Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
324/14.0TELSB-DF-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: CID GERALDO
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
LEGITIMIDADE
INTERESSE EM AGIR
BENS APREENDIDOS
TITULARIDADE
IDENTIDADE DE FACTOS
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 12/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - No que concerne aos requisitos substanciais, para que se verifique a oposição de julgados, é necessária a existência de decisões contraditórias sobre a mesma questão de direito, proferidas no domínio da mesma legislação, e bem assim que estas decisões se apresentem como julgados expressos e não implícitos.

II - A estes requisitos de ordem substancial, a jurisprudência do STJ aditou a necessidade de identidade de factos, não se restringindo à oposição entre as soluções de direito. Ou seja, impõe-se que as situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam idênticos em ambas as situações.

III - A questão de direito apreciada no acórdão fundamento e no acórdão recorrido é relativa ao conceito de titular prevista no art. 178.º, n.º 7, do CPP – se deverá ser interpretada literalmente como o "titular dos bens apreendidos" ou se pelo contrário poderá/deverá ter um outro alcance, com o fundamento para a legitimidade tendo por base a utilidade que o seu titular há-de retirar da providência requerida. O acórdão fundamento atenta a real situação fáctica aceitou legitimidade à requerente para deduzir o incidente de revogação da apreensão, ao passo que o acórdão recorrido, atenta a concreta situação, sufragou não assistir legitimidade ao ora recorrente.

IV - A pedra de toque para dissemelhantes decisões, prende-se com a dissemelhante relação jurídica face aos bens apreendidos num e noutro caso. No acórdão recorrido o requerente alega a qualidade de credora e acionista da sociedade proprietária dos bens imóveis e conta bancária apreendidos, ao passo que no acórdão fundamento, trata-se da apreensão de um veículo relativamente ao qual a requerente era titular de um direito de utilização conferido por um contrato de aluguer de veículo sem condutor outorgado com a proprietária. Face à factualidade em causa em cada um dos processos em confronto, verifica-se que inexiste qualquer identidade/equivalência quanto à interpretação do conceito de titular, prevista no art. 178.º, n.º 7, do CPP, em análise nos dois acórdãos em confronto. E desta forma, falece o requisito substancial da identidade de situações de facto.
Decisão Texto Integral:
Processo n.º: 324/14.0TELSB-DF-A.S1

 

Recurso extraordinário de fixação de jurisprudência

I. Relatório

Haitong Capital – SCR, S.A, inconformada com o acórdão proferido em 23 de Agosto de 2021 pela 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, no Processo n.º 324/14.0TELSB-DF, interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência para este Supremo Tribunal de Justiça, invocando verificar-se oposição de acórdãos, no domínio da mesma legislação, relativamente à mesma questão de direito, indicando como acórdão recorrido o citado acórdão proferido em 23 de Agosto de 2021, no processo nº 324/14.0TELSB-DF e como acórdão fundamento o acórdão proferido em 21 de Janeiro de 2004 pela 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto no processo n.º 0315777, disponível no sítio www.dgsi.pt.

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No recurso apresentado, extrai as seguintes conclusões:

A. O Acórdão recorrido foi proferido em contradição com o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21-01-2004 publicado no sítio www.dgsi.pt;

B. O Acórdão recorrido e o acórdão-fundamento foram proferidos pelos Tribunais da Relação, no domínio da mesma legislação e versam sobre a mesma questão essencial de direito;

C. Em ambos os acórdãos em confronto, a questão que se coloca é a de saber se o conceito de "titular" prevista no art. 178.°, n.º 7, do CPP deverá ser interpretado literalmente como o "titular dos bens apreendidos" ou se pelo contrário poderá/deverá ter um outro alcance;

D. O douto Tribunal da Relação de Lisboa entende existir a necessidade de um direito real para que se possa aplicar o n.º 7 do art. 178.°, do CPP, pelo que apenas o titular dos bens apreendidos tem legitimidade para requerer a sua modificação ou revogação;

E. Por sua vez, o acórdão fundamento defende que "o âmbito do conceito "titular de bens ou direitos" do art. 178.º, n.º 6, do CPP de 1998 não se limita a quem seja proprietário do bem ou direito apreendido";

F. Seguindo-se o entendimento defendido pelo acórdão fundamento deverá interpretar-se o art. 178.°, n.° 7, do CPP que o fundamento para a legitimidade deve ter por base a utilidade que o seu titular há-de retirar da providência requerida.

