Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
136/22.7GCSTS.P1-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
VÍTIMA
RECUSA
DEPOIMENTO
APRECIAÇÃO DA PROVA
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 01/17/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)´
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. Não configura uma identidade de situações de facto (analisadas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento) a circunstância de a vítima do crime, que prestou em inquérito declarações para memória futura, não desejar prestar declarações em julgamento, quando num dos casos declarou recusar-se (validamente) a depor e no outro disse apenas nada desejar acrescentar às declarações prestadas anteriormente.

II. Assim, por falha de um pressuposto substancial, as decisões dos acórdãos recorrido e fundamento não estão em oposição, ao ter sido valorada, num dos casos, e não valorada, no outro caso, a prova por declarações para memória futura.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


1. Relatório

No Proc. n.º 136/22.7GCSTS.P1, o Tribunal da Relação do Porto proferiu acórdão a 13.09.2023, decidindo a confirmação do acórdão do tribunal colectivo que absolvera o arguido AA, da prática de dois crimes de violência doméstica do art. 152.º/1-b), 2-a), 4 e 5, do CP. O acórdão não admitia recurso ordinário e transitou em julgado em 28.09.2023.

Por considerar existir uma “oposição de julgados” entre este acórdão, proferido no presente processo, e o acórdão proferido a 20.04.2022 pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no proc. nº 37/21.6SXLSB.L1-3, veio o Ministério Público interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos dos arts. 437º, nº 2 e 4, e 438º, do CPP, com os seguintes fundamentos:

“I. No processo comum singular nº 136/22.7GCSTS.P1, do Tribunal da Relação de Porto, por acórdão datado de 13/09/2023, foi decidido que as declarações para memória futura prestadas por vítima de crime de violência doméstica nos termos dos arts. 21º, nº 2, al. d), e 24º da Lei nº 130/2015, de 4/09, e 271º do C. P. Penal, não podem ser valoradas se essa vítima, chamada a depor em audiência de discussão e julgamento, exercer, nos termos do art. 134º, nº 1, al. b), do C. P. Penal, o direito de recusa a prestar depoimento.

II. No processo nº 37/21.6SXLSB.L1-3, do Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão proferido a 20/04/2022, debruçando-se sobre a mesma questão jurídica reportada a igual factualidade, consagrou-se solução oposta, ou seja, que as declarações para memória futura prestadas por vítima de crime de violência doméstica nos termos dos arts. 21º, nº 2, al. d), e 24º da Lei nº 130/2015, de 4/09, e 271º do C. P. Penal, podem ser valoradas ainda que essa vítima, chamada a depor em audiência de discussão e julgamento, venha a exercer, nos termos do art. 134º, nº 1, al. b), do C. P. Penal, o direito de recusa a prestar depoimento.

III. Estes entendimentos divergentes implicam que, quando a vítima de crime de violência doméstica, chamada a depor em audiência de discussão e julgamento, se recusar a prestar depoimento, as declarações para memória futura que haja prestado sejam, num caso, valoradas e, noutro, não.

IV. Ambos os acórdãos transitaram em julgado e não são susceptíveis de recurso ordinário.

V. Deste modo, impõe-se esclarecer, fixando jurisprudência, se as declarações para memória futura prestadas por vítima de crime de violência doméstica nos termos dos arts. 21º, nº 2, al. d), e 24º da Lei nº 130/2015, de 4/09, e 271º do C. P. Penal, podem ou não ser valoradas pelo Tribunal quando essa vítima, chamada a depor em audiência de discussão e julgamento, venha a exercer, nos termos do art. 134º, nº 1, al. b), do C. P. Penal, o direito de recusa a prestar depoimento.”

Não houve resposta ao recurso.

No Supremo Tribunal de Justiça o Senhor Procurador-Geral Adjunto deu o seguinte parecer:

“Não tem razão o Ministério Público no Tribunal da Relação do Porto, com todo o respeito, quando entende que aqueles Acórdãos, proferidos em sentido diferente e contraditório relativamente à mesma questão de direito, se debruçaram sobre igual factualidade.

