relação a qualquer facto dado como provado..

Improcede o recurso nesta parte.

As questões a apreciar de seguida respeitam à qualificação jurídica do comportamento do arguido e à medida da pena.

3.3. Qualificação jurídica dos factos

No domínio do enquadramento jurídico-criminal dos factos, pretende o recorrente que «o caso concreto não evidencia a existência de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente apta a qualificar a sua conduta nos termos do n.º 1 do art. 132.º, do CP», pretendendo (em termos subsidiários, entenda-se) a integração da conduta no tipo legal de homicídio simples ou no crime de homicídio privilegiado.

Recorda-se que o recorrente encontra-se condenado pela prática do crime de homicídio qualificado p. e p. pelos artigos 131.º, e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), do Código Penal.

Retomando considerações tecidas no acórdão deste Supremo Tribunal de 22-11-2017, proferido no processo n.º 980/15.1PRPRT.P1.S1 – 3.ª Secção, relatado pelo agora relator, o crime de homicídio qualificado, previsto no artigo 132.º do Código Penal, constitui uma forma agravada de homicídio. A qualificação decorre da verificação de um tipo de culpa agravado, definido pela orientação de um critério generalizador enunciado no nº 1 da disposição, moldado pelos vários exemplos-padrão constantes das diversas alíneas do n.º 2 do artigo 132.º.

«O critério generalizador, lê-se no acórdão desse Supremo Tribunal de 21-01-2009 (Proc. n.º 08P4030), está traduzido na cláusula geral com a utilização de conceitos indeterminados - a especial censurabilidade ou perversidade do agente; as circunstâncias relativas ao modo de execução do facto ou ao agente são susceptíveis de indiciar a especial censurabilidade ou perversidade e, assim, por esta mediação de referência, preencher e reduzir a indeterminação dos conceitos da cláusula geral.

Sendo elementos constitutivos do tipo de culpa, a verificação de alguma das circunstâncias que definem os exemplos-padrão não significa, por imediata consequência, a realização do tipo especial de culpa e a directa qualificação do crime, como, também por isso mesmo, a não verificação de qualquer dos modelos definidos do tipo de culpa não impede que existam outros elementos e situações que devam ser considerados no mesmo plano de valoração que está pressuposto no crime qualificado e na densificação dos conceitos bem marcados que a lei utiliza.

Mas, seja mediada pelas circunstâncias referidas nos exemplos-padrão, ou por outros elementos de idêntica dimensão quanto ao desvalor da conduta do agente, o que releva e está pressuposto na qualificação é sempre a manifestação de um especial e acentuado «desvalor de atitude», que traduz e que se traduz na especial censurabilidade ou perversidade, e que conforma o especial tipo de culpa no homicídio qualificado.

A qualificação do homicídio do artigo 132º do Código Penal supõe, pois, a imputação de um especial e qualificado tipo de culpa, reflectido, no plano da atitude do agente, por uma conduta em que se revelam «formas de realização do facto especialmente desvaliosas (especial censurabilidade), ou aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas» (cfr. FIGUEIREDO DIAS, "Comentário Conimbricense do Código Penal", vol. I, págs. 27-28).

O modelo de construção do tipo qualificado - qualificado pelo especial tipo de culpa - através da enunciação do critério geral, moldado pela densificação através dos exemplos-padrão, não permitirá, por seu lado, salvo afectação do princípio da legalidade, «fazer um apelo directo à cláusula de especial censurabilidade ou perversidade, sem primeiramente a fazer passar pelo crivo dos exemplos-padrão e de, por isso, comprovar a existência de um caso expressamente previsto [...] ou de uma situação valorativamente análoga» (cfr. idem, pág. 28)».

Como também se pode ler no acórdão deste Supremo Tribunal de 30-03-2016, proferido no processo n.º 158/14.1PBSXL.L1 - 3:ª Secção:

«O artigo 132 do Código Penal define o tipo de crime de homicídio qualificado constituindo uma forma agravada de crime em relação em relação ao tipo do artigo 131 do mesmo diploma. Objectivamente o tipo de crime assenta nos mesmos factos dos que estão previstos no artigo 131 funcionando a qualificação assente na combinação de um critério de culpa com a técnica dos exemplos padrão. 

O critério da qualificação está definido no nº 1 do artigo 132 e consiste em tirar a vida a outrem em circunstâncias que revelem uma especial censurabilidade ou perversidade. Algumas das circunstâncias que são susceptíveis de revelar especial censurabilidade, ou perversidade, estão enumeradas no nº 1 do mesmo normativo. 

A qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua actuação sendo um tipo de culpa. Seguindo Roxin, por tipo de culpa entende-se aquele que, na descrição típica da conduta, contem elementos da culpa que integra factores relativos á actuação do agente que estão relacionados com a culpa mais grave ou mais atenuada. A culpa consiste no juízo de censura dirigido ao agente pelo facto deste ter actuado em desconformidade com a ordem jurídica quando podia, e devia, ter actuado em conformidade com esta, sendo uma desaprovação sobe a conduta do agente. O juízo de censura, ou desaprovação, é susceptível de se revelar maior ou menor sendo, por natureza, graduável e dependendo sempre das circunstâncias concretas em que o agente desenvolveu a sua conduta, traduzindo igualmente um juízo de exigibilidade determinado pela vinculação de cada um a conformar-se pela actuação de acordo com as regras estipuladas pela ordem jurídica superando as proibições impostas. Em suma, o agente actua culposamente quando realiza um facto ilícito podendo captar o efeito de chamada de atenção da norma na situação concreta em que desenvolveu a sua conduta e, possuindo uma capacidade suficiente de auto controlo, e poderia optar por uma alternativa de comportamento. 

O especial tipo de culpa do homicídio qualificado é conformado através da especial censurabilidade ou perversidade do agente. Como refere Figueiredo Dias a lei pretende imputar especial censurabilidade àquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção ao nível da atitude do agente de formas de realização do acto especialmente desvaliosas e à especial perversidade aquelas em que o juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades do agente especialmente desvaliosas. Enumera o normativo em análise um catálogo dos exemplos padrão e o seu significado orientador como demonstrativo do especial tipo de culpa que está associado à qualificação [[14]]».

Como se consigna em recente acórdão deste Supremo Tribunal, de 20-09-2017, proferido no processo n.º 596/12.4JABRG.G2.S1 – 3. ª Secção, também relatado pelo ora relator, o homicídio qualificado constitui, como tem sido unanimemente apontado, um tipo especial de culpa agravada, evidenciado nas circunstâncias enunciadas no n.º 2, que têm carácter exemplificativo, aí se referenciando contributos da doutrina e da jurisprudência relativos à qualificação do crime.

Assim, segundo FIGUEIREDO DIAS, «a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a “especial censurabilidade ou perversidade” do agente referida no n.º 1; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos, uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no n.º 2». E que «a verificação desses elementos, por um lado, não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; por outro lado, a sua não verificação não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos (não deve recear-se o uso da palavra “análogos”!) aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador», concluindo: «Deste modo devendo afirmar-se que o tipo de culpa supõe a realização dos elementos constitutivos do tipo orientador - o Leitbildtatbestand (…) – que resulta de uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta no art. 132º- 2»[15].

E a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem mantido uma interpretação do tipo do artigo 132.º do Código Penal como sendo baseado estritamente na culpa mais grave, revelada pelo agente, tendo como fundamento o facto do agente revelar especial censurabilidade ou perversidade no seu comportamento, sendo ainda entendimento uniforme deste Supremo Tribunal o de que as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, os chamados exemplos-padrão, são meramente exemplificativas, não funcionando automaticamente e devem ser compreendidas enquanto elementos da culpa, como se dá nota no acórdão de 02-4-2008, proferido no processo n.º 07P4730, onde se referencia abundante jurisprudência sobre este tópico.

No que especialmente releva para o caso agora em apreço, cumpre insistir, quanto à cláusula geral do n.º 1 do artigo 132.º do Código Penal, que, subjacente à especial censurabilidade ou perversidade está um maior grau de culpa que o agente manifesta nas circunstâncias elencadas, o que motiva a agravação.

Como considera TERESA SERRA, «a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito.

No artigo 132.º, trata-se de uma censurabilidade especial, que existe quando “as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores”.