Nestes termos e nos demais de direito deve conceder-se provimento ao presente recurso, sendo revogado o douto Acórdão recorrido, em termos de, o âmbito de aplicação do art. 178.°, n.º 7, do CPP, ser interpretado no sentido de conceito de legitimidade se aferir sempre pela utilidade que o seu titular há-de retirar da providência requerida e uniformizar-se a Jurisprudência quanto a esta questão de direito neste mesmo sentido.

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O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa respondeu ao recurso, alegando, em suma:

1 - O Acórdão recorrido e o Acórdão fundamento interpretaram e aplicaram diversamente a factos idênticos o art. 178.º, nº 7, do CPP, proferindo decisões opostas.

2 - A situação de facto é similar e a solução jurídica concreta foi diversa, respeitando à aplicação da mesma norma jurídica –artigo 178, nº7 do CPP.

3 - Tendo ambos os Acórdãos transitado em julgado.

4 - Termos em que se conclui pela verificação dos requisitos legais previstos no art. 437,°, do CPP, por estarmos perante dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentam em soluções concretas opostas, verificando-se, assim, a oposição de Julgados invocada pela Recorrente.

5 - Entende-se que, a decisão proferida pelo Acórdão recorrido fez correta interpretação e aplicação do Direito.”

Concluiu que se verificam todos os necessários e legais requisitos para que exista uma oposição de julgados, devendo o recurso ser admitido.

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Distribuído o processo como recurso extraordinário para fixação de jurisprudência no Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do art. 439.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o processo foi com vista ao Ministério Público, em conformidade com o disposto no art. 440.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, tendo a Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitido parecer no sentido da não verificação de todos os necessários e legais requisitos para que exista uma oposição de julgados, devendo o recurso ser rejeitado, concluindo:

“ (…) 10- No caso dos autos, os acórdãos recorrido e fundamento não preconizaram uma solução oposta sobre a mesma questão de direito, ambos interpretaram a norma do mesmo modo, chegaram a conclusões diversas quanto à legitimidade dos requerentes num e noutro processo face à diversidade dos contextos fácticos, a diferente situação de facto num e noutro caso é que impuseram uma decisão diversa, apesarem de ambos interpretarem a norma no mesmo sentido.

Em conformidade com o exposto, consideramos não estar preenchido o pressuposto substantivo de oposição de julgados, previsto no artigo 437, nº 1, do CPP, pelo que somos de parecer que o recurso deve ser rejeitado, nos termos do disposto nos artigos 440, n.ºs 3 e 4 e 441, n.º 1, do Código de Processo Penal.”

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Notificado deste parecer nos termos do art. 417.º, n.º 2, do CPP, ex vi art. 448.º, do CPP, a recorrente não respondeu.

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Efectuado o exame preliminar, remeteu-se o processo a vistos legais e de seguida à conferência, de acordo com o disposto no art. 440.º do Código de Processo Penal, pelo que cumpre apreciar e decidir.

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II Fundamentação

II. 1. Dispõe o art. 437.º, n.º 1, do CPP, sobre o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, que “Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.”.

Mais, prevê o n.º 2 do mesmo preceito legal que “É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça”, e de acordo com o n.º 3 do mesmo normativo “Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.”, sendo que, nos termos do n.º 4 “Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado”.

De acordo com o n.º 5 do mesmo preceito legal, têm legitimidade para interpor este recurso extraordinário, o arguido, o assistente e as partes civis, sendo o mesmo obrigatório para o Ministério Público.

Para além disso, estabelece o art. 438.º, do CPP, no seu n.º 1, que “O recurso para fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em primeiro lugar”, mais prevendo, no seu n.º 2, que “No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência.”.

