Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
908/19.0T8OAZ-B.P1.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: INSOLVÊNCIA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CRÉDITO SUBORDINADO
HIPOTECA VOLUNTÁRIA
INTERPRETAÇÃO DA LEI
RETROATIVIDADE
Data do Acordão: 01/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - O crédito que beneficie de hipoteca voluntária, detido por irmão da insolvente, tem natureza subordinada, independentemente de a sua constituição ter ocorrido cerca de 9 anos antes do início do processo de insolvência.
II - A única condição que o legislador estabeleceu para a classificação como subordinados de créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor foi a de que essa relação com o devedor já existisse aquando da constituição do crédito.
Decisão Texto Integral:

PROC. N.º 908/19.0T8OAZ-B.P1.P1.S1

6ª SECÇÃO (Cível)

REL. 159[1]

                                                                       *

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I. RELATÓRIO

Declarada, por sentença transitada em julgado, a insolvência de AA., no âmbito da qual foi apreendido o prédio inscrito na matriz predial urbana sob o art. ……. da freguesia……, concelho ……., descrito sob o n.º ……. da Conservatória do Registo Predial ……., apresentou o administrador da insolvência (AI) a relação dos créditos reconhecidos, em que, entre outros, incluiu o crédito de BB., no montante de € 240.000,00, dos quais € 200.000,00 respeitam a capital e € 40.000,00 a juros, que classificou como garantido, por beneficiar de hipoteca voluntária registada sobre o imóvel.

Sem que esse crédito tivesse sido objecto de impugnação, foi oficiosamente ordenada a junção aos autos de certidão de nascimento de BB. e dela se constatando ser irmão da insolvente, foi proferido despacho para que o AI se pronunciasse sobre a natureza do crédito desse credor, atento o disposto nos artigos 47º, n.º 4, alínea b), 48º e 49º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), tendo o AI mantido a classificação do crédito como garantido, essencialmente com o fundamento de que, apesar das relações de parentesco do credor com a insolvente, o crédito se reportava ao ano de 2010 e o registo da hipoteca datava de 2010/02/04, ou seja cerca de 9 anos antes da apresentação à insolvência, pelo que não era de aplicar o disposto nos artigos 48º, al. a), e 49º, nº 1, al. b), do CIRE.

Foi então proferida sentença em que se decidiu:

- Julgar reconhecidos os créditos referidos na lista elaborada pelo Sr. Administrador, junta sob a refª ……, mais se decidindo que o crédito reconhecido a BB. tem natureza subordinada.

- Graduar os créditos verificados nos seguintes termos:

- As custas da insolvência e dos seus apensos, bem como as despesas de liquidação, incluindo a remuneração variável do/a Senhor/a Administrador/a da Insolvência, e as demais dívidas da massa insolvente saem precípuas do produto da liquidação dos bens apreendidos ou a apreender (art. 172º do C.I.R.E. e Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro).

- Após, serão pagos os créditos comuns, com rateio entre eles - cfr. art. 176º do C.I.R.E.

- Após pagamento integral dos créditos comuns, serão pagos os créditos subordinados, pela ordem prevista no art. 48º do CIRE - cfr. art. 177º do CIRE.

Inconformado, apelou o credor BB..

O Tribunal da Relação ….. julgou o recurso de apelação procedente (com voto de vencido de um dos Senhores Desembargadores) e, em consequência, qualificou o crédito de BB. como garantido, graduando-o para ser pago antes dos créditos comuns.

A credora Caixa Geral de Depósitos, S.A., apresenta, agora, recurso de revista desse acórdão, concluindo do seguinte modo:

1. O recurso que ora se subjuga à mui douta e criteriosa apreciação de V. Exas. é interposto ao abrigo do artigo 14.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (doravante, designado CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004 e alterado pelo Decreto-Lei n.º 200/2004, de 18 de Agosto de 2004 e Lei n.º 16/2012 de 20 de Abril, porquanto, o Acórdão proferido pela Relação ……., sob sindicância, encontra-se em clara oposição com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Maio de 2019, proferido no âmbito do processo n.º 1517/14.5T8STS-B.P1.S1 (acórdão fundamento) e com o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 13 de Junho de 2019, proferido no âmbito do processo n.º 1960/18.0T8VNF-C.G1, já transitados em julgado.

