Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
21171/18.9T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: PAULO SÁ
Descritores: ACTIVIDADE BANCÁRIA
ATIVIDADE BANCÁRIA
INTERMEDIÁRIO
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
COMISSÃO
ABUSO DE PODERES DE REPRESENTAÇÃO
APROPRIAÇÃO
ILICITUDE
DANO
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 06/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE PELO RISCO / RESPONSABILIDADE DO COMITENTE.
Doutrina:
- ANTUNES VARELA, Das Obrigações em geral, Volume I, 7.ª edição, p. 637 e ss.;
- MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 1980, p.207 e 208;
- PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 507-510.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 500.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 15-03-2005, PROCESSO N.º 04A4808;
- DE 02-03-2006, PROCESSO N.º 05B4091;
- DE 15-12-2011, PROCESSO N.º 2635/07.1TVLSB.L1.S1;
- DE 26-03-2014, RELATOR SOUTO DE MOURA;
- DE 12-05-2016, PROCESSO N.º 85/14.2T8PVZ.P1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - Do Código de Valores Mobiliários decorre que os bancos, enquanto instituições de crédito, estão autorizados a exercer a actividade de intermediário financeiro, podendo ser representados por agentes vinculados na prestação dos serviços aí elencados, designadamente na prospecção e captação de clientes para a actividade de intermediação financeira e na recepção e transmissão de ordens.

II - Porém, o Banco que tem ao seu serviço agentes vinculados, para prosseguir a sua actividade bancária, em geral, e de intermediação financeira, em particular, por ausência de balcões de atendimento ao público, claramente permite que estes exorbitem, sem censura da sua parte, as respectivas funções.

III - E se, neste contexto de exercício abusivo das funções de agente vinculado, a comissária angariou os autores como clientes do banco réu e os manteve como tal, a relação de comissão (estabelecida entre o réu e dito “agente vinculado”) foi adequada para a produção do resultado dos actos ilícitos (a apropriação indevida da quantia de € 70 000,00 dos autores), dado ter criado nos lesados (os autores) uma “convicção de confiança na licitude da conduta daquele”, o que justifica a sua responsabilização, nos termos do art. 500.º do CC

Decisão Texto Integral:


Processo n.º 21171/14.9TVLSB.L1.S1[1]

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. AA e BB intentaram acção declarativa com forma comum contra CC, S.A., peticionando a condenação do R. no pagamento da quantia de € 70.000,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 8%, desde Janeiro de 2016 até efectivo pagamento.

Alegam para tanto, que:

Foram clientes do R, onde pretenderam efectuar investimentos em produtos financeiros, por este disponibilizados através da sua plataforma electrónica, dos seus centros de investimento e dos seus Personal Financial Advisors;

Desde o início da relação com o R, em 2012, e até Janeiro de 2016, os AA. sempre tiveram, como Personal Financial Advisor, DD, que conheciam como funcionária do R, com quem reuniam, a pedido desta, num escritório do R, sito na R. ..., em Lisboa;

Nos contactos que mantiveram com DD (que para os AA. era a única pessoa com quem trataram todo e qualquer assunto relacionado com os seus investimentos), esta entregou aos AA. vários impressos e formulários do R. que estes preencheram segundo instruções da mesma, assim destinando a aplicação de parte das suas poupanças num depósito a prazo e num seguro de capitalização;

Sempre a conselho da sua Personal Financial Advisor realizaram, nomeadamente, uma aplicação financeira correspondente a um seguro de capitalização, junto da sucursal do Luxemburgo da Companhia de Seguros ..., no montante de € 70.000,00;

A DD ganhou a confiança dos AA, durante o período em que estes mantiveram o seu relacionamento comercial com o R, pois sempre se manifestou disponível para tratar de todas e quaisquer questões financeiras daquele, pelo que todas as suas sugestões e aconselhamentos eram aceites pelos AA, nunca estes tendo questionado as orientações por aquela fornecidas quanto à gestão das aplicações financeiras ou operações bancárias ou, quando o fizeram, sempre a DD lhes garantiu que eram procedimentos normais;

Os AA. recebiam os extractos bancários por correio, aí verificando o depósito dos juros de capitalização do seguro, semestralmente, nunca tendo desconfiado de qualquer irregularidade, até que, em 21/1/2016, foram contactados telefonicamente por um outro colaborador do R, o qual os informou que a DD tinha deixado de ser Personal Financial Advisor, por ter saído do R, sendo aquele, doravante, o gestor de conta daqueles;

Só em Abril do mesmo ano os AA. tomaram conhecimento, através de informações veiculadas por outros clientes do R, que a apólice de seguro da ..., sucursal do Luxemburgo, era um documento forjado, à semelhança de outros subscritos por outros clientes do R, angariados pela DD, tendo assim os AA. ficado cientes, só nessa ocasião, que o seguro de capitalização por si subscrito, não só não era um produto financeiro comercializado pelo R, como nem sequer existia;

Contactado o R, o mesmo escudou-se no facto de o produto financeiro em causa não ser da sua titularidade, desconhecendo e desresponsabilizando-se por todos e quaisquer actos praticados pela DD, que não reconheceu como sua funcionária;

O R. deve, porém, responder pelos danos causados aos AA, na sua qualidade de comitente, sendo esta uma responsabilidade objectiva, portanto, independente de culpa, ainda que o comissário tenha agido intencionalmente ou contra instruções daquele, no exercício da função que lhe foi confiada.

Citado, o R. apresentou contestação onde impugnou a factualidade alegada na P.I. e alegou, além do mais, que:

A DD actuou em nome pessoal, nunca tendo sido funcionária do R, com quem teve, apenas, um vínculo como prestadora de serviços, na qualidade de agente vinculado/promotora, cuja função, tipificada na lei, consiste na prospecção de investidores para intermediários financeiros, como o R, sem solicitação prévia, sendo-lhe vedado, nomeadamente no exercício da actividade, celebrar quaisquer contratos em nome do intermediário financeiro, receber ou entregar dinheiro, salvo autorização do intermediário, actuar ou tomar decisões de investimento em nome ou por conta dos investidores;

O escritório onde a DD receberia os AA. não é nem nunca foi escritório do R, sendo que aquela sempre desenvolveu a sua actividade de forma totalmente autónoma e independente da actividade do R, já que, também, nunca recebeu ordens ou instruções deste, nem este alguma vez lhas deu;

A DD não agiu, pois, no exercício das funções que lhe competiam no R. e com este contratadas, sendo que, ainda que o tivesse feito, sempre seria de produtos financeiros pelo mesmo comercializados, o que não foi o caso;

Os AA. são pessoas de formação académica superior e com experiência empresarial, a qual envolve, necessariamente, experiência financeira e bancária, podendo e devendo estar familiarizados com o tipo de informação constante dos extractos bancários integrados que o R. mensalmente lhes enviou, dos quais nunca constou nenhuma informação relativa à aplicação financeira relacionada com uma apólice de seguro do Luxemburgo;

Apesar disso, os AA. nunca questionaram tal situação junto do R, sempre a tendo considerado como normal, o mesmo acontecendo quanto à circunstância de, ao longo de vários anos, nunca ter constado desse extracto a remuneração correspondente, já que o pagamento de juros do seguro de capitalização, a ter tido lugar, nunca se fez através do R, não sendo verosímil que, caso tivessem subscrito um seguro de capitalização comercializado pelo R, o pagamento do valor do investimento não fosse feito por débito na conta à ordem sediada no próprio R;

Os AA. não agiram com os deveres de cuidado e diligência a que estavam obrigados, como investidores esclarecidos, ainda que não profissionais, que são, ao terem entregue valores directamente à DD, e não ao R, e não se certificando que os valores entregues tinham sido canalizados para a concretização do investimento, para mais na medida em que esse investimento nunca constou dos extractos bancários que receberam mensalmente;

A remuneração associada ao investimento nunca poderia ter sido seriamente considerada pelos AA, por constituir uma rentabilização cerca de quatro vezes superior ao que seria possível obter, à época, num depósito a prazo, numa instituição bancária no espaço comunitário europeu.

Conclui pela improcedência da acção, com a sua absolvição do pedido.

Em audiência prévia foi proferido despacho saneador, aí se fixando o valor da causa, mais se fixando o objecto do litígio e enunciando-se os temas da prova, sem reclamações.

Após realização da audiência final, foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente, absolvendo o R. do pedido.

Os AA. recorreram desta decisão final, com sucesso, já que a Relação julgou procedente o recurso, revogando a decisão recorrida e substituindo-a por outra que, julgando procedente a acção, condenou o R. no pagamento aos AA. da quantia de € 70.000,00 (setenta mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos, desde a citação do R. e até integral pagamento.

Desta decisão veio o R. recorrer, de revista, para este STJ, tendo o recurso sido admitido.