Isto é:

Que decidiram de forma oposta uma e mesma questão fáctico-jurídica, que, em termos concisos, se traduz:

Em ponderar se devem ser valoradas as declarações para memória futura prestadas por testemunha que, chamada a depor em audiência, por crime de “violência doméstica”, se recusar a fazê-lo, ao abrigo do disposto no art. 134º/1-b), do Código de Processo Penal.

Atentemos.

No respeito do modelo etiológico e processual-penal do recurso de fixação de jurisprudência – que pressupõe, pois, naturalmente, a oposição de julgados – não é viável, no caso, afirmar que num mesmo silogismo judiciário (sempre na dialéctica do Facto/Direito), foram seguidas duas vias divergentes de raciocínio, viabilizando que de duas séries de premissas iguais se tivessem alcançado conclusões (decisões) diversas.

Na verdade, conquanto a motivação da questão-de-direito que induziu as duas decisões em alegado conflito seja tratada em ambos os Acórdãos no seio de uma similar discursividade lógico-normativa, o certo é que não se revela a mesmidade de hipóteses fáctico-normativas que induzam o estabelecer de um cotejo dialéctico entre eles que leve à conclusão de que, num mesmo caso, apenas por razões de juízos jurídico-valorativos diversos, tenham sido adoptadas, expressamente, soluções opostas relativamente à aplicação do Direito.

Ou seja:

Que os factos sejam os mesmos;

Assim como essa mesmidade ocorra quanto ao Direito aplicado. Apenas as soluções jurídicas seriam opostas.

Concretamente:

No Acórdão-Recorrido, foi decidido, expressa e autonomamente, que não devem ser valoradas as declarações para memória futura prestadas por testemunha que, chamada a depor em audiência, por crime de “violência doméstica”, se recusar a fazê-lo, ao abrigo do disposto no art. 134º/1-b), do Código de Processo Penal; sobre uma situação de sucessão de leis que fixavam os prazos de prescrição da responsabilidade contraordenacional;

No Acórdão-Fundamento, foi decidido que tais declarações deviam ser valoradas, mas pela conjugação de vários pressupostos fático-normativos, como sejam, a circunstância de a testemunha (vítima) apenas ter sido chamada à audiência para prestar esclarecimentos (e não repetir o que já havia dito), e, decisivamente, não se haver recusado a prestar declarações.

Formal e materialmente, estes dados de facto (processuais) valorados no Acórdão-Fundamento – como claros pressupostos da avaliação jurídica que ali venceu – não são elementos meramente acidentais da fundamentação da decisão, pois que sustentam o seu cerne, a concreta natureza da juridicidade ali firmada.

Contrariamente, a ponderação lógico-jurídica da questão da valoração ou não das declarações para memória futura prestadas por testemunha que recusa o seu depoimento em julgamento – embora realizada em sentido diametralmente oposto ao fundamentado no Acórdão-Recorrido – não se constitui, na análise dialéctica da questão daquele Aresto, como a primeira (ou, sequer, como a última) causa decisória, prejudicada que ficou perante a conclusão (prévia, prejudicial e decisiva) de que não houve recusa de depoimento.

Efectivamente, esta última asserção é que constitui o leitmotiv da revogação da sentença em causa, relegando a interpretação da regra da disposição do art. 356º/6 do Código de Processo Penal para a mera fundamentação de enquadramento do Acórdão-Fundamento.

Cremos, então, impor-se, com todo o respeito, que os pressupostos de facto (e, até, os de direito) do decidido, não são os mesmos nos dois Acórdãos:

Em bom rigor, no Acórdão-Fundamento teve-se em conta que não se verificava a hipótese capaz de convocar a estatuição da disposição do art. 356º/6 do Código de Processo Penal, motivo por que a desaplicou, mandando valorar as declarações para memória futura.

