Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
Relator: | VASQUES OSÓRIO | ||
Descritores: | HABEAS CORPUS PRISÃO ILEGAL PRISÃO PREVENTIVA MEDIDAS DE COAÇÃO PRIMEIRO INTERROGATÓRIO JUDICIAL DE ARGUIDO DETIDO IMPEDIMENTO JUIZ INDEFERIMENTO | ||
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Data do Acordão: | 09/04/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | HABEAS CORPUS | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
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Sumário : |
1. O habeas corpus é uma garantia constitucional do direito à liberdade, perante o abuso de poder objectivado numa prisão ilegal, directamente evidenciada nos factos recolhidos na providência em confronto com a lei, sem que se torne necessária a apreciação do acerto de decisão judicial ou da existência de nulidades ou irregularidades, não sendo, pois, um recurso sobre recurso ou um recurso acrescido a outro recurso. 2. Assim, não integra o fundamento de habeas corpus previsto na alínea a) do nº 2 do art. 222º do C. Processo Penal, a circunstância de a requerente ter sido sujeita à medida de coacção de prisão preventiva em inquérito, determinada por magistrada judicial cuja declaração de impedimento foi por si, requerente, peticionada, e não reconhecida pela magistrada visada, tendo a requerente, de imediato, interposto recurso e apresentado a respectiva motivação, recurso que foi admitido e se encontra pendente. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam, em audiência, no Supremo Tribunal de Justiça I. RELATÓRIO 1. AA, detida preventivamente à ordem do processo nº 29/25.6PEFAR, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Instrução Criminal de Faro – Juiz 1, por intermédio de Ilustre Mandatário, veio requerer ao Exmo. Juiz Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, a providência de habeas corpus ao abrigo do disposto no arts. 222º, nº 2, a) e 223º do C. Processo Penal, nos termos que se transcrevem: “(…). 1.º Em sede de Primeiro Interrogatório Judicial, no pretérito dia 23/08/2025, foi determinada a aplicação ao Arguido da medida de coação mais severa, de Prisão Preventiva, prevista no artigo 202º do CPP, por se considerar existirem fortes indícios de a mesmo ter praticado crimes. 2.º A arguida invoca a presente providência de Habeas Corpus, por forma a ver tutelado o seu direito à liberdade individual ambulatória, que deve ser interpretado como um direito fundamental do cidadão e da sua própria dignidade como pessoa humana, tanto é que o referido instrumento é também proclamado em diversas legislações internacionais. 3.º A Declaração Universal dos Direitos Humanos assegura expressamente que ninguém pode ser arbitrariamente detido, razão pela qual não pode, igualmente, ser mantida a privação da liberdade com base em uma ordem de prisão ilegal, que desrespeite o devido processo legal. 4.º O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos assegura que todo o indivíduo tem direito à liberdade pessoal, pelo que segue terminantemente proibida a detenção ou prisão arbitrárias, que só pode ser mitigado se fundamentado por lei e desde que respeitados os procedimentos legais. 5.º No mesmo sentido, é assegurado o direito a recorrer a um Tribunal a toda a pessoa que seja privada de liberdade em virtude de detenção, a fim de que este se pronuncie, com a maior brevidade, sobre a legalidade da sua prisão e em caso de prisão ilegal, deve ordenar a sua liberdade. 6.º A Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais resguarda ainda que toda a pessoa tem direito à liberdade, pelo que ninguém pode ser privado da sua liberdade, salvo se for preso em cumprimento de condenação, decretada por tribunal competente e desde que tal prisão seja determinada de acordo com o procedimento legal. 7.º Já a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 27º, n.º 1, reconhece e garante os direitos à liberdade individual, à liberdade física e à liberdade de movimentos e, expressamente, consagra no artigo 31º, que a providência do Habeas Corpus como sendo uma garantia extraordinária, expedita e privilegiada contra a prisão arbitrária ou ilegal, deve ser decidida no prazo de 08 (oito) dias. 8.º Quanto à competência para decidir sobre a providência liberatória em referência, não pairam quaisquer dúvidas de que tal incumbência recai ao STJ, conforme entendimento que decorre do disposto no artigo 222º do CPP. 9.