A especial perversidade supõe «uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade».

Dominantemente, refere a autora, entende-se que só se pode decidir que a morte foi causada em circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou perversidade do agente através de uma ponderação global das circunstâncias externas e internas presentes no facto concreto[16].

Para FIGUEIREDO DIAS, «[o] especial tipo de culpa do homicídio doloso é em definitivo conformado através da verificação da «especial censurabilidade ou perversidade» do agente.

O pensamento da lei é o de pretender imputar à “especial censurabilidade” aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à “especial perversidade” aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas[17].

Segundo FERNANDO SILVA, a especial censurabilidade prende-se essencialmente com a atitude interna do agente, traduzida em conduta profundamente distante em relação a determinado quadro valorativo, afastando-se dum padrão normal. O grau de censura aumenta por haver na decisão do agente o vencer de factores que, em princípio, deveriam orientá-lo mais para se abster de actuar, as motivações que o agente revela, ou a forma como realiza o facto, apresentam, não apenas um profundo desrespeito por um normal padrão axiológico, vigente na sociedade, como ainda traduzem situações em que a exigência para não empreender a conduta se revela mais acentuada.

A especial perversidade representa um comportamento que traduz uma acentuada rejeição, por força dos sentimentos manifestados pelo agente que revela um egoísmo abominável. A decisão de matar assenta em pressupostos absolutamente inaceitáveis. O agente toma a decisão sob grande reprovação atendendo à personalidade manifestada no seu comportamento. O agente deixa-se motivar por factores completamente desproporcionais, aumentando a intolerância perante o seu facto[18].

Por fim, o entendimento de AUGUSTO SILVA DIAS segundo o qual «[h]á unanimidade na doutrina e jurisprudência nacionais em torno da ideia de que, em último termo, a qualificação do homicídio assenta num especial tipo de culpa: toda a punição por homicídio qualificado tem de passar pela comprovação da especial censurabilidade ou perversidade do agente (n.º 1) e isso exige uma ponderação final da atitude deste»[19].

Retomando o caso presente neste recurso, verificamos que o acórdão recorrido, confirmando a decisão da 1.ª instância, considerou verificada a circunstância qualificativa referida na alínea a) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, segundo a qual, é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente ser descendente da vítima.

Analisando a circunstância ou exemplo-padrão constante da citada disposição, considera FERNANDO SILVA que, «em causa está um facto praticado revelando uma maior energia criminosa, uma vez que o agente venceu as contra-motivações éticas determinadas pelas relações de família que naturalmente se impõe entre pai e fiho», identificando-se «um duplo critério: afectivo e jurídico, proveniente da relação familiar de grande proximidade que entre ambos se estabelece. De entre todas as relações entre pessoas, esta é que maior vínculo faz nascer, e pode falar-se de um vínculo que começa por ter uma natureza biológica, que cria uma afectividade ímpar». O vínculo existente, bem como os poderes-deveres que se impõem, fazem criar – prossegue o autor que se vem acompanhando – uma maior censurabilidade ou perversidade na prática do homicídio. Para além de se revelar à +partida, como uma acção mais desvaliosa. É difícil conceber um motivo que torne minimamente “aceitável” a atitude do agente[20].

        

Acerca da qualificação do crime de homicídio, por cuja prática foi condenado o arguido, expende-se no acórdão do Tribunal Colectivo, em trecho transcrito no acórdão recorrido:

Vejamos agora no que concerne à qualificativa, também imputada ao arguido, da alínea a), do nº 2, do art. 132º, do Código Penal, que respeita ao facto de o acto ser praticado por descendente da vítima.

Obviamente que, estando em causa um exemplo-padrão e que não funciona como agravante automaticamente, não basta que ocorra qualquer uma dessas especiais relações entre o agente e a vítima, é necessário que no caso concreto a existência dessa relação traduza uma especial censurabilidade ou perversidade do comportamento do agente.

Tendo resultado provado que o arguido quis matar outra pessoa já nascida e que essa pessoa era sua mãe, tendo o arguido conhecimento de que se tratava da sua mãe, mostra-se verificado o exemplo padrão que indicia o preenchimento da qualificativa prevista na alínea a), do n.º2, do artigo 132.º, do Código Penal.

«A revogação de tal efeito indício terá de basear-se num acentuada diminuição da ilicitude, designadamente em consequência de uma diminuição do desvalor da conduta, a que pode associar-se uma diminuição do desvalor do resultado, como principalmente na diminuição do desvalor da atitude. Mas, para além disso, o que importa é que, do ponto de vista do leitbild do exemplo-padrão, as referidas circunstâncias consigam atribuir ao facto uma imagem global insusceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente. Daí que se possa dizer que só circunstâncias extraordinárias ou, então, um conjunto raro de circunstâncias especiais possa anular o efeito de indício. Exemplo disso é o caso do filho que mata o pai dominado pelo desespero de o ver sofrer de uma forma atroz no estágio terminal de um doença incurável e dolorosa” – neste sentido Teresa Serra  (in Homicídio Qualificado – Tipo de Culpa e Medida da Pena, pág. 50).

Ora, no caso em apreço, mostra-se que o arguido e a sua mãe viviam desde juntos na mesma casa, tomavam as refeições juntos e a sua relação sempre foi de entreajuda, harmonia e respeito, sendo que nos últimos meses de vida de BB, o arguido auxiliava a mesma na execução das tarefas domésticas e das suas necessidades básicas de higiene.

E sendo assim, têm-se por verificados laços afectivos típicos da filiação, o que torna este homicídio especialmente censurável (neste sentido o acórdão do Tribunal de Justiça de 18 de Outubro de 2012, disponível para consulta em www.dgsi.pt).

Pelo que, está verificada a circunstância qualificativa do art. 132º, nº 2, al. a), do Código Penal, pela qual o arguido se encontra acusado.

                   

Afirmando-se no acórdão recorrido sobre a qualificação do crime de homicídio:

«A qualificação do crime homicídio prevista no nº 1 do art. 132º do CPP assenta na técnica dos chamados exemplos-padrão, cuja verificação seria indiciadora da especial censurabilidade ou perversidade do agente, justificativa de um acréscimo da penalidade abstractamente aplicável, encontrando-se os referidos exemplos definidos, mas não exaustivamente, nas alíneas do nº 2 do mesmo artigo.

É hoje ponto assente que os exemplos-padrão do nº 2 do art. 132º do CP não são de funcionamento automático, ou seja, não basta a verificação de qualquer das situações factuais tipificadas nesse normativo para que a qualificação do crime opere.

Contudo, podemos alvitrar que de todos os exemplos-padrão do nº 2 do art. 132º do CP o previsto na al. a) será porventura aquele cujo funcionamento levantará normalmente menos discussão.

Com efeito, uma vez verificada uma determinada relação de parentesco, por um lado, a paternidade ou maternidade, por outro, a filiação (ou as correspondentes posições na relação de adopção), à qual estão, por via de regra, laços profundos de afecto e de respeito, o facto de o agente activo ter sido capaz de vencer as contra-motivações éticas particularmente fortes, que o deveriam tê-lo inibido de atentar contra a vida do agente passivo, torna especialmente censurável o seu comportamento.

Nesta ordem de ideias, a qualificação só deixará de operar na hipótese de os laços de afecto e respeito inerentes à referida relação familiar, por alguma razão, não necessariamente imputável ao agente passivo, não existam ou tenham deixado de existir.

Conforme abundantemente resulta da matéria de facto assente, os aludidos laços, na relação entre a ofendida e o arguido, enquanto mãe e filho, não só não se tinham dissipado como eram particularmente intensos e profundos.

Consequentemente, inexiste razão para afastar, no caso concreto em apreço, a qualificação do crime de homicídio, por via da al. a) do nº 2 do art. 132º do CP, improcedendo a pretensão recursiva, nesta parte».

                     

Concordamos com a qualificação jurídico-penal operada no acórdão recorrido, confirmando, neste segmento, a decisão da 1.ª instância.

