Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
310/09.1TBVLN.G1. S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÂO
Relator: SILVA GONÇALVES
Descritores: BALDIOS
CONCEITO JURÍDICO
USUCAPIÃO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 06/19/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA

Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS - DIREITOS REAIS / USUCAPIÃO / DIREITO DE PROPRIEDADE.
Doutrina:
- Antunes Varela, Obrigações, pp. 514 /516.
- Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, III, p. 145.
- J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa”, Anotada, I, p. 988.
- Jaime Galheiro, Comentário à Nova Lei dos Baldios, pp.53, 55.
- Parecer n.º 6/99, de 24/06/1999, publicado no DR, II Série, n.º 274, de 24/11/1999.
- Vaz Serra, Anteprojecto do Código Civil.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 334.º, 1287.º,1316.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 82.º.
LEI DOS BALDIOS (LEI N.º 68/93, DE 4/9, ALTERADO PELA LEI Nº 89/97, DE 30 DE JULHO): - ARTIGOS 1.º, 3.º, 4.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 16/11/2006, EM WWW.DGSI.PT
-DE 4/12/2007, EM WWW.DGSI.PT
-DE 16/06/2009, PROCESSO N.º 47/2000.S1, DE 10/12/2009, PROCESSO N.º 313/04.2TBMIR.C1.S1. E DE 25/02/2010, PROCESSO N.º 782/2001.S1, CITADOS NO ACÓRDÃO DE 15.09.2011, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
1. Baldios são bens comunitários afectos à satisfação das necessidades primárias dos habitantes de uma circunscrição administrativa ou parte dela e cuja propriedade pertence à “comunidade” formada pelos utentes de tais terrenos que os receberam dos seus antepassados, para, usando-os de acordo com as necessidades e apetências, os transmitirem intactos aos vindouros;

2. Hodiernamente, face ao que está descrito no art.º 4.º da Nova Lei dos Baldios, os baldios não se podem adquirir por usucapião;

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

O “AA” intentou a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra “BB, S.A.” ora incorporada na “CC, S.A.”, com sede no Ed. …, Praça do …, 4900-432, Viana do Castelo, pedindo:

a) Se declare que é baldio da freguesia de …, do concelho de Valença, o terreno localizado no lugar da …, que confronta do norte com a estrada nacional, do nascente com caminho, do sul com DD e outros e do poente com a estrada nacional;

b) A condenação da ré a reconhecer esse direito da autora sobre essa parcela de terreno;

c) A condenação da ré a, no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, a retirar do dito terreno tudo aquilo com que o ocupou, maxime a tubaria e depósito que aí colocou, restituindo-o à sua primitiva feição.

Alegou, para tanto e em síntese, que entre os terrenos baldios da freguesia de …, conta-se o que se localiza no lugar da …, e confronta do norte com a estrada nacional (a de … -Viana do Castelo), do nascente com caminho, do sul com DD e outros, e do poente com a estrada nacional (a de … - Paredes de Coura); em meados de Maio de 2008, a ré, sem autorização da Assembleia de Compartes, fez entrar, neste terreno, máquinas, ferramentas e veículos pesados de transporte de terras e materiais e trabalhadores a seu mando, nele procederam à abertura de uma vala, onde assentaram tubaria que desemboca num depósito em cimento armado, construído sobre alicerce e em escavação aberta por esses mesmos trabalhadores.

A ré contestou, excepcionando a incompetência absoluta do Tribunal Judicial de Valença para julgar a presente acção, considerando materialmente competentes para o efeito os Tribunais Administrativos.

Impugnou parcialmente os factos alegados pelo autor, sustentando que a parcela de terreno em causa está integrada no domínio público e sob a administração da Junta de Freguesia de … e que praticou os sobreditos factos com a autorização desta junta. 

Concluiu pela sua absolvição da instância e pela improcedência do pedido formulado pelo autor.

A autora replicou, impugnando a matéria de excepção vertida na contestação e concluindo como na petição inicial.

  

Foi proferido despacho que julgou improcedente a excepção dilatória da incompetência absoluta do tribunal arguida pela ré.

 

Proferido despacho saneador, foram elaborados os factos assentes e a base instrutória.

Procedeu-se a julgamento com a observância das formalidades legais, decidindo-se a matéria de facto pela forma constante do despacho de fls. 248 a 253.

A final foi proferida sentença que julgou totalmente procedente, por provada, a presente acção e, em consequência:

a) Reconheceu e declarou que o prédio que se localiza no lugar da …, e confronta do norte com a estrada nacional (a de …-Viana do Castelo), do nascente com caminho, do sul com DD e outros, e do poente com a estrada nacional (a de … - Paredes de Coura), é baldio da freguesia de ....

b) Condenou a ré “BB, S.A.” ora incorporada na “CC, S.A.”, a retirar do dito terreno tudo aquilo com que o ocupou, ou seja, a tubaria e depósito que aí colocou, restituindo-o à sua primitiva feição, no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da sentença.

As custas ficaram a cargo da ré.