º Nesse sentido, a arguida reivindica através deste remédio excecional a intervenção do poder judicial para imediatamente fazer cessar as ofensas ao seu direito de liberdade, eis que a manutenção da prisão é ilegal e reveste-se de notórios abusos de autoridade, razão pela qual pretende ver restituída a sua liberdade, pois encontra-se ilegalmente privada da sua liberdade física. 10.º Sucede que o disposto no artigo 222.º, n.º 2, al. a) e o n.º 2 do CPP, ensina que a prisão é ilegal quando ordenada por entidade incompetente. 11.º Sucede que a Juíza que determinou a Prisão Preventiva, Exma. Sra. Dra. BB, jamais poderia conduzir o Primeiro Interrogatório Judicial, uma vez que recentemente, a referida magistrada condenou a arguida, conforme Acórdão proferido no Processo n.º 421/22.8T9OLH, uma vez que presidiu o julgamento no Juízo Central Criminal de Faro - Juiz 2 . 12.º O Acórdão do Processo n.º 421/22.8T9OLH, foi proferido em 09/05/2025 e a arguida foi condenada a uma pena de 5 anos e 6 meses de prisão efectiva, em virtude de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º do Decreto Lei n.º 15/93, de 22.01. 13.º A Exma. Sra. Dra. BB foi a Juíza Presidente e encarregue do julgamento do Processo n.º 421/22.8T9OLH. 14.º Entre o dia 09/05/2025 (data do Acórdão do Processo n.º 421/22.8T9OLH) e 23/08/2025 (data do Primeiro Interrogatório do Processo n.º 29/25.6PEFAR), transcorreram apenas aproximadamente 03 meses, sendo que ambas as Decisões foram proferidas pela Mm.a Juíza BB. 15.º Antes de iniciar o Primeiro Interrogatório Judicial de Arguido Detido, o mandatário da arguida suscitou incidente de impedimento da Mm.a Juíza em realizar o presente interrogatório, uma vez que presidiu o julgamento da arguida AA no Processo n.º 421/22.8T9OLH, nos termos do disposto no artigo 40.º, n.º 1, al. c) do CPP. 16.º Tendo em conta que a Mm.a Juíza BB proferiu Despacho a não considerar verificado o impedimento e, por conseguinte, não se deu por impedida de realizar o interrogatório judicial, de imediato, o mandatário da arguida interpôs Recurso, ditado directamente para a Ata. 17.º O Recurso interposto ao incidente de impedimento foi devidamente fundamentado, motivado e acompanhado de conclusões. 18.º O Recurso ditado diretamente para a Ata, foi interposto de imediato e atendeu às formalidades legais, pelo que foi recebido, com efeito suspensivo, sendo determinada a sua subida imediata e em separado. 19.º Portanto, a questão do incidente de impedimento foi devidamente sinalizada pelo mandatário da arguida, que não concordou que a diligência de Primeiro Interrogatório Judicial fosse presidida pela mesma Juíza que condenou a arguida. 20.º Ora bem, o que está em causa é a preservação da imparcialidade do Juiz, não podendo uma mesma Juíza que condenou a arguida, proceder ao seu Primeiro Interrogatório Judicial. 21.º Nenhum Juiz pode sequer intervir em julgamento, recurso ou mesmo em pedido de revisão, quando tenha participado em julgamento anterior, entendimento consagrado pelo artigo 40.º, n.º 1, al. c) do CPP. 22.º Se um Juiz não pode voltar a intervir em uma novo julgamento, sequer em um pedido de revisão, com muito menos sentido, poderia o mesmo Juiz proceder ao Primeiro Interrogatório Judicial do mesmo arguido. 23.º Visivelmente, o que a Mm.a Juíza BB apurou e já sabe sobre a vida da arguida, foi obtido pelo facto de ter sido a Juíza Presidente no Processo n.º 421/22.8T9OLH e, certamente, esse conhecimento fez com que a sua situação fosse vista de forma mais agravada. 24.º O artigo 40.º, n.º 1, al. c) do CPP é categórico ao revelar o impedimento de ser a mesma Juíza a decidir sobre o futuro da arguida, motivo pelo qual a prisão é ilegal, uma vez que foi determinada por juiz incompetente: Artigo 40.º (Impedimento por participação em processo) 1 - Nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver: c) Participado em julgamento anterior; 25.º Nesse sentido, deve incidir o disposto no artigo 222º do CPP, nos termos devidamente transcritos abaixo: “l - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus. 2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida/ em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de: a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial” 27.