Reafirmando-se a asserção já feita de que as circunstâncias enunciadas (exemplificativamente) no n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal não funcionam de forma automática, interessará apurar se, no caso presente, não concorrerão outros factos que, apesar dos laços que o unia à vítima, de grande afecto, e não estando demonstrado que a situação de stress e de sofrimento psicológico em que se encontrava, potenciador de exaustão e até mesmo de depressão, evidenciando sintomas associados à síndrome de burnout. (facto 71), fosse determinante do seu comportamento, o arguido mostrou-se capaz de vencer as contra motivações éticas ínsitas à relação que os ligava, permitindo, desta forma concluir pela verificação da especial censurabilidade[21].

Podem apontar-se, a este propósito, situações que, apesar de poderem desencadear o efeito indiciador decorrente de uma relação familiar, não manifestam uma atitude reveladora de especial censurabilidade ou perversidade. Nesta perspectiva, FERNANDO SILVA refere a hipótese de o homicídio ocorrer «num cenário de menor culpa, pensando no caso de quem mata o seu pai para pôr fim a um sofrimento que este vai aguentando e que ele não suporta mais assistir, revelando mesmo um sentimento de compaixão para com o pai. Ou do caso do filho matar o pai como forma de libertar a mãe dos maus-tratos que não suporta mais assistir (…). Ou pode acontecer que o pai e filho nunca tenham vivido como tal, estando separados durante anos, fazendo com que os laços existentes se diluíssem com o tempo»[22].

Como igualmente se refere no já citado acórdão 18-10-2012, em que estava em causa o homicídio da mãe adoptiva do aí arguido, o efeito indiciador da maternidade, pelas relações pessoais dela decorrentes, só não se verificará «perante um circunstancialismo que se traduza em motivo importante de atenuação da culpa (exemplo de escola será o filho que mata o pai que maltrata a mãe e viola a irmã)».

Ora, não é este o caso.

De acordo com a matéria fáctica assente, e como se dá nota no acórdão recorrido, os laços afectivos típicos da relação mãe-filho não só não se tinham dissipado como eram particularmente intensos e profundos. Na verdade, comprovou-se que o arguido e a sua mãe viviam depois do pai falecer, entre os 9 e os 10 anos de idade daquele na mesma casa, tomavam as refeições juntos e a sua relação sempre foi de entreajuda, harmonia e respeito, sendo que nos últimos meses de vida de BB, o arguido auxiliava a mesma na execução das tarefas domésticas e das suas necessidades básicas de higiene.

Observa-se no acórdão recorrido uma correcta avaliação e valoração global dos factos praticados pelo arguido-recorrente, integrando na sua conduta, ao matar a sua mãe, a qualificativa contemplada na alínea a) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, pelo que se constituiu como autor material de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.os 1 e 2, alínea a), do Código Penal.

Pelo exposto, não merece qualquer censura a qualificação do homicídio praticado pelo arguido agora recorrente operada na decisão recorrida.

Improcede, assim, a sua pretensão no sentido da condenação pelo crime de homicídio simples, negando-se provimento ao recurso nesta parte.

3.4. Fica, assim, prejudicado o conhecimento da questão suscitada quanto ao privilegiamento do crime de homicídio, cumprindo, entretanto, referir que não se dispõe de factos que permitam a conclusão tirada pelo recorrente nos termos da qual o crime foi perpetrado «no âmbito de um estado de afecto, de uma emoção compreensível» susceptível de diminuir sensivelmente a sua culpa.

Por outro lado, atentas as considerações já tecidas a propósito do funcionamento do princípio in dubio pro reo, não faz sentido, sendo manifestamente infundada a invocação desse princípio na conclusão 77.ª já que o tribunal não teve qualquer dúvida relativamente à existência de um estado de afecto que diminuísse sensivelmente a culpa do arguido ou sobre a verificação dos pressupostos para o o privilegiamento do crime de homicídio.

3.5. Atenuação especial da pena  

Já no âmbito da medida da pena, convoca o recorrente a possibilidade da aplicação de uma atenuação especial nos termos do disposto no artigo 72.º do Código Penal.

Como bem se afirma no acórdão deste Supremo Tribunal de 07-09-2016, proferido no processo n.º 232/14.4JABRG.P1.S1 – 3.ª Secção, tal pretensão deve ser apreciada, obviamente, antes da reapreciação referente à espécie e medida concreta da pena que lhe foi aplicada, por obviamente constituir um “prius” em relação à subsequente pretensão relativa à medida concreta da pena, pois que, a vingar a sua procedência, estar-se-á (ia) perante uma “modificação in mellius” da moldura abstracta punitiva, um regime de punição mais atenuada, uma moldura penal abstracta mais benévola, dentro da qual, sequentemente, a proceder essa pretensão, terá (ia) de encontrar-se a medida concreta da pena a aplicar ao crime em causa, fazendo assim, subsequentemente, actuar os critérios previstos no artigo 71.º do Código Penal, já dentro de uma outra/nova moldura punitiva, com limites mais baixos, quer no limite máximo, quer no limite mínimo, determinados por essa atenuação.

O acórdão recorrido pronunciou-se quanto a esta pretensão dizendo:

«A providência penal prevista no art. 72º do CP e da qual o recorrente pretende beneficiar destina-se a acorrer àquelas situações em que se encontrarem de forma acentuada diminuídos a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena, em termos tais que a determinação da medida da pena dentro do quadro punitivo cominado pela norma incriminadora correria o risco de conduzir à aplicação de uma sanção excessiva, pelo que considera justificada redução dos limites mínimos e máximos da penalidade abstracta, cujos moldes são estabelecidos pelo art. 73º do CP.                            

Se é certo que nenhum dos parâmetros a que se refere o nº 1 do art 72º do CP se apresenta particularmente exacerbado, tudo se situa ainda assim dentro de um certo padrão de normalidade de modo que uma quantificação justa e equilibrada da pena concreta poderá ser ainda operada no interior da moldura prescrita pela norma incriminadora.

Nesta conformidade, teremos de concluir que não se encontram reunidos, no caso em apreço, os pressupostos da decretação da providência peticionada pelo recorrente, improcedendo a sua pretensão também quanto a este aspecto.»

O artigo 72.º, n.º 1, do Código Penal, estabelece que:

«O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena».

E o n.º 2 elenca algumas de “entre outras” circunstâncias que podem ser consideradas para o efeito consignado, a saber:

a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;

b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;

c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;

d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.

O instituto da atenuação especial da pena tem em vista casos especiais expressamente previstos na lei, bem como, em geral, situações em que ocorrem circunstâncias anteriores, contemporâneas ou posteriores ao crime que diminuem de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade de pena (correspondendo a necessidade de pena a exigências de prevenção), conforme dispõe o artigo 72.º, n.º 1, do Código Penal.

Sendo seu princípio regulador a acentuada diminuição da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena, a atenuação especial da pena só pode ter lugar em casos extraordinários ou excepcionais, numa situação em que seja de concluir que a adequação à culpa e às necessidades de prevenção geral e especial não é possível dentro da moldura penal abstracta prevista para o tipo legal em causa.

O n.º 2 do artigo 72.º enumera algumas circunstâncias que podem ser consideradas para o efeito de diminuir de forma acentuada ou a ilicitude do facto, ou a culpa ou a necessidade da pena

Para a produção do benefício da atenuação especial da pena exige-se, referem M. MIGUEZ GARCIA e J. M. CASTELA RIO, «uma diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena (prevenção geral positiva ou de integração). Qualquer destas situações não tem valor atenuante especial de per si, na sua existência objectiva, mas tem sempre de ser conexionada com um certo preceito que terá de produzir: o de diminuir acentuadamente a ilicitude ou a culpa do agente (ACTAS, 1965, p. 129) ou a necessidade da pena»[23].

Convocando de novo o acórdão deste Supremo Tribunal de 24-02-2016, constitui pressuposto material da atenuação especial da pena «a ocorrência de acentuada diminuição da culpa ou das exigências de prevenção, sendo certo que tal só se deve ter por verificado quando a imagem global do facto, resultante das circunstâncias atenuantes, se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo».

