Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
185/12.3TBSBR.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: NUNES RIBEIRO
Descritores: CONFISSÃO
INDIVISIBILIDADE
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
DIREITO DE USO E HABITAÇÃO
DIREITO REAL MENOR
DIVÓRCIO
EX-CÔNJUGE
DEPOIMENTO DE PARTE
CONFISSÃO JUDICIAL
LICITAÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/16/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITOS REAIS / USO E HABITAÇÃO - DIREITO DA FAMÍLIA / CASAMENTO / EFEITOS DO CASAMENTO QUANTO AOS BENS DOS CÔNJUGES / DIVÓRCIO / PARTILHA DE BENS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - INSTÂNCIA / INCIDENTES DA INSTÂNCIA - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / RECURSOS / PODERES DE COGNIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
Doutrina:
- ALBERTO DOS REIS, vol. I, 615, vol. V, 71.
- ANTUNES VARELA, in Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª edição, 97 e ss..
- FERRER CORRREIA, Lições de Direito Comercial, 1973, vol. I, 201 e ss..
- PUPO CORREIA, Direito Comercial, 10.ª ed., 50 e ss..
- RODRIGUES BASTOS, Notas ao “Código de Processo Civil”, 3.ª ed. vol. III, 278.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 360.º, 829.º-A, N.º1, 1484.º, 1688.º, 1689.º, N.º 1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 358.º, N.º 2, 609.º, N.º 2, 682.º, N.º 1.
LEI N.º 23/2013, DE 05 DE MARÇO (REGIME JURÍDICO DO PROCESSO DE INVENTÁRIO): - ARTIGO 79.º, N.º1.
LEI N.º 62/2013, DE 26/8 (LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO): - ARTIGO 46.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 04-6-1974, IN B.M.J., 238.º, 204.
-DE 05-03-2013, PROC. N.º 3247/06, ACESSÍVEL IN WWW.DGSI.PT , E DE 1-10-2002, IN C.J./S.T.J., TOMO III, 65.
Sumário :
I - Atento o disposto no art. 360.º do CC – indivisibilidade da confissão –, tendo a autora requerido o depoimento de parte do réu, nada há a censurar ao acórdão da Relação que se serviu da confissão do réu para julgar provada determinada matéria alegada pela autora e, simultaneamente, com base no depoimento do dito confitente, julgou igualmente provada matéria com esta relacionada que ao mesmo aproveitava.

II - O estabelecimento comercial caracteriza-se por uma diversidade de elementos ou bens de natureza corpórea (móveis e imóveis) e de natureza incorpórea ou imaterial reunidos e organizados com vista ao exercício de uma actividade comercial.

III - O estabelecimento comercial é, para além de uma unidade económica, também uma unidade em sentido jurídico e, como tal, não se resume aos móveis que possam constituir ao seu recheio.

IV - A circunstância de se ter provado que, após a partilha judicial que se seguiu ao divórcio, a autora providenciou pela remoção do prédio de todos os bens móveis que constituíam o estabelecimento que lhe foi adjudicado é irrelevante, porquanto nada obsta a que o direito de propriedade sobre o estabelecimento seja reconhecido à autora, com o complexo de bens que o compunham à data da licitação.

V - Nada tendo a autora e o réu estipulado, aquando da partilha ou posteriormente, relativamente ao uso do rés-do-chão e do 2.º andar do prédio no qual funcionava o estabelecimento de café, restaurante e residencial anteriormente explorado pelo casal, mas resultando da partilha que à autora foi adjudicado o estabelecimento e ao réu a propriedade do imóvel, tal uso deve ser configurado sob a forma de direito real de uso, nos termos previstos no art. 1484.º do CC.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:

AA, residente no loteamento …, em … - Sabrosa, intentou acção declarativa ordinária contra BB, residente em …, ... - Sabrosa, pedindo seja:

a) – Declarado que é dona e proprietária do estabelecimento comercial de Café, Restaurante e Residencial, denominado “CC”, sito no …, n.º …, freguesia de ..., concelho de Sabrosa, constituído pelas instalações do rés-do-chão, 2.º andar, dois terraços, um anexo, um barracão para arrumações e garagem do prédio urbano, sito no …, composto de casa telhada e sobradada para habitação e comércio, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ..., concelho de Sabrosa sob o art.º 11….º e descrito na respectiva Conservatória de Registo Predial na ficha n.º 00….

b) – Declarado que ela, Autora, é titular do direito real de uso sobre as referidas dependências do imóvel supra descrito, nas quais está instalado o aludido estabelecimento comercial.

c) – O Réu condenado a restituir-lhe as supra referidas dependências do imóvel.

d) – O Réu condenado a pagar-lhe uma indemnização por perdas, sendo as vencidas de € 42.000,00 e as futuras situadas entre um mínimo de € 1.000,00 e um máximo de € 3.000,00 por cada mês, até efectiva entrega do estabelecimento comercial.

e) - O Réu ainda condenado numa sanção pecuniária compulsória de € 1.000,00 por cada dia de atraso na entrega do dito estabelecimento, a contar da data da notificação da sentença que vier a decretar a referida entrega.