Não se conformando com esta decisão, dela apelou a ré para a Relação de Guimarães que, por acórdão de 9 de abril de 2013 (cfr. fls.405 a 423), julgando parcialmente procedente a apelação, consequentemente, decidiu assim:

1). Altera-se a decisão sobre a matéria de facto no que respeita às respostas dadas aos artigos 2º, 9º e 10º da base instrutória, passando os factos supra descritos sob os nºs 2, 8 e 9 dos factos dados como assentes na sentença recorrida a ter a seguinte redacção: 
2) O terreno referido em A) esteve durante mais de 300 anos afecto ao uso e fruição das pessoas da freguesia de …, que entre si organizavam o aproveitamento que do mesmo retiravam (quesito 2).

8) Algumas pessoas da freguesia de …, nela moradores, foram autorizadas a proceder à arborização, levando a cabo plantações de árvores em parcelas do dito terreno (quesito 9º).
9) Essa autorização era condicionada (quesito 10).
2. Em tudo o mais mantém-se a douta sentença recorrida.

        

Irresignada, recorre para este Supremo Tribunal a ré “CC, S.A.” - recurso de revista excecional admitido por acórdão de 10.4.2014 (cfr. fls.511 a 517) - alegando e concluindo pelo modo seguinte:

I. O presente recurso de revista vem interposto na firme convicção de que, dada a prova produzida nestes autos, não estão reunidos os pressupostos exigíveis para o reconhecimento e declaração de que o terreno em apreço é baldio da Freguesia de … nem tampouco para a condenação da Recorrente.

II. A admissão do presente recurso de revista, e consequente revogação da decisão recorrida, revelam-se manifestamente necessárias para a salvaguarda de interesses de particular relevância social.

III. Não existe sobreposição decisória entre o Acórdão recorrido e a sentença proferido pelo Tribunal Judicial de Valença.

IV. A decisão do Tribunal da Relação de Guimarães altera a decisão de facto proferida em primeira instância e julga parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pela Recorrente.

V. Não existe qualquer dupla conformidade no caso em apreço, motivo pelo qual estamos no âmbito da chamada revista regra, prevista no n.º l do artigo 721.º do CPC, por oposição à revista excepcional plasmada no artigo 721.º-A do CPC.

VI. Por este motivo, é admissível o recurso de revista regra que se interpõe.

VII. Está preenchido o requisito de admissibilidade de recurso de revista excepcional preceituado na alínea b) do n.º l e na alínea b) do n.º 2 do artigo 721.º-A do CPC.

VIII. É importante para a salvaguarda de interesses de particular relevância social revogar a decisão contida no Acórdão em crise na parte em que a mesma condenou a Recorrente a, no prazo de 30 dias após o trânsito em julgado, retirar as condutas que implantou no terreno sito no Lugar da …, Freguesia de …, Concelho de Valença, restituindo o mesmo à sua primitiva feição.

IX. A execução da decisão contida na Sentença de fls. e no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de fls. produzirá sérios prejuízos no interesse público e terá fortes repercussões de índole social, na medida em que implicará o corte do fornecimento de água em todo o Município de Valença durante largos meses.

X. Todos os habitantes deste Município - e demais instituições - ficarão sem o fornecimento de água potável nas suas habitações durante todo o período em que durarem as obras de retirada das condutas existentes no terreno em apreço e os procedimentos necessários à implantação de novas condutas num novo lugar (elaboração de novos projectos, obtenção das autorizações administrativas necessárias, contratação dos empreiteiros e demais entidades executantes e realização das obras propriamente ditas).

XI. Estão em causa interesses de particular relevância social subsumíveis ao disposto na alínea b) do n.º l do artigo 721.º-A do CPC.

XII. O presente recurso contende com os princípios de assento constitucional da salvaguarda do interesse público e da proporcionalidade.

XIII. Os efeitos cuja produção se visa evitar repercutem-se para além da esfera individual da Recorrente, e têm consequências comunitárias de grande relevo.

XIV. O corte do fornecimento de água e a duração muito provavelmente extensa deste período de corte causará alarme social e afectará, de forma gravosa, a vida e o quotidiano de todos os habitantes do Município de Valença.

XV. O Concelho de Valença não está preparado para suprir esta falta.

XVI. O reservatório existente no Concelho não é apto a suprir a necessidade de fornecimento de água, uma vez que a água no mesmo existente - dado o consumo médio dos habitantes do Município - apenas duraria algumas horas.

XVII. A suspensão do fornecimento de água canalizada durante um período tão extenso causará um dano imensurável na vida individual de cada habitante do Município.

XVIII. E afectará, de forma gravosa e eventualmente irreparável, a situação financeira de múltiplos estabelecimentos comerciais do Município - clínicas médicas, cabeleireiros, cafés, restaurantes, etc. - os quais, por razões de higiene e salubridade, poderão ter de fechar se virem interrompido o fornecimento de água canalizada, bem como dos hospitais e restantes estabelecimentos de saúde!

XIX. A credibilidade do direito alegado pelo Recorrido e que a decisão em crise visou proteger, será posta em causa pelo invulgar impacto na situação da vida que a norma ou normas jurídicas em apreço visam regular.

XX. O interesse particular comunitário em apreço nestes autos assume tal importância que ultrapassa os limites do caso concreto.

