Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
668/15.3T8FAR.E1.S2
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DUPLA CONFORME
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
REGISTO PREDIAL
PRESUNÇÃO
DESCRIÇÃO PREDIAL
TITULARIDADE
Data do Acordão: 01/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / INTERPOSIÇÃO E EXPEDIÇÃO DO RECURSO / JULGAMENTO DO RECURSO – PROCESSO DE EXECUÇÃO / EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA / PENHORA / PENHORA DE BENS IMÓVEIS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 671.º, N.º 3, 674.º, N.º 3, 682.º, N.ºS 1 E 2 E 762.º, N.º 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 19-09-2017, PROCESSO N.º 120/14.4T8EPS.G1.S1;
-DE 28-09-2017, PROCESSO N.º809/10.7TBLMG.C1.S19, AMBOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I - A decisão da Relação de não conhecimento da impugnação da matéria de facto forma-se ex novo na própria Relação, não tendo qualquer paralelo, afinidade ou contiguidade com a decisão produzida na 1ª instância. Nesta hipótese, nunca se pode formar, por natureza, uma situação de dupla conformidade decisória.

II - Isto, porém, só vale relativamente a essa decisão. Não se pode aproveitar a decisão para abrir o recurso a outras matérias em que se regista uma dupla conformidade decisória.

III - Não basta à parte indicar os factos de cujo julgamento discorda e fazer referência a diversos depoimentos testemunhais (e juntar ainda a transcrição integral dos depoimentos), pelo contrário está obrigada a especificar quais os concretos depoimentos que invalidam o julgamento dos concretos factos sob impugnação.

IV - A presunção registral não abrange fatores descritivos, como as áreas, limites ou confrontações, cingindo-se apenas à existência do direito e à sua pertença às pessoas em cujo nome se encontra inscrito.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

AA e mulher BB demandaram, pela Secção Cível da Instância Central da Comarca de Faro e em autos de ação declarativa com processo na forma comum, CC, S.A., peticionando (e entre o mais que já não está em discussão) a condenação da Ré no reconhecimento do direito de propriedade dos Autores sobre a parcela de terreno que identificam, integrante de prédio urbano que descrevem e que lhes pertence, bem como na restituição dessa parcela no estado em que que se encontrava antes dos atos de ocupação praticados pela Ré.

Alegaram para o efeito, em síntese, que são donos do prédio que descrevem, que resultou da anexação de outros prédios, e cuja aquisição se encontra registada a seu favor. O prédio tem a área de 2.447,5m2. Confina com prédio urbano da Ré. Consta do registo que este último prédio tem a área de 812,04m2, mas isto não é exato, antes resulta de manobras matriciais e registrais. Tal área foi alcançada, em 217,46m2, a expensas do prédio dos Autores. A Ré apropriou-se assim dessa parcela de terreno, que ocupa materialmente e que submete aos seus fins empresariais.

Contestou a Ré, concluindo pela improcedência da ação.

Disse, em síntese, que a referida parcela faz parte do seu prédio urbano, e não do prédio dos Autores.

Seguindo a ação seus termos, veio a final a ser proferida sentença que julgou improcedente a ação na parte respeitante ao pedido em causa.

Inconformados com o assim decidido, apelaram os Autores.

Fizeram-no sem êxito, pois que a Relação de Évora julgou a apelação improcedente e confirmou a sentença.

Ainda inconformados, interpõem os Autores revista.

Da respetiva alegação extraem os Recorrentes as seguintes conclusões:

1 - Recusando-se a aplicação da norma do artigo 671.°, nº 3 do CPC, deve o presente recurso de revista ser admitido, uma vez que inexiste dupla conforme, porquanto o acórdão da Relação rejeitou o conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto constante da sentença da primeira instância por razões formais/processuais, ficando desse modo a decisão sobre a matéria de facto fixada nos autos nas mãos do Juiz de primeira instância e não sendo, assim, uma e mesma a realidade material e jurídica apreciada pela Comarca e pela Relação, preterindo-se o direito ao recurso e o acesso à Justiça, este relacionado directamente com o direito a um duplo grau de jurisdição, todos com consagração constitucional.