Veja-se, nesta matéria (dos pressupostos da oposição de julgados), entre muitos outros, o Ac. do STJ de 17.06.2021, P- 701/16.1T9MTJ.L1-A.S1: (…)

A estes requisitos legais, o STJ, de forma pacífica, aditou a incontornável necessidade de identidade de factos, não se restringindo à oposição entre as soluções de direito. É jurisprudência deste Supremo Tribunal que as soluções opostas relativas à mesma questão de direito exigem que a mesma integre o objecto concreto e directo das duas decisões, naturalmente fundado em circunstancialismo fáctico essencialmente idêntico do ponto de vista dos seus efeitos jurídicos. Em suma, segundo a jurisprudência seguida por este Supremo Tribunal, a oposição de julgados verifica-se quando: os dois acórdãos em conflito do Supremo Tribunal de Justiça e/ou do Tribunal da Relação se refiram à mesma questão de direito; os dois acórdãos em conflito do Supremo Tribunal de Justiça e/ou da Relação sejam proferidos no âmbito da mesma legislação; haja entre os dois acórdãos em conflito “soluções opostas “; a questão decidida em termos contraditórios tenha sido objecto de decisão expressa em ambos os acórdãos, não bastando que a oposição se deduza de posições implícitas; as situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões, idênticos.

Aliás, esta questão já foi assim avaliada e decidida no Ac. do STJ de 22.09.2022, P-37/21.6SXLSB-A.S1 (cujo acórdão-recorrido era, precisamente, o aqui Acórdão-Fundamento):

I - No caso do acórdão fundamento, verifica-se que apesar de existirem declarações para memória futura, a ofendida foi convocada para a audiência de julgamento, e usou da prorrogativa de não prestar declarações, o que foi aceite pelo tribunal, como se verifica pela própria fundamentação da sentença e também do acórdão da Relação de Lisboa de 15.09.2021; no caso do acórdão recorrido a ofendida, filha da arguida, não se recusou a prestar declarações, nem usou da prerrogativa de não prestar declarações (independentemente da discussão que se pode suscitar sobre se podia ou não fazer uso dessa prorrogativa, uma vez que anteriormente tinha prestado declarações para memória futura ou se antes se deve entender que essa prorrogativa é irrenunciável e, portanto, quem é titular dessa faculdade, deve ser advertido de que pode recusar o depoimento, sempre e em qualquer altura que tiver de prestar declarações ou depoimento).

II - O titular de prorrogativa legal (v.g. prevista no art. 134.º do CPP), tem de exprimir a faculdade de recusar o depoimento de forma clara e inequívoca, sendo para o efeito previamente advertido por quem recebe o depoimento, sob pena de nulidade (ver art. 134.º, n.º 2, do CPP). Portanto, nessas situações, tudo deve ficar bem esclarecido, para que não subsistam dúvidas sobre o exercício da faculdade do direito de recusa consagrado no art. 134.º, n.º 2, do CPP pelo respetivo titular ou sobre os incidentes que sobre essa matéria se tenham suscitado, os quais terão de ser decididos na altura própria.

III - Como se verifica do acórdão recorrido, ficou a constar da ata que “Perguntada sobre se queria prestar declarações pela menor BB foi afirmado que "eu não quero dizer nada, já disse tudo o que tinha a dizer, quanto mais rápido isto acaba melhor", o que (considerando que anteriormente prestara declarações para memória futura e que apenas fora convocada para a audiência de julgamento a fim de prestar esclarecimentos excecionalmente), apenas se pode concluir que a mesma prestou declarações, remetendo para o que já havia dito anteriormente, não querendo que a incomodassem mais e pretendendo que tudo acabasse o mais rápido possível (resposta que, diríamos que era de esperar, neste tipo de vítima - menor - em crime de violência doméstica, em que era a própria mãe a arguida, sendo conhecidas as fragilidades destas vítimas, ainda para mais quando são menores e são submetidas a vários interrogatórios, que as obrigam a recordar, mais uma vez, tudo o que passaram, o que não é fácil de vivenciar e de ultrapassar).

IV - Assim, não havendo identidade, semelhança ou equivalência nas situações analisadas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, mostram-se justificadas as diferentes/opostas soluções jurídicas que foram dadas e, na medida em que não é possível estabelecer uma comparação entre as duas situações descritas (ou seja, não há identidade de situações de facto) que constam do acórdão recorrido por um lado e do acórdão fundamento por outro lado, está inviabilizada a conclusão da verificação do requisito substantivo ou material, quanto à mesma questão de direito, de decisões opostas, o que leva à rejeição deste recurso extraordinário.”