XXI. A procedência da segunda parte do pedido formulado pelo Recorrido - condenação da Ré em retirar toda a tubaria implantada no terreno em apreço, restituindo-o à sua feição original no prazo de 30 dias após o trânsito em julgado - lesará de forma irreparável - como sucederá com os estabelecimentos comerciais que por certo não poderão laborar sem o fornecimento de água - os interesses dos habitantes em dispor de abastecimento de água canalizada em suas habitações.

XXII. A retirada das condutas e o corte do abastecimento de água no Município causará alarme social e minará a tranquilidade de toda a população do Município de Valença.

XXIII. E consubstancia uma tutela de tal desproporcionada que culmina numa colisão da decisão jurídica em crise com os valores sócio-culturais dominantes que a deveriam orientar: tutela dos direitos e interesses dos habitantes da Freguesia de … e do próprio Município de Valença.
XXIV. É manifesto que nos encontramos perante um caso em que estão em causa interesses de particular relevância social.

XXV. É forçoso concluir pela admissibilidade do recurso de revista excepcional em apreço, cuja apreciação é necessária para salvaguardar os aludidos interesses sociais e prevenir o alarme social e os fortes sentimentos de inquietação que a sua execução irá causar junto da população afectada.

XXVI. Para que um terreno possa ser considerado como Baldio, é necessário que o mesmo seja, cumulativamente, possuído e gerido pela comunidade local.

XXVII. O Recorrido não provou a posse sobre o terreno em apreço nestes autos.

XXVIII. Há cerca de 80 anos que não existe, no terreno em apreço, qualquer tipo de apascentação e gados nem recolha de lenhas e matos, nem é o mesmo afecto a qualquer outra finalidade de satisfação ou apoio social.

XXIX. Há vários anos que o terreno serve para aparcamento das viaturas dos clientes que se dirigem aos dois restaurantes existentes nas imediações e serve interesses privados dos respectivos proprietários e não qualquer interesse colectivo dos moradores.

XXX. Sem que o Recorrido, enquanto entidade representativa e alegadamente gestora do mesmo, se tenha oposto.

XXXI. A Junta de Freguesia tem exercido actos de posse sobre o mesmo publica, reiterada e sucessivamente ao longo dos anos,

XXXII. À data de constituição do Recorrido, a posse história sobre este terreno pelas pessoas e habitantes da freguesia havia cessado.

XXXIII. É forçoso concluir que o Recorrido não logrou provar que o terreno em apreço era possuído pela comunidade local.

XXXIV. O terreno em apreço nestes autos não configura um baldio da Freguesia de ….

XXXV. A utilização do terreno em apreço pelas pessoas e habitantes da freguesia e arredores cessou há mais de 50 anos.

XXXVI. A utilização pelas pessoas e habitantes da freguesia e arredores cessou no início da década de 1960, cerca de 33 anos antes da aprovação da Lei dos Baldios.

XXXVII. Durante mais de 20 e 30 anos a Junta de Freguesia praticou actos de gestão e de posse sobre o terreno em apreço como se fosse proprietária do mesmo.                                                   

XXXVIII. Sem oposição de quem quer que fosse.

XXXIX. O que é suficiente para fundamentar a respectiva aquisição por usucapião, nos termos do disposto nos artigos 1287.º e segs. do Código Civil.

XL. À data de constituição do Recorrido, o terreno em apreço não consubstanciava terreno baldio da Freguesia de …, fosse porque nunca o havia sido, fosse porque nessa data - e há muitos anos - apenas a Junta de Freguesia praticava quaisquer actos de posse e gestão sobre o mesmo.

XLI. Conclusão contrária - como a que parece resultar do acórdão recorrido - redunda numa má aplicação do direito, fruto de um erro grosseiro na apreciação não só do teor da norma aplicável como, também, do caso concreto.

XLII. O presente recurso de revista deve ser admitido e julgado totalmente procedente em conformidade com as conclusões de seguida formuladas pela Recorrente.

XLIII. E improcedente a acção intentada pelo Recorrido,

XLIV. O terreno em apreço nunca foi alvo de qualquer acto de gestão por parte do Recorrido.

XLV. O Recorrido nunca dispôs de um plano de utilização aprovado para o terreno em apreço dos 17 anos decorridos já desde a sua constituição.

XLVI. A falta de actos de gestão continua a suceder após a intervenção da Recorrente.

XLVII. A intervenção da Recorrente teve lugar no subsolo e deixou à superfície uma vasta área sobrante que foi ocupada, posteriormente, com um parque de estacionamento alcatroado construído pela Junta de Freguesia.

XLVIII. Sem audição prévia do Recorrido - Conselho Directivo dos Baldios de …,

XLIX. Sem o pagamento, ao mesmo, de qualquer indemnização,

L. E sem qualquer oposição da sua parte,

LI. Dos factos dados como provados, pelos Tribunais a quo, resulta clara a convicção de que o Recorrido, naquilo que à gestão do terreno objecto destes autos concerne, não se encontrava organizado nem praticava quaisquer actos de gestão.

LII. Bem como que, a Junta de Freguesia era a única entidade que - há mais de 50 anos - praticava actos de gestão sobre o terreno em apreço.