Como explana FIGUEIREDO DIAS, referindo-se às circunstâncias descritas nas diversas alíneas do artigo 72.º do Código Penal, «passa-se aqui algo de análogo – não de idêntico! - ao que vimos (…) suceder com os exemplos-padrão: por um lado, outras situações que não as descritas nas alíneas [do n.º 2 do art. 72.º] podem (e devem) ser tomadas em consideração, desde que possuam o efeito requerido de diminuir, por forma acentuada, a culpa do agente ou as exigências da prevenção; por outro lado, as próprias situações descritas nas alíneas do art. 73.º-2 não têm o efeito «automático» de atenuar especialmente a pena, mas só o possuirão se e na medida em que desencadeiem o efeito requerido»[24].

Assim, não tendo tais circunstâncias (ou outras que eventualmente sejam susceptíveis de integrar o n.º 1 do artigo 72.º, n.º 1, do Código Penal) o efeito automático de atenuar especialmente a pena, conclui-se que a acentuada diminuição da ilicitude, da culpa ou das exigências de prevenção constitui o autêntico pressuposto material da atenuação especial da pena.

Na síntese realizada no acórdão deste Supremo Tribunal 13-10-2010 (proc. n.º 200/06.0JAAVR.C1.S1 – 3.ª Secção), «a atenuação especial da pena só pode, pois, ser decretada (mas se puder deve sê-lo) quando a imagem global do facto revele que a dimensão da moldura da pena prevista para o tipo de crime não poderá realizar adequadamente a justiça do caso concreto, quer pela menor dimensão e expressão da ilicitude ou pela diminuição da culpa, com a consequente atenuação da necessidade da pena – vista a necessidade no contexto e na realização dos fins das penas».

Segundo o acórdão de 24-03-1999 (Proc. n.º 176/99-3.ª Secção), in CJSTJ 1999, tomo 1, pág. 247, referenciado no citado acórdão de 07-09-2016, onde se regista uma extensa lista de jurisprudência sobre este tópico, a atenuação especial da pena só deve funcionar quando, na imagem global dos factos e de todas as circunstâncias envolventes fixadas, a culpa do arguido e/ou a necessidade da pena se apresentam especialmente diminuídas, ou seja, quando o caso é menos grave que o “caso normal” suposto pelo legislador, quando estatuiu os limites da moldura correspondente ao tipo, reclamando, por isso, manifestamente, uma pena inferior.

Expressando-se o acórdão de 23-02-2000, proferido no processo n.º 1200/99-3.ª Secção[25], nos termos seguintes: «É na acentuada diminuição da ilicitude e/ou da culpa e/ou das exigências da prevenção que radica a autêntica ratio da atenuação especial da pena. Daí que, as circunstâncias enunciadas no n.º 2 do artigo 72.º do Código Penal, não sejam as únicas susceptíveis de desencadear tal efeito, nem este seja consequência necessária ou automática da presença de uma ou mais daquelas circunstâncias».

A atenuação especial da pena só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar, sendo que, como se afirma no acórdão de 29-04-2015, proferido no processo n.º 791/12.6GAALQ.L2.S1 - 3.ª Secção, há incompatibilidade de atenuação especial de penas respeitantes a crimes com agravação com base na especial censurabilidade e perversidade.

Perante todo o circunstancialismo que rodeou a execução do crime, a surpresa, a manifesta fragilidade da vítima, o modo como foi praticado, não configura realidade que diminua a ilicitude e a culpa, bem como a necessidade da pena. 

Pelo que se conclui não haver lugar a atenuação especial da pena aplicada ao recorrente pelo crime de homicídio qualificado.

3.6. Medida da pena

Sobre a fixação da medida da pena, lê-se no acórdão recorrido:

«Embora o quantitativo da pena de prisão (16 anos) em que o arguido foi condenado não seja manifestamente excessivo, o mesmo admitirá ainda uma certa margem de compressão.

Os nºs 1 e 2 do art. 40º do CP são do seguinte teor:

   1 – A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

 2 – Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.                                                   

  Por seu turno, o art. 71º do CP, sob a epígrafe «Determinação da medida da pena», estatui:

   1 – A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos pela lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

  2 – Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do arguido ou contra ele, considerando, nomeadamente:

   a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) A intensidade do dolo ou da negligência;

    c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

   d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

  e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando seja destinada a reparar as consequências do crime;

   f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

    3 – Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.

Em matéria de determinação da medida da pena, expende-se na fundamentação do acórdão recorrido (transcrição com diferente tipo de letra):  

5. Da determinação da medida concreta da pena

Subsumida a qualificação jurídica dos factos, cumpre, agora, determinar a medida concreta da pena aplicável.

Nos termos do art. 40º do C.P., a aplicação da pena visa a protecção de bens jurídicos (prevenção geral) e a reintegração do agente na sociedade (prevenção especial), não podendo a pena em caso algum ultrapassar a medida da culpa.

A determinação da medida concreta da pena faz-se, nos termos do art. 71º do C. Penal, em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes e atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime (estas já foram tomadas em consideração ao estabelecer-se a moldura penal do facto), deponham a favor do agente ou contra ele.

Sem violar o princípio da proibição da dupla valoração pode ainda atender-se à intensidade ou aos efeitos do preenchimento de um elemento típico e à sua concretização segundo as especiais circunstâncias do caso, já que o que está aqui em causa são as diferentes modalidades de realização do tipo (neste sentido, Figueiredo Dias, As consequências jurídicas do crime, pág. 234).

Ao crime de homicídio qualificado corresponde a moldura abstracta de 12 a 25 anos de prisão.

Cumpre relevar especialmente o seguinte:

         - a intensidade do dolo, elevada, pois existiu na modalidade de dolo directo e demonstrando insensibilidade perante o valor da vida humana;

         - o modo de execução do facto, visto que o arguido praticou os factos no interior da residência onde vivia com a vítima (espaço em  que as pessoas se sentem protegidas e seguras), desferiu várias pancadas, na cabeça e nas costas, com uma estatueta de cerâmica, com trinta centímetros, numa pessoa de 92 anos de idade, com a fragilidade inerente à idade;

  - a circunstância de, no caso concreto, serem bastante elevadas as exigências de prevenção geral, desde logo face ao contexto em que ambos viviam, juntos e há décadas, numa relação de convivência diária. Note-se aliás que o homicídio qualificado integra o conceito de criminalidade violenta (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Setembro de 2012, disponível na base de dados da dgsi, com o número de processo 1221/11.6JAPRT.S1 );

         - mostrando-se também elevadas as exigências de prevenção especial, sendo necessário que o arguido consciencialize e interiorize a gravidade dos factos praticados, com isso adequando o seu comportamento futuro às normas da vida em sociedade e ao respeito devido aos direitos, nomeadamente à vida;

         - o percurso de vida do arguido revela a integração social de que beneficia, o modo como é visto na comunidade face a um percurso investido no trabalho, na comunidade, no desporto em termos voluntários, o acompanhamento constante dos amigos é de sublinhar e funciona como importante factor de protecção;

 - a situação actual de confinamento, cumprindo escrupulosamente todas as regras e imposições, o que pese embora se pressuponha, está de acordo com a sua personalidade cumpridora;

         - a ausência de antecedentes criminais, facto muito relevante atenta a sua idade.

Pelo exposto, tudo visto e ponderado afigura-se adequada ao caso a pena concreta de dezasseis anos de prisão.

Antes de mais, importa salientar que a conduta por que arguido responde no presente processo se inscreve num fenómeno social relativamente inédito e que tenderá de futuro a fazer-se cada vez mais frequente, o qual é resultado, por um lado, do aumento generalizado da longevidade e, por outro lado, a dissolução da família alargada, o que tem motivado que, com cada vez maior frequência, pessoas atinjam idades muito avançadas, frequentemente para além dos 90 anos, mas em grande debilitamento físico, estando muitas vezes dependentes do auxílio de terceiros para grande dos actos da sua vida quotidiana.

Neste contexto, assume cada vez maior relevância o papel dos chamados «cuidadores», que são, o mais das vezes, filhos ou outros familiares, que por seu turno também já ultrapassaram não só a juventude mas também a chamada «força da idade», defrontando-se frequentemente com grandes dificuldades para assegurar aos seus progenitores ou parentes idosos uma existência com um mínimo dignidade.

A realidade agora sumariamente evocada reclama certamente da sociedade e do Estado, enquanto representante desta, uma resposta multiforme e que não passa apenas pela repressão das condutas criminosas, mas que não poderá, naturalmente, prescindir dela.