O recorrente termina as suas alegações com as seguintes conclusões:

A. Nas suas Contra-Alegações de Apelação, o Recorrente mencionou o instituto da culpa do lesado, esclarecendo que o mesmo poderia vir a relevar num cenário em que o Tribunal da Relação de Lisboa viesse a considerar – como veio, e mal – que existia responsabilidade do Recorrente.

B. Sendo certo que nem precisaria de o fazer, atento o disposto no artigo 572.º do Código Civil.

C. O Acórdão recorrido é absolutamente omisso quanto a essa questão, ficando sem saber-se se o Tribunal da Relação de Lisboa entendeu, pura e simplesmente, que o instituto não tem aplicação, ou se simplesmente não o relevou na decisão a proferir.

D. Porque o conhecimento dessa questão em sede de Recurso de Apelação não ficou prejudicado – muito pelo contrário, só se tornou relevante precisamente em face da decisão que veio a ser proferida –, entende o Recorrente que o Acórdão recorrido é nulo, por omissão de pronúncia, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC,

E. Devendo tal pronúncia ter lugar, ou em sede de suprimento da nulidade pelo Tribunal da Relação de Lisboa, ou por V. Exas. em sede de Recurso de Revista, o que expressamente se requer, uma vez que se trata de um fundamento autónomo do presente recurso previsto no artigo 674.º, n.º 1, alínea c), do CPC, o primeiro daqueles que aqui abordamos.

F. Ao contrário da generalidade das funções desempenhadas por colaboradores de instituições bancárias, a categoria de Agente Vinculado é objecto de consagração legal expressa e de um regime específico, a saber, previsto nos artigos 294.º-A a 294.º-C (o artigo 294.º-D, irrelevante para esta discussão, foi entretanto revogado) do CVM.

G. O regime jurídico específico aplicável às funções dos Agentes Vinculados não se contém na delimitação da sua margem de actuação, consagrando, também, um regime específico de responsabilidade dos intermediários financeiros no interesse dos quais aqueles actuem, a saber, o previsto no artigo 294.º-C do CVM.

H. Poder-se-ia colocar a questão de saber qual a razão pela qual o legislador teria consagrado um regime específico de responsabilidade se a ideia fosse a de responsabilizar os intermediários financeiros, por actos ou omissões dos seus Agentes Vinculados, na qualidade de comitentes, ao abrigo do regime geral previsto no artigo 500.º do Código Civil.

I. As diferenças entre ambos os regimes deixam transparecer por um lado, (i) que a disposição em causa não prescinde, pelo menos expressamente, da culpa do intermediário, financeiro – no que toca à fiscalização e controlo da actividade dos Agentes Vinculados – para a sua responsabilização,

J. Por outro, o que não deixa de ser uma ramificação da conclusão anterior, (ii) que ao contrário do que sucede com a responsabilidade (objectiva) do comitente, no âmbito do regime previsto no artigo 294.º-C do CVM a diligência do intermediário financeiro – nomeadamente na fiscalização da actividade do Agente Vinculado – não é irrelevante.

K. O legislador consagrou na alínea a) uma norma de imputação aos intermediários financeiros de responsabilidade por actos de terceiros, a qual, pela sua natureza – e por – conflituar com o princípio segundo o qual cada entidade apenas responde pelos seus próprios actos ou omissões –, se revelou necessária,

L. Mas ao fazê-lo reconheceu, também, que as normas genéricas de imputação de responsabilidades por actos de terceiros já estabelecidas na ordem jurídica – nomeadamente a prevista no artigo 500.º do Código Civil – não eram adequadas às particularidades da figura dos Agentes Vinculados,

M. Tendo, desde logo, omitido nessa alínea, não só a dispensa de verificação do pressuposto culpa, como a excepção à limitação relacionada com o âmbito das funções – que constam, nomeadamente, do artigo 500.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil.

N. Além disso, o legislador consagrou, na alínea b) do n.º 1 do artigo 294.º-C do CVM, uma referência expressa à diligência que é exigida do intermediário financeiro quanto à actividade dos respectivos Agentes Vinculados, de onde decorre que a mesma não pode deixar de ser ponderada e avaliada na aferição da responsabilidade aí prevista.

O. Essa é a única explicação juridicamente aceitável para que o legislador tenha consagrado um dever específico de fiscalização na alínea b), que sempre seria irrelevante se o que se pretendesse com a alínea a) fosse uma responsabilização objectiva do intermediário financeiro.

P. Está em causa, a nosso ver, uma modalidade de responsabilidade por actos de terceiros em que a culpa do intermediário – no quadro das diligências de fiscalização de controlo da actividade dos seus Agentes Vinculados – é um dos pressupostos de aplicação.

Q. Ao aplicar o artigo 500.º do Código Civil o Tribunal da Relação de Lisboa incorreu em erro na determinação da norma aplicável, fundamento de Recurso de Revista previsto no artigo 674.º, n.º 1, alínea a), do CPC, que deve ser corrigido por V. Exas. mediante a aplicação do regime correcto, previsto no artigo 294.º-C do CVM, o que se requer.

R. A delimitação das funções decorre da Lei, nomeadamente do disposto no artigo 294.º-A do CVM, e foi devidamente transmitida aos Recorridos, quer por via do cartão que DD se encontrava obrigada a exibir (vide Documento n.º 3, junto aos! autos com a Contestação), quer ainda por via das Condições Gerais que integravam o Contrato de Abertura de Conta que aqueles celebraram com o Recorrente e das quais declararam expressamente terem tomado conhecimento.

S. Em primeiro lugar, deve considerar-se o âmbito formal das funções de um agente vinculado, que corresponde, no caso, ao conjunto de actos que lhe são autorizados e proibidos nos termos do regime legal expressamente previsto, constante do artigo 294.º-A do CVM.

T. Em segundo lugar, já compreendido dentro desse âmbito formal, deve considerar-se oi âmbito material dessas funções, que corresponde aos actos que lhe são, dentro desses limites, permitidos e proibidos pelo respectivo intermediário financeiro.

U. Ora, mesmo admitindo que pudesse ter-se a respeito do artigo 294.º-C, n.º 1, alínea a), do CVM uma discussão equivalente à que a jurisprudência mantém a propósito do artigo 500.º, n.º 2, do Código Civil quanto ao "abuso de funções", é evidente que essa discussão nunca poderia ultrapassar o âmbito formal das funções,

V. O que sempre levaria a concluir-se – como fez o Tribunal de primeira instância – que os actos de DD, dos quais decorreram os danos que os Recorridos alegam extravasaram o próprio âmbito formal (legal) das suas funções,

W. Razão pela qual, nem ao abrigo do artigo 500.º do Código Civil, nem, muito menos, ao abrigo do artigo 294.º-C do CVM, que deveria ter sido aplicado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, poderia o Recorrente ser responsabilizado pelos mesmos, devendo ter sido mantida a sua absolvição do pedido.

X. Efectivamente, o artigo 500.º, n.º 2, do Código Civil, estabelece expressamente que a responsabilidade do comitente existe mesmo quando o comissário actue intencionalmente ou contra as suas instruções,

Y. E é precisamente nessa margem – entre os limites decorrentes das instruções que o Agente Vinculado receba e os limites decorrentes do âmbito formal das suas funções –, que a jurisprudência e a doutrina qualificam como mero "abuso de funções", que reside o limite máximo da responsabilização do comitente,

Z. Porém, essa margem não existe no artigo 294.º-C, n.º 1, alínea a) do CVM, sendo que o Recorrente, por essa via, nunca poderia ser condenado por actos praticados por DD fora do âmbito das suas funções,

AA. Sendo que no caso, ainda para mais, o âmbito material e formal das funções de DD coincidiam, pois a delimitação das mesmas no seu contrato de prestação de serviços reflectia integralmente aquilo que consta do artigo 294.º-A do CVM.

BB. A actuação de DD que provocou os danos alegados pelos Recorridos não se encontrava compreendida no âmbito das funções que lhe foram atribuídas pelo Recorrente, o que inviabiliza, ao abrigo do referido artigo, a responsabilização do Recorrente.

CC. Embora o incumprimento do disposto no n.º 1 da Cláusula 4.ª do contrato de prestação e serviços pudesse considerar-se uma mera violação de instruções recebidas, o mesmo já não se passa com o incumprimento das limitações constantes da Cláusula 3.ª,

DD. Porquanto, ao fazê-lo, DD extravasou o próprio âmbito formal (legal) das suas funções, o que é o mesmo que dizer que já não actuou sequer como Agente Vinculada (se o teria feito por conta do Recorrente ou não, chega, portanto, a ser irrelevante), mas sim como uma "intermediária financeira" a título pessoal.