2. Sempreo presenteseriaadmitido, igualmente ao abrigo do disposto no artigo 14.º do CIRE, porquanto o legislador ao consagrar neste preceito legal que “no processo de insolvência, e nos embargos opostos à declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação”, fê-lo apenas quanto a estes dois pontos concretos do processo de insolvência: os autos principais e os embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não restringindo a possibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça aos demais apensos passíveis de serem criados no decurso do processo de insolvência, como, nomeadamente, o apenso de Reclamação de Créditos.

3. O Tribunal a quo, julgou procedente o Recurso de Apelação apresentado pelo Credor Reclamante BB. e considerou que o seu crédito “não deve ser qualificado como subordinado, mas, ao invés, porque beneficia de hipoteca registada, ser qualificado como garantido e, como consequência, ser alterada a graduação de créditos estabelecida na sentença recorrida, ou seja, antes dos créditos comuns”.

4. Nos termos do artigo 48.º, alínea a), “consideram-se subordinados, sendo graduados depois dos restantes créditos sobre a insolvência, os créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, desde que a relação especial existisse aquando da respectiva aquisição, e por aqueles a quem eles tenham sido transmitidos nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência.” Por sua vez, o artigo 49.º, n.º 1, alínea c) estatui que “são havidos como especialmente relacionados com o devedor pessoa singular os cônjuges dos ascendentes, descendentes ou irmãos do devedor.”

5. Em matéria de subordinação de créditos, em função do especial relacionamento com o devedor, a Doutrina e a Jurisprudência tendem a concordar que se está perante uma presunção iuris et de iure, isto é, uma presunção absoluta, inilidível por prova em contrário, que tem subjacente a necessidade de prevenir a ocorrência de estratagemas cujo único objectivo seja o de prejudicar o ressarcimento dos direitos de crédito dos demais credores da insolvência, pelo que, a simples constatação do vínculo ou situação de que é feita depender a qualificação como pessoa especialmente relacionada com o devedor basta para que ela opere e desencadeie os seus efeitos.

6. Tal entendimento colide com o sufragado pelo Acórdão sob sindicância, que aponta que, para além do referido vínculo existente entre devedor e credor, é tambémimperativo que o momento da constituição do crédito se mostre próximo da declaração da insolvência.

7. Contrariamente, como bem refere o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 06 de Março de 2018, proferido no âmbito do processo n.º 1517/14.5T8STS-B.P1, “considerar um eventual limite temporal para a constituição do crédito subordinado (…) designadamente dentro de 2 anos referenciados a propósito da norma do artº 48º al. a) parte final CIRE, é proporcionar a apresentação à insolvência por forma a resguardar ou prevenir a “desclassificação do crédito” das “pessoa especialmente relacionadas com o devedor”, algo que o legislador manifestamente visou evitar.”.

8. A alínea a), do artigo 48.º do CIRE mais não faz do que perspectivar duas situações distintas: uma, referente aos créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, outra, aludida aos casos em que os créditos são transmitidos por aquelas pessoas a terceiros, desde que tal transmissão tenha ocorrido “nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência.”, pelo que, se o legislador quisesse, efectivamente, ter consagrado, a par do requisito do vínculo familiar com o insolvente, o de um limite temporal, tê-lo-ia feito de forma expressa, o que não sucedeu.

9. Assim, acompanhamos os ensinamentos do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 23 de Maio de 2019, proferido no âmbito do processo n.º 1517/14.5T8STS-B.P1.S1 (acórdão fundamento), quando este evidencia que a lei, ao consignar a simples constatação do vínculo familiar para operar a qualificação como pessoa especialmente relacionada com o devedor e, consequentemente, o crédito como subordinado, baseou-se “em razões objectivas que entendeu que deveriam ser individualizadas e, nessa medida, indicou-as criteriosamente no artigo 49.º [CIRE]. Por outro lado, nos casos em que a lei entendeu dar relevância ao aspecto temporal na relação com o devedor insolvente para efeitos de qualificação das pessoas especialmente relacionadas com este, expressamente o indicou (alínea d) do n.º 1 [do artigo 49.º do CIRE].

10. A concretização da categoria de créditos subordinados que resulta da conjugação dos artigos 48.º, alínea a), primeira parte e 49.º, n.º 1, alínea c), ambos do CIRE, basta-se com a relação especial definida pelo legislador, não se encontrando sujeita a qualquer período temporal limitativo.