No caso em presença, ficou demonstrado que o arguido desempenhou esse papel de cuidador em relação à sua mãe, que estava cada vez mais dependente dele, sem ter tido nessa actividade qualquer apoio de terceiros, tendo procurado ao máximo respeitar a vontade dela, que não desejava ser internada num lar.

Tais dilemas causaram no arguido o efeito psíquico negativo descrito no ponto 71 da matéria assente: «… stress e de sofrimento psicológico, potenciador de exaustão e até mesmo de depressão, evidenciando sintomas associados à síndrome de burnout».

Sem justificar a que título que seja a conduta do arguido ao tirar a vida à sua mãe, o contexto evocado é susceptível de esbater sensivelmente o seu grau de culpa.

Finalmente, não se nos afigura que a operação de quantificação da pena levada a efeito pelo Tribunal «a quo» tenha considerado na sua justa medida a falta de ausência de antecedentes criminais do arguido em conjugação com a sua idade.

Conforme consta dos seus elementos de identificação que figuram no relatório do acórdão recorrido, o arguido nasceu em 7/2/52, estando prestes a completar 65 anos de idade à data em que praticou os factos por que responde (18/1/2017).

Neste circunstancialismo, a facto de o arguido nunca ter sido anteriormente condenado pela prática de crimes é revelador de um percurso pessoal consolidado na observância das regras de direito, pelo que a sua incriminada conduta dos presentes autos, não obstante a sua inegável gravidade, surge como um episódio isolado, donde resulta uma diminuição relevante do imperativo de prevenção especial que o caso suscita.

Assim, entendemos por justo e adequado, diminuir a medida da pena em que foi condenado o arguido, pelo cometimento de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos arts. 131º e 132º nº 1 e 2 al. a) do CP, na pessoa de BB, em 14 anos de prisão.»

        De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal, a medida da pena é determinada, dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, conforme prescreve o artigo 40.º, n.º 2, do mesmo Código.

Na determinação concreta da pena há que atender às circunstâncias do facto, que deponham a favor ou contra o agente, nomeadamente ao grau de ilicitude, e a outros factores ligados à execução do crime, à intensidade do dolo, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e aos fins e motivos que o determinaram, às condições pessoais do agente, à sua conduta anterior e posterior ao crime (artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal).

Sobre a determinação da pena, em razão da culpa do agente e das exigências de prevenção, lê-se no acórdão deste Supremo Tribunal, de 15-12-2011, proferido no processo n.º 706/10.6PHLSB.S1 – 5.ª Secção, convocado no acórdão de 27-05-2015 (proc. n.º 445/12.3PBEVR.E1.S1 – 3.ª Secção):

«Ao elemento prevenção, no sentido de prevenção geral positiva ou de integração, vai-se buscar o objectivo de tutela dos bens jurídicos, erigido como finalidade primeira da aplicação de qualquer pena, na esteira de opções hoje prevalecentes a nível de política criminal e plasmadas na lei, mas sem esquecer também a vertente da prevenção especial ou de socialização, ou, segundo os termos legais: a reintegração do agente na sociedade (art. 40.º n.º 1 do CP).

Ao elemento culpa, enquanto traduzindo a vertente pessoal do crime, a marca, documentada no facto, da singular personalidade do agente (com a sua autonomia volitiva e a sua radical liberdade de fazer opções e de escolher determinados caminhos) pede-se que imponha um limite às exigências, porventura expansivas em demasia, de prevenção geral, sob pena de o condenado servir de instrumento a tais exigências.

Neste sentido é que se diz que a medida da tutela dos bens jurídicos, como finalidade primeira da aplicação da pena, é referenciada por um ponto óptimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo que ainda seja suportável pela necessidade comunitária de afirmar a validade da norma ou a valência dos bens jurídicos violados com a prática do crime. Entre esses limites devem satisfazer-se, quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização (Cf. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas Do Crime, Editorial de Notícias, pp. 227 e ss.).

Quer isto dizer que as exigências de prevenção traçam, entre aqueles limites óptimo e mínimo, uma submoldura que se inscreve na moldura abstracta correspondente ao tipo legal de crime e que é definida a partir das circunstâncias relevantes para tal efeito e encontrando na culpa uma função limitadora do máximo de pena. Entre tais limites é que vão actuar, justamente, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização, cabendo a esta determinar em último termo a medida da pena, evitando, em toda a extensão possível (...) a quebra da inserção social do agente e dando azo à sua reintegração na sociedade (FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 231).

Ora, os factores a que a lei manda atender para a determinação concreta da pena são os que vêm indicados no referido n.º 2 do art. 71.º do CP e (visto que tal enumeração não é exaustiva) outros que sejam relevantes do ponto de vista da prevenção e da culpa, mas que não façam parte do tipo legal de crime, sob pena de infracção do princípio da proibição da dupla valoração.»

Lê-se no acórdão deste Supremo Tribunal, de 03-07-2014 (proc. n.º 1081/11.7PAMGR.C1.S1 – 3.ª Secção) que «a defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo, que a culpa do agente consente; entre estes limites, satisfazem-se quando possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização».

Como justamente refere MARIA JOÃO ANTUNES, «[s]e a medida da pena é a protecção de bens jurídicos e, na medida do possível, a reintegração do agente na sociedade, e se a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa (artigo 40.º, n.os 1 e 2, do CP), então a medida da pena há de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos, sem ultrapassar a medida da culpa, actuando os pontos de vista de prevenção especial de socialização entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de tutela de tais bens»[26].

A medida da pena, considera a mesma autora, «há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos, face ao caso concreto, num sentido prospectivo de tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da vigência da norma infringida»[27].

Convocando considerações tecidas no acordo deste Supremo Tribunal de 18-10-2012 (proc. n.º 735/10.0JACBR.C1.S1 – 5.A Secção), na escolha da medida concreta da pena a aplicar, há que tomar como ponto de partida o disposto no artigo 40.º do Código Penal, nos termos do qual toda a pena tem como finalidade «a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» e que, «Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa».

 

Com este preceito, lê-se no citado acórdão, «fica-nos a indicação de que a pena assume agora, entre nós, um cariz utilitário, no sentido de eminentemente preventivo, não lhe cabendo, como finalidade, a retribuição qua tale da culpa. Ao julgador não compete retribuir a culpa, o que não impede o legislador de agravar um ilícito típico por força de circunstâncias inerentes à culpa».            

        

O n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal manda atender, na determinação concreta da pena, «a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele». Enumera a seguir, a título exemplificativo, circunstâncias referentes à ilicitude do facto, à culpa do agente, à sua personalidade, ao meio em que se insere, ao comportamento anterior e posterior ao crime.

Tendo presentes as circunstâncias reveladas na prática dos factos, a função de prevenção geral, que deve acentuar perante a comunidade o respeito e a confiança na validade das normas que protegem o bem mais essencial, tem de ser eminentemente assegurada, e sobreleva, decisivamente, as restantes finalidades da punição, considerado o valor afectado - a vida, como valor dos valores do género humano.

Na realização dos fins das penas – protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal) –, nunca é demais frisar que as exigências de prevenção geral constituem, nos casos de homicídio, uma finalidade de primordial importância.

A vida humana é o bem essencial, o valor fundamental, inviolável na expressão constitucional (artigo 24.º, n.º 1, da Constituição da República), sendo a comunidade abalada de forma muito intensa quando, por acto voluntário, se ofende a vida de um dos seus membros.

Como sublinham GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, «o direito à vida é um direito prioritário, pois é condição de todos os outros direitos fundamentais, sendo material e valorativamente o bem mais importante do catálogo de direitos fundamentais e da ordem jurídico-constitucional no seu conjunto»[28].

São, pois, evidentes e prementes as exigências de prevenção geral expressas na perturbação comunitária que provoca este tipo de crimes que põem em causa valores nucleares da sociedade.

Relembrando asserções já tecidas, e convocando o ensinamento de FIGUEIREDO DIAS, «A prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; numa palavra, como estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da norma infringida»[29].

Como já se consignou, citando-se MARIA JOÃO ANTUNES, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos, face ao caso concreto, num sentido prospectivo de tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida.

Significando a prevenção geral positiva ou de integração, sublinha-o AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, que a pena é um meio de interpelar a sociedade e cada um dos seus membros para a relevância social e individual do respectivo bem jurídico tutelado penalmente.