EE. Ficou demonstrado nos autos que o Recorrente cumpriu (mais do que) adequadamente os seus deveres de fiscalização e controlo da actividade de DD, tendo implementado um sistema redundante que compreendia, desde logo, diversos níveis de restrições, tanto no acesso à informação, como nos actos que DD dispunha de meios e ferramentas para praticar,

FF. E que culminava com reuniões aleatórias, nas quais participaram diversos clientes dos quais DD era Personal Financial Advisor e que omitiram informações sobre o seu envolvimento pessoal com aquela, colocando em crise qualquer possibilidade de o Recorrente detectar irregularidades.

GG. Ora, sendo evidente que o Recorrente cumpriu rigorosa e escrupulosamente os deveres previstos no artigo 294.º-C, n.º 1, alínea b), do CVM, faria algum sentido responsabilizá-lo objectivamente ao abrigo da alínea a)? O cumprimento desses deveres não releva, então, para nenhum efeito?

HH. Ainda que se pudesse considerar, para efeitos da alínea a) do n.º 1, que os actos de DD se compreendessem no âmbito das suas funções – o que se equacionada para este exercício de reflexão, sem conceder –, o Recorrente nunca poderia ser responsabilizado uma vez que demonstrou nos autos ter cumprido os deveres de controlo e fiscalização que o legislador lhe impôs por via da alínea b] do n.º 1 do artigo 294.º-C do CVM.

II. Assim, perante tudo o exposto, deveria o Tribunal da Relação de Lisboa ter aplicado o regime previsto no artigo 294.º-C do CVM e, em face da factualidade provada, ter mantido a Sentença da primeira instância, mantendo-se o Recorrente absolvido do pedido formulado pelos Recorridos, o que expressamente se requer.

JJ. Se a estrutura do artigo 500.º do Código Civil indicia que o valor fundamental tutelado é o interesse dos potenciais lesados, concretamente como reflexo do princípio da confiança, será igualmente pacífico reconhecer que é necessário para que o regime opere, antes de mais, que esse interesse seja legítimo, i.e. que exista uma efectiva situação de confiança dos lesados digna de tutela.

KK. Essa questão assume particular relevo no cenário que a doutrina e jurisprudência qualificam como "abuso de funções", ou seja, aquele em que o comissário actua a coberto da extensão de responsabilidade decorrente da expressão "ainda que intencionalmente ou contra a instruções daquele [do comitente]" (vide artigo 500.º, n.º 2, do Código Civil).

LL. Efectivamente, apenas a coberto de uma tutela suficientemente forte de interesses de terceiros se poderia compreender que o comitente fosse onerado com uma responsabilidade objectiva decorrente de actos contrários às instruções dadas ao comissário.

MM. O fundamento para se responsabilizar o comitente por actos do comissário, ainda que praticados contra as suas instruções, é um e só um: a tutela das aparências, ou seja, a confiança legítima que os lesados possam ter depositado na actuação do comissário, no sentido de as mesmas se compreenderem no âmbito material da comissão.

NN. É esse detalhe que se afigura crítico nestes autos, que impõe a exclusão da responsabilidade do Recorrente ao abrigo do regime previsto no artigo 500.º do Código Civil, e que decorre, desde logo, dos indícios objectivos de que os Recorridos sempre dispuseram de que a actuação de DD extravasava manifestamente as suas funções na qualidade de Agente Vinculada do Recorrente.

OO. Estão em causa (os Recorridos) pessoas com conhecimentos, formação e experiência empresarial, de quem era exigível – como, aliás, os próprios reconheceram em audiência ter sucedido – que compreendessem a total desrazoabilidade das exigências "procedimentais" de DD,

PP. Nomeadamente (i) a necessidade de os valores a investir serem provenientes de conta aberta em instituição diversa do Recorrente, (ii) as entregas de numerário em mão, (iii) os pagamentos dos supostos juros em conta diversa da titulada junto do Recorrente e provenientes de contas de terceiros, sem qualquer identificação ou relação com o suposto investimento e (iv) o facto de o suposto investimento nunca, em momento algum, ter constado dos extractos relativos à conta de que eram titulares junto do Recorrente.

QQ. Nunca, em momento algum, os Recorridos questionaram o Recorrente em pessoa diversa daquela que, precisamente, lhes sugeria os procedimentos que deram azo a dúvidas.

RR. Os Recorridos compreenderam perfeitamente que o suposto investimento na suposta apólice era estranho à relação de clientes que tinham com o Recorrente e que não estava em causa – nem podia estar, porque isso não existe – um qualquer tratamento preferencial face aos demais clientes do Recorrente,

SS. Mas sim um tratamento "privilegiado", directa e exclusivamente por via de DD, estranho à relação com o Recorrente, que esta lhes facultaria tendo em conta a relação de confiança que mantinha com os Recorridos.

TT. As limitações às funções dos Agentes Vinculados não resultavam de um qualquer contrato de prestação de serviços "oculto", resultando antes de mais da Lei, a saber do artigo 294.º- A, n.º 3, do CVM, e encontrando-se devidamente reflectidas nas Condições Gerais aplicáveis ao Contrato de Abertura de Conta junto do Recorrente.

UU. É precisamente por isso que a consagração legal dessas limitações é tão relevante enquanto forma de delimitação do "âmbito formal" das funções de DD,

VV. E é precisamente isso que o Tribunal de primeira instância pretende transmitir quando afirma – e bem – que ainda antes de se entrar na discussão sobre o âmbito material das suas funções e sobre o suposto "mero abuso de funções", a discussão fica logo resolvida em face do regime legal.

WW. Uma vez ultrapassada essa fronteira formal (e legal), qualquer suposta confiança dos Recorridos na correcção da actuação de DD deixou de ser legítima e, assim, de ser digna de tutela legal por via da responsabilidade do comitente.

XX. Ou seja, o Tribunal da Relação de Lisboa sempre deveria ter compreendido e reforçado aquilo que o Tribunal de primeira instância bem defendeu, i.e. que a actuação de DD, mais do que meramente contrária às instruções do Recorrente, nem sequer se pode considerar compreendida no âmbito das suas funções,

YY. Pois esse âmbito é, antes de mais, delimitado pela própria Lei e não só não se permite, como, pelo contrário, expressamente se proíbe essa mesma actuação,

ZZ. Devendo, em consequência, ter mantido a absolvição do Recorrente do pedido, o que agora, neste cenário, se requer expressamente de V. Exas., porquanto, não o tendo feito, o Tribunal da Relação de Lisboa incorreu em erro de interpretação das normas aplicáveis, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 674.º, n.º 1, alínea a), do CPC.

AAA. Caso venha a entender-se que não houve uma omissão de pronúncia para efeitos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, verifica-se então um erro de julgamento, na vertente de determinação da(s) norma(s) aplicável (is), decorrente do supra aludido erro na determinação do regime de responsabilidade relevante (vide artigo 674.º, n.º, alínea a) do CPC).

BBB. A própria aplicação ao caso do artigo 500.º do Código Civil resulta de um erro na determinação da norma aplicável, quando a factualidade dos autos deveria ter sido subsumida ao artigo 294.º-C do CVM.

CCC. Nesse sentido, para efeitos do instituto da culpa do lesado, não será já a culpa de DD a concorrer com a negligência dos Autores, mas sim as diligências de fiscalização e controlo adoptadas pelo Recorrente.

DDD. A matéria de facto provada nos autos demonstra, por um lado, que o Recorrente cumpriu (mais do que) escrupulosamente o seu dever de fiscalização e controlo da actividade da DD,

EEE. Por outro lado, que os Recorridos foram francamente negligentes ao aceitarem proceder nos moldes que lhes foram sugeridos por DD, absolutamente incompreensíveis face aos cânones bancários correntes,

FFF. Quando todos os procedimentos, desde a concretização do suposto investimento ao pagamento de supostos juros eram flagrantemente anormais, suspeitos, arriscados até, e evidenciavam uma clara preocupação com a ocultação de todas essas manobras do conhecimento do Recorrente,

GGG. O que apenas pode razoavelmente explicar-se com a convicção de que estariam a ser, por qualquer razão, beneficiados, eventualmente pela relação de proximidade e confiança que estabeleceram com a própria DD.

HHH. Por via de um acesso a um produto com rentabilidade manifestamente desfasada do melhor que o mercado tinha para oferecer que apenas era possível, não através do Recorrente e ao abrigo da sua relação com este, mas através dos conhecimentos próprios e dos meios a que a própria DD, a título pessoal, teria acesso.