2 - A norma do artigo 671.°, nº do CPC interpretada no sentido de que existe dupla conforme quando o acórdão da Relação confirma a sentença da primeira instância, sem voto de vencido, e pela mesma ou semelhante qualificação fundamentação jurídica, no caso de a Relação rejeitar o conhecimento da impugnação da decisão de facto constante da sentença da primeira instância por razões formais, não emitindo qualquer juízo sobre a mesma, é materialmente inconstitucional por violação do direito ao recurso e à Justiça e a um duplo grau efectivo de jurisdição, previstos no artigo 20.° da Constituição da República.

3 - É questão de relevância jurídica para melhor aplicação do Direito e determinante de ser admitida revista excepcional, estabelecer-se se os factos constantes da decisão da matéria de facto constante da decisão recorrida quanto a áreas, extensão, composição e limites de imóveis fundamentados pela sentença em certidões de registo predial, certidões matriciais, escrituras notariais, declarações para inscrição na matriz, requerimentos das partes perante serviços matriciais e registrais, por a respectiva autenticidade não ter sido colocada em causa pelas partes, podem ser utilizados pelos recorrentes para alegação e prova do direito de propriedade que se arrogam na acção sobre a parcela reivindicada.

4 - Dos elementos resultantes dos documentos matriciais e registrais relativos ao prédio dos recorrentes, tidos como provados pela decisão de facto, decorre que a área do prédio destes manteve-se inalterada correspondendo e adequando-se à que consta dos sucessivos títulos de aquisição e de alienação.

5 - Dos elementos resultantes dos documentos matriciais e registrais relativos ao prédio da recorrida, tidos em conta pela decisão de facto, resulta desconformidade entre as sucessivas áreas declaradas e os sucessivos títulos de aquisição e de alienação, havendo um aumento desmesurado de área que não se sustenta em qualquer título de aquisição.

6 - A área do prédio da recorrida dada como provada foi obtida mediante mera manobra de papéis, por declarações que não correspondem à realidade física e sem fundamento em títulos de aquisição que lhe deem cobertura, de forma a englobar artificialmente no seu prédio a parcela reivindicada pelos recorrentes autores, como resulta de todos os documentos que fundamentam a decisão de facto nos pontos 1 a 22.

7 - Na declaração modelo I do IMI de 2004 relativa ao prédio urbano da ré com a matriz … (com origem na 272), o prédio passou de 114,80 m2 para 1.000m2 sem qualquer fundamentação na realidade material e sem título.

8 - A recorrida manteve declarações coerentes quanto à área de 120m2 do seu prédio urbano com a matriz actual ... e nunca colocou em causa que este último prédio tenha, no terreno, a área de 120m2, urbano que se situa a norte da parcela reivindicada.

9 - O outro prédio da recorrida, que conjuntamente com este de 120m2, veio a dar o prédio a que se refere o ponto 13 de factos provados, confronta, e sempre confrontou, no poente com Rua ... (antes ...), a sul com … (antes ...), a norte com uma construção, mas a nascente do mesmo existe o prédio (da recorrida) com os 120m2 e um muro construído com pedras de betão, que o separa da parcela reivindicada, pelo que, para se estender e fazer coincidir área no terreno com a área por si ficticiamente criada, fisicamente só era possível à recorrida "inchar" o seu prédio para a parcela reivindicada.

10 - Para efeitos de licenciamento (mais recente) de projecto de construção a recorrida apresentou uma planta em que alega que o seu prédio tem a área de 1. 120m2, que excede a área já artificialmente criada por declarações.

11 - Tal extensão só pode ter cabimento na realidade física e material se considerarmos que a recorrida incluiu nesta medição de 1.120m2 a parcela reivindicada, uma vez que os peritos verificaram que sem a parcela reivindicada a área que pertence à ré é de 902,54m2, e que para efeitos de licenciamento a ré declarou a mais em relação ao registo predial uma área de 307,92 m2, além do que a recorrida não formulou pedido reconvencional quanto ao reconhecimento do direito de propriedade a seu favor da parcela reivindicada. 12 - Os peritos verificaram no terreno que, inexistindo discrepâncias de áreas na evolução dos prédios que resultaram no actual prédio dos autores, estes utilizam área a menos, ou seja falta a extensão da parcela reivindicada, e que a recorrida utiliza área a mais, excesso que corresponde à parcela reivindicada.