 LIII. É forçoso concluir que o Recorrido não provou que o terreno em apreço - sito no Lugar da …, Freguesia de …, Concelho de Valença, que confronta de norte com a estrada nacional, de nascente com caminho, de sul com DD e outros e de poente com a estrada nacional - era gerido pela comunidade local,

LIV. O terreno em apreço não configura um baldio da Freguesia de …, mas sim um terreno da propriedade da Freguesia.

LV. Conclusão contrária - como a que parece resultar do acórdão recorrido -sempre redunda numa má aplicação do direito, fruto de um erro grosseiro na apreciação não só do teor da norma aplicável como, também, do caso concreto.

LVI. Deve o presente recurso de revista ser admitido e julgado totalmente procedente em conformidade com as conclusões de seguida formuladas pela Recorrente.

LVII. Independentemente da falta de declaração judicial até à presente data nesse sentido, a verdade é que, face à factualidade apurada nestes autos, resulta mais do que provado que a situação em apreço configura um caso de abandono ostensivo pelo Recorrido que não pode deixar de ser ponderado por este Tribunal Superior.

LVIII. Deve improceder a segunda parte do pedido do Recorrido, condenação da Recorrente em retirar as condutas implantadas no terreno em apreço no prazo de 30 dias após o trânsito em julgado.

LIX. A Recorrente deu início às obras de implantação das condutas para ligação dos sistemas em apreço após ter obtido autorização para o efeito junto da Câmara Municipal.

LX. A obra executada pela Recorrente é essencial para o abastecimento de água ao concelho de Valença.

LXI. A ordem de retirada da conduta de água enterrada no terreno em apreço e das caixas de derivação e entrega levará ao corte da água em todo o Município de Valença, no qual inclui a Freguesia de …, causando um dano sério ao interesse público.

LXII. Esse corte, e subsequente suspensão do fornecimento de água canalizada, manter-se-à durante o estudo de uma nova solução construtiva e da construção e implementação da mesma, o que poderá durar um ano.

LXIII. Dado o elevado consumo do Concelho no qual se inclui a Freguesia de …, o reservatório existente apenas durará umas horas!

LXIV. O corte do fornecimento de água e a duração muito provavelmente extensa deste período de corte causará alarme social e afectará, de forma gravosa, a vida e o quotidiano de todos os habitantes do Município de Valença.

LXV. Que ficarão sem o fornecimento de água canalizada em suas habitações durante largos meses - previsivelmente um ano - num Concelho que não está preparado para suprir esta falta.

LXVI. Nos tempos actuais, a suspensão do fornecimento de água canalizada durante um período tão extenso causará um dano imensurável na vida individual de cada habitante do Município.

LXVII. E afectará, de forma gravosa e eventualmente irreparável, a situação financeira de múltiplos estabelecimentos comerciais do Município - clínicas médicas, cabeleireiros, cafés, restaurantes, etc. - os quais, por razões de higiene e salubridade, terão de fechar se virem interrompido o fornecimento de água canalizada, e dos hospitais e restantes estabelecimentos de saúde!

LXVIII. No presente caso o interesse particular comunitário ultrapassa os limites do caso concreto.

LXIX. A procedência da segunda parte do pedido formulado pelo Recorrido - condenação da Ré em retirar toda a tubaria implantada no terreno em apreço, restituindo-o à sua feição original no prazo de 30 dias após o trânsito em julgado - lesará, em alguns casos de forma irreparável, - como sucederá com os estabelecimentos comerciais que por certo não poderão laborar sem fornecimento de água - os interesses dos habitantes em dispor de abastecimento de água canalizada em suas habitações.

LXX. Esta situação causará alarme social e minará a tranquilidade de toda a população do Município de Valença.

LXXI. E consubstancia uma tutela de tal forma desproporcionada que culmina numa colisão da decisão jurídica em crise com os valores sócio-culturais dominantes que a deveriam orientar: tutela dos direitos e interesses dos habitantes da Freguesia de … e do próprio Município de Valença.

LXXII. A manutenção da decisão constante do acórdão recorrido - nos termos da qual deve a Recorrente retirar as condutas implantadas no terreno em apreço - redundará num prejuízo sério e potencialmente irreparável dos interesses dos habitantes do Concelho de Valença à que acima vem por nós aventada bem como numa má aplicação do direito.

LXXIII. Deve ser revogado o Acórdão em crise nessa parte.

LXXIV. A criação da figura dos baldios - conceito de direito - baseou-se em terrenos comunitariamente possuídos (usados, fruídos) e geridos pelos habitantes de uma determinada comunidade local com a finalidade de satisfação de necessidades sociais.

LXXV. A finalidade subjacente à criação deste conceito é a de denominar, e regular, o regime jurídico de terrenos submetidos à satisfação de necessidades sociais de uma determinada comunidade local.

LXXVI. A retirada das condutas colocadas pela Recorrente no terreno em apreço implicará um prejuízo sério e grave para os habitantes da Freguesia de …, que ficarão sem abastecimento de água durante um longo período de tempo.

LXXVII. O direito de posse, uso, fruição e gestão do terreno em apreço está, com a presente acção, a ser utilizado para uma finalidade contrária daquela que esteve subjacente à sua atribuição.