Assim, a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência depende da existência de determinados pressupostos formais e substanciais. Fazendo uso das palavras do acórdão deste STJ, de 13-02-2013, proferido no processo n.º 561/08.6PCOER-A.L1.S1 “entre os requisitos de ordem formal contam-se: legitimidade do recorrente, que é restrita ao MP, ao arguido, ao assistente e às partes civis; interesse em agir, no caso de recurso interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis; não ser admissível recurso ordinário; interposição no prazo de 30 dias a partir do trânsito da decisão proferida em último lugar; identificação do acórdão que está em oposição com o recorrido, não podendo ser invocado mais do que um acórdão; trânsito em julgado de ambas as decisões. São requisitos de ordem substancial: existência de oposição entre dois acórdãos do STJ, ou entre dois acórdãos das Relações, ou entre um acórdão de uma Relação e um do STJ; a oposição referir-se à própria decisão e não aos fundamentos; identidade fundamental da matéria de facto”.

Assim podemos concluir que a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência depende da verificação dos seguintes requisitos formais e substanciais (arts. 437.º e 438.º, n.ºs 1 e 2, do CPP):

São requisitos de ordem formal:
d) a legitimidade do recorrente (sendo esta restrita ao MP, ao arguido, ao assistente e às partes civis); e interesse em agir, no caso de recurso interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis (já que tal recurso é obrigatório para o MP);

ii)         a identificação do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição, e, se este estiver publicado, o lugar da publicação; com justificação da oposição entre os acórdãos que motiva o conflito de jurisprudência;

iii)        O trânsito em julgado de ambas as decisões;

iv)        a interposição de recurso no prazo de 30 dias posteriores ao trânsito da decisão proferida em último lugar;

São requisitos de ordem substancial:

i)          existência de oposição entre dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ou entre dois acórdãos das Relações, ou entre um acórdão da Relação e um do Supremo Tribunal de Justiça;

a.         verificação de identidade de legislação à sombra da qual foram proferidas as decisões;

b.         oposição referida à própria decisão e não aos fundamentos (as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito consagrar soluções opostas para a mesma questão fundamental de direito);

c.         as decisões em oposição sejam expressas;

d.         identidade de situações de facto.

Especificamente no que concerne aos requisitos substanciais, para que se verifique a oposição de julgados, é necessária a existência de decisões contraditórias sobre a mesma questão de direito, proferidas no domínio da mesma legislação, e bem assim que estas decisões se apresentem como julgados expressos e não implícitos.

Ou seja, a exigência de oposição de julgados é de considerar-se preenchida quando, nos acórdãos em confronto, manifestamente e de modo expresso (e não apenas tacitamente), sobre a mesma questão fundamental de direito, se acolhem soluções opostas, no domínio da mesma legislação.

Neste sentido, veja-se, entre outros, o acórdão do STJ de 27-04-2017, Proc. n.º 1/17.0YFLSB.S1-A – 5.ª Secção : “II – Para definir a oposição de julgados exige-se que, além de antagónicas, as asserções de direito tenham que ser expressas, pois o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência só se justifica em casos absolutamente nítidos de contradição entre tribunais superiores sobre determinada questão jurídica, devidamente fundamentada em qualquer deles.

III – Os dois acórdãos têm de assentar em soluções opostas, a oposição deve ser expressa e não tácita, ou seja, tem de haver uma tomada de posição explícita e divergente quanto à mesma questão de direito.” (disponível em www.stj.pt/Jurisprudência/ Acórdãos/Sumários de acórdãos/Criminal – Ano de 2017).

A estes requisitos de ordem substancial, a jurisprudência do STJ aditou a necessidade de identidade de factos, não se restringindo à oposição entre as soluções de direito. Ou seja, impõe-se que as situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam idênticos em ambas as situações. Quer isto dizer que a mesma norma ou segmento normativo tem de ser aplicada(o) com sentidos opostos a situações fácticas iguais ou equivalentes. Mesmo que a diferença factual de ambos os processos, a do acórdão recorrido e a do acórdão fundamento, seja inelutável por dizer respeito a acontecimentos históricos diversos, terá de se tratar de diferenças factuais inócuas que nada interfiram com o aspecto jurídico do caso (cfr. acórdão do STJ de 20-03-2019, proferido no proc. n.º 42/18.GAMNC.G1-A.S1 com sumário disponível em www.stj.pt/Jurisprudência/ Acórdãos/Sumários de acórdãos/Criminal – ano de 2019 – Março).