13- Se resulta destes documentos, para que remete a decisão de facto, e que fundamentam os pontos 1 a 22 desta decisão, que a parcela reivindicada pelos recorrentes se inclui no seu prédio, cuja titularidade não foi posta em causa, há que daqui extrair que aqueles podem aproveitar esta matéria fixada pelo tribunal, de modo que seja declarado que a parcela reivindicada lhes pertence porque se inclui no prédio de que são proprietários.

14 - E dessa forma deveria ter sido declarado que a parcela reivindicada se inclui no prédio dos autores, ordenando-se a sua restituição aos mesmos, pelo que, não o fazendo, o acórdão recorrido violou o disposto no artigo 1311. º do Código Civil.

Terminam dizendo que “Nestes termos, deverá o presente recurso ser considerado provado e procedente, revogando-se o acórdão recorrido, e deverá ser declarado que a parcela reivindicada pertence aos autores recorrentes, ordenando-se a sua restituição a estes.”

                                                           +

Não se mostra oferecida contra alegação.

                                                           +

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

                                                           +

II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou fundamentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

                                                           +

III - FUNDAMENTAÇÃO

Plano factual

As instâncias consideraram provados os factos seguintes:

1 - Os autores têm inscrita a seu favor a aquisição, por usucapião e compra, do direito de propriedade sobre o prédio urbano, sito em ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artº ..., da freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº …, composto por edifício de 3 pisos, com 20 fogos e logradouro, com a área total de 2.477m2 (coberta de 525,3m2 e descoberta de 1952,2 m2), a confrontar a norte com BB e outros, a sul com arruamento do parque, a nascente com DD e a poente com BB e outros (cfr. doc. de fls.26/27, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

2 - O referido prédio resultou da anexação dos prédios n.ºs … e … daquela freguesia, tendo origem o artº ... nos art.ºs 1010 e 3834 (cfr. doc. de fls.26/27, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

3 - O prédio urbano descrito sob o nº… era composto por lote de terreno, com 1.820m2, destinado a construção urbana, a confrontar a norte com EE e FF, a sul com ..., a nascente com DD e a ponte com GG, encontrando-se descrito atualmente com uma área de 1.204m2 (cfr. doc. de fls.43/47, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

4 - O prédio urbano descrito sob o nº… era composto por parcela de terreno para construção, com 1.500m2, a confrontar a norte e a nascente com BB e outro, a sul com ..., a poente com Eng.º HH (cfr. doc. de fls.49/51, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

5 - Este prédio foi desanexado do prédio n.º … (cfr. doc. de fls.49/51, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

6 - Por escritura pública realizada em 24.07.1984, no Cartório Notarial de …, os autores declararam adquiriram duas faixas de terreno, que se destinavam a logradouro do prédio inscrito a favor da autora sob o artº…, compostas por: a) porção de terreno com a área de 500m2, que confronta a norte com compradora, a sul com ..., a nascente com GG e a poente com engenheiro HH, a desanexar do prédio rústico inscrito sob o artº …, omisso na Conservatória do Registo Predial, e b) porção de terreno com a área de 1000m2, que confronta a norte com herdeiros de II e outro, a sul com ..., a nascente com herdeiros de II e a poente com compradora, a desanexar do prédio rústico inscrito sob o artº … e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº … (cfr. doc. de fls. 53/57, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

7 - Encontrava-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº ..., omisso na matriz, o prédio urbano, composto por edifício de 2 pisos, com área de 3.000m2 (coberta 175m2 e descoberta 2.825m2), a confrontar a norte com ... e herdeiros de II, a sul com ..., a nascente com JJ e GG e outro e a poente com EE e Eng.º HH (cfr. doc. de fls.59/67, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