III. Num cenário que se crê hipotético e inverosímil em que viesse a entender-se, contra tudo o que se deixou dito e demonstrado, que o Recorrente deveria ser responsabilizado pela actuação de DD, o apelo ao instituto da culpa do lesado é óbvio,

JJJ. Cabendo a V. Exas. sopesar, por um lado, a diligência do Recorrente na fiscalização e no controlo da actividade daquela [vide artigo 294.º-C, n.º 1, alínea b] do CVM] e, por outro, a conduta dos Recorridos descrita nos autos,

KKK. Concluindo, a final, sobre qual o contributo de uma e de outra, em termos de causalidade para os danos que os Recorridos reclamaram nestes autos, excluindo-se ou, pelo menos, reduzindo-se significativamente uma qualquer indemnização que o Recorrente pudesse ser condenado a pagar àqueles, o que expressamente se requer.

Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis:

(a) Deve ser reconhecida a nulidade do Acórdão recorrido por omissão de pronúncia a propósito do instituto da culpa do lesado, sendo tal nulidade suprida, ora pelo Tribunal a quo, ora por V. Exas.;

(b) Deve ser reconhecido o erro do Tribunal a quo na determinação da norma aplicável e a factualidade dos autos ser subsumida ao regime previsto no artigo 294.º-C, l do CVM, sendo o Recorrente, consequentemente e nos termos referidos, absolvido do pedido;

Caso assim não se entenda, no que não se concede:

(c) Deve ser reconhecido o erro do Tribunal a quo na interpretação das normas constantes do artigo 500.º, n.º 2, do Código Civil, porquanto DD actuou fora dos limites do âmbito da comissão que permitem a responsabilização do comitente, absolvendo-se, consequentemente e nos termos alegados, o Recorrente do pedido;

Caso se reconheça o erro mencionado em (b) supra mas, ao abrigo desse regime pretenda responsabilizar-se o Recorrente:

(d) Deve operar o instituto da culpa do lesado, previsto artigo 570.º do Código Civil, e, em consequência, indemnização, se não totalmente excluída, pelo significativamente reduzida, Apenas assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!

Houve contra-alegações, em que se defendeu a bondade da decisão recorrida.

Em conferência, a Relação pronunciou-se pela inexistência da invocada nulidade.

Cabe apreciar e decidir.

II. Fundamentação

De Facto

II.A. São os seguintes os factos dados como provados, nas instâncias.

1. Os AA. são casados entre si.

2. O R. é uma sociedade anónima que tem por objecto o exercício de actividades permitidas por lei aos Bancos.

3. No exercício da sua actividade o R. disponibiliza produtos de investimento e poupança onde se incluem, para além dos produtos financeiros tradicionais, como as contas à ordem remuneradas, depósitos a prazo e operações de crédito, cerca de 2000 fundos de investimento nacionais e internacionais, produtos estruturados, produtos fiscais, seguros e acesso em tempo real aos principais mercados bolsistas.

4. O R. não tem balcões de atendimento ao público e funciona por via electrónica, por contacto telefónico, através de atendimento em centros de investimento e por contacto dos seus “Personal Financial Advisors”.

5. Os AA. são clientes do R. desde Outubro de 2012, foram classificados como investidores não profissionais e, à data da abertura da conta junto deste, tinham disponível para investir uma quantia que rondava os € 90.000,00.

6. Desde o início da sua relação com o R, e até 21/1/2016, os AA. sempre mantiveram contacto com o Banco através da Sra. DD, que os informou que todos e quaisquer assuntos relacionados com o Banco deveriam ser tratados directamente consigo e apresentou tal procedimento como apanágio do serviço personalizado que o Réu praticava.

7. Os AA. reuniram com DD, a pedido desta, num escritório sito no Edifício ..., em Lisboa.

8. Nessa reunião, a DD falou sempre com muita desenvoltura sobre aplicações, depósitos, seguros, fundos de investimento, PPR’s e outros instrumentos financeiros, tendo, em razão do domínio que demonstrou dessa área, ganho a confiança dos AA. nos seus bons ofícios.

9. Nessa mesma reunião, DD entregou aos AA. vários impressos e formulários do R, que estes preencheram segundo instruções da mesma, destinados à aplicação de parte das poupanças de que dispunham num depósito a prazo e num seguro de capitalização.

10. À conta de depósito à ordem foi atribuído o n.º ..., na qual foi imediatamente creditado o valor de € 75.000,00.

11. Por conselho de DD, os AA. realizaram uma aplicação de depósito a prazo, que deu origem à conta no valor de € 20.000,00, e um seguro de capitalização junto da sucursal do Luxemburgo da Companhia de Seguros ..., no montante de € 70.000,00.

12. O referido seguro, titulado pelo A. AA, foi apresentado como uma aplicação pelo período de um ano, renovável, e teve atribuído o número ....

13. A entrega dos valores para as aplicações foi efectuada, quer por transferência bancária, quer pela entrega de cheques, quer ainda em numerário, sempre sob orientação directa da DD.

14. DD ganhou a confiança dos AA. durante o período em que perdurou a relação entre si, pois sempre se manifestou disponível para tratar de todas as questões financeiras relacionadas com os seus investimentos, quer por telefone ou por e-mail, quer no seu escritório da Rua ... ou no edifício do R. sito na Praça ..., sempre convencendo os AA. de que estes eram a conduta e o procedimento de acompanhamento aos clientes, adoptados pelo R.

15. O escritório de DD, no edifício ..., tinha em exposição prémios e louvores atribuídos pelo R. àquela.

16. No seguimento da reunião aludida em 9., os AA. transferiram, em 23/10/2012, para a referida conta à ordem do R, com o n.º ..., a quantia de € 75.000,00, tendo ficado nos dias seguintes de proceder a novo depósito de e 15.000,00, a fim de serem realizados os propostos investimentos – conta a prazo no valor de € 20.000,00 e subscrição de seguro no valor de € 70.000,00.

17. No mesmo dia 23/10/2012, após concretização do depósito de € 75.000,00, a DD contactou os AA, explicando-lhes que a subscrição do seguro teria de ser efectuada em numerário ou depósito, mas proveniente de outra conta bancária, uma vez que se tratava de um produto de boa rentabilidade e condições de resgate, e por isso não acessível à maioria dos clientes do R.

18. Mais os informou que, para lhes serem concedidas outras condições especiais sobre novas aplicações que pudessem vir a subscrever, a primeira aplicação teria de ser de proveniência externa às contas tituladas pelos clientes do R., e não de conta já existente e registada no sistema operativo.

19. Em 24/10/2012, e sob orientações expressas de DD, os AA. realizaram os seguintes movimentos, a partir da conta à ordem referida em 10.:

• Transferência de € 20.000,00 para criação da conta de depósito a prazo aludida em 11.;

• Levantamento ao balcão de € 20.000,00 pelo A. marido;

• Transferência de € 34.900,00 para conta titulada pela A. mulher na Caixa Geral de Depósitos com o n.º ....

20. No mesmo dia 24.10.2012, os AA. entregaram em mão à Sra. DD € 35.100,00 em dinheiro e € 34.900,00 através de quatro cheques, todos descontados da conta da CGD titulada pela Autora mulher, concretamente, o cheque n.º ..., no valor de € 11.200,00, o cheque n.º ..., no valor de € 9.000,00, o cheque n.º ..., no valor de € 5.900,00, e o cheque n.º ..., no valor de € 8.800,00.

21. Tendo os AA. estranhado este procedimento e questionado a DD, esta referiu ser uma situação normal e que os valores inferiores a € 12.000,00 não exigiam quaisquer justificações bancárias, assim se minimizando os incómodos com a realização dessa operação de investimento.

22. Os AA. foram recebendo semestralmente em conta diferente da domiciliada no R. a quantia de cerca de € 5.000,00 a título de remuneração em juros pela subscrição do seguro de capitalização.

23. A relação contratual dos AA. com o R. foi ao longo dos anos quase sempre mantida através de e-mail, telefone ou no escritório de DD no edifício ....

24. Os AA. apenas se dirigiriam à sede do R. em situações pontuais, como aconteceu para execução de uma transferência, em Outubro de 2014, no valor de € 20.000,00 da sua conta pessoal para a conta da empresa da qual são sócios e, em finais de 2013, aquando da liquidação de um empréstimo que haviam contratualizado junto do R. ainda no final do ano anterior.

25. Em 21/1/2016 os AA. foram contactados telefonicamente por EE, o qual os informou que a Sra. DD tinha deixado de ser Personal Financial Advisor deles, por ter saído do Banco, passando este doravante a ocupar a posição daquela, tendo os AA. recebido, no seguimento desse telefonema, um e-mail confirmativo dessa alteração, no qual o mesmo EE se apresentou como novo “PFA – Personal Financial Advisor” e disponibilizava todos os seus contactos.

26. No início de Abril de 2016 os AA. tomaram conhecimento, por informações veiculadas por outros clientes do R., que a apólice de seguro da ... – Companhia de Seguros, S.A., sucursal no Luxemburgo, subscrita em 24/10/2012, se tratava de um documento forjado e essa aplicação, como outras semelhantes, eram falsas.