LXXVIII. A procedência da pretensão do Recorrido em ver retiradas as condutas implantadas pela Recorrente conduzirá a uma denegação da satisfação das necessidades sociais dos habitantes da Freguesia!

LXXIX. A execução do Acórdão proferido pelo Tribunal a quo, na sua segunda parte, implicará um enorme prejuízo para os habitantes do Concelho de Valença e da Freguesia de …, criará novas necessidades sociais e recusará a satisfação das já existentes.

LXXX. A execução do acórdão em crise implicará a retirada das condutas de água, ou seja, cortar todo o fornecimento de água potável ao concelho de Valença, durante, pelo menos, um ano!

LXXXI. Tanto mais que o terreno em causa é, como resultou provado, um parque de estacionamento de um restaurante privado!

LXXXII. Sendo certo que a colocação das condutas apenas lhe retira lugar para dois carros.

LXXXIII.O fornecimento de água potável ao concelho de Valença não é, nem pode ser, socialmente menos relevante que dois lugares de estacionamento de um restaurante.

LXXXIV. Só por manifesto abuso de direito é que se poderá pensar ou defender o contrário.

LXXXV. Em clara e manifesta contradição com o espírito subjacente à figura jurídica dos Baldios.

LXXXVI. Não poderá o Tribunal ad quem deixar de relevar a figura do abuso de direito, a qual sendo de conhecimento oficioso, deveria ter sido atentada pelo Tribunal a quo em todas as suas vertentes e não apenas enquanto venire contra factum proprium.

LXXXVII. O exercício abusivo de um direito pode traduzir-se num exercício que viola os limites impostos pelos bons costumes, e/ou pela boa-fé - situação onde se se enquadrará condutas do tipo venire contra factum proprium - e, ainda, que é contrário ao fim social ou económico desse direito.

LXXXVIII. O Recorrido, ao tentar fazer valer o direito de uso, fruição e gestão que alegadamente lhe assiste, está a contrariar a finalidade subjacente à sua concessão, satisfação de necessidades sociais, e a prejudicar os interesses da sua colectividade.

LXXXIX. O Recorrido ao demandar judicialmente a Recorrente pedindo a sua condenação na retirada das condutas implantadas no subsolo do terreno em apreço nestes autos, e ao ser perfeito conhecedor das consequências, para os habitantes da Freguesia, de tal retirada, está a infringir a ordem pública e, como tal, a fazer um exercício abusivo do seu direito.

XC. É a conduta do Recorrido abusiva, porque estranha à finalidade subjacente à atribuição do direito que lhe assiste, e ilícita, nos termos do disposto no artigo 334.º do CC.

XCI. Deve o presente recurso ser julgado provado, por procedente, revogada a sentença recorrida, e, no seguimento, ser a Recorrente absolvida do pedido.

XCII. A restituição do terreno em apreço à sua feição original não é algo que dependa apenas da Recorrente.

XCIII. Na área sobrante foi construído um parque de estacionamento, obra que sempre impedirá que o terreno seja restituído à sua feição original.

XCIV. A manutenção da decisão constante do acórdão recorrido - nos termos da qual deve a Recorrente retirar as condutas implantadas no terreno em apreço - redundará num prejuízo sério e potencialmente irreparável dos interesses dos habitantes do Concelho de Valença à que acima vem por nós aventada bem como numa má aplicação do direito.

XCV. Deve o presente recurso de revista ser admitido e julgado totalmente procedente em conformidade com as conclusões de seguida formuladas pela Recorrente.

XCVI. E, assim, ser o pedido formulado pelo Recorrido de condenação da Recorrente na retirada das condutas implantadas no prazo de 30 dias após o trânsito em julgado, restituindo o terreno objecto de intervenção à sua feição original, julgado totalmente improcedente.

XCVII. E, no seguimento, ser a Recorrente absolvida do mesmo.

Termina pedindo que seja revogando o acórdão recorrido e seja julgado totalmente improcedente o peticionado pelo recorrido “AA” ou, então, que seja revogada a decisão recorrida na parte em que condena a recorrente a retirar as condutas implantadas no terreno sito no Lugar da …, Freguesia de …, Concelho de Valença, que confronta de norte com a estrada nacional, de nascente com caminho, de sul com DD e outros e de poente com a estrada nacional no prazo de 30 dias após o trânsito em julgado.

Contra-alegou o recorrido “AA” pedindo a manutenção do julgado.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

O Tribunal da 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:
Os factos dados como provados na 1ª instância são os seguintes:

A) Em meados de Maio do ano de 2008, no terreno que se localiza no lugar da …, e confronta do norte com a estrada nacional (a de …-Viana do Castelo), do nascente com caminho, do sul com DD e outros, e do poente com a estrada nacional (a de … - Paredes de Coura), a ré começou por fazer entrar máquinas diversas, ferramentas várias, e veículos pesados de transporte de terras e materiais. 

B) De seguida, trabalhadores a seu mando, levaram a cabo a abertura de uma profunda vala, onde, de imediato, assentaram tubaria, que, acto contínuo, cobriram com terra.

C) Tubaria essa que desemboca num depósito em cimento armado, construído sobre alicerce, assente em escavação aberta por esses mesmos trabalhadores. Depósito que também, de imediato, cobriram com terra, e que se eleva acima do terreno em questão. 