8 - O referido prédio resultou da anexação dos prédios nºs …, … e … e dele foi desanexado o prédio nº…, com a área de 1.500m2 (cfr. doc. de fls.59/67, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

9 - Encontrava-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº …, omisso na matriz, o prédio urbano, composto por lote de terreno para construção, com 1.000m2, a confrontar a norte com herdeiros de II e outro, a sul com ..., a nascente com herdeiros de II e a poente com BB (cfr. doc. de fls. 59/67, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

10 - Encontrava-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº …, omisso na matriz, o prédio urbano, composto por lote de terreno para construção, com 500m2, a confrontar a norte com BB, a sul com ..., a nascente com GG e a poente com engenheiro HH (cfr. doc. de fls.59/67, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

11 - Encontrava-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº …, inscrito na matriz sob o artº…, o prédio urbano, composto por edifício de 2 pisos, a confrontar a norte com herdeiros de II e outro, a sul com BB, a nascente com JJ e outro e a poente com herdeiros de EE e outros, com superfície coberta de 175m2 e descoberta de 1.325m2 (cfr. doc. de fls.59/67, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

12 - Por escritura lavrada em 24.07.2002, no Notário Privado da Câmara Municipal de ..., os autores declararam doar àquela Câmara Municipal uma parcela de terreno com a área de 226,50 m2, sita em ..., freguesia de ... e concelho de ..., a confrontar a norte com o próprio, a sul com ..., a nascente com KK e LL e a ponte com AA, a destacar do prédio inscrito sob o artº … e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº… (cfr. doc. de fls.71/72, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

13 - A ré tem inscrita a seu favor a aquisição, por permuta e compra, do direito de propriedade sobre o prédio urbano, sito em ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artº …, atualmente na matriz predial sob os artºs … e ..., da freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº …, composto por parcela de terreno para construção urbana, com a área total de 812,04m2, a confrontar a norte com MM, a sul com térreos da ..., a nascente com NN e a poente com ... (cfr. doc. de fls. 84/85, 591 e 593, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

14 - O referido prédio resulta da anexação dos prédios descritos sob os nºs … e … (cfr. doc. de fls.84/85 e 133/141, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

15 - Encontrava-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ... com o nº …, o prédio urbano composto por edifício de 2 pisos, com área de 692,04m2 (coberta 270m2 e descoberta 422,04m2), inscrito na matriz sob o artº …, a confrontar a norte com MM, a sul com terrenos da ..., a nascente com NN e a poente com ... (cfr. doc. de fls.133/141, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

16 - Encontrava-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ... com o nº …, o prédio urbano composto por edifício de 2 pisos, com área de 120m2 (coberta de 90m2 e descoberta de 30m2), inscrito na matriz sob o artº..., a confrontar a norte com herdeiros de OO, a sul com ..., a nascente com PP e poente com NN (cfr. doc. de fls.133/141, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

17 - O artº 4118 da freguesia de ... tem proveniência nos artºs 3748 e ..., os quais tiveram, respetivamente, origem nos artºs 272 e 311 (cfr. doc. de fls.87/88 e 90/97, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

18 - A área prevista no artº 3748 era de 1.000m2, com área de implantação do edifício de 270m2 e a área prevista no artº... era de 120m2, sendo superfície coberta de 90m2 e descoberta de 30m2 (cfr. doc. de fls.90/101, 591 e 593, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

19 - O artº 272 previa uma área total de 114,870m2, sendo superfície coberta 77,90m2 e superfície descoberta de 36,90m2 (cfr. doc. de fls.90/101, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

20 - Por escritura pública de 05.05.2005, outorgada no Cartório Notarial de ..., a ré declarou adquirir o direito de propriedade sobre o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº…, inscrito na matriz sob o artº provisório … (cfr. fls.157/160, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

21 - Por escritura pública de 08.06.2009, outorgada no Notário Privativo da Câmara Municipal de ..., a ré declarou doar àquela Câmara Municipal uma parcela de terreno com a área de 307,96m2 a destacar do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº… (cfr. doc. de fls.162/165, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

22 - A ré apresentou pedido de licenciamento junto da Câmara Municipal de ... para construção de um bloco de apartamentos turísticos, de 3 estrelas, a edificar no prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº … (cfr. doc. de fls.171/176, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

23 - O prédio identificado em 1. encontra-se vedado em toda a sua periferia com exceção de uma parte no canto norte/poente, que confronta com outro prédio pertencente aos autores.