11. Ainda assim, sendo facto incontornável que o Recorrido BB. é irmão da insolvente AA. e que aquele detém sobre esta um crédito que lhe foi reconhecido no valor de 240.000,00€, é igualmente incontestável que o registo de hipoteca é quase contemporâneo ao registo de penhora a favor de credor reconhecido nestes autos, tal qual é incontornável que o capital mutuado nunca foi reembolsado num cêntimo e nunca foi pago qualquer juro remuneratório, posto que o capital de 200.000,00€ mutuado em 2010 permanece inalterado em 2019 a que acresce 40.000,00€ de juros, o que evidencia a especial relação existente entre este credor e a devedora insolvente que de forma premeditada oneraram um imóvel.

12. Pelo que, mal andou o Tribunal a quo ao qualificar o crédito do Recorrido BB., irmão da insolvente, como crédito garantido, alterando, consequentemente, a graduação de créditos estabelecida pelo tribunal de 1.ª Instância, pois, ao decidir assim, violou o artigo 48.º, alínea a) do CIRE e encontra-se em manifesta oposição com o decidido no acórdão fundamento.

Não houve contra-alegações.

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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões da recorrente, a questão que cumpre apreciar é a de saber se o crédito reclamado deve ser classificado como subordinado, face às disposições dos artigos 48º, alínea a) e 49º do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas (CIRE)[2].

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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

De acordo com o que já consta do antecedente relatório, os factos a considerar são os seguintes:

 

a)         A insolvência foi decretada em 2019.

b)         Nela foi apreendido o prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ….. da freguesia ……, concelho ……., descrito sob o n.º …… da Conservatória do Registo Predial ……..

c)         O crédito de BB., irmão da insolvente, no montante de € 240.000,00, beneficia de hipoteca voluntária sobre o imóvel apreendido, registada pela Ap. ….., de 2010/02/04.

O DIREITO

a) Admissibilidade da revista

Sendo este um processo de reclamação de créditos apenso a uma insolvência, não é aplicável o regime recursório previsto no artigo 14.º do CIRE, mas antes o regime geral decorrente do artigo 671.º, nºs 1 e 3, do CPC.

Todavia, nenhum obstáculo se pode colocar à admissão do recurso.

De facto, a existência de voto de vencido no acórdão recorrido abre automaticamente a possibilidade da revista normal, até porque se verificam os demais pressupostos gerais de recorribilidade.

 

b) Classificação do crédito

Não se encontrando questionado o crédito reclamado, no montante de € 240.000,00, dos quais € 200.000,00 respeitam a capital e € 40.000,00 a juros de mora, em causa no recurso está, como já esteve no recurso de apelação, a qualificação do crédito reconhecido ao recorrente BB., irmão da insolvente, que beneficia de hipoteca voluntária, registada com data de 2010/02/04.

A sentença recorrida classificou-o como subordinado, aderindo à argumentação constante do acórdão deste STJ de 23.05.2019[3], no qual se considerou que a conceptualização da categoria dos créditos subordinados prevista nos artigos 48º, al. a), e 49º, nº 1, al. b), do CIRE se basta na relação especial definida pelo legislador, não se encontrando sujeita a qualquer período temporal limitativo. Por seu turno, o acórdão recorrido seguiu o entendimento do acórdão deste STJ de 06.12.2016[4], que procedeu a uma interpretação restritiva das citadas normas, e concluiu que as mesmas não têm aplicação quando se mostre que a constituição do crédito está de tal forma afastada no tempo do início do processo de insolvência que, dentro da normalidade das coisas, se trata de dois acontecimentos totalmente independentes, isto é, sem qualquer correlação, afinidade ou implicação entre si.

Vejamos, antes de mais, o que se prescreve nos artigos 48º e 49º do CIRE, a seguir reproduzidas:

ARTIGO 48º

Créditos subordinados

Consideram-se subordinados, sendo graduados depois dos restantes créditos sobre a insolvência:

a) Os créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, desde que a relação especial existisse já aquando da respectiva aquisição, e por aqueles a quem eles tenham sido transmitidos nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;

b) Os juros de créditos não subordinados constituídos após a declaração da insolvência, com excepção dos abrangidos por garantia real e por privilégios creditórios gerais, até ao valor dos bens respectivos;

c) Os créditos cuja subordinação tenha sido convencionada pelas partes;

d) Os créditos que tenham por objecto prestações do devedor a título gratuito;

e) Os créditos sobre a insolvência que, como consequência da resolução em benefício da massa insolvente, resultem para o terceiro de má fé;

f) Os juros de créditos subordinados constituídos após a declaração da insolvência;

g) Os créditos por suprimentos.

