Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3975/16.4T8VIS-A.C1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: INSOLVÊNCIA
DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CONTRATO-PROMESSA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
CONSUMIDOR
DIREITO DE RETENÇÃO
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
Data do Acordão: 10/29/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / CONTRATO-PROMESSA / REGIME APLICÁVEL.
DIREITO FALIMENTAR – EFEITOS DA DECLARAÇÃO DA INSOLVÊNCIA / EFEITOS SOBRE OS NEGÓCIOS EM CURSO.
Doutrina:
- Albuquerque Matos, Os efeitos da declaração de insolvência sobre os negócios em curso, IV Congresso do Direito da Insolvência, p. 59;
- Ana Prata, Morais Carvalho e Rui Simões, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, p. 312 e 320;
- Ana Prata, O Contrato-Promessa e o seu Regime Civil, p. 743;
- Baptista Machado, Pressupostos da resolução por incumprimento, Obra Dispersa, Vol. I, p. 185, 190 e 192;
- Brandão Proença, A Resolução do Contrato no Código Civil, 156; Romano Martinez, Da resolução do Contrato, p. 171;
- C. Ferreira de Almeida, Direito do Consumo, p. 49;
- Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 4ª ed., p. 302 e 324 ; Compra e Venda de Coisas Defeituosas, 5ª ed., p. 122;
- Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, 3ª ed., p. 472 e 473;
- Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, p. 234 a 238;
- Galvão Teles, Direito das Obrigações, 6ª ed., p. 113;
- Gisela César, Os Efeitos da Insolvência sobre o Contrato-Promessa em Curso, p. 125;
- Gravato Morais, Promessa obrigacional de compra e venda com tradição, CDP 29, p. 4;
- L.M. Pestana de Vasconcelos, Direito de retenção, contrato-promessa e insolvência, CDP 33, p. 9;
- Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6ª ed., p. 183;
- Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 11ª ed., p. 207;
- N. Pinto Oliveira, Ensaio sobre o Sinal, p. 18;
- Pinto Oliveira, Cadernos de Direito Privado, n.º 36, p. 3 e ss.;
- Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2ª ed., p. 186 e 190.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 410.º, N.º 1.
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 102.º E SEGUINTES.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA N.º 4/2014, DE 20-03-2014, IN DR, 1º SÉRIE, Nº 95, DE 19-05-2014;
- DE 10-05-2011, PROCESSO N.º 661/07.0TBVCT, IN WWW.DGSI.PT.
- DE 29-01-2014, PROCESSO N.º 1407/09.3TBAMT, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 29-07-2016, PROCESSO N.º 6193/13, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 13-07-2017, PROCESSO N.º 258/13;
- DE 11-09-2018, PROCESSO N.º 25261/11, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 18-09-2018, PROCESSO N.º 1210/11;
- DE 09-04-2019, PROCESSOS N.º 872/10;
- DE 17-10-2019, PROCESSO N.º 1012/15.
Sumário :
I - O contrato-promessa é, por definição, o contrato em que as partes se vinculam a celebrar certo contrato (art. 410.º, n.º 1, do CC), sendo que este (o prometido contrato de compra e venda), no caso em apreço, não chegou a ser celebrado pelas partes, nem aquele foi extinto por resolução de qualquer uma destas antes da declaração de insolvência.

II - Assim, as partes ao não terem colocado termo ao contrato-promessa antes da declaração de insolvência, esse contrato constitui um negócio jurídico em curso, para efeito do regime previsto nos arts. 102.º e ss. do CIRE.

III - Configurando os contratos-promessa negócios jurídicos em curso, para efeitos do disposto no arts 102.º e ss. do CIRE, há que fazer observar a jurisprudência fixada no AUJ n.º 4/2014; como tal, o reconhecimento do direito de retenção ao promitente-comprador depende da sua qualidade de consumidor ao intervir nos negócios que firmou com a sociedade declarada insolvente.

IV - É consumidor para tal efeito o promitente-comprador que destina o imóvel, objecto de traditio, a uso particular, no sentido de não o comprar para revenda nem o afectar a uma actividade profissional ou lucrativa (AUJ n.º 4/2019).

V - No caso em apreço, em nenhuma das situações (que tem por base os recursos interpostos, respectivamente, pelas recorrentes/credoras) estamos perante realidade que se subsuma no conceito de consumidor e inerente reconhecimento do direito de retenção, pois a primeira afectou a fracção à sua actividade social e profissional, com escopo lucrativo; a segunda afectou a fracção à actividade da empresa, visando a obtenção de um rendimento (poupança de despesa).
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:

I.

No processo de insolvência de AA, LDA foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos em que se decidiu:

- Homologar a relação de créditos reconhecidos apresentada pelo Sr. administrador da insolvência, com as alterações produzidas na decisão supra;

- Sem prejuízo do pagamento precípuo das dívidas da massa insolvente definidas no artigo 51º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), graduar os créditos verificados pela seguinte ordem:

(…)

F)    Relativamente ao produto da venda sobre o imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de .... na ficha n.º ...da freguesia de .... – verba n.º 6:

1.    Crédito n.º 6 da Fazenda Nacional por IMI;

2.    Crédito n.º 59 de “BB, Lda” pelo montante de € 40.000,00;

3.    Crédito n.º 7 da “CC, SARL” até ao limite constante do registo através da Ap. 2 de 2006/10/09 convertida em definitiva pela Ap. 2 de 2006/11/02;

4.    Crédito n.º 6 da Fazenda Nacional por IRS, o crédito n.º 29 do Instituto da Segurança Social na parte garantida, e o crédito n.º 28 do IEFP, a par e em rateio;

5.    Todos os restantes créditos comuns, a par e em rateio;

6.    Os créditos subordinados pela ordem prevista nos artigos 177.º e 48.º do CIRE.

(…)

P)    Relativamente ao produto da venda do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de .... na ficha n.º .... da freguesia de .... – verba n.º 16:

1.    Crédito n.º 6 da Fazenda Nacional por IMI;

2.    Crédito n.º 9 da “DD, CRL” até ao limite constante do registo através da Ap. 1 de 2007/07/24;

3.    Crédito n.º 6 da Fazenda Nacional por IRS, o crédito n.º 29 do Instituto da Segurança Social na parte garantida, e o crédito n.º 28 do IEFP, a par e em rateio;

4.    Todos os restantes créditos comuns, a par e em rateio;

5.    Os créditos subordinados pela ordem prevista nos artigos 177.º e 48.º do CIRE.

(…)

Discordando desta decisão, vieram interpor recurso de apelação, no que agora interessa, os credores:

-      CC S.A.R.L;

-      EE, Lda;

A Relação proferiu a seguinte decisão:

Julga-se parcialmente procedente o recurso interposto pela credora CC, S.A.R.L contra o segmento da sentença que graduou em segundo lugar o crédito reconhecido a BB, Lda para ser pago pelo produto da venda da fracção autónoma designada pela letra C (verba n.º 6) do prédio urbano em regime de propriedade horizontal descrito na Conservatória do Registo Predial de .... sob o n.º ... da freguesia de ...., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 3125 da freguesia de .... e em consequência:

1.    Classifica-se o crédito reconhecido a BB como crédito comum;

2.   Substitui-se o segmento da decisão por outro que, relativamente ao produto da venda sobre o imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de .... na ficha n.º ...da freguesia de .... – verba n.º …, procede à graduação pela seguinte ordem:

1.    Crédito n.º 6 da Fazenda Nacional por IMI;

2.    Crédito n.º 7 da “CC, SARL” até ao limite constante do registo através da Ap. 2 de 2006/10/09 convertida em definitiva pela Ap. 2 de 2006/11/02;

3.    Crédito n.º 6 da Fazenda Nacional por IRS, o crédito n.º 29 do Instituto da Segurança Social na parte garantida, e o crédito n.º 28 do IEFP, a par e em rateio;

4.    Todos os restantes créditos comuns, a par e em rateio;

5.    Os créditos subordinados pela ordem prevista nos artigos 177º e 48º do CIRE;

Julgam-se improcedentes o recurso interposto por EE, Lda, e (…) e, em consequência, mantêm-se os segmentos da decisão recorrida impugnados por tais recursos.

Inconformadas, vêm agora as credoras BB-..., Lda e EE, Lda pedir revista tendo apresentado as seguintes conclusões:

Credora BB, LDA

1.      (…)

2.      Pretende a recorrente a revogação e consequente reformulação da decisão constante do acórdão, porquanto entende que o mesmo é injusto e ilegal, contrário à prova dada como provada e assente, aliás, em ambas as instâncias e, por isso, é de dar como assente e irrefutável, devendo pois considerar-se ter ocorrido incumprimento definitivo do contrato em data anterior à declaração de insolvência da insolvente e ocorrer direito de retenção a favor da recorrente, por ser esta a decisão certa e adequada e a proferir com base e assento na matéria de facto dada como provada, após respectiva produção da prova testemunhal e documental produzida, e que não foi colocada em causa pela recorrida CC SARL

3.      De facto, foi proferida a seguinte decisão, acertada a nosso ver, pelo Juízo de Comércio de Viseu: 

"F) Relativamente ao produto da venda sobre o imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de .... na ficha nº ...da freguesia de .... - Verba nº 6:

1.º Crédito da Fazenda Nacional por IMI.

2.º Crédito nº 59 de "BB ... Lda" pelo montante de € 40,000.00.

3.º Crédito nº 7 da "CC, SARL" até ao limite constante do registo através da Ap. 2 de 2006/10/09 convertida definitiva pela Ap. 2 de 2006/11/02.

4º Crédito n.º 6 da Fazenda Nacional por IRS, o crédito nº 29 do Instituto da Segurança Social na parte garantida e o crédito n.º 28 do 1EFP. a par e em rateio,

5.º Todos os restantes créditos comuns, a par e em rateio.