A prevenção geral positiva tem ainda, considera o mesmo autor, a dimensão ou objectivo da pacificação social ou, por outras palavras, do restabelecimento ou revigoramento da confiança da comunidade na efectiva tutela penal estatal dos bens jurídicos fundamentais à vida colectiva ou individual. Esta mensagem de confiança e de pacificação social é dada, especialmente, através da condenação penal, enquanto reafirmação efectiva da importância do bem jurídico lesado[30].

Mas a pena tem também uma função de prevenção geral negativa ou de dissuasão da prática de futuros crimes devendo traduzir um juízo de censura ao agente pelo desvalor da sua conduta. Por isso, como justamente é acentuado no acórdão deste Supremo Tribunal, de 15-05-2013, proferido no processo n.º 154/12.3JDLSB.L1.S1 – 3.ª Secção, «[e]m termos dogmáticos é fundamento da individualização da pena a importância do crime para a ordem jurídica violada (conteúdo da ilicitude) e a gravidade da reprovação que deve dirigir-se ao agente do crime por ter praticado o mesmo».

No crime de homicídio, sublinha-se, são muito intensas as exigências de defesa do ordenamento jurídico e da paz social, dada a extrema sensibilidade da comunidade em relação aos mesmos e a premente necessidade de os prevenir.

Há que ter presente, como já se assinalou, o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora é, de entre todos, o mais elevado – a vida – pelo que, salvo circunstância de excepcional valor atenuativo, não sejam admissíveis nestes crimes abrandamentos do respectivo sancionamento.

E como referido no acórdão deste Supremo Tribunal de 11-07-2007, processo n.º 1583/07 - 3.ª Secção, convocado em recente acórdão de 29-03-2017 (proc. n.º 2183/14.3JAPRT.P1 – 3.ª Secção), a criminalidade violenta, em que se integra o crime de homicídio, assume alguma preocupação comunitária em crescendo, pelo que, para confiança da colectividade na lei, em nome de uma desejável tranquilidade e segurança de respeito pela vida humana, as necessidades de prevenir a prática de tal crime são muito presentes.

Consequentemente, em termos de consideração geral das finalidades de prevenção, elas são elevadas tendo presente a superior importância do bem jurídico protegido cuja violação comporta sentimentos de profunda reprovação junto da população em geral, o que se reflecte na moldura penal abstracta, de 12 a 25 anos, prevista para o crime de homicídio qualificado.

É elevado o grau de ilicitude da actuação do recorrente, revelada, desde logo, pelo modo de execução do crime, assumindo a culpa do arguido a forma de dolo directo.

O recorrente não tem antecedentes criminais, elemento que, tendo presente a idade do arguido, foi positivamente ponderado no acórdão da 1.ª instância e ainda mais valorizado no acórdão recorrido, aí se consignando justamente que, «o facto de o arguido nunca ter sido anteriormente condenado pela prática de crimes é revelador de um percurso pessoal consolidado na observância das regras de direito, pelo que a sua incriminada conduta dos presentes autos, não obstante a sua inegável gravidade, surge como um episódio isolado, donde resulta uma diminuição relevante do imperativo de prevenção especial que o caso suscita».

De acordo com a matéria de facto provada, inexistem no percurso vivencional do arguido situações reveladoras de comportamento agressivo ou violento. A situação aqui em causa, surge-nos como «inédita face ao comportamento dominante do arguido» (facto 57).

Sendo que o mesmo arguido é considerado por aqueles que com ele privam pessoa pacata, pacífica, sociável e activa, e sempre demonstrou grande preocupação com o estado de saúde da sua mãe (factos 58 e 67).

De facto, é de sublinhar o carácter inesperado do acto praticado pelo arguido na agressão que vitimou a sua mãe. Um acto que não estará conforme ao comportamento que sempre revelou para com ela sendo que, de acordo com o facto provado sob o n.º 71, «o arguido vivenciava uma situação de stress e de sofrimento psicológico, potenciador de exaustão e até mesmo de depressão, evidenciando sintomas associados à síndrome de burnout»[31].

Como bem se sublinha no acórdão recorrido, «ficou demonstrado que o arguido desempenhou [um] papel de cuidador em relação à sua mãe, que estava cada vez mais dependente dele, sem ter tido nessa actividade qualquer apoio de terceiros, tendo procurado ao máximo respeitar a vontade dela, que não desejava ser internada num lar.

Tais dilemas causaram no arguido o efeito psíquico negativo descrito no ponto 71 da matéria assente: “… stress e de sofrimento psicológico, potenciador de exaustão e até mesmo de depressão, evidenciando sintomas associados à síndrome de burnout”.

Sem justificar a que título que seja a conduta do arguido ao tirar a vida à sua mãe, o contexto evocado é susceptível de esbater sensivelmente o seu grau de culpa».

Concorda-se com esta apreciação, tal como secundamos o entendimento do Tribunal da Relação quanto à consideração «na sua justa medida a falta de ausência de antecedentes criminais do arguido em conjugação com a sua idade.

Conforme consta dos seus elementos de identificação que figuram no relatório do acórdão recorrido, o arguido nasceu em 7/2/52, estando prestes a completar 65 anos de idade à data em que praticou os factos por que responde (18/1/2017)».

        

Neste circunstancialismo, conclui-se, e bem, no acórdão recorrido, «o facto de o arguido nunca ter sido anteriormente condenado pela prática de crimes é revelador de um percurso pessoal consolidado na observância das regras de direito, pelo que a sua incriminada conduta dos presentes autos, não obstante a sua inegável gravidade, surge como um episódio isolado, donde resulta uma diminuição relevante do imperativo de prevenção especial que o caso suscita»

Nestes termos, salientando-se as exigências de prevenção geral que aqui se fazem sentir, mas sublinhando-se igualmente não serem prementes as exigências de prevenção especial suscitadas, tendo presentes todo o percurso de vida do arguido e que não se observam na comunidade sentimentos de rejeição, não obstante o crime praticado, consideramos se justifica neste caso uma intervenção correctiva da medida da pena superior àquela que o Tribunal da Relação operou no acórdão recorrido.

Tudo ponderado, entendemos que a pena de 12 anos e 4 meses de prisão satisfaz adequadamente as exigências de prevenção geral e é consentida pela culpa do recorrente.

4. Da declaração de indignidade sucessória

O recorrente foi declarado indigno para efeitos de capacidade sucessória relativamente a BB, nos termos do disposto nos artigos 20134.º do Código Civil e 69.º-A do Código Penal.

A circunstância de a Relação ter confirmado este segmento da decisão da 1.ª instância e de o recorrente não o ter questionado, de forma expressa, não obsta a que este Supremo Tribunal dela conheça já que estamos perante uma consequência jurídica do crime de homicídio praticado pelo arguido, sendo vítima a sua mãe. Ou seja, estamos perante «matéria de direito» e, por isso, indiscutivelmente no âmbito dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça (cfr. artigo 434.º do CPC).

 Sendo que o conhecimento da questão da indignidade sucessória do recorrente se coloca com particular pertinência já que o Ministério Público não a formulara, na acusação oportunamente deduzida, existindo o risco de se concluir que:

a) a indignidade sucessória fora declarada como efeito necessário e automático da pena.

b) foram preteridos os direitos de defesa do arguido e, desde logo, o princípoio do contraditório.

Vejamos:

Sob a epígrafe «Declaração de indignidade sucessória», o artigo 69.º-A do Código Penal, aditado pela Lei n.º 82/2014, de 30 de Dezembro, estabelece que:

«A sentença que condenar autor ou cúmplice de crimes de homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o autor da sucessão ou contra o seu cônjuge, descendente, ascendente, adoptante ou adoptado, pode declarar a indignidade sucessória do condenado, nos termos e para os efeitos previstos na alínea a) do artigo 2034.º e no artigo 20137.º do Código Civil, sem prejuízo do disposto no artigo 2036.º do mesmo Código.»

O artigo 2034.º, alínea a), do Código Civil dispõe que carecem de capacidade sucessória, por motivo de indignidade, «O condenado como autor ou cúmplice de crimes de homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o autor da sucessão ou contra o seu cônjuge, descendente, ascendente, adoptante ou adoptado».