Veja-se quanto a esta matéria, a título de exemplo, entre outros, o Acórdão do STJ de 27-06-2019, Proc. n.º 4/18.7GBSBG.C1-A – 5.ª Secção: “IV – Para além dos requisitos formais, o recurso de fixação de jurisprudência terá que cumprir requisitos substanciais que se traduzem numa oposição expressa, no domínio da mesma legislação, sobre a mesma questão de direito, tendo subjacente uma identidade de situações de facto ou pelo menos uma identidade substancial, de tal forma que em ambos os casos se exigisse uma mesma solução de direito” (Sumário disponível em www.stj.pt/Jurisprudência/ Acórdãos/Sumários de acórdãos/Criminal – ano de 2019 – Junho).

Já que a falta de identidade dos factos poderia explicar a prolação de soluções jurídicas díspares: apenas sobre a mesma situação de facto se pode verificar se existe ou não oposição de soluções de direito, isto é, apenas perante identidade de pressupostos de facto se pode avaliar da existência/inexistência de oposição de soluções de direito, excepcionando-se, naturalmente, os casos em que as diferenças factuais são inócuas e, por isso, em nada interferem com o aspecto jurídico do caso. (acórdão do STJ de 28-02-2019, proferido em no Pro n.º 2159/13.8TALRA.C2-A.S1 5.ª Secção, cujo sumário se encontra disponível em www.stj.pt/Jurisprudência/ Acórdãos/Sumários de acórdãos/Criminal – ano de 2019 – Fevereiro).

De acordo com o art. 441.º, n.º 1, do CPP se ocorrer motivo de inadmissibilidade ou o tribunal concluir pela não oposição de julgados, o recurso é rejeitado; se concluir pela oposição, o recurso prossegue.

Uma vez elencados os traços gerais sobre a admissibilidade do recurso para fixação de jurisprudência, analisemos o caso em apreço.

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II. 2. Começando pelos pressupostos formais, quanto à legitimidade do recorrente Haitong Capital – SCR, S.A.

Importa apreciar a legitimidade do requerente, face ao teor literal do art. 437.º, n.º 1, do CPP e do característico traçado deste recurso.

O ora recorrente Haitong Capital – SCR, S.A. requereu ao JIC a revogação da apreensão do património da Controlled Sport Portugal, SA, e a sua substituição pela apreensão das participações representativas de 97,451% do capital social da Controlled Sport Portugal, SA, detidas pela "Dassa Investissements, SA", bem como dos créditos (suprimentos), dessa sociedade na Controlled Sport Portugal, SA, e ordenar a venda urgente, da Herdade da Poupa (património imobiliário apreendido da Controlled Sport Portugal, SA), invocando o seu interesse e legitimidade na circunstância de ser: credora da sociedade "Controlled Sport Portugal, em 1.588.722.65 €, e também accionista da mesma, detendo participações equivalentes a 0,035% do seu capital.

No entanto, a pretensão do ora recorrente foi indeferida liminarmente por falta de legitimidade do ora recorrente, através de despacho que considerou que Haitong Capital – SCR, S.A, não é titular de qualquer de qualquer dos bens apreendidos à ordem dos autos, não possuindo legitimidade para requerer ao abrigo do disposto no art. 178.º, n.º 7, do CPP, a revogação ou a modificação da apreensão.

Este despacho foi confirmado pelo acórdão recorrido, que negou provimento ao recurso.

Ora, in casu, a decisão recorrida foi proferida contra o recorrente, que viu o seu direito afectado pela decisão – cf. art. 401.º, n.º 1, als. b) e d), do CPP.

Dispõe o art. 437.º, n.º 1 do CPP:

1 - Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, o Ministério Público, o arguido, o assistente ou as partes civis podem recorrer, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.”