6.º Os créditos subordinados pela ordem prevista no art. 177.º e 48.º do CIRE".

4.     Recorreu desta decisão a aqui Recorrida CC SARL, apenas quanto à matéria de direito, por não concordar com a mesma, tendo o Tribunal da Relação, aqui recorrido, revogado a decisão proferida em primeira instância, e qualificado o crédito da aqui recorrente como comum, considerando assim que a mesma não beneficia de qualquer direito de retenção.

5.     Sendo a decisão recorrida contrária à prova produzida em audiência de julgamento, à prova carreada para os autos, nomeadamente, a prova documental aí constante e, ainda, contrária à própria lei e à jurisprudência, não deve manter-se.

6.     Ora, o Tribunal a quo, proferiu a sentença recorrida, pronunciando-se no sentido de não reconhecer como privilegiado, reconhecendo-o como comum, o crédito da ora recorrente, assentando tal decisão na alegada inexistência de incumprimento definitivo do contrato antes da declaração de insolvência e, que, por isso, se deveria aplicar o previsto nos arts. 102.° e 106.° do CIRE, e não revestindo a credora a qualidade de consumidor, o direito de retenção não lhe podia ser reconhecido.

7.     É desta decisão final que se recorre, na medida em que, como entende a recorrente, não poderia o Tribunal assim considerar, sendo a decisão recorrida contrária aos factos dados como provados e assentes, em ambas as instâncias, contrária à prova documental e testemunhal carreada para os autos e contrária à própria lei, sendo ainda uma decisão ferida de inconstitucionalidade, por da sua decisão ocorrer interpretação violadora dos princípios da igualdade e proporcionalidade.

8.     Assim pretende-se, a reformulação da decisão proferida pelo Tribunal a quo, revogando-a e substituindo-a por outra que, reconhecendo o crédito da recorrente como privilegiado e graduando-o nessa conformidade, faça a devida Justiça, tal como foi decidido em sede de primeira instância.

9.      A recorrente, enquanto credora da insolvente AA Lda, reclamou o seu crédito no processo de insolvência, juntou o contrato de promessa celebrado com a insolvente assinado pelos representantes da credora e da insolvente, invocando ainda o direito de retenção que detinha sobre a fracção em causa no contrato promessa, tendo o mesmo vindo a ser reconhecido pelo senhor Administrador de Insolvência como privilegiado, atento o reconhecimento do direito de retenção por parte da credora sobre a fracção "C", melhor identificada nos autos e, também porque o contrato promessa aquando da declaração de insolvência da insolvente, já se verificava há muito em situação de incumprimento definitivo.

10. Importa referir que ficou provado em primeira instância, e da qual a aqui recorrida CC SARL, nem sequer impugnou, e por isso é dado como assente que: (… factos provados 109 a 117)

11. Acontece que o Tribunal a quo não concordou nem seguiu com a posição adoptada no recurso apresentado pela aqui recorrida CC SARL, contudo e apesar de entender que a sua posição e argumentos não podiam valer por não ser o que resulta da lei, e por não ser uma interpretação válida, acabou por contornar os fundamentos apresentados pela referida Hipoteca e decidiu revogar a decisão quanto à aqui credora e recorrente BB (já não e numa situação igual, em relação, por exemplo à credora Agro ....) por entenderem, erradamente, que o seu contrato não se verificava definitivamente incumprido aquando da declaração de insolvência da insolvente.

12. Erradamente porque, como consta dos factos dados como provados, na sentença proferida pelo Juízo de Comércio de Viseu e mantida pelo Tribunal da Relação: "Ficou ainda acordado que após a data agendada para a realização da escritura, que foi acordado ser até ao final do ano de 2010, a credora reclamante poderia entrar na posse da referida fracção e as partes estipularam na cláusula quarta do contrato celebrado que, após 30 dias sobre a data prevista para a realização da competente escritura pública, o contrato se considerava não cumprido por facto culposo imputado à parte que lhe desse causa".

13. De facto, a credora e a insolvente, enquanto outorgantes e nas qualidades de promitentes compradora e vendedora, estabeleceram contratualmente um prazo para a realização da escritura pública da fracção objecto do contrato promessa, fixando-o e, clausularam, ainda, o efeito dessa não observância, ou seja, que se decorrido esse prazo a escritura não fosse realizada, o contrato se considerava não cumprido por facto culposo imputado à parte que lhe desse causa, neste caso à insolvente. Pois, ficou provado e assente que foi a insolvente quem nunca marcou a escritura, apesar de ter sido interpelada pela credora para o fazer.

14. A decisão do Tribunal a quo considerou que estes factos eram válidos para considerar o incumprimento definitivo do contrato celebrado entre a insolvente e a credora Agro ...., como supra se disse, mas, estranhamente, não os considerou válidos para a aqui recorrente, entendendo que a credora aceitou a mora, e que a cláusula do contrato não é cláusula resolutiva expressa. Porém, sem qualquer assento fáctico.

15. 0 que não se pode, de todo, aceitar. Pois, é de todo contrário aos factos dados como provados e à cláusula contratual que estipula/fixa um prazo certo, claro e inequívoco para a realização da escritura, ou seja, até ao final de 2010, considerando-se o incumprimento se passados 30 dias do termo do prazo assim não ocorresse, como foi de facto o que sucedeu e assim verificou-se o clausulado. Acresce ainda que tal foi corroborado em audiência pelos gerente e administrador da credora e da insolvente.

16. Pelo que, a cláusula quarta do contrato promessa de compra e venda celebrado pelas partes (credora e insolvente) é uma verdadeira cláusula resolutiva expressa, nos termos previstos no art. 405.° do Código Civil, celebrada ao abrigo da liberdade das partes que estipularem um conjunto de obrigações bilaterais, entre elas, um prazo para o cumprimento do contrato, findo o qual e passados que fossem 30 dias sobre o mesmo, logo ocorreria, como ocorreu, incumprimento definitivo.

17. Razão pela qual, não entendemos nem podemos concordar com a decisão proferida no Tribunal a quo, pois ainda que se entendesse que a insolvente tinha após isso prometido fazer a escritura (o que não é verdade, nem consta da matéria de facto), a realidade é que a credora nunca lhe disse que aceitava novos prazos e sempre manteve a posição e os efeitos constantes da referida cláusula contractual geradora do incumprimento definitivo do contrato prometido, mantendo a posição assumida na cláusula estipulada pelas partes no contrato.

18. Aliás não se aceita o alegado no acórdão de que se recorre, quando refere que não se verifica "declaração inequívoca da promitente-vendedora no sentido de que não iria cumprir o contrato" (vide pág. 46 último parágrafo do acórdão), quando resulta claramente provado o contrário, veja-se o seguinte facto dado como provado "115. A insolvente não marcou a escritura porque não tinha previsão para a obtenção da respectiva licença de habitabilidade e capacidade financeira para liquidar o distrate necessário à desoneração da fracção assim prometida vender à credora reclamante".

19. A insolvente assumiu que não iria cumprir o contrato, ao assumir que não tinha condições financeiras para tal. Logo, não se vislumbra que mais seria necessário para se considerar que a promitente vendedora assumiu que não iria cumprir o contrato. E ainda, após se verificar estipulado contratualmente um prazo para tal.

20. Tem sido entendimento da nossa jurisprudência, que basta verificar-se uma situação, e neste caso até se verificam mais que uma para se demonstrar o incumprimento definitivo do contrato, antes da declaração de insolvência.

21. Neste sentido veja-se os seguintes acórdãos a título de exemplo:

- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16/11/2017 (…);

- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14/04/2015 (…);

- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17/01/2012 (…).

22. Perante o exposto, resulta claramente que foi estipulado no contrato um prazo certo e expresso (... até ao final do ano de 2010 ... após 30 dias sobre a data prevista para a realização da competente escritura pública, o contrato se considerava não cumprido por facto culposo imputado à parte que lhe desse causa - Factos dados como provados e assentes em ambas as instâncias) para a realização da escritura pública, através da concordância na estipulação de uma cláusula resolutiva expressa, como aliás resultou provado através de prova documental testemunhal, resultando assim da própria matéria de facto assente.

23. Resulta também que a promitente vendedora/insolvente assumiu perante a credora, ora recorrente, após ter sido interpelada para fazer a escritura, que não iria cumprir o contrato, ou seja, não iria fazer a escritura pública por não ter meios financeiros para tal (A insolvente não marcou a escritura porque não tinha previsão para a obtenção da respectiva licença de habitabilidade e capacidade financeira para liquidar o distrate necessário à desoneração da fracção assim prometida vender á credora reclamante), e tudo isto se verificou antes de ter sido declarada a sua insolvência. Verificando-se assim o incumprimento definitivo do contrato promessa, antes da declaração de insolvência, como alegado e provado em primeira instância, tendo nesse sentido resultado da matéria de facto dada como assente, e bem decidido pela sentença proferida pelo Meritíssimo Juiz do Juízo de Comércio de Viseu, ao reconhecer o direito de retenção à credora BB e ao graduar o seu crédito como privilegiado.

24. Por todas estas razões, entendemos que se deve revogar a decisão constante do acórdão proferido pelo Tribunal a quo, e manter-se, melhor dizendo, repristinando-se a decisão proferida em primeira instância, por ser amais correcta, legal e justa, atentos os factos dados como provados e atenta a lei aplicável.

25. Ora, mal andou o Tribunal a quo, salvo devido respeito, ao entender que o contrato não estava em situação de incumprimento definitivo aquando da declaração de insolvência, pois não é o que resulta da matéria de facto assente, que resultou da produção de prova documental e testemunhal.

26. Pelo que se aplica ao presente caso o direito de retenção previsto no art. 755.° n.º 1 alínea f) do Código Civil, verificados que estão todos os seus pressupostos.