1) Desde 20 de Abril de 1996 que os moradores da aludida freguesia de …, do concelho de Valença, estão organizados, para o exercício dos actos de representação, disposição, gestão e fiscalização relativos aos correspondentes baldios, através de uma Assembleia de Compartes, um Conselho Directivo e uma Comissão de Fiscalização. - Quesito 1º

2) O terreno referido em A) esteve, desde sempre, afecto ao uso e fruição das pessoas da freguesia de …, que entre si organizavam o aproveitamento que do mesmo retiravam. - Quesito 2º

3) Reiteradamente se aproveitando de todas as suas utilidades, apascentando os gados… - Quesito 3º

4) Recolhendo lenhas e matos. - Quesito 4º

5) Levando a cabo o abate e venda de árvores. - Quesito 5º

6) Aplicando as importâncias realizadas em obras necessárias, tais como melhoramentos de caminhos. - Quesito 6º

7) Aí permanecendo e circulando livremente. - Quesito 7º

8) Entre as pessoas da freguesia que nisso tivessem interesse eram distribuídos e destinados lotes ou talhões de terreno, a fim de procederam à sua arborização e fazerem exploração de matos e lenhas. - Quesito 9º

9) Essa exploração era sempre condicionada aos interesses da comunidade, que se sobrepunham ao de cada um dos habitantes da freguesia, e poderia levar a alterações no destino a dar a esses terrenos. - Quesito 10º

10) Todos esses actos foram sempre praticados à vista de toda a gente. -Quesito 11º.

11) Actuavam convictos de que o faziam sobre terreno integrado na freguesia de … e destinado ao uso e fruição das pessoas e moradores que deles necessitassem. - Quesito 12º

12) Sem oposição de quem quer que fosse. - Quesito 13º

13) A abertura referendada em B) ocorreu desde o extremo nascente até próximo do extremo poente do mencionado terreno. - Quesito 15º

14) Sendo que o depósito referendado em C) se localiza junto da esquina norte-poente do dito terreno. - Quesito 16º

A Relação, todavia, alterou a decisão sobre a matéria de facto no que respeita às respostas dadas aos artigos 2.º, 9.º e 10.º da base instrutória, passando os factos supra descritos sob os n.º s 2, 8 e 9 dos factos dados como assentes na sentença recorrida a ter a seguinte redacção: 
2) O terreno referido em A) esteve durante mais de 300 anos afecto ao uso e fruição das pessoas da freguesia de …, que entre si organizavam o aproveitamento que do mesmo retiravam (quesito 2.º).

8) Algumas pessoas da freguesia de S. Pedro da Torre, nela moradores, foram autorizadas a proceder à arborização, levando a cabo plantações de árvores em parcelas do dito terreno (quesito 9.º).
9) Essa autorização era condicionada (quesito 10).


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Circunscritas ao mérito do recurso de revista excecional admitido por acórdão deste STJ de 10.4.2014 (cfr. fls.511 a 517), são estas as questões essenciais postas no recurso:

1. Saber se estão verificados os pressupostos legalmente exigíveis para que se possa reconhecer que é baldio o terreno sito no Lugar da …, Freguesia de …, Concelho de Valença, que confronta de norte com a estrada nacional, de nascente com caminho, de sul com DD e outros e de poente com a estrada apreço da Freguesia de …;

2. Averiguar se o recorrido, ao ser conhecedor das consequências para os habitantes da Freguesia da retirada das condutas implantadas no subsolo do terreno em apreço, está a infringir a ordem pública e, como tal, a fazer um exercício abusivo do seu direito, nos termos do disposto no artigo 334.º do C. Civil.


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I. A dificuldade da caracterização conceitual da figura jurídica denominada de “baldios” vem já da Idade Média, altura em que se designava como um terreno integrado num bem colectivo (propriedade comunal ou comunitária).

   

No Código Civil de 1867 (Código de Seabra) os terrenos baldios passaram a estar compreendidos no domínio comum, por contraposição ao domínio público ou particular (artigos 379.º e 381.º).

 “Não obstante esta classificação tripartida, na vigência desse Código, muitos autores sustentaram que os baldios eram propriedade (pública ou privada) das autarquias locais, enquanto outros defenderam que constituíam propriedade comunal dos vizinhos de certa circunscrição ou parte dela” (Parecer n.º 6/99, de 24/06/1999, publicado no DR, II Série, n.º 274, de 24/11/1999); mas havia já quem entendesse que os baldios também podiam ser adquiridos, mediante a prescrição aquisitiva ou positiva (regulada nos artigos 517.º) “para favorecer o incremento da produção agrícola” (Prof. Dr. Cunha Gonçalves; Tratado de Direito Civil; III, página 145).

     

O art.º 1.º da Lei dos Baldios (Decretos-Lei n.º39/76, de 19/1) definiu os baldios como “terrenos comunitariamente usados e fruídos por moradores de determinada freguesia ou freguesias ou parte delas” e o art.º 1.º da atual Nova Lei dos Baldios (Lei n.º 68/93, de 4/9) consigna que “são baldios os terrenos possuídos e geridos por comunidades locais”, explicitando que “comunidade local é o universo dos compartes” e que “são compartes os moradores de uma ou mais freguesias ou parte delas que, segundo os usos e costumes, têm direito ao uso e fruição do baldio”.