Pelo que, atento o teor do referido dispositivo legal, à luz do preceito geral do art. 401.º, do CPP, ficam arredados de legitimidade para recorrer os referidos na alínea d): “Aqueles que tiverem sido condenados ao pagamento de quaisquer importâncias, nos termos deste Código, ou tiverem a defender um direito afectado pela decisão” (sublinhado e negrito nosso).

No caso sub judice, o recorrente não é arguido, assistente, ou sequer parte civil, o que atento o teor literal do n.º 1 5, do art. 437.º, do CPP, questiona-se a sua legitimidade para o presente recurso extraordinário.

Contudo, cumpre reter que no recurso para a Relação de Lisboa e agora no trazido para o Supremo Tribunal de Justiça a vexata quaestio reside precisamente na legitimidade do recorrente para poder contestar a apreensão dos bens da sociedade Controlled Sport Portugal, SA, na qualidade de credora e acionista desta.

Ora, a vexata quaestio funde-se com a questão da legitimidade.

Na senda do Acórdão do STJ, de 18.04.2002, Processo n.º 02P609, Relator Conselheiro Simas Santos, in www.dgsi.pt:

(…) o recorrente que viu denegado o seu direito a constituir-se como assistente, por falta de legitimidade, possa esgotar os expedientes de impugnação das decisões que assim o entenderam, mesmo os extraordinários, sob pena de negação do acesso pleno aos Tribunais.”, posição que ora sufragamos e expendemos.

Pelo que, o recorrente Haitong Capital – SCR, S.A tem legitimidade para a interposição de recurso e tem, ainda, interesse em agir, uma vez que o acórdão recorrido foi proferido contra o mesmo.

Tanto o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido nos presentes autos (Processo n.º 324/14.0TELSB-DF- acórdão recorrido), como o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no Processo n.º 0315777 (acórdão fundamento), transitaram em julgado, encontrando-se este último publicado em

http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/d1d5ce625d24df5380257583004ee7d7/9e87615e2327f0a280256e31005a2b01?OpenDocument.

O recurso é tempestivo, encontram-se preenchidos todos os requisitos formais de admissibilidade do presente recurso.

Todavia, o mesmo já não se pode afirmar quanto aos requisitos substanciais.

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II. 3. Defende o recorrente, no presente recurso, que o acórdão recorrido adopta uma solução jurídica radicalmente oposta ao acórdão fundamento, quanto à questão de saber se o conceito de titular prevista no art. 178.º, n.º 7, do CPP, deverá ser interpretada literalmente como o "titular dos bens apreendidos" ou se pelo contrário poderá/deverá ter um outro alcance, com o fundamento para a legitimidade tendo por base a utilidade que o seu titular há-de retirar da providência requerida, estando no domínio da mesma legislação e versam sobre a mesma questão essencial de direito.

Porém, não assiste razão ao recorrente.

Pese embora estejamos, nos dois acórdãos em causa, perante a análise do mesmo artigo legal- art. 178.º, do CPP, as situações de facto não possuem identidade, ou seja, não são idênticas ou equivalentes, a solução jurídica seguida em um e outro acórdão não é oposta, e não se está no domínio da mesma legislação.

Propugna o Acórdão do STJ, de 23-01-2005, Proc. 357/12.0TXPRT-G.P1-A.S1, in www.dgsi.pt.:

 “(…) o Supremo Tribunal de Justiça vem consolidando o entendimento de que a existência de decisões antagónicas pressupõe, para além de julgados expressos, a identidade de situações de facto base das decisões de direito antitéticas ou conflituantes”; “… a oposição de julgados pressupõe decisões contraditórias sobre a mesma questão de direito, proferidas no domínio da mesma legislação, sendo que a decisão da questão de direito não pode ser desligada do substracto factual sobre a qual incide”.