Do que se extrai que não há oposição de julgados, como pressuposto essencial (material) da previsão do recurso de fixação de jurisprudência, que implica a sua rejeição (cfr, os arts. 437º/1 e 441º do Código de Processo Penal).

III - Em síntese:

Se no acórdão-recorrido foi decidido, expressa e autonomamente, que não devem ser valoradas as declarações para memória futura prestadas por testemunha que, chamada a depor em audiência, por crime de “violência doméstica”, se recusar a fazê-lo, ao abrigo do disposto no art. 134º/1-b), do Código de Processo Penal;

E no acórdão-fundamento se decide que tais declarações deviam valoradas, mas pela conjugação de vários pressupostos fático-normativos, como sejam, a circunstância de a testemunha apenas ter sido chamada à audiência para prestar esclarecimentos (e não repetir o que já havia dito), e, decisivamente, não se haver recusado a prestar declarações;

Não se verificam-se os pressupostos formais e materiais da dedução do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, em especial a oposição de julgados, pelo que o mesmo deve ser rejeitado.

Motivo por que o Ministério Público dá Parecer que:

O presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência deverá ser rejeitado.”

Não houve resposta ao parecer.

O processo foi aos vistos e teve lugar a conferência.

2. Fundamentação

O recurso de fixação de jurisprudência encontra-se previsto no Capítulo I, do Título II, do Livro XIX do CPP, e os arts 437.º (Fundamento do recurso) e 438.º (Interposição e efeito) disciplinam os requisitos de natureza formal e substancial para a admissibilidade deste recurso extraordinário.

De acordo com estes preceitos legais, os requisitos formais do recurso de fixação de jurisprudência consistem na legitimidade do recorrente, na interposição no prazo de trinta dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido, na identificação do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição (acórdão fundamento, com menção da sua publicação se estiver publicado), no trânsito em julgado também do acórdão fundamento.

Mostram-se em concreto cumpridos os requisitos formais, uma vez que o Ministério Público tem legitimidade, recorreu em tempo, tendo o acórdão recorrido transitado em julgado em 28.09.2023, procedeu à identificação do acórdão fundamento, publicado em www.dgsi.pt e transitado em julgado também.

Os requisitos substanciais consistem na existência de dois acórdãos que respeitem à mesma questão de direito e sejam proferidos no domínio da mesma legislação (sem ocorrência de alteração no texto da lei que regula a situação controvertida) e que assentem em soluções de sinal contrário sobre essa mesma questão de direito.

Relativamente ao requisito da oposição entre soluções de direito, o Supremo consolidou jurisprudência no sentido de que essa oposição tem de definir-se a partir de uma identidade de facto, de uma homologia encontrada nas situações de facto apreciadas nos dois acórdãos.

Assim, considerou-se no acórdão do STJ de 28/10/2020 (Rel. Augusto Matos), que “a oposição relevante de acórdãos ocorrerá quando existam nas decisões em confronto soluções de direito antagónicas e, não apenas, contraposição de fundamentos ou de afirmações, soluções de direito expressas e não implícitas, soluções jurídicas tomadas a título principal e não secundário”. E “ao mesmo tempo, as soluções de direito devem reportar-se a uma mesma questão fundamental de direito”.

E reiterou-se no acórdão do STJ de 21.04.2021 (Rel. Nuno Gonçalves), mantendo uma jurisprudência do Supremo há muito uniforme, que “o pressuposto material da identidade da questão de direito exige que: a. as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham consagrado soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito; b. as decisões em oposição sejam expressas; c. as situações de facto e o respetivo enquadramento jurídico sejam idênticos em ambas as decisões. Não pode haver oposição ou contradição entre dois acórdãos, relativamente à mesma questão fundamental de direito, quando são diversos os pressupostos de facto em que assentaram as respetivas decisões.”

Cumpre verificar, a pedido do recorrente Ministério Público, se ocorre uma efectiva oposição de soluções sobre uma mesma questão de direito, ou seja, se existe oposição de decisões sobre a concreta questão problematizada.