24 - O prédio urbano identificado em 13. possui quatro edificações com logradouro e uma área aproximada de 812,04m2.

25 - Encontrando-se vedado ou murado em toda a sua periferia, designadamente na estrema sul, com tapume metálico.

26 - Os prédios identificados em 1. e 13. confrontam nascente/poente, encontrando-se a delimitá-los rede metálica ao longo dessa confrontação e muro duplo de alvenaria.

27 - A autora intentou no Tribunal Administrativo de Loulé ação administrativa comum, com o nº 522/14.6BELLE, na qual a ré é contra-interessada (cfr. doc. de fls.293/294, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

Foram considerados não provados os factos seguintes:

a - o prédio urbano identificado em 1. possui uma área total aproximada de 2477,50m2 (vide resposta perícia ponto 1) - fls.459.

b - a ré colocou tapumes a delimitar a sul parte do prédio urbano identificado em 1.

c - a ré demoliu parte do muro de vedação delimitador da estrema poente do prédio urbano identificado em 1 com a estrema nascente do prédio urbano identificado em 13.

d - a ré ocupa uma área de 217,46m2 do prédio identificado em 1, que confronta a norte com prédio urbano inscrito na matriz sob o artº ... e a poente com prédio urbano inscrito na matriz sob o artº ….

Plano Jurídico-conclusivo

Quanto à matéria da conclusão 3ª:

O que se refere nesta conclusão tem a ver com a admissibilidade da revista excecional, subsidiariamente interposta (foi interposta para a hipótese de se entender que havia dupla conforme impeditiva da revista “normal”). Trata-se, porém, de assunto que se considera ultrapassado, uma vez que a competente formação de juízes (nº 3 do art. 762º do CPCivil) já se pronunciou no sentido de que nada tinha a decidir sobre os pressupostos da admissibilidade da revista excecional.

Quanto à matéria das conclusões 1ª e 2ª:

Nestas conclusões os Recorrentes procuram significar que a revista “normal” é admissível, visto que a decisão do tribunal recorrido no sentido da rejeição da impugnação da matéria de facto não permite a formação de uma dupla conforme.

Assim é efetivamente.

Pois que a decisão de não conhecimento da impugnação da matéria de facto formou-se ex novo na própria Relação, não tendo qualquer paralelo, afinidade ou contiguidade com a decisão produzida na 1ª instância. Nesta hipótese, nunca se pode formar, por natureza, uma situação de dupla conformidade decisória.

Simplesmente, é preciso compreender que o que acaba de ser dito só vale relativamente à decisão que rejeitou a impugnação da matéria de facto. Não se pode aproveitar essa decisão para abrir o recurso a outras matérias em que se regista uma dupla conformidade decisória.

Mas é precisamente o que fazem os Recorrentes.

Observe-se:

Não dispensam uma única linha do seu recurso a contestar a legalidade da decisão de rejeição da impugnação da matéria de facto. Ou seja, aceitam a bondade dessa decisão.

O que fazem é, unicamente, contestar a decisão de mérito, de facto e de direito, que foi tomada. Entendem que este Supremo haveria que considerar provados os factos que lhes interessam e que, por isso, o pedido reivindicatório deveria proceder. Concordantemente, terminam até a sua alegação na forma acima transcrita, e que aqui se repete: “Nestes termos, deverá o presente recurso ser considerado provado e procedente, revogando-se o acórdão recorrido, e deverá ser declarado que a parcela reivindicada pertence aos autores recorrentes, ordenando-se a sua restituição a estes.”

Não visam, em sítio algum, a anulação do acórdão recorrido (para que seja apreciada a matéria a matéria de facto supostamente omitida), que seria o efeito próprio da ilegalidade (violação ou errada aplicação da lei de processo) da decisão de rejeição do conhecimento da matéria de facto.