Como lembra LUÍS A. CARVALHO FERNANDES, «[a] configuração da capacidade sucessória como requisito da vocação e a qualificação da indignidade como incapacidade deviam conduzir, em rigorosa ----, ao funcionamento automático do instituto. Verificada a condenação pelos crimes enumerados nas alíneas a) e b) do art. 2034.º, ou praticados os ilícitos previstos nas suas alíneas c) e d), eles gerariam ipso facto, a indignidade (-)»[32]. Não é este, todavia, prossegue o autor, o regime estatuído no Código Civil, o que facilmente se apura a partir do seu art. 2016.º. «Prevê, na verdade, esta norma a necessidade de uma acção destinada ---- declaração da indignidade»[33], conclusão que, a nosso ver, se reforça com a nova redacção conferida ao artigo 2036.º pela Lei n.º 82/2014, de 30 de Dezembro[34].

Em sede penal, mais se justifica, atentos os interesses em presença, o entendimento segundo o qual a declaração de indignidade não é um efeito necessário e automático da pena, dependendo, como assinala PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, «da verificação dos pressupostos substantivos da lei civil»[35].

O Capítulo III do Livro I do Código Penal, dedicado às «Penas acessórias e efeitos das penas» inicia-se com o artigo 65.º que, no seu n.º 1, proclama que «Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de direitos civis, profissionais ou políticos», concretizando a norma consagrada no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição da República, o que, sendo corolário do princípio do Estado de Direito democrático, constituindo doutrina que, justamente, FIGUEIREDO DIAS considera político-criminalmente justificada «na medida em que importa retirar às penas todo e qualquer efeito infamante ou estigmatizante que acresça ao (inevitável) mal da pena», assim se «[dando] expressão legal ao indeclinável dever do Estado de não prejudicar, pelo contrário favorecer, a socialização do condenado»[36].

Não são admissíveis, pois, efeitos penais automáticos da aplicação de certas penas ou da prática de determinados crimes.

Antes do aditamento do artigo 69.º-A ao Código Penal pela citada Lei n.º 82/2014, era relegada para o juiz civil a possibilidade de declarar a indignidade sucessória em acção dirigida a obtê-la (artigo 2036.º do Código Civil).

Com a inovação introduzida no Código Penal, é consagrado, segundo M. MIGUEZ GARCIA e J. M. CASTELA RIO, «um “efeito substantivo civil do crime” – e não uma “pena acessória”». Certo é que, para os mesmos autores, vigora aqui o princípio da consequência não automática, seja da “pena acessória”, seja do “efeito substantivo do crime”, como decorrência do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição da República. Daí que a norma contida no artigo 69.º-A refira que a sentença condenatória «pode declarar» e não «declara»[37].

Por outro lado, o possível «efeito substantivo civil do crime», fundado na verificação dos pressupostos para a declaração da indignidade sucessória, deve figurar na acusação deduzida pelo Ministério Público.

Neste ponto, afigura-se-nos ser de  convocar a justificação feita no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fixação de jurisprudência n.º 7/2008 que, não obstante se referir à omissão na acusação de uma pena acessória (no caso, a pena acessória de proibição de conduzir), tem aqui pertinência.

Efectivamente, a omissão na acusação da possibilidade da declaração da indignidade sucessória em consequência do crime cometido pôs em causa as garantias de defesa do arguido.

Como se lê no citado acórdão uniformizador:

«A qualificação jurídica dos factos em sede de acusação não se circunscreve à indicação da norma que prevê o tipo de crime ou crimes que aqueles preenchem.

Com efeito, a lei – alínea f) do n.º 3 do artigo 283º – impõe a indicação das disposições legais aplicáveis, ou seja, de todas as disposições legais aplicáveis.

Deste modo, para além da indicação da norma que prevê o tipo de crime ou crimes, terão de ser indicadas as normas que estabelecem a respectiva punição, ou seja, a espécie e a medida das sanções aplicáveis [-].

Pretende a lei que ao arguido seja dado conhecimento do exacto conteúdo jurídico-criminal da acusação, ou seja, da incriminação e da precisa dimensão das consequentes respostas punitivas, dando-se assim expressão aos princípios da comunicação da acusação e da protecção global e completa dos direitos defesa, este último estabelecido no n.º 1 do artigo 32º da Constituição Política, princípios a que já fizemos referência.

Só assim o arguido poderá preparar e organizar a sua defesa de forma adequada.

É que o arguido não tem que se defender apenas dos factos que lhe são imputados na acusação. A vertente jurídica da defesa em processo penal é, em muitos casos, mais importante [-]. E esta para ser eficaz pressupõe que o arguido tenha conhecimento do exacto significado jurídico-criminal da acusação, o que implica, evidentemente, lhe seja dado conhecimento preciso das disposições legais que irão ser aplicadas.

Por isso, qualquer alteração que se verifique da qualificação jurídica dos factos feita na acusação ou na pronúncia (com excepção dos casos atrás referidos), nomeadamente qualquer alteração que importe um agravamento, terá necessariamente de ser dada a conhecer ao arguido para que este dela se possa defender, sob pena de se trair o favor defensionis [[38]].

Por outro lado, como deixámos assinalado nas considerações preliminares tecidas, a declaração do direito do caso penal concreto é tarefa conjunta do tribunal e dos sujeitos processuais, na qual o arguido é também chamado a intervir, porém, para isso terá de participar e de ser ouvido, nos diversos actos processuais, de acordo com o quadro jurídico pelo qual vai ser julgado e não com base noutro quadro jurídico. Assim, se o quadro jurídico que lhe foi dado a conhecer através da comunicação da acusação ou da pronúncia é alterado, disso terá de ser informado para que possa influir, se assim o entender, na declaração do direito.

Aliás, o processo penal é um processo equitativo e justo, não sendo configurável, num Estado de direito, a possibilidade de ao arguido ser aplicada uma pena sem que disso seja prevenido, isto é, sem que lhe seja dado oportuno conhecimento da possibilidade de que nela pode vir a ser condenado [[39]].

E a pena acessória é, evidentemente, uma verdadeira pena.

Efectivamente, conquanto seja uma sanção dependente da aplicação da pena principal (como a própria denominação indica), não resulta directa e imediatamente da cominação desta, no sentido de que não é seu efeito automático, o que, aliás, constitui imposição constitucional, decorrente do n.º 4 do artigo 30º da Constituição, que estabelece, tal qual o faz o n.º 1 do artigo 65º do Código Penal, que nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos, constituindo uma sanção autónoma.

Aliás, a pena acessória de proibição de conduzir, para muitos, é bem mais gravosa que a pena principal (evidentemente, quando esta é não privativa da liberdade), sendo certo que a defesa passa aqui, necessariamente, pela alegação e prova de factos de natureza pessoal, factos da maior importância para a determinação concreta da medida daquela, os quais só podem ser dados a conhecer pelo arguido ao tribunal se o mesmo for prevenido de que a condenação no crime de que é acusado implica, também, a condenação na pena acessória, o que nas situações em que, como é o caso vertente, na acusação inexiste referência à norma que comina aquela, terá de ser feito mediante a comunicação prevista no artigo 358º. 34

Assim, ao condenar-se o aqui recorrente em pena acessória cuja indicação da disposição legal que a prevê e estabelece a sua medida foi omitida na acusação contra ele deduzida, sem que da respectiva alteração tivesse sido prevenido nos termos do artigo 358º, n.ºs 1 e 3, há que concluir que se incorreu na nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 379º [-]».

No caso presente, se é verdade que a acusação omite o efeito civil decorrente da prática do crime de homicídio sobre a mãe do arguido, o certo é que no julgamento em 1.ª instância, o Tribunal Colectivo proferiu despacho de alteração não substancial dos factos e da qualificação jurídica, nos termos do disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP. E, tendo sido dada a palavra ao Ilustre Mandatário do arguido, «pelo mesmo foi dito nada ter a requerer quanto à alteração não substancial dos factos e relativamente à qualificação jurídica e prescindir do prazo de preparação de defesa» (acta de audiência de fls. 1037).

Consignando-se expressamente no acórdão proferido pelo Tribunal Colectivo «[ter]-se procedido à comunicação da alteração não substancial dos factos e da possibilidade de se proceder à declaração de indignidade sucessória» (ponto 4. Do Relatório – fls. 990).