E a questão respeita a saber se as declarações para memória futura prestadas por vítima de crime de violência doméstica nos termos dos arts. 21.º, n.º 2, al. d), e 24.º da Lei nº 130/2015, e 271.º do CPP, podem ou não ser valoradas, quando essa vítima, chamada a depor em audiência de discussão e julgamento, exerce o direito de recusa a prestar depoimento, nos termos do art. 134.º, n.º 1, al. b), do CPP.

Esta é a questão que o recorrente apresenta como carecida de resposta jurisprudencial fixada. Para tanto, afirma que no proc. n.º 37/21.6SXLSB.L1-3, do Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão proferido a 20/04/2022, se considerou que tais declarações (para memória futura prestadas por vítima de crime de violência doméstica nos termos dos arts. 21.º, n.º 2, al. d), e 24.º da Lei n.º 130/2015, de 4/09, e 271.º do CPP) podem ser valoradas ainda que a vítima, chamada a depor em audiência de discussão e julgamento, venha a exercer, nos termos do art. 134.º, nº 1, al. b), do CPP, o direito de recusa a prestar depoimento. O que estaria em oposição com o acórdão recorrido, no qual se decidiu que tais declarações não podem ser valoradas quando a vítima, chamada a depor em audiência de discussão e julgamento, exerce o mencionado direito de recusa a prestar depoimento.

Assim, e sempre na alegação do recorrente, ambos os acórdãos – acórdão recorrido e acórdão fundamento – teriam abordado a temática ora apresentada, na fundamentação das decisões, e tê-lo-iam feito consagrando diferentes e opostas soluções de direito. Mas se a primeira asserção do recorrente encontra correspondência nos acórdãos em confronto, assim não sucede com a segunda. E por esta razão, a invocada oposição não ocorre aqui.

Não se exigindo, é certo, uma identidade total ou absoluta entre os dois “pedaços de vida” que conduziram às soluções de direito em oposição, eles têm no entanto de se equivaler “para efeitos de subsunção jurídica a ponto de se poder dizer que, pese embora a solução jurídica encontrada num dos processos assente numa factualidade que não coincide exactamente com a do outro processo, esta solução jurídica continuaria a impor-se para o subscritor mesmo que a factualidade fosse a do outro processo” (acórdão do STJ de 26.06.2014, Rel. Souto de Moura).

Tendo o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência de assentar em julgados explícitos que abordem de modo oposto a mesma questão de direito, no sentido amplo que se enunciou e que exige uma similitude de base factual relevante para a decisão, da leitura do recurso, completado pelo acesso aos acórdãos recorrido e fundamento, resulta que a oposição de julgados não se verifica.

E não se verifica, pelas razões que o Senhor Procurador-Geral Adjunto no Supremo bem identificou no parecer.

Com efeito, da leitura dos dois acórdãos, na dupla vertente de “acórdão de facto” e de “acórdão de direito”, constata-se que, por um lado, inexiste coincidência de base factual relevante para a decisão, e, pelo outro, não se consegue mesmo afirmar que os dois acórdãos tenham seguido opostas soluções de direito.

Assim, não só inexiste uma identidade de situações de facto, como acórdão recorrido e acórdão fundamento se pronunciaram sobre uma mesma questão de direito em sentido que não se consegue afirmar como sendo dissonante. Desde logo, a ausência de identidade de base factual - factual no sentido amplo, que inclui o facto processual - inviabiliza tal conclusão.

Como o Senhor Procurador-Geral Adjunto no Supremo bem concretizou, em total correspondência com os textos dos dois acórdãos sob observação, se é certo que no acórdão recorrido se decidiu do modo realmente enunciado pelo recorrente e com os fundamentos por ele aludidos, já assim não sucedeu no que respeita ao acórdão fundamento.

Mais sucede que o acórdão fundamento foi já objecto de sindicância no Supremo Tribunal de Justiça, a idêntico propósito. Dele fora então interposto recurso extraordinário semelhante ao presente, tendo ocupado ali a posição de acórdão recorrido. E sobre a sua valia num contexto em tudo semelhante ao presente, se pronunciou o Supremo no acórdão de 22.09.2022 (rel. Carmo Dias).