Vejamos a factualidade em apreciação no acórdão fundamento:

2.1.-Matéria de facto

a) em 6-5-2003, pela Directoria do Porto da Polícia Judiciária, foi apreendido o veículo automóvel de matrícula..-..-TC;

b) no respectivo título de registo de propriedade, consta: “Pr....., SA”;

c) em 4-6-2003, a ora recorrente solicitou ao Exmo. Sr. Juiz de Direito do -º juízo do Tribunal de Instrução Criminal do....., a revogação da medida que decretou a apreensão do referido veículo;

d) invocou, para tanto, que por contrato de aluguer n.º ..../... de ..-..-.., a R....., S.A. e a ora requerente, subscreveram e outorgaram um “contrato de aluguer de veículo sem condutor”, com início naquela data e fim em ..-..-.., que teve como objecto o referido veículo (cfr. art. 5º e 6º do requerimento de fls. 8 e seguintes).

e) com tal requerimento juntou vários documentos.

f) sobre o aludido requerimento recaiu o despacho recorrido, do seguinte teor: “

Fls. 1982: conforme resulta do título de registo de propriedade do veículo..-.-TC, a requerente P....., Lda. não é titular do bem apreendido, não tendo pois legitimidade para a pretensão, a qual se indefere”.

b) violação do art. 178º, n.º 6 do C. P. Penal

Tanto o M.P., como a recorrente, estão de acordo quanto à violação, pelo despacho recorrido, do disposto no art. 178º, 6 do C. P. Penal. De facto, entendem ambos que o referido artigo não restringe aos proprietários dos bens apreendidos, a legitimidade para pedir a modificação ou revogação da medida cautelar de apreensão.

Parece-nos que têm toda a razão.

O art. 178º, n.º 6 do C.P.P. refere que “os titulares de bens ou direitos objecto de apreensão podem requerer ao juiz de instrução a modificação ou a revogação da medida”.

Não se vê nenhuma razão para uma interpretação restritiva do preceito, limitando o âmbito do conceito “titular de bens ou direitos”, apenas a quem seja proprietário do bem ou direito apreendido. Com efeito, pode acontecer – como no caso presente, ou no de qualquer outro direito real menor – que o titular do direito de propriedade não seja imediatamente afectado com a apreensão. A possibilidade de requerer, ainda na fase do inquérito, a revogação da apreensão, só tem utilidade prática e efectiva para quem detenha o direito de usar e fruir o bem.

O caso dos autos configura uma destas situações, uma vez que, mesmo durante a apreensão, o locatário de longa duração continua a ter a obrigação de pagar as “rendas”.

É este locatário que se vê privado do uso legítimo do veículo e, por outro lado, o proprietário do mesmo não vê (para já) a sua posição jurídica prejudicada com a apreensão.

O interesse que fundamenta a legitimidade (neste incidente, como em toda a legitimidade processual) há-de aferir-se sempre pela utilidade que o seu titular há-de retirar da providência requerida.

Assim, torna-se evidente que a recorrente tem legitimidade para requerer a revogação ou a modificação da medida de apreensão, ao abrigo do disposto no art. 178º, n.º 6 do C.P.P., uma vez que é ela quem pode retirar, do deferimento do pedido de revogação da medida, a respectiva utilidade.”

Vejamos a factualidade em apreciação no acórdão recorrido:

 “Ora, em causa, está apenas e tão só saber se a recorrente tem legitimidade para interferir numa apreensão determinada no âmbito de um processo de natureza penal, conducente à sujeição a julgamento e aplicação de uma pena pela verificação de pressupostos que indiciam seriamente a prática de crimes.

A essa questão é completamente alheio saber se a recorrente tem ao seu dispor meios civilísticos de defesa dos seus pretensos direitos emergentes de relações de natureza exclusivamente civil. Cabe aqui referir que a titularidade de uma quota social, no âmbito de um processo penal, em que está em causa a prática por determinada pessoa colectiva de um crime, terá por única virtualidade a eventual responsabilização do titular da quota pela prática desse crime, e não a conversão dele em vítima do crime de que ele próprio terá, por princípio, beneficiado.

A par - mas independentemente - disso o facto de se apresentar como credor da sociedade de que é também titular não lhe confere a titularidade de qualquer direito de intervenção na apreensão, porque na verdade o seu direito cede, necessariamente, no âmbito do processo penal (ou seja, salvaguardando o exercício de direitos no âmbito civilístico, em sentido amplo), perante a garantia da eficácia dos actos próprios do exercício da função jurisdicional.