ARTIGO 49º

Pessoas especialmente relacionadas com o devedor

1 - São havidos como especialmente relacionados com o devedor pessoa singular:

a) O seu cônjuge e as pessoas de quem se tenha divorciado nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;

b) Os ascendentes, descendentes ou irmãos do devedor ou de qualquer das pessoas referidas na alínea anterior;

c) Os cônjuges dos ascendentes, descendentes ou irmãos do devedor;

d) As pessoas que tenham vivido habitualmente com o devedor em economia comum em período situado dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência.

2 - São havidos como especialmente relacionados com o devedor pessoa colectiva:

a) Os sócios, associados ou membros que respondam legalmente pelas suas dívidas, e as pessoas que tenham tido esse estatuto nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;
b) As pessoas que, se for o caso, tenham estado com a sociedade insolvente em relação de domínio ou de grupo, nos termos do artigo 21.º do Código dos Valores Mobiliários, em período situado dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;

c) Os administradores, de direito ou de facto, do devedor e aqueles que o tenham sido em algum momento nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;

d) As pessoas relacionadas com alguma das mencionadas nas alíneas anteriores por qualquer das formas referidas no n.º 1.

3 - Nos casos em que a insolvência respeite apenas a um património autónomo são consideradas pessoas especialmente relacionadas os respectivos titulares e administradores, bem como as que estejam ligadas a estes por alguma das formas previstas nos números anteriores, e ainda, tratando-se de herança jacente, as ligadas ao autor da sucessão por alguma das formas previstas no n.º 1, na data da abertura da sucessão ou nos dois anos anteriores.

O artigo 48º é um preceito completamente novo, sem paralelo ou correspondência no anterior CPEREF.

Inspirou-se no artigo 92º da Ley Concursal espanhola (Ley 22/2003, de 9 de Julho)[5], que enuncia os créditos subordinados, em cujo n.º 5 se pode ler:

Los créditos de que fuera titular alguna de las personas especialmente relacionadas con el deudor a las que se refiere el artículo siguiente, excepto los comprendidos en el artículo 91.1.º cuando el deudor sea persona natural y los créditos diferentes de los préstamos o actos con análoga finalidad de los que sean titulares los socios a los que se refiere el artículo 93.2.1.º y 3.º que reúnan las condiciones de participación en el capital que allí se indican.

A sua inclusão no texto do CIRE surge da intenção proclamada no ponto 25. do preâmbulo do DL 53/2004, de 18 de Março:

“A categoria dos créditos subordinados abrange ainda, em particular, aqueles cujos titulares sejam ‘pessoas especialmente relacionadas com o devedor’ (seja ele pessoa singular ou colectiva, ou património autónomo), as quais são criteriosamente indicadas no artigo 49.º do diploma. Não se afigura desproporcionada, situando-nos na perspectiva de tais pessoas, a sujeição dos seus créditos ao regime de subordinação, face à situação de superioridade informativa sobre a situação do devedor, relativamente aos demais credores.

O combate a uma fonte frequente de frustração das finalidades do processo de insolvência, qual seja a de aproveitamento, por parte do devedor, de relações orgânicas ou de grupo, de parentesco, especial proximidade, dependência ou outras, para praticar actos prejudicais aos credores é prosseguido no âmbito da resolução de actos em benefício da massa insolvente, pois presume-se aí a má fé das pessoas especialmente relacionadas com o devedor que hajam participado ou tenham retirado proveito de actos deste, ainda que a relação especial não existisse à data do acto”.

Nas palavras de Rui Pinto Duarte, o objectivo desta inovação é “distinguir negativamente certos créditos, em razão dos seus titulares ou em razão das suas características objectivas”[6].

Sempre houve controvérsia a propósito das diferentes alíneas do artigo 48º[7]. No que concerne em particular à alínea a) do artigo 48º, que trata dos créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, objecta-se que pode ser considerada uma sanção excessiva classificar tais créditos como subordinados, na medida em que essas pessoas, em regra, financiam o devedor com a genuína intenção de o auxiliar. Seria ‘injusto’ penalizá-las com a graduação dos seus créditos em último lugar, depois dos créditos garantidos, dos privilegiados e dos comuns, em clara excepção ao princípio da par conditio creditorum.

Aceita-se que, muitas vezes, são os familiares mais próximos que acodem às dificuldades financeiras do devedor, mas também deve aceitar-se que essa ajuda, sendo ‘ingénua e genuína’, não deveria justificar que ao crédito fosse acoplada uma garantia tão forte como a hipoteca, como sucede no presente caso.  