27. Tal como é também falsa toda a documentação comprovativa do investimento realizado.

28. Contactada a ... – Companhia de Seguros, S.A., em Portugal e na sucursal do Luxemburgo, o A. veio a confirmar que nunca existiu naquela instituição uma apólice de seguro contratada em nome deste.

29. Os AA. desconheciam que o seguro de capitalização da ... não era comercializado pelo R.

30. A Sra. DD tinha acesso e conhecimento das contas bancárias dos AA.

31. Consta do documento que titula a apólice de seguro subscrita pelos AA., além do mais, o seguinte: “CLAUSE PARTICULIÉRE: Les Taux d’interêt est de 8%”.

32. A Sra. DD celebrou com o R., com data de 27/6/2002, um acordo escrito denominado “Contrato de Prestação de Serviços – Promotores/Prospectores”.

33. Em data não concretamente apurada, a DD tinha um cartão atribuído pelo R. com a seguinte identificação no rosto: “DD Promotor”.

34. DD assinou e remeteu ao R, e este recebeu, a carta datada de 15.01.2016 com o seguinte teor, além do mais que ora se dá por reproduzido, cf. cópia de fls. 69v.: “Assunto: Rescisão Contratual – Agente Vinculado”.

35. DD nunca solicitou ao R. qualquer autorização para exercer actividade de promoção dos serviços e produtos daquele em instalações abertas ao público, mas podia fazê-lo em lugares públicos, em sua própria casa ou na casa/escritório das pessoas alvo da promoção.

36. Foi por intermédio da Sra. DD, que os AA. conheciam previamente, que estes se vieram a tornar clientes do R.

37. Os AA. são ambos licenciados e com experiência empresarial.

38. Os extractos bancários integrados emitidos mensalmente pelo R. apresentam, na primeira página, o “Resumo do Património Financeiro”, o qual contém sempre as seguintes rubricas: Activos, Outros Activos e Passivos.

39. Na rubrica Activos, constam as modalidades dessa categoria que tendem a abranger todos os possíveis activos detidos pelos clientes.

40. Entre 24/10/2012 e 31/7/2016 os AA. apenas tiveram no R. os seguintes activos: depósitos à ordem, depósitos a prazo e fundos de investimento.

41. No mesmo documento e rubrica “activos”, na modalidade do activo “seguros”, essa modalidade aparece, em todos os extractos, a zero.

Considerou-se como não provada a seguinte matéria de facto:

a) Que DD fosse funcionária do R. (artigo 7º da P.I.);

b) Que o escritório do Edifício ..., na Rua ..., em Lisboa, fosse uma dependência do R. (artigo 9º da p.i.);

c) Que DD fosse gestora de conta dos AA. (artigo 21º da p.i.);

d) Que os AA. tenham feito entregas de capital em cheque e numerário, para realização das aplicações contratualizadas, directamente à Sra. DD por a organização inovadora do R. colocar à disposição dos seus clientes uma rede de Personal Financial Advisors (artigo 27º da p.i.);

e) Que os juros do contrato de seguro subscrito pelos AA. tenham sido sendo creditados semestralmente na conta destes sedeada no R. (artigo 38º da p.i.);

f) Que ... tivesse sido apresentada aos AA. na qualidade de superior hierárquica de DD (artigo 42º da p.i.);

g) Que os extractos bancários do R. enviados mensalmente por correio aos Autores evidenciassem o depósito dos juros de capitalização do seguro vencidos semestralmente (artigo 43º da p.i.);

h) Que o R. tenha revelado aos AA., em final de Abril de 2016, perante os contactos e insistências destes, que a DD tinha sido alvo de procedimento disciplinar com vista ao despedimento (artigo 56º da p.i.);

i) Que a Sra. DD em momento algum tivesse referido que a mencionada apólice de seguro não era um produto financeiro colocado em comercialização pelo R. (artigo 78º da p.i.).

II.B.

Cabe decidir, sendo estas as questões em apreciação:

a) Nulidade por omissão de pronúncia;

b) Erro na determinação da norma aplicável, na medida em que os factos em apreço deveriam ter sido enquadrados no regime específico de responsabilidade previsto no Código dos Valores Mobiliários ("CVM) e não no artigo 500.º do CC;

c) Desresponsabilização do R. por ocorrer culpa dos lesados, ex vi artigo 570.º do Código Civil.

Está em discussão o entendimento divergente das instâncias sobre a responsabilidade do Réu.

Começaremos por abordar a questão da nulidade invocada.

Cabe dizer que, no artigo 615.º do CPC se enumeram vícios muito graves da sentença (ou acórdão) que, a verificarem-se, implicam a respectiva nulidade.

Quanto às nulidades da omissão ou do excesso de pronúncia estão relacionadas com o comando fixado no n.º 2 do artigo 608.º do mesmo código.

Refere-se a omissão de pronúncia ao não conhecimento de questões suscitadas pelas partes ou que sejam de conhecimento oficioso e o excesso ao conhecimento de questões não suscitadas pelas partes e que não sejam de conhecimento oficioso.

Podem suscitar-se dificuldades em fixar o exacto conteúdo das questões a resolver que devem ser apreciadas pelo juiz na decisão. Existe, porém, acentuado consenso no entendimento de que "não devem confundir-se questões a decidir com considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes: a estes não tem o tribunal que dar resposta especificada ou individualizada, mas apenas aos que directamente contendam com a substanciação da causa de pedir e do pedido".

Saliente-se, antes de mais, que questão a resolver, para os efeitos do artigo 660.º do C. Proc. Civil, é coisa diferente de questão jurídica (v.g., determinação de qual a norma legal aplicável e qual a sua correcta interpretação que, como fundamento ou argumento de direito, pudesse – ou até devesse – ser analisada no âmbito da apreciação da questão a resolver).

A melhor resolução da questão a resolver deveria, porventura, levar à apreciação de várias questões jurídicas, utilizadas como argumentos e fundamento da decisão sobre a questão decidenda. Se o juiz, porém, não apreciar todas essas questões jurídicas e não invocar todos os argumentos de direito, que cabiam na melhor, mais completa ou exaustiva fundamentação, mas vier a proferir decisão, favorável ou desfavorável à parte, sobre a questão a resolver, haverá deficiência ou incompletude de fundamentação, mas não omissão de pronúncia.

Seguindo os ensinamentos do Prof. ALBERTO DOS REIS, a propósito do critério de reconhecimento do que se deve entender por questão a resolver, as questões suscitadas pelas partes só podem ser devidamente individualizadas quando se souber não só quem põe a questão (sujeitos), qual o objecto dela (pedido), mas também qual o fundamento ou razão do pedido apresentado. Para tanto, o Juiz deve conhecer de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer. Por isso, a circunstância de não considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da sentença, que as partes hajam invocado, não constituirá nulidade.

No caso em apreço, a A. atribui a omissão de pronúncia à não apreciação da questão da culpa do lesado, suscitada pelo apelado nas respectivas contralegações.

Como sustentou a conferência, a 1.ª instância, partindo do princípio da aplicabilidade ao caso em apreço da regra do artigo 500.º do CC, considerou não apenas, se não verificar a responsabilidade objectiva decorrente dessa norma, como ocorrer culpa dos lesados, tudo a justificar a absolvição do R.

A Relação discordou totalmente dessa visão, tendo entendido que não apenas se verificavam os pressupostos da responsabilidade do R, nos termos do artigo 500.º do CC, como que “a relação de comissão (estabelecida entre o R. e a referida DD) foi adequada para a produção do resultado dos actos ilícitos (a apropriação indevida da quantia de € 70.000,00 dos AA.), dado ter criado nos lesados (os AA.) uma “convicção de confiança na licitude da conduta daquele” (o comissário, ou seja, a DD)”.

Ou seja, assumindo uma posição totalmente oposta à da 1.ª instância, a Relação não deixou de apreciar a questão da ausência de culpa dos AA, fazendo-o a partir de uma ilação que a reconhece, tanto mais que não há nenhuma matéria de facto onde essa culpa, por negligência ou dolo, resulte provada.

Não se verifica, pois, a invocada nulidade.

Passemos, pois, à invocada questão do erro na aplicação da lei.

Não é controvertido que a actuação de DD configura uma actuação ilícita e culposa, geradora da obrigação de indemnizar os AA, pelos prejuízos a estes causados (correspondentes à perda de € 70.000,00).

Tão pouco a ligação contratual entre a referida DD e o R., ligação essa qualificada de agente vinculado.