É que, ao contrário do que a recorrente defende, o âmbito de aplicação do artigo 178º/7 do CPP não se alarga a quem possa tirar utilidade do deferimento do pedido de revogação da medida, tout court. Antes pelo contrário, ele restringe a legitimidade para o benefício da sua aplicação a questões de dominalidade de facto, cujo fundamento mais comum é o direito de propriedade mas que abrange ainda direitos de efectivo uso e fruição de terceiros.

Isso mesmo está bem patente no aresto que a recorrente invoca, de onde consta que «O art. 178º, n.º 6 do C.P.P. refere que “os titulares de bens ou direitos objecto de apreensão podem requerer ao juiz de instrução a modificação ou a revogação da medida”. Não se vê nenhuma razão para uma interpretação restritiva do preceito, limitando o âmbito do conceito “titular de bens ou direitos”, apenas a quem seja proprietário do bem ou direito apreendido. Com efeito, pode acontecer – como no caso presente, ou no de qualquer outro direito real menor – que o titular do direito de propriedade não seja imediatamente afectado com a apreensão. A possibilidade de requerer, ainda na fase do inquérito, a revogação da apreensão, só tem utilidade prática e efectiva para quem detenha o direito de usar e fruir o bem.»

Ora, a recorrente não invoca qualquer direito real perante o objecto da apreensão. Consequentemente nenhuma legitimidade tem para o uso da norma em apreço. Independentemente da tese que se siga sobre a natureza da apreensão – meio de prova e/ou meio de garantia de eventual confisco – os fundamentos invocados não estão abrangidos pelo instituto que a recorrente utilizou.”

Não podemos descurar, como alega o recorrente que “em ambos os casos estamos perante a propositura de um incidente de modificação ou revogação de apreensão”, contudo, os acórdãos não se pronunciaram de forma dissemelhante quanto ao conceito de legitimidade, mas sim de forma distinta, porquanto o acórdão fundamento atenta a real situação fáctica aceitou legitimidade à requerente para deduzir o incidente de revogação da apreensão, ao passo que o acórdão recorrido, atenta a concreta situação, sufragou não assistir legitimidade ao ora recorrente.

Sendo que a pedra de toque para dissemelhantes decisões, prende-se com a dissemelhante relação jurídica face aos bens apreendidos num e noutro caso.

No acórdão recorrido o requerente HAITONG CAPITAL - SCR. S.A. alega a qualidade de credora e acionista da sociedade proprietária dos bens imóveis e conta bancária apreendidos – Controlled Sport (Portugal) -, ao passo que no acórdão fundamento, tratava-se da apreensão de um veículo relativamente ao qual a requerente era titular de um direito de utilização conferido por um contrato de aluguer de veículo sem condutor outorgado com a proprietária.

Face à factualidade em causa em cada um dos processos em confronto, verifica-se que inexiste qualquer identidade/equivalência quanto à interpretação do conceito de titular, prevista no art. 178.º, n.º 7, do CPP, porquanto o acórdão recorrido, perante a alegação pelo recorrente do decidido no acórdão fundamento, desmontou o raciocínio invocado argumentando a disparidade das situações.

Concluiu-se assim que inexiste qualquer equivalência quanto à interpretação do conceito de titular, prevista no art. 178.º, n.º 7, do CPP, em análise nos dois acórdãos em confronto. E desta forma, falece o requisito substancial da identidade de situações de facto.

A identidade das situações de facto subjacente aos dois acórdãos em conflito é que permite estabelecer uma comparação que permita concluir que quanto à mesma questão de direito existem soluções opostas e a necessidade da questão decidida em termos contraditórios ser objeto de decisão expressa (as soluções em oposição têm de ser expressamente proferidas).

No caso estamos a tratar de duas realidades fácticas distintas e, também nessa medida, impede que se considere que possa existir entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento uma solução jurídica, expressamente proferida, em oposição.