Alegou, para tanto, em síntese, que ela e o Réu foram casados um com o outro, sob o regime da comunhão de adquiridos, sendo, na altura, proprietários de um imóvel e, bem assim, de um estabelecimento comercial instalado no rés-do-chão, no 2° andar, nos dois terraços, no anexo, no barracão para arrumações e na garagem do aludido imóvel; que, entretanto divorciaram-se, e, em inventário subsequente, procederam à partilha dos bens comuns; que, no inventário foram relacionadas, além de outras, duas verbas, uma respeitante ao imóvel e outra respeitante ao estabelecimento comercial; que, ao procederem desse modo, ambos tiveram a intenção de que o licitante na verba correspondente ao estabelecimento comercial ficaria titular do direito de uso das respectivas dependências do imóvel onde se encontrava instalado; que, nesse inventário, o imóvel foi adjudicado ao Réu, e à A. o referido estabelecimento comercial nele instalado; que o Réu recusou entregar o estabelecimento comercial à A., sendo ele quem o tem vindo a explorar, obtendo um lucro líquido superior a € 1.000,00 por mês.

Contestou o Réu, impugnando parte da factualidade invocada pela A. e pedindo a condenação desta, como litigante de má fé, a pagar-lhe uma indemnização nunca inferior a 50% do valor da acção.

Respondeu a A., impugnando factualidade invocada pelo R., designadamente o pedido de condenação como litigante de má fé.

O processo prosseguiu seus regulares termos, e, realizado o julgamento, foi proferida sentença cuja parte dispositiva é do seguinte teor:

«Pelo exposto julgo a acção parcialmente procedente, e, em consequência:

- Declaro que a A. é dona e proprietária do estabelecimento comercial de café, restaurante e residencial, denominado "CC", sito no …, n.° …, freguesia de ..., concelho de Sabrosa, constituído pelas instalações do rés-do-chão e 2° andar, do prédio urbano sito no …, composto de casa telhada e sobradada para habitação e comércio, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ..., concelho de Sabrosa sob o art.º 1 1….° e descrito na respectiva Conservatória de Registo Predial na ficha n.º 00..;

- Declaro que, logo que concretize o seu direito ao arrendamento das dependências do imóvel supra descrito, nas quais está instalado o aludido estabelecimento comercial, lhe assistirá o direito ao seu uso e a que o R. lhe restitua tais dependências;

- Julgo a acção improcedente quanto ao demais, absolvendo o R. do pedido, o mesmo acontecendo com o pedido de condenação da A. com o litigante de má fé.

Custas a cargo de A. e R., na proporção dos respectivos decaimentos, fixando-se em ¾ pela A. e ¼ pelo R.».

Inconformado, o Réu apelou para a Relação de Guimarães, tendo a autora interposto, por sua vez, recurso subordinado.

Por acórdão de 09-6-2016, aquela Relação, julgando procedente o recurso principal e improcedente o recurso subordinado, revogou a sentença recorrida e absolveu o Réu dos pedidos formulados pela Autora.

Inconformada agora a Autora, esta interpôs recurso de revista para este Supremo Tribunal.

Na alegação respectiva, conclui da forma seguinte:

1 - Vem a presente Revista interposta da decisão do Tribunal da Relação de Guimarães que julgou procedente o recurso principal e revogando a decisão da 1ª instância absolveu o Réu dos pedidos e bem assim da decisão do Tribunal da Relação que julgou totalmente improcedente o recurso subordinado.

2 - No facto 10, a 1ª Instância havia considerado provado que "Após a partilha judicial o Réu colocou os bens móveis que constavam da verba 23 no exterior do estabelecimento para que a Autora os levasse, não permitindo que a Autora se entregasse ou pudesse usar a parte da imóvel afecta ao estabelecimento.

3 - O Tribunal da Relação, porém, alterou este facto, considerando provado que "Após a partilha judicial, a Autora providenciou pela remoção do prédio de todos os bens móveis que constituíam o recheio do estabelecimento, quer a parte do café quer a parte da residencial".

4 - Como se vê da decisão do Tribunal da Relação, este transformou o facto da retirada dos móveis para a iniciativa da Autora/Recorrente, ao passo que a 1ª instância havia colocado a retirada dos móveis das instalações a que se destinavam na iniciativa do Réu Recorrido.

5 - Esta alteração por parte do Tribunal da Relação permitiu que os Senhores Juízes Desembargadores viessem depois a justificar que "a acção praticada pela Autora — a remoção dos bens — fundamenta a convicção de que a intenção seria a do abandono definitivo do prédio".

6 - No entanto, o Tribunal da Relação considerou o depoimento das testemunhas DD, segundo o à qual os móveis do café estavam num coberto devidamente acondicionados, sendo certo que também a testemunha EE referiu que tais bens se encontravam lá atrás num coberto.