O artigo 49º concretiza as pessoas especialmente relacionadas com o devedor, fazendo distinção entre as pessoas especialmente relacionadas com o devedor pessoa singular (n.º 1), pessoa colectiva (n.º 2) ou património autónomo (n.º 3).

Têm sido suscitadas várias questões a propósito das relações especiais com o devedor. Uma delas é saber se a enumeração das pessoas especialmente relacionadas tem carácter taxativo ou exemplificativo. Outra é a de saber se basta a simples constatação do vínculo ou situação de que é feita depender a qualificação como pessoa especialmente relacionada com o devedor para que se operem os seus efeitos, ou se essa pessoa em causa pode alegar e provar que tal vínculo ou situação em nada determinou ou condicionou o seu relacionamento com o devedor. Em relação a cada uma destas questões há posições divergentes na doutrina e na jurisprudência, embora sejam preponderantes as teses e decisões dos tribunais que conferem carácter taxativo ao rol de pessoas enunciado no artigo 49º e que vêem nesse vínculo ou situação uma presunção juris et jure do especial relacionamento com o devedor, que, como tal, não pode ser afastada com a alegação da boa fé da pessoa em causa.

Em nenhuma destas vertentes se coloca a questão recursiva.

De facto, o objecto do recurso prende-se com uma outra problemática que, segundo cremos, teve origem no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21.01.2014[8], que serviu de acórdão-fundamento à revista excepcional julgada neste STJ no acórdão de 06.12.2016.

Discute-se, então, se todos os créditos detidos por pessoa especialmente relacionada com o devedor deverão ser classificados como subordinados, ou se apenas deverão ser assim considerados os créditos constituídos num período temporal próximo da abertura do processo de insolvência.  

O acórdão recorrido adoptou o entendimento sufragado no citado acórdão de 06.12.2016, segundo o qual não têm aplicação as alíneas a) do artigo 48º e b) do n.º 1 do artigo 49º quando se mostre que a constituição do crédito está de tal forma afastada no tempo do início do processo de insolvência que, dentro da normalidade das coisas, se trata de dois acontecimentos totalmente independentes, isto é, sem qualquer correlação, afinidade ou implicação entre si, como seria o caso de a hipoteca ter sido registada quase 10 anos antes da sentença de insolvência (situação semelhante à destes autos, uma vez que a hipoteca se mostra registada cerca de 9 anos antes da declaração de insolvência do devedor).

Para chegar a essa conclusão o acórdão de 06.12.2016 procedeu a uma interpretação restritiva da alínea a) do art. 48º e do nº 1 do art. 49º, assim justificada:

“Ora, interessa ter presente, no que respeita à razão de ser (elemento racional ou teleológico da interpretação) das estatuições da alínea a) do art. 48º e do nº 1 do art. 49º, o que consta do preâmbulo do DL nº 53/2004, diploma que aprovou o CIRE. Retira-se daí (ponto 25), na síntese de Maria do Rosário Epifânio (Manual de Direito da Insolvência, 6ª ed., p. 245), que a filosofia subjacente à classificação como subordinados dos créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor deve-se ‘à situação de superioridade informativa sobre a situação do devedor relativamente aos demais credores’, por um lado, e, por outro, ‘ao aproveitamento dessas relações especiais feito pelo próprio devedor para frustrar as finalidades do processo de insolvência’ (à semelhança, aliás, de outros mecanismos previstos no CIRE, como seja a resolução de atos em benefício da massa insolvente).

Sendo esta a razão de ser inerente à estatuição legal, logo se imporá interpretar os citados normativos de modo a abranger na sua previsão apenas (interpretação restritiva) os casos em que se possa estabelecer logica e razoavelmente um nexo temporal que de alguma forma coenvolva ou comprometa a suposta superioridade informativa (ou o aproveitamento feito pelo devedor) com uma futura condição insolvencial. O que é dizer, noutra formulação, só fará sentido considerar para o efeito um “período vizinho da abertura do processo de insolvência” (na expressão dos supra citados autores), e não já um qualquer período sem limite algum. A lei procura subalternizar os créditos daqueles de quem admite que possam ter agido de má-fé ou com ligeireza (estariam em condições de conhecer a situação em que se encontrava o devedor, logo é justo que vejam os seus créditos receberem um tratamento menos favorável) com reporte a uma atual ou futura situação económica deficitária do devedor, e isto só se concebe, com um mínimo de razoabilidade, quando, precisamente, exista alguma proximidade entre uma coisa e outra. A própria lei, no caso previsto na última parte da alínea a) do art. 48º, mostra-se sensível à necessidade de haver limites temporais (dois anos anteriores ao início do processo de insolvência), opção esta que, mutatis mutandis, bem pode aqui ser usada para reforçar a bondade da ideia de que também em caso como o vertente haverá que atender a algum tipo de limite temporal. (O mesmo se poderia dizer a partir das hipóteses da alínea a), 2ª parte e d) do art. 49º).