Conforme se decidiu no acórdão deste STJ, de 14-03-2013, proferido no Proc. n.º 4201/08.5TDLSB.L1-A.S1, in www.dgsi.pt:

IV - Não basta, para o efeito da determinação relevante da oposição de julgados, referida no art. 437.º do CPP, que uma das decisões seja equivalente, na prática, à que resultaria da questão jurídica, dita em oposição, ter sido decidida num determinado sentido, pois torna-se necessário que expressamente a decida, num sentido ou noutro, de preferência, de forma fundamentada.

V - Na verdade, o recurso para uniformização de jurisprudência não é um recurso ordinário, de que o sujeito processual lance a mão para retificar um determinado erro de julgamento. Daí que tenha requisitos muito limitativos e um deles é que as questões de direito em oposição tenham sido abordadas e decididas de forma expressa e não de forma meramente implícita.”

Na mesma senda, Acórdão do STJ, de 06-01-20216, Processo 109/12.8GDARL.E3-A.S1, in www.dgsi.pt:

 “I - A exigência de oposição de julgados, de que não se pode prescindir na verificação dos pressupostos legais de admissão do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos do art. 437.º, n.º 1, do CPP, é de considerar-se preenchida quando, nos acórdãos em confronto, de modo expresso, sobre a mesma questão fundamental de direito, se acolhem soluções opostas, no domínio da mesma legislação.

 II - A estes requisitos legais, o STJ, de forma pacífica, aditou a incontornável necessidade de identidade de factos, não se restringindo à oposição entre as soluções de direito.

III - Sendo o recurso de fixação de jurisprudência um recurso extraordinário e, por isso, excepcional, é entendimento comum do STJ que a interpretação das regras jurídicas disciplinadoras tal recurso, deve fazer-se com as restrições e o rigor inerentes (ou exigidas) por essa excepcionalidade.

 IV - A oposição relevante de acórdãos ocorrerá quando existam nas decisões em confronto soluções de direito antagónicas e, não apenas, contraposição de fundamentos ou de afirmações, soluções de direito expressas e não implícitas, soluções jurídicas tomadas a título principal e não secundário.”

Acresce ainda que o acórdão fundamento e o acórdão recorrido não foram proferidos no domínio da mesma legislação, dado que a norma em causa teve uma alteração legislativa no período que dista entre a prolação dos dois acórdãos, e estando em causa a discussão de quem tem legitimidade para insurgir-se e solicitar a alteração da decisão que determinou a apreensão de bens, tal como a acepção da norma que a prevê, tal alteração terá relevo.

Vejamos,

A norma apreciada no acórdão fundamento foi a prevista no art. 178º, n.º 6, do CPP, na redacção introduzida pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto:

 “6 - Os titulares de bens ou direitos objecto de apreensão podem requerer ao juiz de instrução a modificação ou revogação da medida. É correspondentemente aplicável o disposto no n.º 5 do artigo 68º”.

Esta norma foi modificada pela Lei nº 30/2017, de 30 de Maio, passando a constar do nº 7, do referido dispositivo legal, redacção em vigor na data prolação do acórdão recorrido:

 “7 - Os titulares de instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objectos ou coisas ou animais apreendidos podem requerer ao juiz a modificação ou a revogação da medida.”

Por tudo o que atrás se afirmou, concluiu-se que o decidido no acórdão recorrido para além de não ter identidade da situação de facto com o circunstancialismo do acórdão fundamento, também não apresenta para a mesma questão de direito uma solução jurídica oposta ao decidido no acórdão fundamento.

Desta feita, não pode concluir-se pela verificação da necessária oposição de julgados entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento.

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III. Conclusão

Termos em que, pelo exposto, acordam os juízes da secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

a) Rejeitar o presente recurso de fixação de jurisprudência, nos termos do disposto no art. 441.º, n.º 1 do Código de Processo Penal;

b) Condenar a recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) unidades de conta, nos termos dos arts. 420.º, n.º 3, ex vi art. 448.º, ambos do Código de Processo Penal.

Lisboa, 16 de Dezembro de 2021.

Cid Geraldo (relator)

Helena Moniz (adjunta)