E disse-se então a respeito de tal acórdão, ali recorrido, e aqui fundamento:

“I - No caso do acórdão fundamento, verifica-se que apesar de existirem declarações para memória futura, a ofendida foi convocada para a audiência de julgamento, e usou da prorrogativa de não prestar declarações, o que foi aceite pelo tribunal, como se verifica pela própria fundamentação da sentença e também do acórdão da Relação de Lisboa de 15.09.2021; no caso do acórdão recorrido a ofendida, filha da arguida, não se recusou a prestar declarações, nem usou da prerrogativa de não prestar declarações (independentemente da discussão que se pode suscitar sobre se podia ou não fazer uso dessa prorrogativa, uma vez que anteriormente tinha prestado declarações para memória futura ou se antes se deve entender que essa prorrogativa é irrenunciável e, portanto, quem é titular dessa faculdade, deve ser advertido de que pode recusar o depoimento, sempre e em qualquer altura que tiver de prestar declarações ou depoimento).

II - O titular de prorrogativa legal (v.g. prevista no art. 134.º do CPP), tem de exprimir a faculdade de recusar o depoimento de forma clara e inequívoca, sendo para o efeito previamente advertido por quem recebe o depoimento, sob pena de nulidade (ver art. 134.º, n.º 2, do CPP). Portanto, nessas situações, tudo deve ficar bem esclarecido, para que não subsistam dúvidas sobre o exercício da faculdade do direito de recusa consagrado no art. 134.º, n.º 2, do CPP pelo respetivo titular ou sobre os incidentes que sobre essa matéria se tenham suscitado, os quais terão de ser decididos na altura própria.

III - Como se verifica do acórdão recorrido, ficou a constar da ata que “Perguntada sobre se queria prestar declarações pela menor BB foi afirmado que "eu não quero dizer nada, já disse tudo o que tinha a dizer, quanto mais rápido isto acaba melhor", o que (considerando que anteriormente prestara declarações para memória futura e que apenas fora convocada para a audiência de julgamento a fim de prestar esclarecimentos excecionalmente), apenas se pode concluir que a mesma prestou declarações, remetendo para o que já havia dito anteriormente, não querendo que a incomodassem mais e pretendendo que tudo acabasse o mais rápido possível (resposta que, diríamos que era de esperar, neste tipo de vítima - menor - em crime de violência doméstica, em que era a própria mãe a arguida, sendo conhecidas as fragilidades destas vítimas, ainda para mais quando são menores e são submetidas a vários interrogatórios, que as obrigam a recordar, mais uma vez, tudo o que passaram, o que não é fácil de vivenciar e de ultrapassar).

IV - Assim, não havendo identidade, semelhança ou equivalência nas situações analisadas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, mostram-se justificadas as diferentes/opostas soluções jurídicas que foram dadas e, na medida em que não é possível estabelecer uma comparação entre as duas situações descritas (ou seja, não há identidade de situações de facto) que constam do acórdão recorrido por um lado e do acórdão fundamento por outro lado, está inviabilizada a conclusão da verificação do requisito substantivo ou material, quanto à mesma questão de direito, de decisões opostas, o que leva à rejeição deste recurso extraordinário.”

As conclusões a retirar do acórdão fundamento são compreensivelmente as mesmas que o Supremo já ponderou no acórdão acabado de citar. Ou seja, que no ora acórdão fundamento, e diversamente do enunciado no presente recurso, “a ofendida, filha da arguida, não se recusou a prestar declarações, nem usou da prerrogativa de não prestar declarações”.

Assim sendo, inexiste a identidade de situação de facto imprescindível a poder concluir-se, em concreto, pela existência de uma oposição de soluções de direito.

E as decisões em confronto, tomadas com base em situações de facto diferentes, não permitem afirmar a existência de uma oposição de julgados para os efeitos previstos no art. 437.º, n.º 2, do CPP.

3. Decisão

Em face do exposto, por falta dos necessários requisitos substanciais, decide-se rejeitar o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto pelo Ministério Público.

Sem custas.

Lisboa, 17.01.2024

Ana Barata Brito, relatora

Pedro Branquinho Dias, adjunto

Maria do Carmo Silva Dias, adjunta