O que tudo significa que o presente recurso não tem por objeto verificar se a rejeição do conhecimento da matéria de facto foi ou não processualmente legal. Os Recorrentes limitaram-se a invocar a circunstância de não haver lugar a qualquer dupla conforme quanto ao decidido relativamente à rejeição da impugnação da matéria de facto (o que é exato), mas daí não retiraram quaisquer consequências. Pelo contrário direcionaram-se exclusivamente para a discussão do mérito da causa.

Contudo, no que se refere ao decidido relativamente ao mérito da causa está formada a mais lídima dupla conforme. Pois que o acórdão recorrido confirmou, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diversa, a sentença da 1ª instância.

Ex abundanti sempre se dirá, a propósito do decidido no acórdão recorrido quanto à rejeição da impugnação da matéria de facto, que se trata de decisão inteiramente legal. Pois que, visto o disposto no art. 640º, nº 1, alínea b) do CPCivil, não bastava aos Apelantes indicar os factos de cujo julgamento discordavam e fazer referência a diversos depoimentos testemunhais (e juntar ainda a transcrição integral dos depoimentos), antes estavam obrigados a especificar quais os concretos depoimentos que invalidavam o julgamento dos concretos factos sob impugnação. O que de todo em todo não fizeram, limitando-se a indicar o que as diversas testemunhas terão dito, mas sem estabelecerem (como bem se diz no acórdão) uma correlação entre as concretas passagens dos depoimentos e os pontos de facto precisos a serem alterados. Ou seja (como ainda se observa no acórdão), não concretizaram, quanto a cada facto concreto, qual o concreto depoimento, de entre os oito versados, em que fundavam a pretensão recursória. Sucede que o escrutínio da matéria de facto por parte da Relação é seletivo (isto é, refere-se a factos e provas concretos), não se confundindo com uma mais ou menos genérica, abstrata e difusa reapreciação dos factos e das provas.

Dizem agora os Recorrentes que “a lei processual civil determina que o Tribunal da Relação proceda à modificação da matéria de facto, ainda que a mesma não haja sido impugnada, ou se o for sem sucesso, ou se essa impugnação for rejeitada por razões formais, como é o caso presente, designadamente com fundamento em documentos que constem do processo”.

Pode aceitar-se como (mais ou menos) exata esta asserção.

Simplesmente, o acórdão recorrido não viu razão para modificar a matéria de facto com fundamento em qualquer outro meio de prova. Pelo contrário, e como resulta claro do que se mostra escrito nas respetivas páginas 21 e 22, o acórdão considerou que a demais prova produzida apontava para o acerto da decisão da 1ª instância, e não para a tese dos Autores. E assim sendo, é óbvio que nenhuma modificação da matéria de facto se pode ter como indevidamente omitida.

Donde, a decisão de rejeição do conhecimento da matéria de facto mostra-se legal, nenhuma censura merecendo o acórdão a esse nível.

Quanto à matéria das conclusões 4ª a 14ª:

Nestas conclusões os Recorrentes sustentam, segundo a leitura que fazem de certos meios probatórios constantes dos autos, que se mostra que a parcela de terreno em causa integra o seu prédio, e não o prédio da Ré, motivo pelo qual o pedido reivindicativo deve proceder.

Mas é por demais óbvio que não se lhes pode dar razão.

Desde logo, pelo motivo acima apontado: relativamente a este pedido está formada uma dupla conformidade decisória das instâncias, de sorte que nunca poderia este Supremo Tribunal ocupar-se da questão, por ser inadmissível recurso de revista. É o que resulta do nº 3 do art. 671º do CPCivil.

Depois, porque está fora dos poderes apreciativos e decisórios do Supremo a questão de facto, como resulta claramente do nº 3 do art. 674º e dos nºs 1 e 2 do art. 682º, ambos do CPCivil. Observe-se, a propósito, que os documentos (notariais, matriciais e registrais) a que aludem os Recorrentes (e que, como reconhecem algures no corpo da sua alegação, não integram senão meras declarações particulares) não constituem prova plena dos factos em discussão, pelo contrário não passam de meios de prova submetidos à livre apreciação do tribunal. O mesmo se diga da prova pericial que foi produzida. Daqui que nunca poderia este Supremo pronunciar-se, ao abrigo do nº 3 do art. 674º do CPCivil, sobre as áreas dos prédios em confronto, de modo a concluir pela pertença da parcela em disputa ao prédio dos Autores.