27. Assim, estando perante uma situação de incumprimento definitivo do contrato promessa antes da declaração de insolvência, não se pode aplicar ao presente caso o disposto nos arts. 102.° e 106.° do CIRE, pois tal só tem aplicação nos casos de contratos ainda em curso.

28. Não se aplicando o disposto nos arts. 102º0 e 106.° do CIRE, também não estamos perante uma situação de ser necessário verificar se o promitente comprador actuou ou não em condição de consumidor. Pelo que, não pode sequer ter aplicação no caso em apreço o Ac. n." 4/2014.

29. Assim sendo, e uma vez que estamos perante um caso de incumprimento definitivo do contrato em data anterior à declaração de insolvência da sociedade AA Lda., não se pode aplicar a esses casos o estipulado nos arts. 102.° e 106.º do CIRE, mas sim o estipulado no art. 755.° n.º 1 alínea f) do Código Civil, tendo a credora direito de retenção sobre a fracção objecto do contrato promessa.

30. Aquando da declaração de insolvência, a credora BB já exercia direito de retenção sobre a fracção "C", objecto do contrato promessa, como aliás resulta da matéria de facto assente; "113. A insolvente entregou a chave da fracção à credora em Janeiro de 2011" e "114. Desde essa data a credora reclamante tomou posse da fracção, fendo procedido à modificação do canhão da porta e alterado as chaves que o gerente da insolvente lhe havia entregue. fendo passado a exercer ai a sua actividade de porta aberta ao público, afixando também o logotipo da empresa na montra da fracção".

31. A Recorrente chegou à fase da declaração da insolvente já como mera credora, privilegiada no seu crédito, face ao direito de retenção, pelo que o Sr. AI não poderia impor-lhe uma escolha entre o cumprimento ou incumprimento do contrato, pois que, este contrato já havia sido resolvido antecipadamente pela credora, pelo que não se põe em causa a sua qualidade ou não de consumidora, nem a aplicação do Ac. nº 4/2014.

32. Tanto que, a melhor interpretação a dar ao Acórdão 4/2014 é a de que a palavra "consumidor" aparece no sumário do acórdão por verdadeiro milagre. Dizem e bem alguns Digníssimos senhores Juízes Conselheiros, que a palavra "consumidor" deve ter "caído de paraquedas", e por isso "choveram" votos de vencido dos senhores juízes conselheiros, a impugnar a inclusão da palavra "consumidor" no sumário do referido acórdão.

33. De facto, como bem refere o senhor Juiz Conselheiro Abrantes Geraldes, seguido pelo Senhor Juiz Conselheiro Paulo Armínio de Oliveira e Sá: (…); de igual modo, refere o senhor Juiz Conselheiro Pires da Rosa seguido pelo Senhor Juiz Conselheiro Joaquim Manuel Cabral e Pereira da Silva: (…); no mesmo sentido, refere o senhor Juiz Conselheiro Salreta Pereira:  (…); e, ainda, refere o senhor Juiz Conselheiro João L. M. Bernardo: (…), bem como a senhora Juiz Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza: (…).

34. Assim, entendemos que o referido acórdão 4/2014 à semelhança do acórdão de que se recorre, enferma de uma violação crassa do princípio "ubi lex non distinguit ", ou seja, quis fazer-se no referido acórdão uma distinção que a própria lei não fez nem faz e limitar-se subjectivamente o direito do promitente-comprador, reduzindo-o de forma que é até inconstitucional.

35. Pois, a atribuição do direito de retenção em situações de traditio do bem foi a de tutelar os interesses dos promitentes-compradores em geral, sem que o legislador tenha assumido a aludida limitação subjectiva.

36. Por outro lado, como também defenderam os Senhores Juízes Conselheiros, a questão levada a Tribunal, no acórdão que deu origem ao uniformizador de jurisprudência, não foi a discussão entre consumidor/ não consumidor, por forma a aferir-se do direito de retenção.

37. Ora, verificando-se o incumprimento definitivo do contrato promessa em data, em muito anterior à declaração, nem sequer se deve pôr em causa o facto de a credora ser ou não consumidor. Pois, os direitos à restituição do sinal em dobro e ao direito de retenção sobre a fracção prometida vender consolidou-se na esfera da credora antes da declaração de insolvência, declaração esta que não a pode afectar. Veja-se neste sentido as seguintes decisões: - Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 06/12/2016 (…); - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19/06/2014 (…)

38. Pelo que, e atento o exposto é de aplicar ao caso em apreço o direito de retenção previsto o art. 755.° n.º 1 alínea f) do Código Civil, pois o promitente-comprador é beneficiário da promessa, teve a tradição do imóvel, pela entrega das chaves da fracção e posse da mesma, e tem um crédito sobre a insolvente.

39. Razão pela qual, não podia o Sr. AI optar por cumprir ou não cumprir o contrato, pois não se pode cumprir um contrato que já se encontra em incumprimento definitivo. Logo não tem razão de ser o alegado na decisão que se recorre, por inaplicabilidade do previsto nos arts 102.º e 106.º do CIRE.

40. Assim, deve julgar-se procedente a revista e revogar-se a decisão recorrida, declarando-se e reconhecendo-se que que o contrato promessa se encontrava definitivamente incumprido à data da declaração de insolvência, e nessa consequência que a ora recorrente é beneficiária do direito de retenção sobre a fracção "C", devendo o respectivo crédito ser graduado nessa conformidade, ou seja, como garantido e privilegiado por força do direito de retenção sobre a fracção que alega, possui e de que beneficia, mantendo-se assim a decisão proferida em primeira instância.

Nestes termos, decidindo-se como se requer, devem V. Exas considerar procedente a revista apresentada e nessa medida revogar a decisão recorrida, substituindo-a por outra que declare que a ora recorrente é beneficiária do direito de retenção sobre a respectiva fracção, por se verificar o incumprimento definitivo do contrato em data anterior à insolvência e nessa sequência ser graduado o seu crédito, como garantido e privilegiado, e nessa sequencia ser pago antes da recorrida.

Credora EE, LDA

1. A recorrente não concorda:

a. Que não seja considerada como consumidora, a sua "veste" no contrato promessa em análise. E, consequentemente,

i.       Com o valor do crédito que lhe foi reconhecido, porque existe um sinal e, sendo assim, como reconheceu o Tribunal da

Relação, existe o direito a exigir o dobro do mesmo,

ii.      Com o facto de se entender que o mesmo não goza de direito de retenção, quanto mais não fosse, por força da empreitada.

Daí o presente recurso.

2.      Atento o disposto no artigo 14.º do CIRE (…).

3.      No caso, o acórdão recorrido está em oposição com o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça de 05-07- 2016 (Relator: ANA PAULA BOULAROT), proferido no domínio da mesma legislação e que decidiu de forma divergente a mesma questão fundamental de direito: "No caso, apesar de se ter apurado que o promitente comprador cedeu o uso do imóvel a uns amigos que o utilizam para fins habitacionais, esta «cedência» configura a aplicação do objecto a um fim não profissional, consubstanciando um uso privado do sujeito, sendo pois, nesta asserção, consumidor. (http://www.dgsi.pt)

4. A final, além do mais, foi decidido que a credora em causa, não se podia considerar como consumidora e, por isso, aqui recorrente, "enquanto promitente-compradora que pagou integralmente o preço estipulado (€47.499,33), terá direito apenas a este valor - artigo 102., nº 3, al. c}, ex vi artigo 104º, nº 5 e artigo 106º, nº 2, todos do CIRE, o qual não beneficia de direito de retenção".

5. É desta decisão, de que se discorda, que vai interposto o presente recurso, que foi mantida pelo Tribunal da Relação de Coimbra,

6. Com base no entendimento de que "O contrato-promessa não é um acto de natureza exclusivamente civil e que o próprio contrato-promessa não infirma a natureza comercial do mesmo. Em suma, o contrato-promessa é de qualificar como contrato comercial, isto é, como um acto que se insere no âmbito da sua actividade comercial" - Entendimento contrário ao que foi o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão acima referido.

7. O Recurso, que ora se interpõe, terá por objecto as seguintes questões:

-  A promitente compradora/credora/recorrente, atento o uso dado ao imóvel, objecto do contrato-promessa, esta «cedência» configura a aplicação do objecto a um fim não profissional, consubstanciando um uso privado do sujeito, sendo pois, nesta asserção, consumidor. E, consequentemente,

a. Apurar do valor do crédito da recorrente.

b. Apurar do benefício do direito de retenção do crédito da recorrente.

8. Segundo a sentença, a ora recorrente não podia considerar-se consumidora.

9. E, não pode considerar-se pelo seguinte: seria consumidora se usasse a fracção para cumprir o seu escopo social. Como não provou que o use, não é consumidora. E, não sendo consumidora não beneficia nem do regime do artigo 442.º nem da alínea f) do n.º 1 do artigo 755.º do CC. E, assim o seu crédito é o que está previsto no artigo 102.º, n.º 3, alínea c) do CIRE, por remissão dos artigos 106.º, n.º 2 e 104.º, n.º 5.

10. Assim, a solução será diferente, consoante se conclua se o promitente-comprador, no caso, a ora recorrente, tem, ou não, no contrato-promessa a posição de consumidor.

11. Como se pode ler no acórdão recorrido:

"Com efeito, FF afirmou que a fracção em causa foi cedida ao Sr. GG (sócio gerente da recorrente) ... depois de terem sido realizadas obras na fracção (segundo a testemunha obras na cozinha e na casa de banho], a mesma serve de habitação ao filho do Sr. GG também ele chamado GG, e da sua família, composta pela mulher e duas filhas.

HH (técnico de contas até insolvência, em tempo parcial nos últimos 4 anos) afirmou que quem mora na fracção é o filho do Sr. GG e a família.

Por fim, o próprio gerente da sociedade ora recorrente, GG, afirmou que a fracção serve de habitação ao filho e à família.