Entendimento diverso ficou estampado no acórdão deste STJ de 23.05.2019, que o presente relator e a Ex.ª Conselheira 1ª adjunta subscreveram[9].

Dele se retiram as passagens mais impressivas relacionadas com a interpretação das referidas normas:

“A interpretação restritiva preconizada pelo citado aresto, como já salientado, alicerça-se numa preponderância do elemento teleológico decorrente do que o legislador fez consignar no ponto n.º 25 do preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE (DL 53/2004, de 18-03).

Cremos, porém, que tal posicionamento de pendor teleológico mostra-se para além do que é possível ser encontrado (objectivamente) no pensamento legislativo expresso no texto das citadas normas.

Conforme bem nota Baptista Machado, é necessário que no texto falhado se colha pelo menos indirectamente uma alusão àquele sentido que o intérprete venha a acolher como resultado da interpretação. E mesmo quando se socorra de elementos externos o sentido só poderá valer se for possível estabelecer alguma relação entre ele e o texto que se pretende interpretar. Assim, a viabilidade de uma interpretação restritiva alicerçada na finalidade da norma (traduzindo a vontade real do legislador) dependerá, necessariamente, de tal desígnio resultar minimamente do texto legal, situação que, a nosso ver, não ocorre no caso.

Na verdade, a lei mostra-se clara ao consignar que a simples constatação do vínculo familiar faz operar a qualificação de pessoa especialmente relacionada com o devedor, não podendo ser afastada com a demonstração da irrelevância (ou até do benefício) do vínculo (presunção inilidível). Assentou, pois, a lei em certas razões objectivas que entendeu que deveriam ser individualizadas e, nessa medida, indicou-as criteriosamente no artigo 49.º.

Por outro lado, nos casos em que a lei entendeu dar relevância ao aspecto temporal na relação com o devedor insolvente para efeitos de qualificação de pessoas especialmente relacionadas com este, expressamente o indicou (alínea d) do n.º 1, no caso do devedor/pessoa singular; alíneas a) a d) do n.º 2, relativamente ao devedor/pessoa colectiva).

Acresce que as justificações/explicações que o legislador apontou para a classificação destes créditos como subordinados - situação de superioridade informativa sobre a situação do devedor, relativamente aos demais credores (…) combate a uma fonte frequente de frustração das finalidades do processo de insolvência, qual seja a de aproveitamento, por parte do devedor, de relações orgânicas ou de grupo, de parentesco, especial proximidade, dependência ou outras, para praticar actos prejudicais aos credores - redundam, no caso do devedor/pessoa singular, não propriamente no conhecimento mais provável que têm quanto à situação de insolvência daquele (em termos de poderem ter financiado o devedor de forma mais criteriosa ou exercido sobre ele efectiva influência), mas sim, sobretudo, na posição que as mesmas se encontram para poderem actuar de forma prejudicial relativamente aos restantes credores da insolvência, representando, assim, sempre, uma situação de risco na satisfação destes créditos”

Continuamos a pensar que a solução encontrada no acórdão de 23.05.2019, que vimos de citar, é a que melhor se compagina com a letra da lei e as finalidades desta.

Sendo a interpretação literal o primeiro estádio da interpretação, é o texto da lei que forma o substrato de que o intérprete deve partir.

Contudo, no exercício hermenêutico, o intérprete, além de contar com o elemento literal ou gramatical da norma, tem de socorrer-se algumas vezes de outros elementos, factores ou critérios de interpretação para determinar o sentido normativo da norma.

Esses elementos são: a) o histórico, que atende à história da lei [trabalhos preparatórios e occasio legis (circunstâncias sociais ou políticas e económicas em que a lei foi elaborada)]; b) o sistemático, que implica a consideração da unidade e coerência jurídico-sistemáticos; c) o racional ou teleológico, que faz atender ao fim ou objectivo prático que a norma visa realizar (ratio legis).