Observe-se também que, contra o que pretendiam os Recorrentes em sede de admissibilidade da revista excecional (que, todavia, não chegou a ser admitida, sendo que tal revista foi apresentada a título subsidiário à não admissão da revista “normal”, e esta está admitida), nada se impõe “clarificar” relativamente à presunção do artº 7º do Código do Registo Predial. Isto é assim porque não há qualquer dúvida nos meios jurídicos (a começar pela jurisprudência) de que tal presunção não abrange os limites, composição, áreas, etc. dos prédios. É irrelevante para o caso a dúvida subjetiva que os Recorrentes possam ter sobre o assunto, e que, seguramente, não é partilhada por mais ninguém.

Ainda assim, a impor-se alguma clarificação, só temos de dizer o óbvio: que a presunção registral não abrange fatores descritivos, como as áreas, limites ou confrontações, cingindo-se apenas à existência do direito e à sua pertença às pessoas em cujo nome se encontra inscrito. Neste sentido vai toda a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça [de que são exemplo, para citar apenas dois recentes, os acórdãos de 19 de setembro de 2017 (processo nº 120/14.4T8EPS.G1.S1) e de 28 de setembro de 2017 (processo nº 809/10.7TBLMG.C1.S19), disponíveis em www.dgsi.pt].

A conclusão a retirar do que fica dito é que jamais a presente revista pode ser provida.

Sem embargo, sempre se dirá que, face aos factos que as instâncias consideraram provados e não provados, teria a ação que improceder na parte em causa, visto que, competindo aos Autores provar que a parcela em causa faz parte do seu prédio, a verdade é que o não fizeram. Quanto a isto limitamo-nos a transcrever o que consta do acórdão recorrido, cujo acerto é incontornável:

“No âmbito da ação de reivindicação, cabe ao demandante alegar e provar que é proprietário da coisa e que esta se encontra em poder do demandado, sendo que, para a prova do direito de propriedade, podem invocar-se todas as sucessivas aquisições dos seus antecessores até à aquisição originária (como a ocupação, a usucapião ou a acessão) ou demonstrar-se que o transmitente do direito é o último titular do direito inscrito no registo, a fim beneficiar da presunção legalmente estabelecida no art.º 7.º do Cód. do Reg. Predial. (…)

Ora, analisados os factos provados, deles não se retira que os AA Recorrentes, ou os seus antecessores no direito sobre o prédio, tenham atuado por forma a que a parcela em litígio integre o prédio, seja à luz do instituto da ocupação, seja da usucapião seja da acessão. Inexiste a menção da prática reiterada e pública de atos materiais donde se retire o exercício de poderes de facto sobre a mesma parcela, que os AA Recorrentes e respetivos antecessores no direito de propriedade sobre o prédio venham atuando sobre a parcela como se de donos dela se tratassem. Pelo contrário, antes resultou da instrução da causa, designadamente da prova documental produzida, que os AA Recorrentes, perante entidades públicas, por mais do que uma vez, declararam que o direito de propriedade de que eram titulares não abrangia a parcela ora em litígio (circunstâncias, aliás, versadas na fundamentação da decisão relativa à matéria de facto).

Acompanha-se, por conseguinte, a decisão recorrida. Os AA Recorrentes, que no âmbito do presente litígio não podem valer-se dos elementos constantes do registo predial, não lograram demonstrar a aquisição originária da parcela de terreno que reivindicam e, por consequência, que a mesma integra o prédio de que são titulares. O que implica na improcedência da ação.”

Improcede pois o recurso.

IV. DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista.

Regime de custas:

Os Recorrentes são condenados nas custas do recurso.

                                                           ++

Lisboa, 18 de Janeiro de 2018

José Rainho (Relator)

Graça Amaral

Henrique Araújo