Vê-se, assim, pela síntese que se acaba de fazer que as testemunhas e o gerente da ora recorrente convergem na afirmação de que quem usa, na realidade, fracção prometida vender à ora recorrente, é um filho do gerente desta e a respectiva família."

12. Põe-se como questão solvenda no âmbito da presente Revista, a de saber se o conceito de consumidor, para os efeitos de atribuição do direito de retenção a que alude o normativo inserto no artigo 755º, nº 1, alínea f) do C. Civil, corresponde à pessoa que adquire um bem ou um serviço para uso privado, de modo a satisfazer as suas necessidades pessoais e familiares, não abrangendo quem os obtém para satisfação das necessidades da sua profissão ou empresa, competindo ao promitente comprador o ónus da alegação e prova daquela qualidade, Acórdãos fundamento do STJ de 25 de Novembro de 2014 e de 14 de Outubro de 2014, em contradição com o proferido nos autos.

13.    A Recorrente defende que o crédito reclamado beneficia de direito de retenção, nos termos do art. 755º, nº 1, al. f) do CC.

14.    É, pois, este o cerne do presente recurso e que cumpre apreciar (qualificação do crédito do referido credor).

15. O que opõe as duas teses em confronto é a interpretação ou o entendimento que aí se faz do teor do Acórdão Uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/2014, de 20 de Março de 2014, publicado no DR, 1º série, nº 95, de 19 de Maio de 2014.

16.    O consumidor, como resulta do arts 2º, nº 1 da Lei nº 24/96, de 31/07, alterada e republicada pela Lei nº 47/2014, de 28/07, é 'todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios'.

17.    Ora, no presente caso, face aos factos provados parece que não podem existir dúvidas da qualificação da recorrente, promitente adquirente de uma dada fracção imobiliária (por dação em pagamento), como consumidor: Ver a este respeito a nota 10 do Ac. Unif. 4/2014, onde se cita Miguel Pestana de Vasconcelos, e onde se escreve: 'não sofre dúvida que o promitente-comprador é in casu um consumidor no sentido de ser um utilizador final com o significado comum do termo, que utiliza os andares para seu uso próprio e não com escopo de revenda'.

18. Sendo assim, nos termos do arts 755º, nº 1, al. f) do C. Civil, o beneficiário da promessa de transmissão ... que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido sobre a coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte nos termos do arts 442º, goza do direito de retenção sobre essa coisa.

19. Ora, o que daqui resulta é que o promitente-comprador, ainda que com eficácia meramente obrigacional, com traditio, com é o presente caso, sendo, além do mais, também um consumidor (que não destina o bem imóvel a revenda ou a uso profissional), que não obteve o cumprimento do objecto da promessa existente por parte do administrador da insolvência, fica a gozar do chamado direito de retenção sobre o imóvel prometido, nos termos do arte 755º, nº 1, al. f) do C.Civil, como foi decidido quer na sentença recorrida quer no caso do Acórdão Uniformizador nº 4/2014.

20.    Tenha até em conta que na relação de créditos elaborada pelo sr. Administrador da insolvência vem referido o crédito deste reclamante e como beneficiando do direito de retenção.

21.    Nos termos do nº 1 do art. 2º da LDC (Lei de Defesa do Consumidor - Lei nº 24/96, de 31.07, com as alterações decorrentes dos DL. nºs/s 67/2003, de 08.04, e 84/2008, de 08.05), "Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios".

22.    É assim a finalidade do acto de consumo que determina, essencialmente, a qualificação do consumidor como sujeito do regime de benefício que aquele diploma instituiu - e ainda os que lhe seguiram na senda da mesma protecção do consumidor, como os decretos-leis nºs 67/2003 de 8/04 e 84/2008 de 21/05, operando a transposição de Directivas da União Europeia.

23.    Por outro lado, e apesar da falta de qualquer referência literal no art. 755º, nº 1, al. f) mencionado a este requisito, há muito que se vem defendendo que o referido direito de retenção apenas se pode atribuir ao promitente comprador que seja consumidor no contrato de que resulta o crédito garantido pelo direito de retenção.

24.    A Lei n.º 24/96 define no seu artigo 2º, nº 1, consumidor nos termos referidos

25.    Por seu turno o DL 24/2014, de 14 de Fevereiro ao transpor a Directiva 2011/83/EU do Parlamento e do Conselho, de 25.10.2011, que, no artigo 2.º, define, para efeitos dela mesma "Consumidor: qualquer pessoa singular que, nas contratos abrangidos pela presente directiva, actue com fins que não se incluam no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional", veio a fazer constar como consumidor "a pessoa singular que actue com fins que não se integrem no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional".

26.    Constituindo o segmento normativo a que alude o artigo 755º, nº 1, alínea f) do CCivil, uma disposição que em termos materiais visa a tutela do consumidor, há que ter em atenção, na análise do caso concreto se estamos ou não em presença dos elementos que nos permitam concluir se estamos ou não em presença de um contraente com as apontadas características.

27.    Retira-se da materialidade apurada, nomeadamente dos factos dados como provados que dos mesmos resulta o destino da casa ou fracção à habitação, embora não à sua habitação (do promitente adquirente), mas também não à sua revenda ou uso profissional, o que permite qualificar esse promitente-adquirente como consumidor.

28.    Os aludidos normativos, ao diferenciarem o uso pessoal, com a satisfação de necessidades pessoais, do uso profissional e/ou para exercício de uma actividade económica dela retirando proventos, não quer afastar daquele uso eminentemente privado uma eventual obtenção de créditos por via de arrendamentos de vilegiatura e/ou outros, como forma de obter um rendimento adicional. Veja-se a este propósito que as constantes crises económicas e a baixa da taxa de juros, que hoje em dia atinge montantes quase negativos, leva que se procure outras formas de aplicação das poupanças, maxime, através da compra de imóveis para rendimento, por parte de particulares que têm as suas actividades profissionais e apenas pretendem com as aludidas aplicações a satisfação de necessidades pessoais, aumentando assim o seu pecúlio, e não fazer de tais aplicações uma eventual outra actividade profissional.

29.    Estas situações nada têm a ver com o exercício de uma actividade profissional de carácter essencialmente económico, perfeitamente contidas, portanto, naquela noção estrita de consumidor, assumida pelo Tribunal recorrido: a Recorrente é uma pessoa jurídica, consumidor final, porque não adquirente do bem para o exercício de uma actividade profissional, o Tribunal de Justiça tem considerado a este propósito, designadamente, nos acórdãos Bertrand, Shearson Lehman Hutton, Benincasa e Gabriel, que o conceito de «consumidor» na acepção dos artigos 13.º, primeiro parágrafo, e 14.º, primeiro parágrafo, da Convenção de Bruxelas deve ser interpretado de forma restritiva, atendendo-se à posição dessa pessoa num contrato determinado, em conjugação com a natureza e finalidade deste, e não à situação subjectiva dessa mesma pessoa, pois uma mesma pessoa pode ser considerada consumidor no âmbito de determinadas operações e operador económico no âmbito de outras. O Tribunal deduziu daí que só os contratos celebrados fora e independentemente de qualquer actividade ou finalidade de ordem profissional, unicamente com o objectivo de satisfazer as próprias necessidades de consumo privado de um indivíduo, ficam sob a alçada do regime especial previsto pela referida Convenção para protecção do consumidor enquanto parte considerada economicamente mais débil, ao passo que essa protecção não se justifica em casos de contratos cujo objectivo é uma actividade profissional; por outro lado este mesmo Tribunal tem por assente que o órgão jurisdicional chamado a pronunciar-se sobre um litigio relativo a um contrato relativa á venda de bens de consumo, está obrigado sempre que disponha de elementos a verificar se o comprador pode ser qualificado como consumidor na acepção da Directiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, cfr Ac Froukje farber, de 4 de Junho de 2015, (Acórdãos consultáveis in http:/Curia.Europa.EU).

30.    Não ignoramos que a vexata quaestio que se põe no direito do consumo é a própria noção de consumidor, a qual segundo os entendidos, não se reduz a um único conceito, nos termos do Direito europeu, contudo pensamos que no essencial a tónica põe-se na qualidade em que a parte intervém no contrato: será consumidor aquele que adquire o bem ou serviço sem fins empresariais ou profissionais livres, cfr a noção que nos é dada pelo § 13 do BGB alemão «Consumidor é toda a pessoa singular que conclua um negócio jurídico com finalidade que não lhe possa ser imputada a título empresarial ou de profissional livre.», apud Menezes Cordeiro, O anteprojecto de Código do Consumidor, in O Direito, Ano 138º, IV, 685/715; António Pinto Monteiro, A contratação em massa e a protecção do consumidor numa economia globalizada, RU, Ano 139, Março-Abril 2009, 221/235; Calvão da Silva, Compra E Venda De Coisas Defeituosas, 2001, 112/113; Carlos Ferreira de Almeida, Direito do Consumo, 2005, 84/87; Jorge Morais Carvalho, Manual De Direito Do Consumo, 3º edição, 17/23.

31.    No caso dos autos, não se apurou que o Reclamante/Recorrido tivesse adquirido o imóvel para fins empresariais, não se podendo extrair da circunstância material de o ter cedido a terceiros, sem mais, que tal cedência tivesse sido feita a titulo de obtenção de lucro, maxime, eventual revenda.

32.    ln casu, apesar de se ter apurado que a Recorrente cedeu o uso do imóvel aos familiares do gerente, que o utilizam para fins habitacionais, esta «cedência» configura a aplicação do objecto a um fim não profissional, consubstanciando um uso privado do sujeito, cfr neste sentido Fernando Dias Simões, O Conceito De Consumidor No Direito Português, 11/12

33.    E, nesta leitura, do uso privado do bem objecto da promessa cuja traditio ocorreu, temos de reconhecer como privilegiado o crédito da recorrente por gozar de direito de retenção.