º Até porque não é à toa que o Código de Processo Penal e a própria Constituição da República Portuguesa consagram o respeito e o dever de imparcialidade dos juízes, assim como salvaguardam o juiz natural, tudo no fiel interesse de resguardar os direitos, garantias e liberdades dos cidadãos. CONCLUSÃO: Diante do exposto, a prisão preventiva determinada, em sede de Primeiro Interrogatório Judicial, realizado no dia 23/08/2025, é prisão ilegal, por ter sido determinada por autoridade incompetente, uma vez que foi ordenada pela mesma Juíza que condenou a arguida em 09/05/2025, sendo certo que foi deduzido incidente de impedimento e pedido de afastamento da Mm.a Juíza BB, que foi negado, mas, objeto de imediata interposição de Recurso ditado para a própria Ata, razão pela qual deve incidir o disposto no artigo 40.º, n.º 1, al. c) do CPP, que impede que seja a mesma Juíza a voltar a analisar a situação jurídica da ora arguida. Nesse sentido, resta configurada a ilegalidade da Decisão que impôs a medida de coação de Prisão Preventiva à arguida, que requer o deferimento do pedido de Habeas Corpus, e em consequência, deverá ser ordenada a imediata libertação da arguida. (…). 2. Foi prestada a informação referida na parte final do nº 1 do art. 223º do C. Processo Penal, nos termos que se transcrevem: “(…). Veio a arguida AA requerer Petição de Habeas Corpus por prisão ilegal. Nos termos do disposto no art.º 223.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, informa-se o Exmº. Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça do seguinte: - A arguida AA foi sujeita à medida de coação de prisão preventiva por despacho proferido em 23/08/2023, no âmbito do primeiro interrogatório judicial de arguido detido a correr termos no processo 29/25.6PEFAR, por indícios fortes da prática, como autora material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01 e existência de forte perigo de continuação da atividade criminosa, de perturbação do inquérito e de perturbação da ordem e tranquilidade pública. - No dia 09/05/2025 foi a arguida condenada no âmbito do processo 421/22.8T9OLH pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01. É tudo quanto me cumpre informar a V. Exª Exmº Sr. Colendo Conselheiro, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (…)”. * Convocada a Secção Criminal, notificado o Ministério Público e o Ilustre Mandatário da requerente, realizou-se a audiência com observância das formalidades legais, após o que o tribunal reuniu e deliberou (art. 223º, nº 3, segunda parte do C. Processo Penal), nos termos que seguem. * * * II. FUNDAMENTAÇÃO A. Dos factos Com relevo para a decisão do pedido de habeas corpus, dos elementos que instruem o processo e da consulta ao processo electrónico extraem-se os seguintes factos: 1. A requerente AA foi condenada por acórdão de 9 de Maio de 2025, proferido no âmbito do processo nº 421/22.8T9OLH, pela prática de um crime de tráfico e outras actividades ilícitas, p. e p. pelo art. 21º, nº 1 do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão. 2. A Mma. Juíza, Sra. Dra. BB, na qualidade de juíza presidente, relatou e subscreveu o acórdão referido em 1., que antecede 3. No âmbito do processo nº 29/25.6PEFAR, a requerente AA foi submetida, no dia 23 de Agosto de 2025, a primeiro interrogatório judicial de arguida detida, e sujeita, por despacho judicial então proferido pela Mma. Juíza de turno, Sra. Dra. BB, à medida de coacção de prisão preventiva, por se ter entendido existirem fortes indícios da prática, pela mesma, de um crime de tráfico e outras actividades ilícitas, previsto e punido pelo art. 21º, nº 1 do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro. 4. Na diligência referida em 3., que antecede, antes de a requerente e de um outro detido, terem prestado declarações, o Ilustre Mandatário de ambos suscitou o impedimento da Mma. Juíza, com fundamento no art. 40º, nº 1, c) do C. Processo Penal, por ter a mesma presidido ao julgamento da requerente, no processo nº 421/22.8T9OLH, referido em 1., que antecede. 5. Assegurado o contraditório, a Mma. Juíza proferiu despacho a considerar não verificado o impedimento. 6. Inconformada com a decisão, a requerente interpôs recurso, em acta, para o Tribunal da Relação de Évora, recurso que logo motivou. 7. A Mma. Juíza proferiu de imediato despacho, admitindo o recurso, com subida imediata, em separado e efeito suspensivo. 