7 - Assim, sendo certo que o Réu Recorrido não permitiu que a parte do imóvel afecta ao estabelecimento fosse ocupada pela Autora e que foi o Réu que tomou a iniciativa de retirar pelo menos alguns móveis do interior das dependências a que estavam destinados, não se compreende a ligeireza da decisão da Relação ao transformar um facto praticado pelo Réu como tendo sido praticado pela Autora, para daí o Tribunal da Relação concluir um facto falso, a saber, de que o rés-do-chão e 2.° andar do imóvel em questão não faziam parte do estabelecimento comercial de café, restaurante e residencial

8 - De resto, o Tribunal da Relação bem sabia que a iniciativa da retirada dos móveis foi do Réu, que não da Autora, porquanto só assim se justifica o facto provado em 10-A na parte em que considera provado que o Réu não permitiu à Autora a ocupação da parte da imóvel afecta ao estabelecimento comercial.

9 - Nestes termos impõe-se que esse Supremo Tribunal revogue a decisão do Tribunal da Relação que julgou provado o facto 10 e como não provado o facto F, mantendo-se o facto 10 na versão da 1ª Instância.

10 - Decidiu o Tribunal da Relação, por aplicação do disposto no artº 360º do Código Civil, acrescentar aos factos provados o facto 10-A, segundo o qual "o Réu não permitiu e nunca permitiria que a parte da imóvel afecta ao estabelecimento fosse ocupada pela Autora por estar convencido que ao licitar o prédio ficava com o direito ao seu uso e fruição exclusivo.

11 - Para assim o decidir considerou o Tribunal da Relação que o Réu confessou parte do facto que lhe é desfavorável, a saber, que não permitiu a ocupação do imóvel pela Autora, para daí concluir, partindo do princípio da indivisibilidade da confissão, que também deveria ser considerado provado a motivação dessa não permissão, a saber, que o Réu estava convencido que ao licitar o prédio por inteiro ficaria com o direito ao seu uso e fruição exclusivo.

12 - Ora, no caso dos autos o art.° 360° do CC não pode ter aplicação, porquanto a Autora Recorrente nunca declarou pretender aproveitar-se da declaração confessória e, além disso, o Réu não se limitou a acrescentar outros factos ou circunstâncias tendentes a infirmar a eficácia do facto confessado, porquanto a Autora já havia alegado na petição que o Réu estava convicto de que o estabelecimento comercial incluía o direito ao uso das respectivas instalações.

13 — Assim sendo, o facto 10-A deve ser dado como não provado, mantendo-se apenas a parte que do facto 10° transitou para o referido facto 10-A, a saber, o Réu não permitiu que a Autora se entregasse ou pudesse usar a parte do imóvel afecto ao estabelecimento.

14 - A questão principal a dirimir no presente pleito é a de saber se a parte do imóvel em que se encontra instalado o estabelecimento de café, restaurante e residencial devem considerar-se como integrantes do estabelecimento comercial. O Tribunal da Relação, a nosso ver erradamente, considerou que tais instalações não integram o estabelecimento comercial porque tal não resulta do contrato e porque o imóvel não é essencial ao funcionamento de um café, de uma residencial e de um restaurante.

15 - Está provado em 6 dos Factos Provados que o estabelecimento comercial foi descrito, pelo próprio Réu Recorrido, no processo de inventário, como estando situado no rés-do-chão e 2.° andar do imóvel sito no …, inscrito na matriz sob Art.° 11…° e na CRP de Sabrosa na ficha n° 00….

16 - Perante tal identificação é inequívoco que o local da sua situação é integrante do estabelecimento comercial em causa, e a Autora Recorrente, ao licitar, em acção judicial com sentença homologatória, o referido estabelecimento comercial com a situação e localização que lhe foi atribuída na descrição, adquiriu de forma própria e válida o direito de uso das respectivas instalações.

17 — Atento os factos provados e as regras de interpretação da declaração negocial estabelecidas no art. 238° do CC, onde se dispõe que: 1. Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso e o art. 236° CC dispõe que: 1. A declaração negocia/ vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele, a indicação, no processo judicial de partilha, da situação do estabelecimento só pode significar que a localização do estabelecimento era essencial ao mesmo.

18 — Conforme o Senhor Juiz da 1ª Instancia afirmou, e bem, "Assim, se a verba também englobava licenças e alvarás, um declaratário normal, sabendo que estas estão conexionadas com o imóvel onde o estabelecimento funciona, estamos em crer que pensaria que, a verba em causa englobaria o direito ao uso do imóvel, senão a referência ao englobamento das licenças e alvará seria inútil."

19 - Por conseguinte, impõe-se a revogação da decisão recorrida, na parte em que julgou procedente o recurso principal e absolveu o Réu dos pedidos formulados pela Autora.

20 - Mantendo-se a sentença da 1ª Instancia, salvo a parte anulada e revogada pelo acórdão recorrido a fls. 21 e 26.

21 - Devendo o Réu ser condenado à imediata restituição à Autora do Rés-do-chão e 2º andar do referido imóvel, como dependências integrantes do estabelecimento comercial, seja com base num direito real, seja com base num direito obrigacional de comodato gratuito.