34.    Sempre esta empresa tem direito a receber o sinal em dobro, ou seja, a importância de 94.998,66 € (noventa e quatro mil, novecentos e noventa e oito euros e sessenta e seis cêntimos), o que desde logo se reclamou.

35.    As partes acordaram entre si o preço definitivo para a prometida compra e venda no valor de € 47.499,33, a ser pago do modo referido no contrato promessa.

36. A reclamante comunicou, desta forma, definitivamente, a sua decisão de resolução do contrato promessa, por incumprimento da insolvente,

37. E, em consequência, solicita a devolução do sinal em dobro.

38.    Termos em que deve ser reconhecido o crédito reclamado, pelo valor total de €94.998,66 € (noventa e quatro mil, novecentos e noventa e oito euros e sessenta e seis cêntimos) - a título de capital/sinal em dobro, acrescido do montante devido a título de juros vencidos, até efectivo e integral pagamento, sendo que, nos termos do art. 755º nº 1, f) e 759º do CC, goza de direito de retenção sobre o imóvel, acima descrito, o qual prevalece inclusivamente sobre os ónus registados.

39.    A recorrente invoca direitos de crédito resultantes de um incumprimento de contrato promessa celebrado com a insolvente, o qual tinha por objecto fracção destinados a habitação figurando a insolvente como promitente vendedora e a recorrente como promitente compradora.

40. Discordando-se do agora entendido pelo Tribunal "a quo", quando à concluída, de forma infundada, inexistência de sinal.

41. Foi isso o fixado e estipulado entre as partes.

42. Sendo que, a credora, efectivamente, entregou a quantia de 47.499,33 €, ainda que em trabalho, materiais e obras várias e serviços vários - empreitada.

43. Por cautela, e, a entender-se que a promitente-compradora/recorrente não goza, o seu crédito de direito de retenção, ao abrigo do referido e documentado contrato-promessa,

44.    Sempre, como ficou provado, em causa está o preço da obra que, depois, foi convertido em pagamento do sinal acordado.

45.    Ao contrário do decidido, resulta da matéria assente que as obras foram executadas ao abrigo de um contrato de empreitada, celebrado entre insolvente e recorrente.

46.    Nesse caso, e, como decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 29-01-2014, sempre o crédito da recorrente goza de direito de retenção.

47.    Pelo que a decisão recorrida, porque violadora das disposições acima referidas, há-de ser revogada e substituída por outra que:

Julgando procedente o recurso:

• Deve ser reconhecido que a recorrente é credora de um crédito sobre a insolvente, pelo valor total de €94.998,66 € (noventa e quatro mil, novecentos e noventa e oito euros e sessenta e seis cêntimos) - a título de capital/sinal em dobro, acrescido do montante devido a título de juros vencidos, até efectivo e integral pagamento, o Que, nos termos do art. 755° nº 1, f) e 759° do CC, goza de direito de retenção sobre a fracção autónoma designada pela letra "F", correspondente a um apartamento do tipo T, no primeiro andar direito trás, com garagem número 2, no piso-2, do prédio urbano sito na Urbanização ..., Lote …, União de freguesias de .... e ..., concelho de ...., inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ....°, descrito na Conservatória do registo Predial de .... sob o número …, acima descrito, o qual prevalece inclusivamente sobre os ónus registados.

Ou, sempre, a assim não se entender, reconhecido o direito de retenção, de que goza o crédito da recorrente enquanto sempre, porquanto, como ficou provado, em causa está o preço da obra que, depois, foi convertido em pagamento do sinal acordado:

- O empreiteiro goza do direito de retenção para pagamento do preço da obra, quer esta tenha sido acabada, quer não.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpre decidir.

II.

Questões a resolver:

Recurso de BB, Lda:

- Se o contrato-promessa celebrado por esta credora constitui um negócio em curso, para efeitos do disposto no art. 102º, nº 1, do CIRE;

- Constituindo um negócio em curso, se essa credora tem a qualidade de consumidora.

Recurso de EE, Lda:

- Se esta credora deve ser considerada consumidora;

- Se o montante do seu crédito corresponde ao dobro do sinal;

- Subsidiariamente: se as obras que esta credora realizou foram efectuadas no âmbito de um contrato de empreitada.

III.

Julgada improcedente a impugnação sobre a matéria de facto, foram considerados provados os seguintes factos (com interesse para este recurso):

1.    Por sentença proferida em 1 de Agosto de 2016, transitada em julgado, foi declarada a insolvência de “AA, Lda.”, com sede na Rua de ..., ..., ..., ....

2.    Foi fixado o prazo de 30 dias para reclamação de créditos.

3.    De fls. 12 a 42 do presente apenso, veio o Sr. Administrador da Insolvência apresentar a lista de créditos a que alude o art.º 129.º do C.I.R.E.

4.    Foram impugnados os créditos dessa lista correspondentes aos números 1, 4, 8, 14, 17, 22, 26, 32, 35, 36, 37, 40, 56, 58, 59 e 62. Os demais não foram impugnados.

5.    Vieram igualmente reclamar créditos através de acção de verificação ulterior de créditos os seguintes credores: Estado (apenso C); e “II, Unipessoal, Lda.” (apenso D).

6.    Foram apreendidos a favor da massa insolvente: imóveis (verbas de 1 a 18 de A a U), veículos automóveis (verbas de 19 a 23), outros móveis (verbas 24 a 31) e acções (verba 36), constantes do auto de apreensão do apenso respectivo.

7.    Os imóveis constantes das verbas n.ºs 1 e 5 a 18 de A) a U) estão onerados com hipotecas constituídas a favor da “DD, C.R.L.” e “CC, SARL”.

(…)

47.  “EE, Lda.” e a insolvente celebraram, em 12 de Abril de 2016, um contrato denominado “Contrato Promessa de Compra e Venda” o qual teve por objecto mediato a fracção autónoma designada pela letra “F”, correspondente a um apartamento do tipo “T” primeiro andar direito trás, com garagem número 2, no piso -2, do prédio urbano sito na Urbanização ..., Lote …, União de freguesias de .... e ..., concelho de ...., inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...º, descrito na Conservatória do Registo Predial de .... sob o número ..., sendo fixado o preço de € 47.499,33.

48.  A fracção foi entregue na data da outorga do contrato, em 12 de Abril de 2016, encontrando-se na posse da mesma desde essa data.

49.  A credora reclamante fez obras nessa fracção, requereu o abastecimento de água e fornecimento de electricidade.

50.  Desde 12 de Abril de 2016 que a credora permite o seu uso por terceiros, em exclusivo, sem oposição ou interferência de quem quer que seja e, nomeadamente da insolvente.

51.  Nos termos vertidos na cláusula sexta do contrato referido em 47, a credora comunicou à insolvente, por carta datada de 13 de Julho de 2016, a conclusão das obras necessárias ao acabamento do apartamento, objecto do referido contrato, cujo custo foi pela credora reclamante suportado, sendo o respectivo valor imputado ao total do preço ajustado e que faltava pagar - € 6.381,07 – revestindo-se também da natureza de sinal.

52.  A credora exigiu que a insolvente marcasse a escritura pública no prazo máximo de 30 dias após a recepção daquela comunicação, bem como a, no mesmo prazo, colocar o imóvel objecto da prometida venda, livre de quaisquer ónus ou encargos, designadamente hipotecas.

53.  Dando disso conta à credora por meio de correio registado com aviso de recepção, tempestivamente enviado.

54.  Sob pena de se entender definitivamente incumprido o contratado, com as exigências daí provenientes e, nomeadamente, com a exigência do pagamento do valor do sinal em dobro.

55.  A credora comunicou à insolvente que retinha e reteria a fracção prometida vender, por entender ter direito de retenção sobre a mesma e, onde foram realizadas as obras, até que o valor que entendia ser devido - € 94.998,66 – fosse liquidado.

56.  A escritura pública não foi marcada.

(…)

109. Em 29 de Julho de 2010 “BB ..., Lda.” celebrou com a insolvente acordo escrito denominado “contrato promessa de compra e venda, tendo por objecto a fracção autónoma, designada pela letra “…” do prédio urbano, sito na Urbanização do ..., Lote …, em ...., que corresponde a uma fracção autónoma, destinada a estabelecimento comercial, correspondente ao rés-do-chão esquerdo, Lote …, então inscrito na matriz predial urbana da freguesia de .... sob o artigo ..., a que actualmente corresponde o artigo … da União das freguesias de .... e ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de .... sob o n.º ....

110. O preço acordado entre a credora reclamante e a insolvente foi de € 40.000,00 que foi pago pela credora reclamante na data da celebração do contrato referido em 109 e do qual lhe foi dado quitação.

111. O preço acordado correspondia a parte do preço de €65.000,00 que a insolvente devia à credora reclamante pela execução de uma empreitada que a credora reclamante já havia iniciado naquela data referente à aplicação de materiais de electricidade e ITED do prédio referido em 109.

112. Ficou ainda acordado que após a data agendada para a realização da escritura, que foi acordado ser até ao final do ano de 2010, a credora reclamante poderia entrar na posse da referida fracção.

113. A insolvente entregou a chave da fracção à credora em Janeiro de 2011 por insistência do gerente desta.

114. Desde essa data a credora reclamante tomou posse da fracção, tendo procedido à modificação do canhão da porta e alterado as chaves que o gerente da insolvente lhe havia entregado, tendo passado a exercer aí a sua actividade de porta aberta ao público, afixando também o logotipo da empresa na montra da fracção.

115. A insolvente não marcou a escritura porque não tinha previsão para a obtenção da respectiva licença de habitabilidade e capacidade financeira para liquidar o distrate necessário à desoneração da fracção assim prometida vender à credora reclamante.

116. A insolvente sempre foi prometendo à credora que iria celebrar a escritura, e sempre que era interpelada pelo seu gerente, pedia mais prazo para realizar a escritura o que não se veio a verificar.