8. Depois, a Mma. Juíza proferiu despacho, determinando a continuação da diligência, por se tratar de acto urgente, e devido ao prazo legal de apresentação de detidos em juízo. B. A questão objecto do habeas corpus Cumpre apreciar se a requerente da providência se encontra em situação de prisão ilegal, nos termos da alínea a) do nº 2 do art. 222º do C. Processo Penal, por a sua prisão preventiva ter sido decretada por juíza incompetente. C. Do direito 1. Nascida no sistema judicial britânico no século XVII, a providência de habeas corpus é um instituto já secular no nosso sistema jurídico, tendo sido contemplado, pela primeira vez, na Constituição de 1911, mantido na Constituição de 1933, e continuando hoje a estar presente na Constituição da República, como garantia expedita e extraordinária contra situações ilegais de privação da liberdade. Dispõe o art. 31º da Lei Fundamental: 1. Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente. 2. A providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos. 3. O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória. No seu desenho constitucional o habeas corpus, como garantia que é, tutela a liberdade, enquanto direito fundamental, quando gravemente afectado por situações de abuso de poder, em consequência de prisão ou detenção ilegal. Pode ser requerido pelo interessado ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, assim se aproximando da acção popular (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª Edição Revista, 2007, Coimbra Editora, pág. 509), e deve ser decidido pelo juiz competente no prazo de oito dias. Na lição dos Mestres citados, trata-se de uma providência expedita contra a prisão ou detenção ilegal, portanto, de uma garantia privilegiada do direito à liberdade, por motivos penais ou outros, que, enquanto única garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa de direitos fundamentais, afirma a especial importância daquele direito fundamental (op. cit., pág. 508). No mesmo sentido se posiciona Germano Marques da Silva, para quem o habeas corpus não é um recurso, é uma providência extraordinária com natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo a uma situação de ilegal privação de liberdade (Curso de Processo Penal, II, 3ª Edição, Revista e actualizada, 2002, Editorial Verbo, pág. 321), e também, Jorge Miranda e Rui Medeiros para quem, o habeas corpus é uma providência judicial que tem como objecto imediato o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, tutelando a liberdade física ou de locomoção (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2005, Coimbra Editora, pág. 342). 2. A nível infraconstitucional o habeas corpus encontra-se regulado nos arts. 220º e 221º do C. Processo Penal, quando seja determinado por detenção ilegal, e nos arts. 222º e 223º do mesmo código, quando seja determinado por prisão ilegal. No primeiro caso incluem-se as privações da liberdade ainda não validadas pela autoridade judiciária portanto, aquelas em que o cidadão se encontra detido à ordem de uma autoridade administrativa ou militar, e no segundo, incluem-se as privações de liberdade já validadas pela autoridade judiciária portanto, aquelas em que o cidadão se encontra detido à sua ordem. No requerimento apresentado a requerente invoca como expresso fundamento do pedido, o disposto na alínea a)do nº 2 do art. 222º do C. Processo Penal, não subsistindo, portanto, quaisquer dúvidas quanto à convocação, in casu, do regime do habeas corpus em virtude de prisão ilegal. Dando exequibilidade ao regime constitucional do habeas corpus, estabelece o art. 222º do C. Processo Penal: 1. A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus. 2. A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de: a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial. Os fundamentos da ilegalidade da prisão para efeitos de pedido de habeas corpus são exclusivamente os previstos nas três alíneas do nº 2 do art. 222º do C. Processo Penal. A requerente invoca, como dissemos, o primeiro deles, o qual, podendo resultar de diversas situações, a sua concreta verificação terá sempre que radicar na matéria de facto processualmente adquirida, conjugada com a legislação aplicável. Indispensável, em qualquer caso, é que se trate de uma ilegalidade evidente, de um erro diretamente verificável com base nos factos recolhidos no âmbito da providência confrontados com a lei, sem que haja necessidade de proceder à apreciação da pertinência ou correção de decisões judiciais, à análise de eventuais nulidades ou irregularidades do processo, matérias essas que não estão compreendidas no âmbito da providência de