22 - Tendo sido dado como provado, no facto 11 da resenha factual provada, que: "- O Réu vem explorando o dito estabelecimento comercial no supra referido prédio urbano e apropriando-se dos respectivos rendimentos, em valor indeterminado, desde a data da licitação, em 14/11/2008, e desde da data da sentença proferida em 16/6/2009 e transitada em julgado em 07-07-2009.

23 - Assim, nos termos do n° 2 do art. 609° do CPC, que "se não houver elementos para fixar... a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado...", deve condenar-se o Réu a indemnizar a Autora em quantia a liquidar em execução de sentença..

24 - Para efeitos do disposto no art. 829°-A, do Código Civil, deve entender-se que a obrigação de restituir uma coisa infungível está abrangida pela sanção pecuniária compulsória, pois não se vislumbram razões válidas para que o legislador tenha querido excluir tal obrigação, que resulta do interesse público da executoriedade das decisões judiciais, devendo o acórdão absolutório, nessa parte, ser revogado e, no pressuposto de que o Reu seja condenado a restituir a parte do imóvel em causa, substituída por outra que condene o Reu em condigna sanção pecuniária compulsória.

Termos em que, dando-se provimento à presente revista, deve o acórdão recorrido ser revogado, prevalecendo a decisão da 1ª Instancia (com excepção da parte anulada pela Relação, e condenado o Réu em conformidade com as conclusões 21ª, 23ª e 24ª supra.

Não foi apresentada resposta.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


*


Objecto do recurso

Como é sabido, são as conclusões da alegação que delimitam o objecto do recurso [art.ºs 635º n.º 4, 639º n.ºs 1 e 3 e 641º nº 2 al. b) todos do novo C.P. Civil], não podendo o tribunal conhecer de questões nelas não compreendidas, salvo tratando-se de questões de conhecimento oficioso.

Assim, as questões suscitadas no recurso consistem em saber se a Relação violou, concretamente o art.º 360º do C. Civil, ao socorrer-se do depoimento de parte do Réu para, em sede de reapreciação da prova, alterar a decisão de facto da 1ª instância; e se a decisão recorrida enferma de erro de direito, ao concluir pela improcedência da acção.


*


Fundamentação

1) De Facto:

A factualidade provada, após as alterações nela introduzidas pela Relação, é a seguinte:

1 - Autora e Réu foram casados, entre si, no regime da comunhão de adquiridos.

2 - Enquanto tal, Autora e Réu foram “proprietários” do “Prédio urbano, sito no …, composto de casa telhada e sobradada para habitação e comércio, de rés-do-chão, primeiro e segundo andares, com dois terraços, um anexo, um barracão para arrumações, garagem e logradouro, que confronta a Norte e Nascente com FF, a Poente com GG e a Sul com estrada nacional, inscrito na matriz da freguesia de S. Martinho de Antas sob o artigo 11…º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Sabrosa sob o número 00….

3 - Ainda enquanto casados, Autora e Réu exploraram um estabelecimento comercial de café, restaurante e residencial denominado “CC”, ali vendendo produtos de cafetaria, doçaria, bebidas, atendendo clientes, acomodando-os nos respectivos quartos de hotelaria e fornecendo refeições.

4 - O referido estabelecimento comercial estava instalado no rés-do-chão e 2.º andar, do supra referido prédio urbano.

5 - Autora e Réu divorciaram-se em 14-7-2005, após o que correu no Tribunal Judicial de Sabrosa o inventário n.º 121/05.3TBSBR-A, para partilha dos seus bens comuns.

6 - Em tal inventário, o Réu relacionou a verba nº 22, como correspondendo ao prédio urbano identificado supra em 2, e a verba n º 23, como correspondendo a um estabelecimento comercial de café, restaurante e residencial, no valor de dez mil euros, denominado CC, sito no …, em ..., concelho de Sabrosa, composto por licenças, alvarás e vários bens móveis.

7 - ( eliminado).

8 - No referido inventário, a Autora licitou e foi-lhe adjudicado, por sentença homologatória, o referido estabelecimento, relacionado na verba 23, pelo valor de € 42.000,00.

9 - Por sua vez, o Réu licitou e foi-lhe adjudicado, por sentença homologatória, o referido prédio urbano, relacionado na verba 22, por € 250.000,00.

10 - Após a partilha judicial a Autora providenciou pela remoção do prédio de todos os bens móveis que constituíam o recheio do estabelecimento, quer a parte do café, quer a parte da residencial. 

10-A – O Réu não permitiu e nunca permitiria que a parte do imóvel afecta ao estabelecimento fosse ocupada pela Autora por estar convencido que ao licitar o prédio ficava com direito ao seu uso e fruição exclusivo.

11 - O Réu vem explorando o dito estabelecimento comercial no supra referido prédio urbano e apropriando-se dos respectivos rendimentos, em valor indeterminado, desde a data da licitação, em 14/11/2008, e desde a data da sentença proferida em 16/6/2009 e transitada em julgado em 07-07-2009.