117. As partes estipularam na cláusula quarta do contrato celebrado que, após 30 dias sobre a data prevista para a realização da competente escritura pública, o contrato se considerava não cumprido por facto culposo imputado à parte que lhe desse causa.

(…)

Alegações de facto não provadas:

1.    Que Desde 12 de Abril de 2016 que “EE, Lda.” usa a fracção referida em 47 dos factos provados.

IV.

A) RECURSO DA CREDORA BB, LDA

1. No que respeita à primeira questão colocada neste recurso – saber se o contrato-promessa celebrado entre a insolvente e esta credora constitui um negócio em curso, para efeitos do disposto no art. 102º, nº 1, do CIRE – afirmou-se no acórdão recorrido o seguinte:

"No entender deste tribunal a matéria de facto provada não configura situação de incumprimento definitivo. Com efeito, não surpreendemos, nela, nenhuma situação característica do incumprimento definitivo designadamente: 1) declaração inequívoca da promitente-vendedora no sentido de que não iria cumprir o contrato (ao invés, provou-se que a promitente vendedora prometia celebrar a escritura); também não surpreendemos; 2) interpelação da promitente-compradora à promitente-vendedora assinalando-lhe um prazo para marcar a escritura sob pena de se considerar não cumprido o contrato; 3) prazo essencial ou definitivo; 4) cláusula resolutiva expressa.

A propósito da cláusula resolutiva expressa, não se ignora que as partes convencionaram, que decorridos 30 dias sobre a constituição em mora, o contrato considerava-se não cumprido por facto culposo imputável à parte que lhe desse causa.

Sucede que, apesar de a escritura não ter sido celebrada 30 dias depois da data inicialmente prevista (até ao final de 2010), nenhuma das partes atribuiu à “mora” o significado de incumprimento definitivo. Só assim se explica que a promitente compradora fosse interpelando a promitente-vendedora para realizar a escritura e esta fosse pedindo mais prazo para a realizar, sem que aquela tivesse fixado um prazo razoável para a realização, sob pena de se considerar não cumprido o contrato. 

Na interpretação deste tribunal, não se pode dizer que o contrato-promessa estivesse em situação de incumprimento definitivo aquando da declaração de insolvência da sociedade AA, Lda. Em consequência, está submetido ao regime do CIRE relativo aos efeitos da insolvência sobre os negócios em curso, designadamente ao disposto no artigo 102.º e 106.º.

A recorrente discorda deste entendimento, afirmando que a credora e a insolvente estabeleceram no contrato-promessa um prazo para a realização da escritura pública, fixando-o, e clausularam ainda o efeito dessa não observância, ou seja, que se, decorrido esse prazo, a escritura não fosse realizada o contrato se considerava não cumprido por facto culposo imputado à parte que lhe desse causa, neste caso à insolvente. Foi assim estipulada uma cláusula resolutiva expressa, sendo certo que se provou que, após ter sido interpelada para fazer a escritura, ainda antes da declaração de insolvência, a insolvente assumiu que não iria cumprir o contrato por não ter meios financeiros para tal, verificando-se, assim, o incumprimento definitivo do contrato-promessa.

Não tem razão.

Com efeito, parece realmente que a conclusão a que se chegou no acórdão recorrido não pode, com razoabilidade, suscitar grandes dúvidas.

Na verdade, foi estipulado pelas partes, na clª 4ª, que, após 30 dias sobre a data prevista para a celebração da escritura (final de 2010), o contrato se considerava incumprido por facto culposo imputado à parte que lhe desse causa (facto 117).

Todavia, apesar do tempo decorrido até à declaração de insolvência da devedora – 01.08.2016 –, a credora não tomou qualquer iniciativa no sentido de pôr termo ao contrato-promessa. Pelo contrário, o que se provou foi que a insolvente sempre foi prometendo à credora que iria celebrar a escritura e, sempre que foi interpelada pelo seu gerente, pedia mais prazo para realizar a escritura, o que não veio a verificar-se (facto 116).

Saliente-se que, tal como alega a recorrente, na aludida cláusula foi fixado um prazo certo e expresso, tendo sido estipulada uma cláusula resolutiva expressa.

Assim se entendeu também no acórdão recorrido, como decorre da referência que é feita a tal qualificação, na sequência da fundamentação anterior relativa ao crédito da sociedade "Agro ....", em cujo contrato havia sido convencionada uma cláusula similar.

Tendo em conta o circunstancialismo referido, o mencionado prazo, estabelecido pelas partes, constitui realmente um prazo essencial subjectivo e tem o sentido de uma cláusula resolutiva expressa[2].

Na cláusula resolutiva, diferentemente do que sucede com a condição resolutiva[3], "a verificação do evento futuro previsto constitui apenas um pressuposto da constituição do direito potestativo de, mediante declaração unilateral, operar a resolução do contrato"[4].

Assim, a parte adimplente pode resolver imediatamente o contrato, mediante declaração à outra parte (arts. 436º e 224º do CC), sem recorrer ao regime previsto no art. 808º do CC, mas sem renunciar ao direito de pedir o cumprimento (se preferir, pode efectivamente exigir a prestação e a indemnização moratória a que haja lugar)[5].

No caso, apesar de ter decorrido um longo período de tempo até à declaração de insolvência da promitente vendedora, verifica-se que a credora BB não exercitou o direito de resolução, que era conferido pela dita cláusula contratual.

Contrariamente ao que vem alegado (conclª 31ª) a credora não chegou a resolver antecipadamente o contrato-promessa celebrado com a insolvente; como ficou provado, foi acedendo aos sucessivos pedidos de prorrogação do prazo com que a insolvente respondia às interpelações para a realização da escritura.

Neste condicionalismo, admite-se que possa até entender-se que existe uma renúncia tácita ao exercício do direito de resolução[6].

Seja como for, o certo é que o contrato-promessa é, por definição, o contrato em que as partes se vinculam a celebrar certo contrato – art. 410º, nº 1, do CC. O contrato-promessa cumpre-se com a celebração do contrato definitivo.

Ora, no caso, o prometido contrato de compra e venda não chegou a ser celebrado pelas partes. Mas, por outro lado, como decorre do que acima se referiu, o contrato-promessa também não foi extinto, designadamente por resolução, por qualquer das partes antes da declaração de insolvência.

Pode, pois, concluir-se que as partes não puseram termo ao aludido contrato-promessa antes da declaração de insolvência e que esse contrato se encontra ainda por cumprir, constituindo, assim, um negócio jurídico em curso, para efeitos do regime previsto nos arts. 102º e segs. do CIRE[7].

2. Tratando-se de um negócio jurídico em curso para o aludido efeito, há que observar a jurisprudência fixada no AUJ nº 4/2014:

No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755.º, n.º 1, al. f) do Código Civil.

Assim, o beneficiário da promessa, com tradição da coisa, goza do direito de retenção:

- se o administrador tiver recusado o seu cumprimento;

- se o promitente comprador tiver actuado no contrato na qualidade de consumidor.

No caso, não sofre dúvidas a verificação do primeiro requisito. Tem sido entendido[8], com efeito, que a inclusão pelo administrador da insolvência dos créditos dos promitentes compradores no elenco dos créditos reconhecidos – como ocorre no caso –, sem os subordinar a qualquer condição, corresponde à declaração de recusa de cumprimento do invocados contratos-promessa.

No que respeita à qualidade de consumidor:

Há, agora, que ter em consideração a jurisprudência fixada no AUJ do STJ de 12.02.2019 sobre o conceito de consumidor utilizado no referido AUJ de 2014:

Na graduação de créditos em insolvência, apenas tem a qualidade de consumidor, para efeitos do disposto no Acórdão nº 4 de 2014 do Supremo Tribunal de justiça, o promitente-comprador que destina o imóvel, objecto de traditio, a uso particular, ou seja, não o compra para revenda nem o afecta a uma actividade profissional ou lucrativa.

No caso, ficou provado que a recorrente, desde que tomou posse da fracção, passou aí a exercer a sua actividade de porta aberta ao público, afixando também o logotipo da empresa na montra da fracção (facto 114).

Assim, para além de se tratar de uma sociedade – podendo entender-se que, neste caso, só em certas condições seria permitido estender-lhe o conceito de consumidor[9] – resulta deste facto provado, sem qualquer dúvida, que a credora afectou a fracção à sua actividade social e profissional, com escopo lucrativo.

Assim e sem necessidade de nos alongarmos neste ponto, conclui-se que a recorrente não pode ser considerada consumidora, não beneficiando do direito de retenção.

Improcedem, por conseguinte, as conclusões deste recurso.

B) RECURSO DA CREDORA EE, LDA 

1. A questão essencial colocada neste recurso consiste em saber se esta credora deve ser considerada consumidora.

Está em causa, com efeito, um contrato-promessa de compra e venda de uma fracção autónoma, celebrado entre a credora e a insolvente, com efeitos obrigacionais, em que houve tradição da fracção, não tendo o contrato sido cumprido ou extinto antes da declaração de insolvência.

Trata-se, pois, de um negócio em curso, para efeitos do disposto, nos arts. 102º e segs do CIRE, pelo que o direito de retenção, a que a recorrente se arroga, à luz do decidido no AUJ nº 4/ 2014, só pode ser reconhecido se a mesma tiver a qualidade de consumidora.

 

Com interesse para esta questão, será de considerar, para além da caracterização referida, o seguinte:

- No referido contrato, foi estipulado que o preço acordado (€47.499,73) seria pago por compensação com um crédito da promitente compradora sobre a promitente vendedora, derivado de serviços prestados por aquela;

- Desde que lhe foi transmitida a posse da fracção, a credora permite o seu uso por terceiros, em exclusivo, sem interferência de quem quer que seja.

No acórdão recorrido entendeu-se que a recorrente não poderia ser considerada consumidora, com esta fundamentação:

A decisão de considerar que a ora recorrente não tinha no contrato-promessa a posição de consumidor não merece censura.