Uma das situações em que a interpretação restritiva pode ter lugar é, precisamente, quando o princípio jurídico que subjaz à norma, se aplicado sem restrições, ultrapassa o fim para que foi ordenado, ou seja, quando se surpreende uma discordância entre o resultado da interpretação lógica e o da gramatical. Foi essa a circunstância que o acórdão de 06.12.2006 sublinhou, fazendo sobressair o elemento teleológico na construção das normas visadas. Só que este elemento, baseado na situação de superioridade informativa sobre a situação do devedor relativamente aos demais credores, serve de matriz ao complexo das regras dirigidas aos créditos subordinados, mas não pode impor-se como critério decisivo na interpretação daquelas em relação às quais a literalidade e o contexto significativo nele não encontrem total correspondência.

Como salienta Francesco Ferrara[10],  o elemento teleológico não é dos mais fiáveis na interpretação da lei, afirmando esse autor: “Averiguado, porém, qual o escopo prático que a norma se destina a conseguir, não ficamos seguros de que isso constitua o verdadeiro conteúdo da norma. E está aqui a fraqueza do elemento teleológico. Pois os caminhos para se chegar a um certo fim podem ser vários, e desse fim não se deduz qual o caminho preferido (…)”.

Realmente, conforme observado no acórdão de 23.05.2019, a interpretação restritiva adoptada no acórdão de 06.12.2016 teria necessariamente de ter uma correspondência mínima com o texto das normas interpretandas, na medida em que é a letra da lei que delimita a interpretação válida e confere preferência ao sentido que melhor corresponda à expressão textual – cfr. artigo 9º, nºs 2 e 3 do Código Civil. Ora, salvo o devido respeito, esse mínimo de correspondência não se verifica no caso dos autos.

Na verdade, o legislador, no artigo 48º, alínea a), qualificou como créditos subordinados os que são detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, desde que essa relação já existisse aquando da constituição do crédito[11], e por aqueles a quem lhes tenha sido transmitido nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência. Flui com total clareza da segunda parte da norma que o período de dois anos antecedente à abertura do processo de insolvência apenas é dirigido aos actos de transmissão de créditos para terceiros, não existindo o mínimo sinal, na primeira parte, da exigência de que a constituição do crédito de pessoa especialmente relacionada com o devedor tenha de ocorrer num período vizinho da abertura do processo de insolvência. Cremos, por outro lado, que seria grande inépcia do legislador não ter fixado na primeira parte da norma um limite temporal à constituição dos créditos detidos pelas pessoas especialmente relacionadas, se essa fosse a sua intenção. Aliás, sempre que entendeu fazer relevar esse aspecto temporal não deixou de o fazer, como resulta das disposições dos artigos 49º, n.º 1, alíneas a) e d), n.º 2, alíneas a), b) e c), e n.º 3[12].

Este tema ainda não foi debatido na doutrina.

Carvalho Fernandes e João Labareda parecem fazer relevar o factor tempo como condicionante da aplicação da alínea a):

“Quanto à al. a), o seu alcance é complementado com o disposto no artigo seguinte, que define o leque de pessoas que a lei considera especialmente relacionadas com o devedor (…).

O que está aqui em causa é, precisamente, a presunção de os atos praticados pelo insolvente, para mais num período vizinho da abertura do processo de insolvência, com pessoas que, por uma razão ou outra, lhe são próximas, tenderem a beneficiá-las”.

As Relações têm-se defrontado diversas vezes com esta questão, mostrando-se nitidamente maioritária – diríamos até, esmagadora – a corrente jurisprudencial que aponta para a inexistência de um limite temporal para a constituição dos referidos créditos[13].

É também esta a nossa posição. De resto, como argumento adicional, pode ainda dizer-se que, a ter-se como boa a tese que condiciona a aplicação das citadas normas ao factor tempo, por via da interpretação restritiva acima descrita, a apreciação casuística da sua relevância não deixaria de proporcionar uma apreciável dose de incerteza e insegurança jurídica, tal a diversidade de situações equacionáveis.

Concluímos, pois, que os créditos detidos pelas pessoas especialmente relacionadas com o devedor não perdem a natureza de créditos subordinados em função do maior ou menor lapso de tempo que separe a sua constituição do momento em que se iniciou o processo de insolvência.

Como já referimos, no caso dos autos o credor é irmão da insolvente e, nessa medida, a alínea b) do n.º 1 do artigo 49º inclui-o nessa categoria de pessoas especialmente relacionadas com o devedor. Por outro lado, como resulta óbvio, à data da constituição do crédito essa especial relação já existia – artigo 48º, alínea a). 