2) De direito:

I - Sustenta a recorrente, a começar, que o tribunal recorrido incorreu em erro de apreciação da prova ao alterar, nos termos constantes do nº 10 e do nº 10-A dos factos supra descritos, a factualidade apurada em 1ª instância, por ter atendido, quanto àquela, ao depoimento da testemunha DD mas desconsiderando o depoimento da testemunha EE (não lhe imputando, pois, nesta parte, qualquer violação da lei) e, quando à segunda, por ter feito uso indevido do estatuído no artº 360º do C. Civil, que não tinha, no caso, «aplicação, porquanto a autora recorrente nunca declarou pretender aproveitar-se da declaração confessória…».

É sabido, e decorre especificamente dos art.ºs 46º da Lei nº 62/2013, de 26/8 (Lei da Organização do Sistema Judiciário) e 682º nº 1 do C. P. Civil, que o Supremo Tribunal de Justiça é um tribunal de revista, conhecendo, por isso, em regra, exclusivamente de questões de direito. Só excepcionalmente funciona como tribunal de 1ª ou 2ª instância incumbido de julgar, tanto matéria de direito, como matéria de facto. E os casos excepcionais em que tal acontece estão previstos no nº 3 do artº 674º do mesmo C. P. Civil: «ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto»; ou ofensa de preceito expresso de lei «que fixe a força de determinado meio de prova».

Por outras palavras, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa só pode ser objecto de recurso de revista, quando o tribunal recorrido tenha dado como provado um facto sem que se tenha produzido a prova que, de acordo com a lei, seja indispensável para a demonstração da sua existência; ou quando tenha desrespeitado normas reguladoras da força probatória dos diversos meios de prova admitidos no nosso sistema jurídico.

Em qualquer dos casos, a censura do Supremo Tribunal de Justiça confina-se à legalidade do apuramento dos factos - e não respeita directamente à existência ou inexistência destes. O Supremo não faz a censura da convicção formada pelas instâncias quanto à prova, limita-se a reconhecer e a declarar a existência de obstáculo legal a que tal convicção se tivesse formado (RODRIGUES BASTOS, in Notas ao Código de Processo Civil, 3ª ed. vol. III, pag. 278).

É também o que invariavelmente tem vindo a proclamar este Supremo Tribunal de Justiça em diversos arestos (vide, por exemplo, Ac. de 5.3.2013, in proc. 3247/06, acessível in www.dgsi.pt, e de 1-10-02, in CJSTJ, tomo III, pág. 65).

No caso, a única violação da lei que a recorrente imputa à decisão da matéria de facto levada a cabo pela Relação recorrida é a do artº 360º do C. Civil, que afirma não poder ter aplicação, no caso, por ela (autora recorrente) nunca ter declarado pretender aproveitar-se da declaração confessória.

Custa a entender, porém, esta afirmação da ora recorrente, quando é certo que foi ela quem, logo na petição inicial, requereu o depoimento de parte do réu à matéria do artºs 1º a 13º desse seu articulado. Na verdade, se não queria aproveitar-se da confissão do réu, porque requereu, então, o seu depoimento de parte?

Ora, o dito artº 360º do C. Civil, epigrafado de “indivisibilidade da confissão”, estatui que «Se a declaração confessória, judicial ou extrajudicial, for acompanhada da narração de outros factos ou circunstâncias tendentes a infirmara eficácia do facto confessado ou a modificar ou extinguir os seus efeitos, a parte que dela quiser aproveitar-se como prova plena tem de aceitar também como verdadeiros os outros factos ou circunstâncias, salvo se provar a sua inexactidão».

O Tribunal da Relação ora recorrido, em sede de reapreciação da prova e especificadamente no que à matéria do dito nº 10-A da fundamentação de facto concerne, justificou a alteração dessa matéria objecto de impugnação, do seguinte modo:

«O Réu alegou que foi por estar convencido que "o imóvel não era objecto de qualquer contrato de arrendamento ou de outra natureza o licitou pelo valor de € 250.000,00, ou seja por mais 247.042,53€ do valor atribuído na relação de bens" (cfr. item 45° da contestação) e confessou na audiência de julgamento nunca haver permitido nem permitiria que a Autora ocupasse a parte do prédio afecto ao estabelecimento, afirmando que "comprou" o prédio para habitação e comércio, e que "para si" o piso do meio, que é usado para habitação, isoladamente "não valia nada". Vai, pois, considerar-se a confissão mas, atenta a sua indivisibilidade, também o que lhe aproveita».

E, efectivamente, tendo a confissão do réu servido para julgar provada a matéria alegada pela autora (de que o Réu não permitiu que a parte do imóvel afecta ao estabelecimento fosse ocupada por ela), tinha pleno cabimento, por assim o impor o aludido artº 360º, que desse também como provada, com base no seu depoimento do dito confitente, a matéria que a este aproveitava, constante da segunda parte do referido nº 10-A: «por estar convencido que ao licitar o prédio ficava com o direito ao seu uso e fruição exclusivo», e que a recorrente vem agora defender que deveria ser eliminada da matéria provada.

Consequentemente, estando vedado a este Supremo Tribunal, como tribunal de revista, sindicar a convicção das instâncias, o eventual erro de decisão do Tribunal da Relação relativamente aos pontos da matéria de facto que achou por bem modificar, escapa à sua censura.