Como se escreveu acima, o conceito de consumidor para os efeitos ora em causa não pode afastar-se do conceito de consumidor válido no domínio da lei de Defesa do Consumidor ou no domínio do regime do contrato de venda de bens de consumo.

O consumidor que é tido em vista pelos diplomas é aquele a quem são fornecidos bens ou prestados serviços destinados a uso não profissional.

Não resulta dos factos provados que a ora recorrente tenha prometido comprar a fracção para um uso não profissional, para um uso alheio ao exercício da sua actividade comercial. Sendo a reclamante uma sociedade comercial e sendo as sociedades comerciais comerciantes (n.º 2 do artigo 13.º do Código Comercial e artigo 1.º, n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais), todos os contratos que celebrarem são considerados de natureza comercial, salvo se forem de natureza exclusivamente civil e se o contrário do próprio acto não resultar (n.º 2 do Código Comercial).

É isento de dúvida que o contrato-promessa não é acto de natureza exclusivamente civil e que próprio contrato-promessa não infirma a natureza comercial do mesmo.

Em suma, o contrato-promessa é de qualificar como contrato comercial, isto é, como um acto que se insere no âmbito da sua actividade comercial.

De resto, o facto de ter sido acordado que o preço devido pela celebração do contrato de compra e venda da fracção (€ 47 499,33) seria pago mediante compensação através de um crédito que a promitente compradora detinha sobre a promitente vendedora mostra que o contrato-promessa se insere no âmbito da actividade comercial da promitente compradora.

Crê-se que se ajuizou bem, mesmo tendo em consideração a jurisprudência fixada sobre esta questão no referido AUJ do STJ de 2019.

Recorde-se que se decidiu aí que tem a qualidade de consumidor o promitente-comprador que destina o imóvel, objecto de traditio, a uso particular, ou seja, não o compra para revenda nem o afecta a uma actividade profissional ou lucrativa.

Adoptou-se, assim, um conceito restrito de consumidor, que "incorpora as notas tipológicas consagradas no art. 2º, nº 1, da Lei de Defesa do Consumidor (Lei nº 24/96, de 31/07)".

Como se prevê neste artigo, "considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional".

Decorre da formulação do referido segmento uniformizador (assim como da mencionada fonte normativa[10]) que o conceito de consumidor não é limitado expressa e claramente à pessoa singular.

Será, todavia, em relação à pessoa singular que, em primeira linha, se sente a necessidade de protecção, por ser, normalmente, a parte mais fraca ou débil economicamente ou menos preparada tecnicamente.

Como refere Calvão da Silva, "normalmente a doutrina e as Directivas comunitárias excluem as pessoas colectivas ou pessoas morais. E cremos ser esta a melhor interpretação do nº 1 do art. 2º da Lei nº 24/96: todo aquele que adquira bens ou serviços destinados a uso não profissional – ao seu uso privado, pessoal, familiar ou doméstico, portanto por oposição ao uso profissional – será uma pessoa singular, com as pessoas colectivas a adquirirem os bens ou serviços no âmbito da sua capacidade, segundo o princípio da especialidade do escopo, para a prossecução dos seus fins, actividades ou objectos profissionais (cfr. art. 160º do Código Civil e art. 6º do Código das Sociedades Comerciais)"[11].

Noutra perspectiva, são referidas as vantagens comparativas da organização empresarial, por mais rudimentar que seja, em relação ao particular: mesmo que, em casos concretos, o nível de informação relevante disponível por profissionais seja igualmente baixo, a inserção numa actividade profissional propicia sempre melhores condições para o seu reforço e um poder de reacção mais efectivo[12].

Admite-se, porém[13], que existam situações que podem justificar outra ponderação e uma diferente solução – com base na equidade, na igualdade de tratamento e não discriminação –, perante as circunstâncias concretas do caso, designadamente se ocorrem as razões – debilidade económica ou uma situação de desequilíbrio motivada por insuficiência de informação (impreparação técnica) e fraco poder de negociação – que estão na base do conceito de consumidor, como pode acontecer no caso de uma modesta empresa que adquire um bem ou serviço estranho à sua actividade (e competência) específica.

É esta a solução prevista no Anteprojecto do Código do Consumidor que, depois de consagrar uma noção restrita de consumidor, permite a extensão do conceito, em certos termos, às pessoas colectivas (art. 11, nº 1 - "se provarem que não dispõem nem deveriam dispor de competências específica para a transacção em causa e desde que a solução se mostre de acordo com a equidade").

É esta também a solução que L. M. Pestana de Vasconcelos tem por ponderada e equilibrada; é esta solução, que "parte do núcleo restrito, permitindo o seu alargamento, em certos termos, e com as devidas cautelas, às pessoas colectivas e a outras pessoas singulares, aquela que deverá orientar o intérprete na concretização de consumidor para este efeito, dando inteiro cumprimento, no caso concreto, à ratio da disposição, o que vale dizer, só tutelando quem efectivamente é carente de tutela"[14].

No caso, desconhece-se qual seja a situação da recorrente e, designadamente, se a mesma é de molde a justificar a tutela do direito de consumo. O que parece relevante é que a promessa de compra e venda decorre de uma estreita conexão com o desenvolvimento da sua actividade profissional e comercial, tendo a promessa visado o pagamento de serviços anteriormente prestados pela recorrente (não pareceria até desajustado configurá-la como promessa de dação em pagamento – entrega da fracção para pagamento daqueles serviços).

Por outro lado, obtida a posse da fracção pela recorrente, esta cedeu o seu uso a terceiro. Se, como foi alegado pela recorrente nos autos, essa cedência do uso visou remunerar um seu trabalhador, este facto continua a evidenciar a forte conexão entre a aquisição da fracção e a actividade da empresa, não podendo, por isso, dizer-se que a fracção se destinou a uso não profissional ou alheio ao exercício da actividade comercial da recorrente.

A situação não se altera se nos confinarmos ao facto que ficou provado – cedência do uso a terceiro –, pois não se concebe que essa cedência seja feita a título de liberalidade, que seria, aliás, contrária ao fim da sociedade (art. 6º, nº 2, do CSC). De todo o modo, a tratar-se de cedência gratuita, esta seria pouco consentânea com a situação de debilidade própria da qualidade de consumidor.

Pode assim afirmar-se que a aquisição e a afectação da fracção não têm a ver com "consumo" ou seja, com a satisfação de necessidades privadas, mas antes com a actividade da empresa, só podendo visar a obtenção de um rendimento (ou poupança de despesa) que essa afectação poderia propiciar.

Por outro lado, não ficou minimamente demonstrado que a recorrente se encontrava na situação de debilidade, fraqueza ou vulnerabilidade que é pressuposta pelo conceito de consumidor.

Em suma, não existe fundamento para a recorrente ser considerada consumidora, nem para que se lhe estenda o respectivo regime[15].

Assim, pressupondo o direito de retenção que o respectivo beneficiário tenha a referida qualidade, não pode reconhecer-se esse direito à recorrente.

2. Defende a recorrente que sempre terá direito a receber o sinal em dobro, ou seja, a importância de € 94.998,66, discordando, assim, do decidido quanto à concluída, de forma infundada, inexistência de sinal.

Alega que foi isso o fixado e estipulado entre as partes, sendo que, a credora entregou, efectivamente, a quantia de 47.499,33 €, ainda que em trabalho, materiais e obras várias e serviços vários – empreitada.

No acórdão recorrido, depois de se caracterizar a figura do sinal, escreveu-se o seguinte:

" (…) As partes declararam que “a título de sinal e princípio de pagamento a primeira e a segunda outorgantes acordam que o mesmo é pago através da compensação do crédito que a promitente compradora detém sobre a promitente vendedora, conforme consta da conta corrente que anexam, servindo para ambas este documento de quitação”.

O sentido destas declarações é o de um contrato de compensação entre um crédito actual (o crédito da promitente-compradora) e um crédito futuro (o preço da venda da fracção devido à vendedora). Apesar de as partes terem declarado que a compensação valia como sinal, esta declaração não tem os efeitos pretendidos pelas partes. É que o contrato de compensação não implicou a entrega de qualquer coisa ao promitente-vendedor. A única coisa em relação à qual se punha a questão da entrega era o crédito da promitente compradora sobre a promitente-vendedora. A verdade é que o crédito do promitente-comprador não foi entregue à promitente vendedora. Apesar do acordo, o crédito da promitente vendedora não se extinguiu de imediato, pois a compensação só operava os seus efeitos – extinção de ambos os créditos – quando o crédito da promitente vendedora se tornasse actual, o que só sucederia com a celebração do contrato prometido.

Daí que, apesar do declarado pelas partes no contrato-promessa, a promitente compradora não constitui a favor da promitente vendedora qualquer sinal. E assim, não havendo sinal constituído também não é aplicável à recusa de cumprimento por parte do administrador, o acórdão uniformizador, pois resulta desse mesmo acórdão que a jurisprudência uniformizada vale apenas para o “contrato-promessa devidamente sinalizado”.

Deste modo, não tendo sido celebrado o contrato-prometido e não se tendo operado a extinção do crédito da promitente-compradora, esse crédito subsiste apenas no montante com que entrou no acordo de compensação, concretamente € 47 499,33".

Aqui, pensa-se que o critério a utilizar, para aferir da existência de sinal, poderia ser menos exigente e formal.

Decorre do disposto no art. 440º do CC que o sinal consiste na entrega por uma das partes à outra de coisa que coincida, no todo ou em parte, com a prestação a que está adstrita, contanto que as partes, expressa ou tacitamente, lhe atribuam essa natureza.

Assim, em regra, a entrega de coisa na altura da celebração do contrato não implica a presunção de constituição de sinal. Terá antes o significado de antecipar o cumprimento, total ou parcial, salvo se as partes atribuírem à prestação o carácter de sinal[16].