No preâmbulo do D.L. 357-A/2007, de 31/10 (que alterou o CVM, aditando-lhe os art.º 294º-A a 294º-C, relativos à figura do agente vinculado) pode ler-se que “No âmbito das entidades que exercem actividades de intermediação financeira, é consagrado um novo regime aplicável a agentes vinculados, que em comparação com o actual regime da actividade de prospecção, se caracteriza pelo potencial alargamento das funções abrangidas, pela admissibilidade de pessoas colectivas, adoptando a forma societária, exercerem esta actividade e pela aplicabilidade deste regime a todos aqueles que pretendam exercer tal actividade, em nome de intermediário financeiro sedeado em Portugal (…)”.

Dispõe o artigo 293.º do CVM:


“Intermediários financeiros

1 – São intermediários financeiros em instrumentos financeiros:

a) As instituições de crédito e as empresas de investimento que estejam autorizadas a exercer actividades de intermediação financeira em Portugal;

b) As entidades gestoras de instituições de investimento colectivo autorizadas a exercer essa actividade em Portugal;

c) As instituições com funções correspondentes às referidas nas alíneas anteriores que estejam autorizadas a exercer em Portugal qualquer actividade de intermediação financeira.

d) As sociedades de investimento mobiliário e as sociedades de investimento imobiliário.

2 – São empresas de investimento em instrumentos financeiros:

a) As sociedades corretoras;

b) As sociedades financeiras de corretagem;

c) As sociedades gestoras de patrimónios;

d) As sociedades mediadoras dos mercados monetário e de câmbios;

e) As sociedades de consultoria para investimento;

f) As sociedades gestoras de sistemas de negociação multilateral;

g) Outras que como tal sejam qualificadas por lei, ou que, não sendo instituições de crédito, sejam pessoas cuja actividade, habitual e profissionalmente exercida, consista na prestação, a terceiros, de serviços de investimento, ou no exercício de actividades de investimento.

E dispõem ainda os seguintes artigos do mesmo diploma:


Artigo 294.º

Consultoria para investimento


1 – Entende-se por consultoria para investimento a prestação de um aconselhamento personalizado a um cliente, na sua qualidade de investidor efectivo ou potencial, quer a pedido deste quer por iniciativa do consultor relativamente a transacções respeitantes a valores mobiliários ou a outros instrumentos financeiros.

2 – Para efeitos do número anterior, existe aconselhamento personalizado quando é feita uma recomendação a uma pessoa, na sua qualidade de investidor efectivo ou potencial, que seja apresentada como sendo adequada para essa pessoa ou baseada na ponderação das circunstâncias relativas a essa pessoa, com vista à tomada de uma decisão de investimento.

3 – Uma recomendação não constitui um aconselhamento personalizado, caso seja emitida exclusivamente através dos canais de distribuição ou ao público.

4 – A consultoria para investimento pode ser exercida:

a) Por intermediário financeiro autorizado a exercer essa actividade, relativamente a quaisquer instrumentos financeiros;

b) Por consultores para investimento, relativamente a valores mobiliários.

5 – Os consultores para investimento podem ainda prestar o serviço de recepção e transmissão de ordens em valores mobiliários desde que:

a) A transmissão de ordens se dirija a intermediários financeiros referidos no n.º 1 do artigo 293.º;

b) Não detenham fundos ou valores mobiliários pertencentes a clientes.

6 - Aos consultores para investimento aplicam-se as regras gerais previstas para as actividades de intermediação financeira, com as devidas adaptações.


Artigo 294.º-A

Actividade do agente vinculado e respectivos limites


1 – O intermediário financeiro pode ser representado por agente vinculado na prestação dos seguintes serviços:

a) Prospecção de investidores, exercida a título profissional, sem solicitação prévia destes, fora do estabelecimento do intermediário financeiro, com o objectivo de captação de clientes para quaisquer actividades de intermediação financeira; e

b) Recepção e transmissão de ordens, colocação e consultoria sobre instrumentos financeiros ou sobre os serviços prestados pelo intermediário financeiro.

2 – A actividade é efectuada fora do estabelecimento, nomeadamente, quando:

a) Exista comunicação à distância, feita directamente para a residência ou local de trabalho de quaisquer pessoas, designadamente por correspondência, telefone, correio electrónico ou fax;

b) Exista contacto directo entre o agente vinculado e o investidor em quaisquer locais, fora das instalações do intermediário financeiro.

3 – No exercício da sua actividade é vedado ao agente vinculado:

a) Actuar em nome e por conta de mais do que um intermediário financeiro, excepto quando entre estes exista relação de domínio ou de grupo;

b) Delegar noutras pessoas os poderes que lhe foram conferidos pelo intermediário financeiro;

c) Sem prejuízo do disposto na alínea b) do n.º 1, celebrar quaisquer contratos em nome do intermediário financeiro;

d) Receber ou entregar dinheiro, salvo se o intermediário financeiro o autorizar;

Receber ou entregar dinheiro, salvo se o intermediário financeiro o não autorizar;

e) Actuar ou tomar decisões de investimento em nome ou por conta dos investidores;

f) Receber dos investidores qualquer tipo de remuneração.

4 – Na sua relação com os investidores, o agente vinculado deve:

a) Proceder à sua identificação perante aqueles, bem como à do intermediário financeiro em nome e por conta de quem exerce a actividade;

b) Entregar documento escrito contendo informação completa, designadamente sobre os limites a que está sujeito no exercício da sua actividade.


Artigo 294.º-B

Exercício da actividade


1 – O exercício da actividade do agente vinculado depende de contrato escrito, celebrado entre aquele e o intermediário financeiro, que estabeleça expressamente as funções que lhe são atribuídas, designadamente as previstas na alínea b) do n.º 1 do artigo anterior.

2 – Sem prejuízo do disposto no artigo 294.º-D, a actividade do agente vinculado é exercida:

a) Por pessoas singulares, estabelecidas em Portugal, não integradas na estrutura organizativa do intermediário financeiro;

b) Por sociedades comerciais, com sede estatutária em Portugal, que não se encontrem em relação de domínio ou de grupo com o intermediário financeiro.

3 – O agente vinculado deve ser idóneo e possuir formação e experiência profissional adequadas.

4 – O intermediário financeiro é responsável pela verificação dos requisitos previstos no número anterior.

5 - No caso previsto na alínea b) do n.º 2:

a) A idoneidade é aferida relativamente à sociedade, aos titulares do órgão de administração e às pessoas singulares que exercem a actividade de agente vinculado;

b) A adequação da formação e da experiência profissional é aferida relativamente às pessoas singulares que exercem a actividade de agente vinculado.

6 – O exercício da actividade de agente vinculado só pode iniciar-se após comunicação do intermediário à CMVM, para divulgação pública, da identidade daquele.

7 – A cessação do contrato estabelecido entre o intermediário financeiro e o agente vinculado deve ser comunicada à CMVM no prazo de cinco dias.


Artigo 294.º-C

Responsabilidade e deveres do intermediário financeiro


1 – O intermediário financeiro:

a) Responde por quaisquer actos ou omissões do agente vinculado no exercício das funções que lhe foram confiadas;

b) Deve controlar e fiscalizar a actividade desenvolvida pelo agente vinculado, encontrando-se este sujeito aos procedimentos internos daquele;

c) Deve adoptar as medidas necessárias para evitar que o exercício pelo agente vinculado de actividade distinta da prevista no n.º 1 do artigo 294.º-A possa ter nesta qualquer impacto negativo.

2 – Caso o intermediário financeiro permita aos agentes vinculados a recepção de ordens, deve comunicar previamente à CMVM:

a) Os procedimentos adoptados para garantir a observância das normas aplicáveis a esse serviço;

b) A informação escrita a prestar aos investidores sobre as condições de recepção de ordens pelos agentes vinculados.”

Resulta do acima citado art.º 293.º, n.º 1, al. a), do Código dos Valores Mobiliários (CVM) que o R, enquanto instituição de crédito, está autorizado a exercer a actividade de intermediário financeiro.

E do art.º 294.º-A do CVM decorre que pode o mesmo ser representado por agente vinculado na prestação dos serviços aí elencados, designadamente na prospecção e captação de clientes para a actividade de intermediação financeira e na recepção e transmissão de ordens.

Ou seja, o agente vinculado actua como representante do intermediário financeiro (no caso concreto, o R.), definindo a lei claramente os direitos e deveres deste e a sua responsabilidade pelos actos daquele (art.º 294.º-C do CVM).