habeas corpus, e que só podem ser discutidas em recurso ordinário (Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2014, Almedina, pág. 909). Concluindo, diremos que o habeas corpus é um remédio contra situações de imediata, patente e auto-referencial ilegitimidade (ilegalidade) da privação da liberdade, não podendo ser considerado nem utilizado como recurso sobre os recursos ou recurso acrescido aos recursos (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Setembro de 2010, processo nº 139/10.4YFLSB.S1, in www.dgsi.pt). processo D. O caso concreto 1. A requerente sustenta a providência de habeas corpus nos seguintes ‘tópicos’ argumentativos: - Foi condenada por acórdão de 9 de Maio de 2025, proferido no processo nº 421/22.8T9OLH, pela prática de um crime de tráfico e outras actividades ilícitas, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão, acórdão este que foi relatado, na qualidade de juíza presidente, pela Mma. Juíza, Dra. BB; - No decurso de interrogatório judicial de arguida detida, no âmbito do processo nº 29/25.6PEFAR, por despacho de 23 de Agosto de 2025, proferido pela Mma. Juíza de turno, Sra. Dra. BB, foi a requerente sujeita à medida de coacção de prisão preventiva; - Estando em causa a imparcialidade do juiz, não podia a Mma. Juíza, por ter anteriormente condenado a requerente, proceder ao seu interrogatório judicial, pois, se nenhum juiz pode, como dispõe o art. 40º, nº 1, c) do C. Processo Penal, intervir em novo julgamento, quando tenha participado em julgamento anterior, muito menos pode efectuar o interrogatório judicial do mesmo arguido; - Assim, a sua prisão preventiva é ilegal, por ter sido determinada por juiz incompetente. 2. Resulta do que supra se deixou dito que o habeas corpus não é um sucedâneo de recurso ordinário, mas um instrumento expedito para por cobro a situações de prisão ilegal aplicada com evidente e facilmente verificável abuso de poder, ou seja, situações de prisão decretada com violação grosseira dos respectivos pressupostos. Assim, no âmbito da providência, o Supremo Tribunal de Justiça, face ao disposto no art. 222º, nº 2 do C. Processo Penal, só pode e deve verificar se a prisão resultou de uma decisão proferida por entidade competente portanto, de uma decisão judicial, se foi motivada pela prática de um facto que a admite e se foram observados os limites temporais fixados na lei ou em decisão judicial. No caso, a prisão preventiva da requerente foi decretada por uma juíza de direito, no exercício das suas funções de juíza de turno em período de férias judiciais. A requerente, previamente ao despacho que a sujeitou a esta medida de coacção, requereu a declaração de impedimento da Mma. Juíza, a qual, por despacho, não reconheceu o impedimento que lhe foi imposto. A requerente, legitimamente, recorreu para o Tribunal da Relação de Évora, recurso que foi admitido e se encontra pendente. A Mma. Juíza, tendo fixado ao recurso o devido efeito suspensivo, levou a cabo o interrogatório judicial que culminou com a fixação do regime coactivo imposto à requerente, por se tratar de acto processual urgente e indispensável, tal como permitido pela parte final do nº 3 do art. 42º do C. Processo Penal. Não de descortina, pois, uma evidente situação de clamoroso abuso de poder, única que justificaria a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do habeas corpus, tendo, aliás, a questão sido remetida para a sede própria que é a do recurso ordinário. 3. Em suma, não se considera verificado o fundamento de habeas corpus previsto na alínea a) do nº 2 do art. 222º do C. Processo Penal, invocado pela requerente. Cumpre acrescentar que também não se verifica qualquer dos fundamentos previstos nas alíneas b) e c) do mesmo número e artigo. Assim, deve ser indeferido o pedido. * * * III. DECISÃO Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo do Supremo Tribunal de Justiça em: A) Indeferir o pedido de habeas corpus formulado por AA, por falta de fundamento bastante (art. 223º, nº 4, a) do C. Processo Penal). B) Condenar a requerente nas custas do processo, fixando em três UC a taxa de justiça (art.8.º, n.º 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa). . * (O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do art. 94.º, n.º 2 do C.P.P.). * * Lisboa, 4 de Setembro de 2025 Vasques Osório (Relator) Ernesto Nascimento (1º Adjunto) Jorge Jacob (2º Adjunto) Helena Moniz (Presidente da secção) |