Por outro lado, o sinal constitui cláusula acessória do negócio jurídico a que acede[17]; uma cláusula real quoad constitutionem, exigindo, pois, a entrega efectiva da coisa: entrega que "pode consistir numa dação material efectiva, como numa tradição simbólica, bastando que se constitua, para o accipiens, e no seu interesse, uma relação material com a coisa"[18].

No caso, ficou provado que as partes outorgantes do contrato-promessa acordaram em qualificar como sinal o crédito que a promitente compradora detinha sobre a promitente vendedora, proveniente de serviços anteriormente prestados a esta.

Apesar de não corresponder ao modo típico de prestação do sinal, afigura-se-nos que a referida estipulação, expressa, das partes, convertendo o crédito detido pela promitente compradora – o valor dos serviços prestados – em sinal, não descaracteriza a figura deste, permitindo-lhe ainda desempenhar a função para que foi estabelecido[19]/[20].

Tudo se passa como se a promitente compradora (re)entregasse à promitente vendedora o numerário dela recebido para pagamento dos serviços prestados.

Não se vê razão plausível para considerar inválida tal convenção das partes, tendo em conta o princípio da liberdade contratual (art. 405º, nº 1, do CC), corolário da autonomia privada.

Esta questão não tem, todavia, a relevância que a recorrente lhe atribui.

Com efeito, já acima se concluiu que esta credora não pode ser considerada consumidora, pelo que a situação não é abrangida pelo AUJ 4/2014.

Assim, não se colocam as dúvidas que esse Acórdão pode suscitar sobre as consequências do incumprimento do contrato-promessa, entendendo-se que, nesse caso, será aplicável exclusivamente o regime do CIRE, como é sustentado pela doutrina, de modo francamente predominante[21].

Como se afirma no Acórdão do STJ de 18.09.2018[22] (apesar de incidir sobre uma situação abrangida pelo aludido AUJ):

Importa observar que a opção pelo não cumprimento da promessa de venda em causa (que tinha eficácia meramente obrigacional) por parte do Administrador da Insolvência constituiu um acto lícito e não culposo. Tratou-se de um acto praticado no exercício discricionário (em benefício dos interesses da massa) de um poder potestativo conferido por lei (sendo certo que ninguém veio invocar a ilicitude do acto, nomeadamente sob a alegação de ser abusivo).

Sendo assim, como é, não é adequado trazer à discussão o nº 2 do art. 442º do CCivil, seja por aplicação directa seja por aplicação indirecta (por analogia). A actuação do regime do sinal, tal como previsto nesta última norma, pressupõe um incumprimento definitivo, ilícito e culposo dos próprios contratantes (anteriormente à declaração da insolvência), não se podendo fazer equivaler a opção lícita de não cumprimento do administrador da insolvência a esse incumprimento ilícito e culposo dos contraentes.

Na realidade, a solução do caso não se encontra no n.º 2 do art. 442.º do CCivil, mas sim e exclusivamente no CIRE, nos termos das disposições conjugadas dos respectivos art.s 106.º, n.º 2, 104.º, n.º 5 e 102.º, nº 3, alínea c). O confronto destas normas com o que se prescrevia anteriormente no art. 164.º-A do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e Falência (CPEREF), conjugado com o que se mostra escrito (propósito confesso de romper com as soluções do regime anterior) no relatório preambular do diploma (D.L. n.º 53/2004) que aprovou o CIRE, não deixam margem para dúvidas razoáveis acerca do afastamento do regime do sinal tal como previsto no n.º 2 do art. 442.º do CCivil.

Improcede, por conseguinte, a pretensão da recorrente a que lhe seja reconhecido um crédito correspondente ao dobro daquilo que prestou.

3. Por fim, discute-se se as obras que esta credora realizou após a celebração do contrato promessa foram efectuadas no âmbito de um contrato de empreitada.

Sobre esta questão, afirmou-se no acórdão recorrido:

"Por último, também não é de acolher a pretensão da recorrente no sentido de ser reconhecido direito de retenção sobre a fracção por ter ficado provado que o preço da obra foi convertido em pagamento do sinal acordado. Cita Supremo Tribunal de Justiça em acórdão de 29 de Janeiro de 2014, o empreiteiro goza do direito de retenção para pagamento do preço da obra, quer este tenha sido acabada quer não tenha sido.

É verdade que o artigo 754.º do Código Civil - na parte em que dispõe que o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar a cosia, o se crédito resultar de despesas feitas por causa dela – tem sido interpretado no sentido de que o crédito do empreiteiro pela realização da obra goza de direito de retenção sobre a obra retida.

Citam-se a favor desta interpretação o acórdão citado pela recorrente (proferido no processo n.º 1407/09.3TBAMT) e ainda o acórdão proferido em 10-05-2011, no processo n.º 661/07.0TBVCT, ambos publicados em www.dgsi.pt.

É verdade que está provado que a ora reclamante fez obras na fracção que lhe foi prometida vender e que, por acordo, foi fixado em € 6 381,07 o custo de tais obras.

Sucede que não resulta da matéria assente que as obras tenham sido executadas ao abrigo de qualquer contrato de empreitada. Resulta da matéria de facto que a fracção prometida vender foi entregue ao ora exequente ainda por acabar e que acordou com a promitente vendedora em acabar as obras, imputando esse custo no preço da venda do apartamento."

Como se referiu, a recorrente alega que está em causa o preço da obra que, depois, foi convertido em pagamento do sinal acordado, sendo que, ao contrário do decidido, resulta, a seu ver, da matéria assente que as obras foram executadas ao abrigo de um contrato de empreitada, celebrado entre insolvente e recorrente.

Não é verdade, porém, que tenha ficado provada a existência da empreitada, como se salientou no acórdão recorrido.

Por outro lado, mesmo tendo a natureza de sinal, tal não implica que beneficie do direito de retenção, tendo em conta as razões indicadas no ponto anterior.

Daí que esta pretensão da recorrente deva improceder também.

V.

Em face do exposto, negam-se as revistas, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pelas recorrentes.

                                                Lisboa, 29 de outubro de 2019

Pinto de Almeida (Relator)

José Rainho

Graça Amaral

___________________________
[1] Proc. nº 3975/16.4T8VIS-A.C1.S1
F. Pinto de Almeida (R. 289)
Cons. José Rainho; Cons.ª Graça Amaral
[2] Cfr. Baptista Machado, Pressupostos da resolução por incumprimento, Obra Dispersa, Vol. I, 190.
[3] Em que a verificação do acontecimento futuro condicionante opera automaticamente a resolução do contrato.
[4] Baptista Machado, Ob. Cit., 185.        
[5] Neste sentido, Baptista Machado, Ob. Cit., 190 e 192; Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 4ª ed., 324.  
[6] Cfr. Brandão Proença, A Resolução do Contrato no Código Civil, 156; Romano Martinez, Da resolução do Contrato, 171.
[7] Cfr., neste sentido, L.M. Pestana de Vasconcelos, Direito de retenção, contrato-promessa e insolvência, CDP 33-9; Gravato Morais, Promessa obrigacional de compra e venda com tradição, CDP 29-4; Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6ª ed., 183; Gisela César, Os Efeitos da Insolvência sobre o Contrato-Promessa em Curso, 125; Acórdãos do STJ de 29.07.2016 (P. 6193/13) e de 11.09.2018 (p. 25261/11), acessíveis em www.dgsi.pt, como os demais adiante citados.
[8] Como afirmámos no Acórdão deste Tribunal de 13.07.2017 (P. 258/13).
[9] Como adiante será explicado.
[10] Repetida no art. 1º-B da Lei 67/2003, de 23/8, mas diferentemente do que sucede com a noção de consumidor adoptada noutros diplomas legais sobre consumo, como o DL 57/2008, de 26/3, DL 133/2009, de 2/6, DL 24/2014, de 14/2 e DL 74-A/2017, de 23/6, que limitam o conceito à pessoa singular.
[11] Compra e Venda de Coisas Defeituosas, 5ª ed., 122.
[12] Neste sentido, C. Ferreira de Almeida, Direito do Consumo, 49.
[13] Como afirmámos no Acórdão deste Tribunal de 13.07.2017 (P. 258/13)
[14] Ob. Cit., pg. 8 (nota 25).
[15] Neste sentido, apreciando situação com alguma similitude, cfr. o recente Acórdão deste Tribunal de 17.10.2019 (P. 1012/15).
[16] Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 11ª ed., 207; também Ana Prata, O Contrato-Promessa e o seu Regime Civil, 743 e I. Galvão Teles, Direito das Obrigações, 6ª ed., 113.
[17] Cfr., para além dos Autores citados, N. Pinto Oliveira, Ensaio sobre o Sinal, 18.
[18] Ana Prata, Ob. Cit., 750.
[19] Cfr. Ana Prata, Ob. Cit, 763.
[20] Função que é, como refere Calvão da Silva (Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 4ª ed., 302), a de "reforçar os vínculos nascentes do contrato e a garantir o seu cumprimento, pela coerção indirecta que exerce sobre o devedor", constituindo também "a fixação preventiva e convencional da indemnização devida, em caso de não cumprimento imputável a uma das partes".
[21] Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, pp. 234 a 238; Pinto Oliveira, Cadernos de Direito Privado, n.º 36, pp 3 e seguintes; Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, 3ª ed., pp. 472 e 473; Ana Prata, Morais Carvalho e Rui Simões, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, p. 312 e 320; Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2ª ed., pp. 186 e 190; Maria do Rosário Epifânio, Ob. Cit., 187, Albuquerque Matos, Os efeitos da declaração de insolvência sobre os negócios em curso, IV  Congresso do Direito da Insolvência, 59; Gisela César, Ob. Cit., 195)
[22] Proferido no Proc. 1210/11; no mesmo sentido, o Acórdão do STJ de 09.04.2019 (P. 872/10).