Ficou, pois, acautelado o direito de defesa do arguido e respeitado o princípio do contraditório.

Cumprindo, por fim, referir que no acórdão condenatório proferido na 1.ª instância, confirmado nesta parte pelo Tribunal da Relação no acórdão sob recurso, é apreciada e decidida, expressamente e com autonomia, a questão da indignidade sucessória, referenciando-se os factos praticados pelo arguido e correspondente crime em que foi condenado e, bem assim, as pertinentes disposições legais.

Não enferma a decisão, também nesta parte, de qualquer vício pelo que se mantém, sendo que estão reunidos os pressupostos para a declaração da indignidade sucessória do arguido, ora recorrente.

III – DECISÃO

Termos em que, acordam em audiência os Juízes da 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em:

 

- Concedendo parcial provimento ao recurso interposto, condenar o arguido AA na pena de 12 (doze) anos e 4 (quatro) meses de prisão pela prática do crime de homicídio qualificado p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º e 132.º, n.os 1 e 2, alínea a), do Código Penal.

- Sem custas (artigo 513.º, n.º 1, do CPP)

Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2, do CPP

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 3 de Abril de 2019

Manuel Augusto de Matos (relator) *
Lopes da Mota
Santos Cabral

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[1] “A ‘perícia’ técnica ou científica revisitada numa visão prático-judicial”, Julgar, n.º 15 – 2011, p. 29.
[2]   Et alii, Código de Processo Penal Comentado, 2016 – 2.ª Edição Revista, Almedina, pp.624-625.
[3]   Entre outros, o acórdão de 16 de Outubro de 2008, processo n.º 07P4725.
[4]  Acórdão de 25 de Junho de 2014, processo n.º 472/12.0JABRG.G1.S1.
[5]  Acórdão de 20 de Outubro de 2011, processo n.º 36/06.8GAPSR.S1.
[6]  Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, p. 421.
[7] Neste sentido, entre outros, Acs. STJ de 19-05-2010, Proc. n.º 459/05.0GAFLG.G1.S1 - 3.ª Secção; e de 04-12-2003, Proc. n.º 3188/03- 5.ª Secção, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
[8] Acessível in www.stj.pt/jurisprudência/sumários de acórdãos/Criminal - Ano de 2009.
[9]     Lições de Direito Processual Penal, 2015, Almedina, p. 222.
[10]             Direito Processual Penal, 2016, Almedina, p. 171.

[12]    Sumários de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça – Secções Criminais – Ano de 2012.
[13]  Sumários de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça – Secções Criminais – Ano de 2014.
[14] No mesmo sentido Fernando Silva, Direito Penal Especial Crimes contra as pessoas pág 60 e seguintes; Augusto Silva Dias, [Crimes contra a Vida em e a Integridade Física], pág 20 e seg. Para Teresa Serra - Homicídio Qualificado, pág 66- a verificação das circunstâncias previstas no n° 2 do art. 132° seja ela relativa ao facto ou à culpa do agente, significando um amento da culpa ou da ilicitude, só constitui um indício da existência de especial censurabilidade ou perversidade que fundamenta a moldura penal agravada do homicídio qualificado.
[20] Regelbeispiele lhes chama Jeschek (tratado pag. 245) considerando que os exemplos padrão não constituem elementos qualificativos do tipo, mas regras de aplicação de pena. A particularidade dos exemplos regulados é dupla. Por um lado a concorrência dos elementos constantes do exemplo representa só um indício para a apreciação dum caso especialmente grave. O juiz pode recusar o efeito indiciário se uma valoração global do facto e do agente revela que o concreto conteúdo do ilícito e da culpa do facto, apesar da realização dos elementos constitutivos do exemplo regulado, não diferem essencialmente da média dos casos da correspondente classe de delito que se apresentam normalmente.
[15] Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, p. 26.
[16] Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1990, pp. 63-64.
[17] Comentário Conimbricense do Código Penal, cit., p. 29.
[18]   Direito Penal Especial, Crimes contra as Pessoas, Quid Juris, 2005, pp. 50-51.
[19]   Crimes contra a vida e a integridade física, 2.ª edição, revista e actualizada, AAFDL, 2007, p. 29.
[20]     Ob. cit., pp. 70-71.
[21] FIGUEIREDO DIAS, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, cit., p. 132.
[22]    Ob. cit., p. 71.
[23] Código Penal – Parte Geral e Especial, 2015 – 2.ª Edição, Almedina, p. 394.
[24]  As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Editorial Notícias, p. 306.
[25] Sumários de acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Secções Criminais, ano 2000.
[26] Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, p. 44
[27]             Idem, ibidem.

[28]             Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 2014, Coimbra Editora, pp. 446-447.
[29] “O sistema sancionatório do Direito Penal Português”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, I, p. 815,
[30]             Direito Penal – Parte Geral, 2.ª Edição, Coimbra Editora, pp. 65-66.
[31] A síndrome de burnout, segundo o Dicionário Médico, Climepsi Editora, é um estado físico e psicológico caracterizado por indiferença, pessimismo, apatia ou ausência de motivação, de interesse e energia que muitas  vezes parece ser resultado do stress profissional ou familiar.
[32] Lições de Direito das Sucessões, 3.ª Edição (revista e actualizada), Lisboa 2008, Quid Juris – Sociedade Editora, p. 187.
[33]             Ibidem.
[34]   «2 - Caso o único herdeiro seja o sucessor afetado pela indignidade, incumbe ao Ministério Público intentar a ação prevista no número anterior.
                3 - Caso a indignidade sucessória não tenha sido declarada na sentença penal, a condenação a que se refere a alínea a) do artigo 2034.º é obrigatoriamente comunicada ao Ministério Público para efeitos do disposto no número anterior.»
[35] Comentário do Código Penal, 3.ª Edição Actualizada, Universidade Católica Editora, p. 352.
[36]   Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 4.ª Reimpressão, Coimbra Editora, p. 158.
[37]            Código Penal – Parte geral e especial, 2015 – 2.ª Edição, Almedina, p. 381.
[38]             Neste sentido se tem pronunciado o Tribunal Constitucional ao defender que um exercício eficaz do direito de defesa não pode deixar de ter por referência um enquadramento jurídico-criminal preciso. Dele decorrem, ou podem decorrer, muitas das opções básicas de toda a estratégia de defesa (a escolha deste ou daquele advogado, a opção por determinadas provas em vez de outras, o sublinhar de certos aspectos e não de outros, etc.) em termos que de modo algum podem ceder perante os valores subjacentes à liberdade (mesmo que lhe chamemos correcção) na qualificação jurídica do comportamento descrito na acusação.
               É da essência das garantias de defesa que a operação de subsunção que conduz o juiz à determinação do tipo penal correspondente a determinados actos seja previamente conhecida e, como tal, controlável pelo arguido. Através da narração dos actos e da indicação das disposições legais aplicáveis, na acusação ou na pronúncia (v. artigos 283º, n.º 3 e 308º, n.º 2 do CPP), é fornecido um modelo determinado de subsunção constituído por aqueles factos entendidos como correspondendo a um específico crime. Tal modelo serve de referência à fase de julgamento – destinando-se esta, aliás à sua comprovação – e é em função dele que o arguido organiza a sua defesa. Importa aqui sublinhar que o conhecimento pelo arguido desse modelo, tornando previsível a medida em que os seus direitos podem ser atingidos naquele processo, constitui como se disse um imprescindível ponto de referência na estratégia de defesa, funcionando, assim, como importante garantia de exercício desta.
   Sendo mais gravosa para o arguido a nova incriminação, não pode deixar de se lhe facultar, com a comunicação da eventualidade da sua ocorrência, uma sequência processual, situada na fase de julgamento, em que, sendo previsível essa nova incriminação, o arguido possa discuti-la e adaptar a sua defesa a essa alteração – entre outros, os acórdãos n.ºs 173/92, 22/96, 445/97 e 463/04.
                Em sentido coincidente manifesta-se Raul Soares da Veiga no Prefácio à 2ª Edição do trabalho de Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português.

[39]   É o que resulta do artigo 6º, n.ºs 1 e 3, alínea a), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.