Parece claro que, apesar de a DD na relação com o R. aparecer identificada como agente vinculado, certo é que a sua relação com os clientes e, no caso concreto, com os RR, não se apresenta como mero “Personal Financial Advisor” mas como um representante ou agente do Réu, que não se limita a propor investimentos mas que intervém na concretização dos movimentos e investimentos, pois “[d]esde o início da sua relação com o R., e até 21/1/2016, os AA. sempre mantiveram contacto com o Banco através da Sra. DD…, que os informou que todos e quaisquer assuntos relacionados com o Banco deveriam ser tratados directamente consigo e apresentou tal procedimento como apanágio do serviço personalizado que o Réu praticava” e que “sempre se manifestou disponível para tratar de todas as questões financeiras relacionadas com os seus investimentos, quer por telefone ou por e-mail, quer no seu escritório da Rua ... ou no edifício do R. sito na Praça ..., sempre convencendo os AA. de que estes eram a conduta e o procedimento de acompanhamento aos clientes, adoptados pelo R”, actuação tornada natural, uma vez que “[o] R. não tem balcões de atendimento ao público e funciona por via electrónica, por contacto telefónico, através de atendimento em centros de investimento e por contacto dos seus “Personal Financial Advisors”.

Ora, decorre do art.º 165.º do Código Civil que as pessoas colectivas respondem civilmente pelos actos ou omissões dos seus representantes, agentes ou mandatários, nos mesmos termos em que os comitentes respondem pelos actos ou omissões dos seus comissários.

E o art.º 500.º do Código Civil dispõe que aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar.

Na anotação a este preceito legal, PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA (Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pp. 507-510) esclarecem que “a objectividade da responsabilidade lançada sobre o comitente traduz-se, praticamente, em ela não depender de qualquer culpa (dolo ou negligência) na escolha do comissário, nas instruções que a este tenham sido dadas ou na fiscalização do exercício da comissão”. E mais se esclarece que “o termo comissão não tem aqui o sentido técnico, preciso, que reveste nos artigos 266º e seguintes do Código Comercial, mas o sentido amplo de serviço ou actividade realizada por conta e sob a direcção de outrem, podendo essa actividade traduzir-se num acto isolado ou numa função duradoura, ter carácter gratuito ou oneroso, manual ou intelectual, etc”, sendo que “a comissão pressupõe uma relação de dependência entre o comitente e o comissário, que autorize aquele a dar ordens ou instruções a este. Só essa possibilidade de direcção é capaz de justificar a responsabilidade do primeiro pelos actos do segundo”.

Todavia, e porque do n.º 2 do mesmo art.º 500.º decorre que “a responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado pelo comissário, ainda que intencionalmente ou contra as instruções daquele, no exercício da função que lhe foi confiada”, a referida doutrina ensina que “o comitente não responde por actos do comissário que não tenham qualquer nexo com a sua comissão”.

Sendo que, para caracterizar o grau de conexão em questão, esclarece a mesma doutrina que “a orientação preferível consistirá, pois, em responsabilizar o comitente pelos factos ilícitos do comissário que tenham com as funções deste uma conexão adequada. Trata-se, afinal, de aplicar, também aqui, num problema de responsabilidade pelo risco, a teoria da causalidade adequada. Sempre que as funções do comissário, segundo um critério de experiência, favoreçam ou aumentem o perigo de verificação de certo dano, deverá o comitente arcar com a respectiva responsabilidade.

Por outras palavras: deverá entender-se que um facto ilícito foi praticado no exercício da função confiada ao comissário quando, quer pela natureza dos actos de que foi incumbido, quer pela dos instrumentos ou objectos que lhe foram confiados, ele se encontre numa posição especialmente adequada à prática de tal facto” (MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil (1980), pp.207 e 208).

E, por último, na anotação em questão, ensina-se ainda que “a nota mais característica da situação do comitente é a sua posição de garante da indemnização perante o terceiro lesado, e não a oneração do seu património com um encargo definitivo”, tendo presente que, à face do n.º 3 do mesmo art.º 500.º do Código Civil “ele goza, em princípio, do direito de regresso contra o comissário, para se ressarcir de quanto haja pago”.

Também na jurisprudência deste Tribunal encontramos significativos contributos.

Assim, no acórdão do S.T.J. de 15/3/2005, proferido no processo n.º 04A4808 (relatado por Nuno Cameira e disponível em www.dgsi.pt) afirma-se que com «estes factos, as instâncias decidiram estar preenchido o condicionalismo que permite responsabilizar a ré … ao abrigo do artº 165.º do CC, que dispõe:

"As pessoas colectivas respondem civilmente pelos actos ou omissões dos seus representantes, agentes ou mandatários nos mesmos termos em que os comitentes respondem pelos actos ou omissões dos seus comissários".

Em nosso entender, decidiram bem.

Com efeito, segundo o artº 500.º, nº 1, do mesmo diploma, aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar; e nos termos do nº 2 deste mesmo preceito a responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado pelo comissário, ainda que intencionalmente ou contra as instruções daquele, no exercício da função que lhe foi confiada.

Ora, o que se retira da conjugação destes textos é que a relação de comissão exigida pela lei – comissão em sentido, muito amplo, de actividade levada a cabo no interesse e por conta de outrem, e não na acepção prevista no art.º 266.º do Código Comercial – não fica afastada pela circunstância, aqui provada, de o segundo réu prestar serviços à primeira ré como economista, em regime de profissão liberal. Perante os autores, terceiros lesados, isso não releva, pois a responsabilidade de que se trata é objectiva, só funcionando em tais termos precisamente na relação externa; internamente (relação comitente/comissário), como está claro no n.º 3 do art.º 500.º, pode o comitente exigir do comissário o reembolso de tudo o que tiver pago, salvo se ele próprio tiver culpa, caso em que se aplicará o regime da pluralidade de responsáveis pelo dano (art.º 497.º, n.º 2). Decisivo e imprescindível é que o facto danoso tenha sido praticado no exercício da função confiada e que exista um nexo entre aquele e esta, pontos estes que, sem qualquer dúvida, estão comprovados na situação ajuizada, e bastam para configurar a relação de comissão. O art.º 500.º do CC não exige uma relação de dependência entre o comitente e o comissário como condição da responsabilidade do primeiro. Seria, parece, incoerente e ilógica semelhante exigência quando é certo que, como se deduz do referido n.º 2, a responsabilidade objectiva do comitente subsiste mesmo que o comissário aja intencionalmente ou contra as suas instruções. De resto, desde que limitadas ao resultado a alcançar, as ordens ou instruções, por si só, não desfiguram o contrato de prestação de serviços, nem o transformam numa realidade jurídico negocial diversa.»

O acórdão deste Tribunal de 02.03.2006, processo n.º 05B4091, disponível em www.dgsi.pt, onde se defende idêntico entendimento fornece também bons contributos doutrinais e jurisprudenciais.

Também no acórdão de 15.12.11, proferido no processo 2635/07.1TVLSB.L1.S1 (relatado por Salazar Casanova e disponível em www.dgsi.pt) afirma-se no respectivo sumário:

“I – O trabalhador de instituição de crédito, gestor de contas, que se aproveita do conhecimento que advém das suas funções na instituição de crédito para contactar o cliente das contas de que é o gestor com o pretexto falso de lhe possibilitar a aplicação financeira de valores em depósito e que desvia em seu proveito pessoal os valores do cliente num montante de 3 584 199 €, incorre em acto ilícito criminal e com ele responde solidariamente a instituição de crédito nos termos do art. 500.º, n.ºs 1 e 2, do CC.

II – A circunstância de, nas atribuições conferidas pela instituição de crédito ao seu gestor, não figurar o aconselhamento e realização de operações de compra e/ou venda de títulos, em Bolsa, actividade prosseguida por essa instituição, não afasta o entendimento de que o gestor actuou no exercício da função que lhe foi confiada (art. 500.º, n.º 2, do CC) uma vez constatada a especial e adequada conexão entre os actos ilícitos praticados (burla e falsificação de extractos bancários, tendo em vista levar a vítima a libertar depósitos para supostas aplicações financeiras) e a posição do comissário no quadro funcional dessa instituição bancária.

III – Cumpre ao lesado o ónus de provar que o comissário agiu no exercício da função que lhe foi confiada, nos termos anteriormente indicados, cumprindo ao comitente provar o facto impeditivo que é o do conhecimento do lesado de que o preposto está a agir num quadro de exercício abusivo das funções (art. 342.º, n.ºs 1 e 2, do CC).

IV – Não deve ser considerado culposo o comportamento, por acção ou por omissão, da vítima de burla e de falsificação de documentos que resultou do estratagema engendrado pelo agente do crime que astuciosamente determinou o erro ou engano que levou a esse comportamento e, por isso, não pode ser sancionada a vítima, considerando-a culpada em concorrência com o agente do crime nos termos do art. 570.º do CC.”