Não há diferença de vulto a assinalar quanto à conceção que ambos estes diplomas legislativos conferem aos baldios - daqui resulta que, apesar da formulação algo diferente do n.º 1 do art.º 1.º desta Lei, relativamente ao do art.º 1.º da Lei anterior, quer-nos parecer que ambos querem dizer a mesma coisa, isto é: são baldios os terrenos comunitariamente possuídos (usados, fruídos) e geridos pelos habitantes de determinada comunidade local, ou mais rigorosamente, “baldios são bens comunitários afectos à satisfação das necessidades primárias dos habitantes de uma circunscrição administrativa ou parte dela e cuja propriedade pertence à “comunidade” formada pelos utentes de tais terrenos que os receberam dos seus antepassados, para, usando-os de acordo com as necessidades e apetências, os transmitirem intactos aos vindouros” (Jaime Galheiro; Comentário à Nova Lei dos Baldios; pág.53).

Tomando o disposto nos artigos 1.º e 3.º da Nova Lei dos Baldios (Lei n.º 68/93, de 4/9, alterado pela Lei nº 89/97, de 30 de Julho) e a proposição compreendida no art.º 82.º da nossa Lei Fundamental, poderemos definir baldios como “terrenos possuídos e geridos por comunidades locais " (n.º1), definidas como " o universo dos compartes " (n.º 2), os quais podem ser os moradores de uma ou mais freguesias "ou parte delas que segundo os usos e costumes, têm direito ao uso e fruição dos baldios" (n.º 3) [1], ou, dito de outro modo, os baldios são terrenos não individualmente apropriados, que, desde tempos imemoriais, servem de logradouro comum dos vizinhos de uma povoação, ou de um grupo de povoações, com vista à satisfação de certas necessidades individuais, por exemplo, apascentação do gado, a monte ou pastoreado, recolha de matos e lenhas, apanha de estrume, fabrico de carvão de sobro, extracção de barro ou outras fruições de natureza agrícola, silvícola, silvo-pastoril, proveitos análogos. [2]

O Código Administrativo de 1940 veio consagrar expressamente, no parágrafo único do seu artigo 388.º, a prescritibilidade dos baldios, deste normativo legal resultando a sua usucapibilidade, com a consequente admissibilidade de aquisição do respectivo domínio por usucapião, em termos que configuram uma verdadeira interpretação autêntica do direito anterior, considerando-se, por isso, de aplicação retroactiva, nos termos do artigo 8.º do Código Civil de Seabra (Ac. STJ de 16/06/2009, de 10/12/2009).

De qualquer modo havemos de reconhecer que, hodiernamente, face ao que está descrito no art.º 4.º da Nova Lei dos Baldios, os baldios não se podem adquirir por usucapião - a posse só se pode exercer sobre coisa ou direito que se pode adquirir por usucapião (arts. 1287.º e 1316, ambos do C.Civil); os baldios, pela sua própria natureza, são insusceptíveis de ser adquiridos por usucapião ou outro qualquer título, por se encontrarem fora do comércio jurídico (art.º 4.º da Lei n.º 68/93 e, antes, art.º 2.º do Dec. Lei n.º 39/76) - Jaime Galheiro; Comentário à Nova Lei dos Baldios; pág.55; os cidadãos integrantes das comunidades locais não podem dispor individualmente do direito de propriedade sobre os terrenos baldios nem os podem adquirir por via da usucapião (artigos 1º, nº 1 e 4º, nº 1, da Lei dos Baldios), pois que a sua usufruição individual ou colectiva limita-se à apascentação de gados, à recolha de lenhas ou de matos, ao cultivo ou outras utilizações, nomeadamente de natureza agrícola, silvícola, silvo-pastoril ou apícola.[3]

II.
Argumenta a recorrente no sentido de que se não pode reconhecer como “baldio” o terreno onde a ré procedeu aos trabalhos de abertura de uma vala, aí fez assentaram tubaria e, acto contínuo, cobriu com terra.

Não lhe assiste, porém, razão.

Como provado ficou, estando os moradores da freguesia de …/Valença organizados, desde 20 de Abril de 1996, para o exercício dos actos de representação, disposição, gestão e fiscalização relativos aos correspondentes baldios, através de uma Assembleia de Compartes, um Conselho Directivo e uma Comissão de Fiscalização, o terreno onde o recorrente procedeu aos trabalhos esteve durante mais de 300 anos afecto ao uso e fruição das pessoas da freguesia de …, que entre si organizavam o aproveitamento que do mesmo retiravam, reiteradamente se aproveitando de todas as suas utilidades, apascentando os gados, recolhendo lenhas e matos, levando a cabo o abate e venda de árvores, aplicando as importâncias realizadas em obras necessárias, tais como melhoramentos de caminhos, aí permanecendo e circulando livremente.

Embora condicionada, algumas pessoas da freguesia de …, nela moradores, foram autorizadas a proceder à arborização, levando a cabo plantações de árvores em parcelas do dito terreno, 

Todos esses actos foram sempre praticados à vista de toda a gente, convictos de que o faziam sobre terreno integrado na freguesia de … e destinado ao uso e fruição das pessoas e moradores que deles necessitassem e sem oposição de quem quer que fosse.

