Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0315777
Nº Convencional: JTRP00036479
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO
Descritores: APREENSÃO
Nº do Documento: RP200401210315777
Data do Acordão: 01/21/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T I CR PORTO 1J
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO O RECURSO.
Área Temática: .
Sumário: O âmbito do conceito "titular de bens ou direitos" do artigo 178 n.6 do Código de Processo Penal de 1998 não se limita a quem seja proprietário do bem ou direito apreendido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
No Tribunal de Instrução Criminal do..... – -º juízo B, inquérito n.º../.., -ª Sc. M.º P.º, “P....., Lda”, inconformada com a decisão que indeferiu, por ilegitimidade, o seu requerimento onde pedira a revogação da medida que decretara a apreensão do veículo matrícula ..-..-TC, recorreu para este Tribunal da Relação, formulando as seguintes conclusões:

a) o douto despacho de fls. 2065, na parte em que se pronunciou quanto ao pedido de revogação da medida que decretou a apreensão do veículo ..-..-TC é irregular, por falta de fundamentação prevista no art. 97º, n.º 4 do C.P.P. que, por isso, foi violado;

b) sendo a recorrente titular de um direito de utilização conferido pelo contrato de aluguer invocado nos autos, é ela um dos “titulares de direitos” previsto no n.º 6 do art. 178º do C.P.P., pelo que detém legitimidade para requerer a revogação da medida que decretou a apreensão do sobredito veículo, requerimento que lhe devia ser deferido. Violou-se o n.º 6 do art. 178º do C.P.P.

O M.P. junto do tribunal “a quo”, na sua resposta, concluiu dever ser revogado o douto despacho recorrido, substituindo-se por outro que considere a recorrente parte legítima para requerer a revogação da medida que validou a apreensão do veículo ..-..-TC.

Neste Tribunal, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto teve vista dos autos, emitindo parecer no sentido de dever ser dado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência, para julgamento do recurso.

2. Fundamentação
2.1. Matéria de facto

a) em 6-5-2003, pela Directoria do Porto da Polícia Judiciária, foi apreendido o veículo automóvel de matrícula ..-..-TC;

b) no respectivo título de registo de propriedade, consta: “Pr....., SA”;

c) em 4-6-2003, a ora recorrente solicitou ao Ex.mo Sr. Juiz de Direito do -º juízo do Tribunal de Instrução Criminal do....., a revogação da medida que decretou a apreensão do referido veículo;

d) invocou, para tanto, que por contrato de aluguer n.º ..../... de ..-..-.., a R....., S.A. e a ora requerente, subscreveram e outorgaram um “contrato de aluguer de veículo sem condutor”, com início naquela data e fim em ..-..-.., que teve como objecto o referido veículo (cfr. art. 5º e 6º do requerimento de fls. 8 e seguintes).

e) com tal requerimento juntou vários documentos.

f) sobre o aludido requerimento recaiu o despacho recorrido, do seguinte teor: “ Fls. 1982: conforme resulta do título de registo de propriedade do veículo ..-..-TC, a requerente P....., Lda. não é titular do bem apreendido, não tendo pois legitimidade para a pretensão, a qual se indefere”.

2.2. Matéria de direito
A recorrente imputa ao acto recorrido falta de fundamentação (conclusão 1ª) e erro na interpretação do art. 178º, 6 do C. P. Penal (conclusão2ª).

a) falta de fundamentação
Entende a recorrente que o despacho recorrido não está fundamentado e, por isso, é irregular, por violação do disposto no art. 97º, n.º 4 do C. P. Penal.

Por seu lado, o M.P. entende que o despacho está minimamente fundamentado, mas, em todo o caso, ainda que o não estivesse, tal circunstância configuraria mera irregularidade sujeita ao regime do art. 123º do C. P. Penal, isto é, “deveria a recorrente ter arguido tal irregularidade no prazo de 3 dias a contar da notificação do despacho recorrido”.

Nos termos do art. 97º, 4 do C. P. Penal, os actos decisórios são sempre fundamentados “devendo especificar os motivos de facto e de direito da decisão”. Parece-nos que o despacho recorrido é completamente omisso quanto à fundamentação de direito, uma vez que nada diz, (nem sequer por remissão ou adesão a anterior promoção fundamentada - fundamentação “per relatione”) quanto às razões jurídicas que impõem que só os proprietários dos bens apreendidos possam requerer o levantamento das medidas de apreensão, mormente quando o requerimento é formulado por alguém que, sem ser proprietário, invoca a titularidade de um direito de uso e fruição do bem apreendido, emergente de um contrato de aluguer de longa duração.

Porém, como refere MAIA GONÇALVES, Código de Processo Penal, 13ª edição, 2002, pág. 280, “a falta de fundamentação dos actos decisórios, quando não tenha tratamento específico previsto na lei, constitui irregularidade, submetida ao regime do art. 123º”. Contrariamente ao que ocorre com a sentença, cuja falta de fundamentação está cominada com nulidade (art. 379º, n.º 1 a) do C. P. Penal), não está especialmente prevista qualquer cominação para a falta de fundamentação do despacho que decide a modificação, ou revogação, da medida de apreensão. Logo, não tendo a irregularidade sido arguida nos três dias subsequentes à notificação do acto, a mesma torna-se inoperante, sem quaisquer reflexos jurídicos no processo – art. 123º do C. P. Penal.

b) violação do art. 178º, n.º 6 do C. P. Penal
Tanto o M.P., como a recorrente, estão de acordo quanto à violação, pelo despacho recorrido, do disposto no art. 178º, 6 do C. P. Penal. De facto, entendem ambos que o referido artigo não restringe aos proprietários dos bens apreendidos, a legitimidade para pedir a modificação ou revogação da medida cautelar de apreensão.

Parece-nos que têm toda a razão.

O art. 178º, n.º 6 do C.P.P. refere que “os titulares de bens ou direitos objecto de apreensão podem requerer ao juiz de instrução a modificação ou a revogação da medida”.
Não se vê nenhuma razão para uma interpretação restritiva do preceito, limitando o âmbito do conceito “titular de bens ou direitos”, apenas a quem seja proprietário do bem ou direito apreendido. Com efeito, pode acontecer – como no caso presente, ou no de qualquer outro direito real menor – que o titular do direito de propriedade não seja imediatamente afectado com a apreensão. A possibilidade de requerer, ainda na fase do inquérito, a revogação da apreensão, só tem utilidade prática e efectiva para quem detenha o direito de usar e fruir o bem.

O caso dos autos configura uma destas situações, uma vez que, mesmo durante a apreensão, o locatário de longa duração continua a ter a obrigação de pagar as “rendas”. É este locatário que se vê privado do uso legítimo do veículo e, por outro lado, o proprietário do mesmo não vê (para já) a sua posição jurídica prejudicada com a apreensão.
O interesse que fundamenta a legitimidade (neste incidente, como em toda a legitimidade processual) há-de aferir-se sempre pela utilidade que o seu titular há-de retirar da providência requerida.

Assim, torna-se evidente que a recorrente tem legitimidade para requerer a revogação ou a modificação da medida de apreensão, ao abrigo do disposto no art. 178º, n.º 6 do C.P.P., uma vez que é ela quem pode retirar, do deferimento do pedido de revogação da medida, a respectiva utilidade.

3. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que aprecie o requerimento da recorrente, solicitando a revogação da medida que decretou a apreensão do veículo matrícula ..-..-TC.
Sem custas.

Porto, 21 de Janeiro de 2004
Élia Costa de Mendonça São Pedro
José Manuel Baião Papão
Francisco Augusto Soares de Matos Manso