E daí que a decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto em análise não possa ser modificada por este Supremo Tribunal.

Improcedem, assim, nesta parte, as conclusões do recurso.

 

II - Apreciemos, agora, a justeza (ou não) da decisão recorrida.

O Tribunal da Relação depois de ter ponderado que « na situação sub judice (…) a Autora/Apelante ao remover os móveis que constituíam o lastro ostensivo do estabelecimento “desorganizou-os”, readquirindo eles a sua individualidade jurídico-económica, deste modo se havendo “desconstruído” o estabelecimento», enquanto o Réu, por seu turno, «havendo adquirido móveis novos e os organizado com vista ao desenvolvimento da (mesma) actividade económica, criou um estabelecimento novo». E que, não havendo assim já «identidade entre o estabelecimento comercial licitado pela Autora/Apelante e aquele que actualmente lá se encontra instalado e a funcionar, mau grado permanecer o mesmo nome», concluiu pela total improcedência da acção, com a consequente e absolvição do réu apelante de todos os pedidos nela formulados.

Não cremos, porém - adiantamo-lo já - que seja de sufragar tal entendimento.

Vejamos porquê:

a) - De harmonia com o artº 1688° do C. Civil, «As relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges cessam pela dissolução, declaração de nulidade ou anulação do casamento…»

Estatuindo, por sua vez, o artigo 1689º nº 1 do mesmo diploma que «Cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes ou os seus herdeiros rebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património».

E, semelhantemente ao que prescrevia o artº 1404º do anterior C. P. Civil no seu nº 1, proclama hoje o art.º 79º nº 1 da Lei nº 23/2013, de 05 de Março (Regime Jurídico do Processo de Inventário), que «decretada a separação judicial de pessoas e bens ou o divórcio, ou declarado nulo ou anulado o casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens, salvo se o regime de bens do casamento for o de separação».

Ora, como flui da matéria fáctica apurada, a Autora e o Réu, casados que eram um com o outro, sob o regime da comunhão de adquiridos, divorciaram-se, em 14-7-2005, tendo, na sequência do divórcio, corrido termos pelo Tribunal Judicial de Sabrosa, um inventário com o n.º 121/05.3TBSBR-A, para partilha dos respectivos bens comuns.

Do acervo a partilhar fazia parte, nomeadamente um prédio urbano, sito no …, composto de casa telhada e sobradada para habitação e comércio, de rés-do-chão, primeiro e segundo andares, com dois terraços, um anexo, um barracão para arrumações, garagem e logradouro, que confronta a Norte e Nascente com FF, a Poente com GG e a Sul com estrada nacional, inscrito na matriz da freguesia de S. Martinho de Antas sob o artigo 11…º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Sabrosa sob o número 00…; e, bem assim, um estabelecimento comercial de café, restaurante e residencial, denominado “CC”, onde eles procediam à venda de produtos de cafetaria, doçaria, bebidas, e atendiam clientes, acomodando-os nos respectivos quartos de hotelaria e fornecendo refeições.

O estabelecimento comercial - como veio a provar-se - estava instalado no rés-do-chão e 2.º andar, do supra referido prédio urbano.

No aludido inventário, o Réu relacionou, sob a verba nº 22, o prédio urbano; e, sob a verba n º 23, o estabelecimento comercial referido, com as licenças respectivas, alvarás e vários bens móveis.

Ele licitou no prédio e ela (ora recorrente) no estabelecimento comercial, bens estes que foram adjudicados a cada um deles, por sentença homologatória transitada em julgado.

Feita, portanto, a partilha e homologada que foi por sentença transitada em julgado, é irrecusável que a ora autora se tornou exclusiva dona e proprietária do dito estabelecimento comercial, que por aquela lhe foi atribuído.

E para o caso é irrelevante, contrariamente ao sustentado no acórdão recorrido, o facto de se ter provado que, após a partilha judicial, a Autora providenciou pela remoção do prédio de todos os bens móveis que constituíam o recheio do estabelecimento, quer a parte do café, quer a parte da residencial. Pois não é por esse simples facto que o estabelecimento, enquanto tal, deixou de subsistir.

Com efeito, o estabelecimento comercial, no seu sentido amplo, é geralmente entendido como uma organização versando sobre um conjunto unificado de elementos corpóreos e incorpóreos, de direito e de facto, mas que no conjunto forma uma universalidade de direito, objecto de direitos e relações jurídicas distintos dos que incidem sobre os respectivos componentes, individualmente considerados (PUPO CORREIA, in Direito Comercial, 10ª ed, pag. 50 e segs; e FERRER CORRREIA, in Lições de Direito Comercial, 1973, vol. I pag 201 e segs).

O estabelecimento comercial caracteriza-se, pois, por uma diversidade de elementos ou bens de natureza corpórea (móveis e imóveis) e de natureza incorpórea ou imaterial reunidos e organizados com vista ao exercício de uma actividade comercial.   