Sendo assim, dúvidas não poderemos ter, tal e qual o entendimento professado no acórdão recorrido, de que é baldio o prédio que se localiza no lugar da …, e confronta do norte com a estrada nacional (a de …-Viana do Castelo), do nascente com caminho, do sul com DD e outros, e do poente com a estrada nacional (a de … - Paredes de Coura), é baldio da freguesia de ….

Desta envolvente realidade jurídico-positiva temos como certo que a demandada “CC, S.A.”, procedendo de modo a realizar uma obra em terreno baldio sem autorização concedida nesse sentido do titular desse domínio, praticou um acto ilícito - o direito de propriedade e de gestão dos bens comunitários pelos próprios “condóminos” está garantido, respectivamente, pelo direito de propriedade privada (art. 62.º) e pelo direito à autogestão reconhecido no art. 6.º, n.º 5 (Professores J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira; Constituição da República Portuguesa Anotada; I; pág. 988).

São múltiplos e variados os argumentos avançados pela recorrente com vista a procurar obstar a que se ajuíze a ilicitude da sua ação (salvaguarda do interesse público e da proporcionalidade, a situação em apreço configura um caso de abandono ostensivo pelo recorrido); todavia, porque nenhum deles tem pronunciado assentimento na matéria de facto comprovada pelas instâncias, a sua pretensão jamais poderia ser atendida.    

III. A figura do abuso do direito está na lei para tornar mais ético o nosso ordenamento jurídico, com vista a impedir a conjugação de forças antijurídicas que, por vezes, a imposição fria e rígida da lei possa levar a cabo, em confronto com o ideal de justiça que sempre deve andar, indissoluvelmente ligado, à aplicação do direito e dentro da máxima "perde o direito quem dele abusa" e em oposição ao velho adágio romano "qui suo jure utitur neminem laedit".
    
O abuso do direito está consagrado na nossa lei - art.º 334.º do C.Civil que dispõe: é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
"Trata-se do exercício anormal do direito próprio. O exercício do direito em termos reprovados pela lei, ou seja, respeitando a estrutura formal do direito, mas violando a sua afectação substancial, funcional ou teleológica. Para que haja lugar ao abuso do direito é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito" (Prof. A. Varela; Obrigações; pág. 514 /516).
Destina-se precisamente a impor a sua autoridade a actos praticados que, cobertos por legislação ao caso adequada, apresentam todavia um contexto disforme da pretensão legislativa - constitui igualmente abuso do direito, nos mesmos termos, o facto de um terceiro cooperar conscientemente na violação de uma obrigação alheia, acompanhado de circunstâncias especialmente graves e chocantes da consciência social (art.º 2.º, n.º 3. do anteprojecto de Vaz Serra).

Consagrando o nosso direito a regra da antijuridicidade que resulta do comportamento de alguém que, apesar de desfrutar da titularidade do direito ao qual se arroga, dele faz um uso contrário aos ditames da probidade e honradez tuteladas na unidade do sistema legislativo, consubstanciando a sua atitude um acto reprovável e, por isso, insubsistente a sua tutela jurisdicional, pode pôr-se também a questão de saber como é que se há-de solucionar a prática de um acto legalmente abusivo, ou seja, que resposta se terá de dar quando tivermos pela frente uma conduta identificada com uma situação de manifesto abuso do direito.
Não detetamos, porém, na atitude do demandante “AA”, comportamento algum tendente a criar a repulsa do cidadão bem formado e a tornar exigível o recurso ao instituto do abuso de direito.

    

Concluindo:

1. Baldios são bens comunitários afectos à satisfação das necessidades primárias dos habitantes de uma circunscrição administrativa ou parte dela e cuja propriedade pertence à “comunidade” formada pelos utentes de tais terrenos que os receberam dos seus antepassados, para, usando-os de acordo com as necessidades e apetências, os transmitirem intactos aos vindouros;

2. Hodiernamente, face ao que está descrito no art.º 4.º da Nova Lei dos Baldios, os baldios não se podem adquirir por usucapião;

3. A demandada “CC, S.A.”, procedendo de modo a realizar uma obra em terreno baldio sem autorização concedida, nesse sentido, do titular desse domínio, praticou um acto ilícito;
4. Não detetamos, na atitude do demandante “AA”, algum comportamento tendente a criar a repulsa do cidadão bem formado e a tornar exigível o recurso ao instituto do abuso de direito.

Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.


Supremo Tribunal de Justiça
, 19 de Junho de 2014.


Silva Gonçalves (Relator)

Fernanda Isabel

Pires da Rosa

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[1] Ac. STJ de 16.11.2006; www.dgsi.pt.

        [2] Entre outros, Acórdãos do STJ de 16/06/2009, Processo 47/2000.S1, de 10/12/2009, Processo 313/04.2TBMIR.C1.S1. e de 25/02/2010, Processo 782/2001.S1, citados no Ac. STJ de 15.09.2011, disponível em www.dgsi.pt.


[3] Ac. STJ de 4 de Dezembro de 2007;www.dgsi.pt.