Deste modo, o crédito detido pelo irmão da insolvente é subordinado [artigo 47º, n.º 4, alínea b) e artigo 48º, alínea a)], o que significa que o seu pagamento tem lugar apenas depois de integralmente pagos os créditos comuns (artigo 177º, n.º 1). Se houver saldo que permita o pagamento aos credores subordinados, este é feito segundo a ordem pela qual eles aparecem indicados no artigo 48º, e na proporção dos respetivos montantes, se a massa se revelar insuficiente para o pagamento integral.

                                                           *

III. DECISÃO

De acordo com o exposto, concede-se a revista e revoga-se o acórdão recorrido, repristinando-se o decidido na 1ª instância.

                                                           *

Custas pelo recorrido.

                                                           *

LISBOA, 26 de Janeiro de 2021

Henrique Araújo (Relator)

O relator atesta, nos termos do artigo 15.º-A do Dec. Lei. n.º 10-A/2020, que o presente acórdão tem voto de conformidade dos Senhores Conselheiros Adjuntos, Maria Olinda Garcia e Ricardo Costa.

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1]      Relator:      Henrique Araújo
       Adjuntos:   Maria Olinda Garcia
                          Ricardo Costa
[2] São deste diploma todas as normas a que haja de fazer-se referência, sem menção contrária.
[3] Proferido no processo n.º 1517/14.5T8STS-B.P1.S1 (Conselheira Graça Amaral), consultável em www.dgsi.pt.
[4] Proferido no processo n.º 1223/13.8TBPFR-C.P1.S1 (Conselheiro José Rainho), consultável no mesmo endereço.
[5] Em 01.09.2020 entrou em vigor a nova Ley Concursal, aprovada pelo Real Decreto Legislativo 1/2020, de 5 de Maio.
[6] “Classificação dos Créditos sobre a Massa Insolvente no Projecto de Código da Insolvência e Recuperação de Empresas”, em “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”, Ministério da Justiça, 2004, páginas 55/56.
[7] Como nos dão conta Adriana Ferreira de Almeida, Diana Trindade e Flávia Canastro, “Estudos de Direito da Insolvência”, Volume II, 2019, página 27.

[8] No processo n.º 1365/13.0TBLRA.C1, (Desembargador Jacinto Meca), disponível em www.dgsi.pt, em cujos pontos I. e II. do sumário se pode ler: I - Verificando-se existir uma especial relação entre credores e devedores, a mesma será totalmente alheia à constituição do um crédito reclamado se este tiver sido constituído em data bastante anterior à declaração de insolvência ou se tiver por fonte uma decisão judicial elaborada e transitada em data muito anterior à declaração de insolvência, pelo que não é de aplicar a alínea b) do nº 4 do artigo 47º ex vi alínea a) do artigo 48º ambos do CIRE. II - Quando tal acontece o crédito deve ser qualificado de comum e não de subordinado.
[9] O mesmo sucedendo nos acórdãos desta secção de 27.10.2020, no processo n.º 3030/18.2T8AVR-A.P1.S2 (Conselheiro Raimundo Queirós), também subscrito pelo ora Ex.º Conselheiro 2º adjunto, e de 20.11.2020, no processo n.º 4542/19.6T8VNG-B.P1.S1 (Conselheira Ana Paula Boularot).
[10] “Interpretação e Aplicação das Leis”, 3ª edição, página 141.
[11] Foi esta a única condição imposta.
[12] Além – claro está – da parte final da alínea a) do artigo 48º.

[13] Acórdão da Relação de Évora de 12.03.2015, no processo n.º 1081/13.2TBVNO-A.E1 (Desembargador Mário Serrano), Acórdão da Relação de Coimbra de 20.09.2016, no processo n.º 49/15.7TBLRA.C1 (Desembargadora Sílvia Pires), Acórdão da Relação do Porto de 06.03.2018, no processo n.º 1517/14.5T8STS-B.P1 (Desembargador Vieira e Cunha), Acórdão da Relação de Lisboa de 12.09.2019, no processo n.º 6058/16.3T8FNC-F.L2-6 (Desembargadora Gabriela de Fátima Marques), Acórdão da Relação de Guimarães de 13.06.2019, no processo n.º 1960/18.0T8VNF-C.G1 (Desembargador Paulo Reis) e Acórdão da Relação de Coimbra de 17.11.2020, no processo n.º 551/19.3T8GRD-B.C1 (Desembargadora Maria Catarina Gonçalves).