O estabelecimento comercial é, para além de uma unidade económica, também uma unidade em sentido jurídico e, como tal, não se resume aos móveis que possam constituir o seu recheio, como parece ser o entendimento sufragado na decisão recorrida.

A ser correcto e defensável o entendimento sustentado na decisão recorrida, teríamos então de concluir também que um estabelecimento comercial cujo mobiliário tivesse sido destruído num incêndio ou numa inundação se extinguiria necessariamente, em resultado disso; ou que nunca seria permitido a um comerciante substituir o mobiliário gasto ou obsoleto que constituísse o seu recheio, sob pena de o «desconstruir» (para utilizar a expressão do acórdão recorrido) enquanto unidade económica e jurídica.

Consequentemente - e podendo, em nossa opinião, o estabelecimento comercial como um todo unitário ser objecto de direito de propriedade - nada obsta a que o direito de propriedade sobre o estabelecimento em análise seja reconhecido à autora, com o complexo de bens que o compunham à data da licitação.

Procedem, pois, nesta parte, as conclusões do recurso.

b) - Ora, todo o estabelecimento comercial necessita, em regra, de instalações onde possa funcionar.

No caso, a autora e o réu nada estipularam, nem aquando da partilha, nem posteriormente, relativamente ao uso, pelo estabelecimento, do rés-do-chão e do 2º andar do prédio que, na sequência das partilhas, veio a caber ao réu ora recorrido.

Decorre, porém, da factualidade apurada, que, enquanto casados, Autora e Réu exploraram o estabelecimento comercial de café, restaurante e residencial denominado “CC”, instalado no rés-do-chão e 2.º andar, do prédio, ali vendendo produtos de cafetaria, doçaria, bebidas, atendendo clientes, acomodando-os nos respectivos quartos de hotelaria e fornecendo refeições.

E também que, no inventário subsequente ao divórcio, o Réu (enquanto cabeça-de casal) relacionou sob verbas distintas o prédio urbano identificado supra, e o referido estabelecimento comercial de café, restaurante e residencial, naquele instalado.

Ambos sabiam, portanto, nomeadamente o R. ora recorrido, da importância e essencialidade daquelas partes do prédio (por si licitado e que ficou a pertencer-lhe, em exclusivo) para o funcionamento do estabelecimento comercial que coube à autora.  

Assim - não tendo o R. excluído expressa ou implicitamente na partilha que o estabelecimento ali continuasse a funcionar e a desenvolver, agora exclusivamente pela autora, a actividade comercial a que se dedicava - será legítimo deduzir que também o direito ao uso dessas instalações, porque integrantes do complexo de bens que caracterizavam o estabelecimento enquanto tal e essenciais ao seu funcionamento, foi simultaneamente transferido, por força da partilha, para a autora.  

Uso esse cuja natureza, na falta de estipulação específica, terá de ser procurada na concreta actividade que nele vinha sendo desenvolvida até então.

Ora, considerando fundamentalmente que o estabelecimento em análise funcionava não só como café e restaurante, mas também como residencial, esse uso só é configurável (afastado, obviamente, o direito de propriedade, pois este foi adjudicado sobre a totalidade do imóvel ao réu, e igualmente de usufruto, porque teria necessariamente de ser explicitamente referenciado no inventário, e nele não é referido) sob a forma de direito real de uso, previsto no artº 1484º do C. Civil, como vem peticionado pela autora ora recorrente. Só esse na verdade, e já não também eventualmente o comodato, atento o estatuído no artº 1132º do C. Civil e a ausência de convenção expressa, é compatível com a utilização e simultânea fruição daqueles andares do prédio do réu, designadamente para o comércio de “aluguer” de quartos.

Procedem, assim, também nesta parte, as conclusões do recurso

c) - A outra questão em que se desdobra o recurso prende-se com o pedido deduzido sob a al. d) da petição inicial (este julgado improcedente até mesmo pela 1ª instância), de indemnização por «perdas vencidas» e «futuras».

Sustenta a A. recorrente que, em face da factualidade provada sob o nº 11 da fundamentação de facto, o réu deveria ter sido, contrariamente ao decidido, condenado a indemnizá-la em quantia «a liquidar em execução de sentença», de acordo com o n° 2 do artº 609° do C. P. Civil vigente.

A condenação no que se liquidar em execução de sentença era afirmada n.º 2 do art.º 661º do C. P. Civil pretérito, antes da alteração nele introduzida pelo Dec. Lei nº 38/2003, de 08 de Março. Hoje aquilo que o correspondente artº 609º nº 2 estatui é que «Se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condenará no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida».

Portanto, hoje não há lugar à condenação no que se liquidar em execução de sentença, mas sim no que se vier a liquidar posteriormente, de harmonia com o nº 2 do artº 358º do actual Código.

Nunca, porém, suscitou divergências que o comando do n.º 2 do citado art.º 661º (correspondente ao actual nº 2 do artº 609º) tanto era de aplicar ao caso de se haver formulado inicialmente pedido genérico e não ter sido possível convertê-lo em pedido específico (de acordo com o disposto no mencionado art.º 358º e segs do actual C. P. Civil), como ao caso de se haver formulado pedido específico, mas sem se ter conseguido fazer a prova da especificação (vide C. P. Civil Anotado, de ALBERTO DOS REIS, vol. I, pag 615 e vol. V pag 71).