E, no acórdão do S.T.J. de 26/3/2014 (relatado por Souto de Moura e disponível em www.dgsi.pt), encontramos idêntico entendimento:

“A jurisprudência e doutrina têm-se debruçado sobre o sentido da expressão "no exercício da função que lhe foi confiada" e existe consenso sobre a exclusão de responsabilidade do comitente, em casos de atuação ilícita e danosa do comissário, simplesmente conexionada local e temporalmente com o exercício de funções. Também não tem merecido acolhimento a exigência de que a atuação do comissário se tenha desenrolado no interesse do comitente. Importante será, então, que o comportamento danoso tenha sido levado a cabo, fazendo uso, o comissário, dos meios colocados à sua disposição pelo comitente. Assim se aderindo a um critério instrumental para apuramento da responsabilidade do comitente.

É evidente que todo o ato ilícito pressupõe um exorbitar das funções que estão cominadas ao comissário. Caso contrário, haveria conluio entre o comitente e o comissário para a prática do ato ilícito, e a responsabilidade daquele deslocar-se-ia para o domínio da culpa, esvaziando-se por completo a possibilidade de incorrer em responsabilidade objetiva. Só que esse exorbitar das funções confiadas não implica a incompatibilidade com a prática no exercício das funções. Basta que, nas palavras de A. Varela, haja uma "conexão adequada" entre o ato ilícito danoso e a função. Explicitando o seu ponto de vista, este autor refere (in "Das Obrigações em geral", vol. I, 7.ª edição, pág. 637 e seg.):

"Com a fórmula restritiva adoptada, a lei quis afastar da responsabilidade do comitente os actos que apenas têm um nexo temporal ou local com a comissão.

Mas acentuando ao mesmo tempo que a responsabilidade do comitente subsiste, ainda que o comissário proceda intencionalmente ou contra as instruções dele, mostra-se que houve a intenção de abranger todos os actos compreendidos no quadro geral da competência ou dos poderes conferidos ao dito comissário. Ficarão, assim, excluídos os actos que não se inserem no esquema do exercício da função (como no caso do empregado desviar intencionalmente o veículo que conduz ao serviço da empresa para ferir ou matar uma pessoa), mas cabem na fórmula da lei os actos ligados à função por um nexo instrumental, desde que compreendidos nos poderes que o comissário disfruta no exercício da comissão (como no caso do empregado bancário, encarregado de prestar informações ao público, dar uma informação falsa para lesar outrem)".

Serão assim da responsabilidade do comitente os actos praticados pelo comissário com abuso de funções, ou seja, os actos formalmente compreendidos no âmbito da comissão, mas praticados com um fim estranho a ela."

E, finalmente, terminamos a recensão jurisprudencial com a citação do acórdão de 12.05.16, proferido no processo n.º 85/14.2T8PVZ.P1.S1 (relatado por Abrantes Geraldes e disponível em www.dgsi.pt), onde se afirma que “foi a qualidade de funcionário da agência bancária, numa posição de chefia, que não a de mero procurador dos AA., que permitiu ao funcionário do Banco R. agir com a liberdade e a impunidade que a matéria de facto bem revela, permitindo-lhe executar, com a facilidade que os autos revelam, a simulação de depósitos bancários cuja credibilidade era reforçada pela utilização de papel timbrado do Banco R.

Porventura, se o referido funcionário não estivesse munido da referida procuração não poderia, com semelhante facilidade, agir em prejuízo dos AA. ou não poderia ter actuado assim durante um tão prolongado período de tempo. Mas com mais firmeza se pode afirmar também que não fora a especial posição que o mesmo funcionário detinha na agência bancária (sub-gerente), não seria aquela mera qualidade de procurador (terceiro em relação ao Banco) que lhe daria a liberdade e a imunidade de que gozou de forma tão prolongada em prejuízo quer dos AA. quer do Banco R.

Sendo o procurador simultaneamente funcionário do Banco R. e agindo aparentemente como se estivesse a exercer com lisura as funções de sub-gerente da Agência bancária, os AA. não poderão sair prejudicados no confronto com o R. a quem especialmente cabia exercer a vigilância e a fiscalização que impedisse ou limitasse os efeitos de actuações ilícitas do mesmo funcionário na esfera dos clientes, in casu dos AA.

Não existe, pois, motivo algum para exonerar o R. da responsabilidade objectiva que lhe advém da relação de comissão estabelecida com o funcionário que agiu ilicitamente, prejudicando os AA., num quadro aparente de exercício das suas funções, nos termos do art. 500º do CC.”

Ao reverter tais considerações doutrinárias e jurisprudenciais para o caso concreto dos autos, é possível concluir que a actuação da referida DD ocorreu porque a mesma se aproveitou da sua posição de agente vinculado do R, no âmbito da actividade de intermediação financeira solicitada pelos AA.

Disponibilizando o R. serviços de intermediação financeira, enquanto instituição de crédito, designadamente na comercialização de produtos de investimento, produtos estruturados, produtos fiscais, seguros e acesso aos mercados bolsistas, e pretendendo os AA. investir a quantia que detinham (que rondava € 90.000,00), entre ambos estabeleceu-se a correspondente relação contratual.

E para o estabelecimento de tal relação contratual foi essencial a intervenção de DD, enquanto Personal Financial Advisor do R. e arrogando-‑se, desde o seu início, uma posição privilegiada e quase exclusiva de agente de ligação entre o banco R. e os investidores.

De facto, o contacto pessoal e directo do R. com os seus clientes (onde se incluem os AA.) não era fácil, atenta a ausência de balcões de atendimento ao público, antes, «apoiando o seu negócio numa rede de Personal Financial Advisors, vocacionada para a “venda ao domicílio” por contacto pessoal e directo com os seus clientes (em substituição daquele modelo clássico de negócio de “venda em estabelecimento comercial”)».

O que significa que dependia dos referidos Personal Financial Advisors, entre os quais a DD, para o cumprimento das regras de conduta a que aludem os art.º 73º e seguintes do RGICSF (aprovado pelo D.L. 298/92, de 31/12), nas quais assenta o princípio da confiança ínsito à actividade bancária e financeira, pelo que confiou àquela (como certamente aos demais Personal Financial Advisors) “as funções que não podia executar nos balcões de atendimento (por inexistentes), designadamente aquelas que a mesma DD exerceu junto dos AA., relacionadas com a prestação de informação de todos e quaisquer assuntos relacionados com o R. (ponto 6. dos factos provados), com os produtos disponibilizados pelo mesmo para subscrição pelos AA. (ponto 8. dos factos provados), ou com o tratamento e acompanhamento das questões relacionadas com os investimentos dos mesmos (ponto 14. dos factos provados)”.

Que o mesmo é afirmar, como se faz no acórdão recorrido, que o R. tinha ao seu serviço agentes vinculados (como a referida DD), para prosseguir a sua actividade bancária, em geral, e de intermediação financeira, em particular, claramente exorbitando, sem que o Banco Réu a censurasse, como devia, as funções de agente vinculado.

E foi já no exercício abusivo dessas funções de agente vinculado que a referida DD angariou os AA. como clientes do R. e os manteve como tal.

E, para tanto, a referida DD utilizou, quando necessário, as instalações do R. (na Praça ...) bem como os símbolos identificativos do R. (tal como resulta dos pontos 9., 14., segunda parte, 15. e 33. dos factos provados), tudo nos termos consentidos por este.

E foi por deter esse leque de funções, que lhe havia sido confiado pelo R, que a referida DD logrou convencer os AA. a entregar-lhe a quantia de € 70.000,00, sob pretexto de ser aplicada num produto financeiro disponibilizado pelo R. mas não acessível à maioria dos clientes do mesmo (ponto 17. dos factos provados).

Ou seja, através da criação de uma aparência do exercício regular das funções de representante ou agente do R. junto dos AA. (como clientes do R, para a realização de aplicações financeiras), mas em abuso das mesmas (já que lhe estava vedada a recepção de dinheiro por parte dos AA.), que a mesma DD logrou a prática dos actos ilícitos em questão (a apropriação da quantia de € 70.000,00 dos AA.).

A DD, em proveito próprio, tirou partido desta forma de organização dos meios de produção da R., ganhando a confiança dos AA. e levando-os a entregar-lhe a referida quantia, para ser aplicada num anunciado mas inexistente seguro de capitalização da Companhia de Seguros ..., pretensamente comercializado pelo R. e reservado a clientes “especiais”.

Foram, pois, tais actos ilícitos praticados no desempenho, embora abusivo, das funções que lhe foram confiadas pelo R.

Não merece, pois, censura a decisão da Relação que condenou o R. nos precisos termos em que o fez.

Não será necessário voltar a abordar a questão da culpa do lesado como inibidora da responsabilização do Réu, dado o que já se disse sobre a nulidade invocada e a ausência de qualquer prova da culpa dos AA.

III. – Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.

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[1] N.º 1052
  Relator :   Paulo Sá
  Adjuntos: Alexandre Reis e
                   Pedro Lima Gonçalves