De todo o modo, só seria possível então relegar para execução de sentença, e do mesmo modo hoje relegar para momento ulterior, a indemnização respeitante a danos relativamente aos quais se tenha provado a sua existência, não existindo elementos para fixar o valor respectivo mesmo com o recurso à que equidade (Ac. STJ de 04-6-1974, in BMJ, 238º, 204).

Com efeito, sendo o dano ou prejuízo a ressarcir um dos pressupostos da obrigação de indemnizar, não se tendo alegado nem provado danos ou prejuízos não pode ter aplicação o disposto no citado artº 609º nº 2.

No caso, a autora alegou, na petição inicial, quanto aos danos, o seguinte:

«O Réu vem explorando o dito estabelecimento comercial e apropriando-se dos respectivos rendimentos desde a data da licitação, em 14/11/2008, e desde a data da sentença proferida em 16/6/2009;

Tais rendimentos são constituídos por lucros líquidos de montante superior a € 1.000,00 por mês dos quais o réu se vem ilicitamente apropriado desde a referida data».

E dessa matéria alegada, as instâncias deram como provado apenas, sob o nº 11 supra, que: «O Réu vem explorando o dito estabelecimento comercial no supra referido prédio urbano e apropriando-se dos respectivos rendimentos, em valor indeterminado, desde a data da licitação, em 14/11/2008, e desde a data da sentença proferida em 16/6/2009 e transitada em julgado em 07-07-2009».

Quer dizer, a autora propriamente não alegou prejuízos que tivesse sofrido, mas antes lucros que o réu teria obtido com a exploração do estabelecimento, cujo valor, todavia, se não provou.

 Como tal, não tendo resultado provado sequer a existência de danos por si sofridos, carece de fundamento legal a pretendida condenação do réu no pagamento do que se vier liquidar em momento posterior, conforme o estatuído nº 2 do artº 609º citado.

Improcedem, portanto, nesta parte, as conclusões do recurso.

d) - E do mesmo modo carece também de razão de ser e de fundamento legal, por último, a pretendida condenação do Réu em sanção pecuniária compulsória, no que à obrigação de entrega da parte do imóvel em questão diz respeito.

A sanção pecuniária compulsória, com efeito, está prevista no art. 829°-A, do Código Civil, cujo nº 1, estatui que «nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso».

Como decorre da letra da lei e não oferece dúvidas interpretativas, o seu campo de aplicação limita-se às prestações de facto, e, dentro destas, apenas às não fungíveis.

A prestação diz-se fungível, quando pode ser realizada por pessoa diferente do devedor, sem prejuízo do interesse do credor (caiar um muro; pintar uma casa; pagar uma quantia; lavrar um terreno); será não fungível no caso de o devedor não poder ser substituído no cumprimento por terceiro (realizar uma intervenção cirúrgica; reger curso especializado; pintar um quadro a óleo; conduzir o automóvel do comitente durante uma longa viagem deste; fazer o projecto duma grande obra). São as obrigações em que ao credor não interessa apenas o objecto da obrigação, mas também a habilidade, o saber, a destreza, a força, o bom nome ou outras qualidades pessoais do devedor (ANTUNES VARELA, in Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª edição, pag. 97 e segs).

Ou seja, a sanção pecuniária compulsória não é, desde logo, de aplicação à prestação de coisas, como é o caso dos autos, até porque a prestação de coisas é em regra fungível e, portanto, o interesse do credor não será lesado com a substituição do devedor.

Daí que se não justifique a sanção pecuniária compulsória, no que à referida obrigação de entrega da parte do imóvel em questão concerne.

Improcedem, assim, nesta parte também, as conclusões do recurso.

Decisão

Nos termos expostos, acordam em:

1 - Conceder parcialmente a revista e revogar parcialmente o acórdão recorrido;

2 - Julgar a acção parcialmente procedente, declarando a autora dona e proprietária do estabelecimento comercial de Café, Restaurante e Residencial, denominado “CC”, instalado no rés-do-chão e 2.º andar do prédio urbano, sito no …, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de S. Martinho de Anta, concelho de Sabrosa, sob o art.º 11….º e descrito na respectiva Conservatória de Registo Predial sob o n.º 00…; e reconhecer-lhe o direito real de usar e fruir de tais instalações enquanto for ela a explorar directamente o referido estabelecimento;

3 - Condenar o Réu a restituir-lhe, para tal fim, os referidos andares daquele prédio;

4 - No mais, manter a decisão recorrida.

Custas por recorrente e recorrido, designadamente nas instâncias, em partes iguais.

Lisboa, 16 de Março de 2017

Nunes Ribeiro (Relator)

Maria dos Prazeres Beleza

Salazar Casanova

_________________

[1] Relator: Nunes Ribeiro
Conselheiros Adjuntos: Dra Maria dos Prazeres Beleza e Dr. Salazar Casanova