Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6ª SECÇÃO | ||
Relator: | NUNO CAMEIRA | ||
Descritores: | COMPRA E VENDA VEÍCULO AUTOMÓVEL DEFEITOS CONSUMIDOR DENÚNCIA CADUCIDADE GARANTIA DE BOM FUNCIONAMENTO PRODUTOR RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO PRESSUPOSTOS PERDA DE INTERESSE DO CREDOR RECONHECIMENTO DO DIREITO DIREITOS DO CONSUMIDOR DUPLA CONFORME ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS DOCUMENTO PARTICULAR INTERPRETAÇÃO DE DOCUMENTO PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA | ||
Data do Acordão: | 10/04/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / TEMPO E SUA REPERCUSSÃO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS / CADUCIDADE / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / COMPRA E VENDA / VENDA DE COISAS DEFEITUOSAS. DIREITO DO CONSUMO - CONSUMIDOR. DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / FUNDAMENTOS DA REVISTA / PODERES DE COGNIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA. | ||
Doutrina: | - Ana Filipa Antunes, Prescrição e Caducidade, Coimbra Editora, 2008, 178. - Calvão da Silva, Responsabilidade Civil do Produtor, Almedina, Coimbra, 1990, 209, nota 2. - Meneses Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Tomo IV, 225. - Pedro Romano Martinez, Cumprimento defeituoso em especial na compra e venda e na empreitada, Almedina, Coimbra, 1994, 440, 424 a 426; Direito das Obrigações, Parte Especial, Contratos, 2.ª edição, 143. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 4.º, 331.º, N.º2, 342.º, N.º1, 432.º, 801.º, N.º2, 802.º, 804.º, N.º2, 808.º, 913.º, 914.º, 916.º, 917.º, 921.º. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 671.º, N.º3, 674.º, N.º3, 682.º, N.ºS 1 E 2. LEI DE DEFESA DO CONSUMIDOR (LDC), APROVADA PELA LEI N.º 24/96, DE 31-7: - ARTIGO 2.º, N.º1. REGIME DE COMPRA E VENDA CELEBRADOS ENTRE PROFISSIONAIS E CONSUMIDORES, INSTITUÍDO PELO D.L. N.º 67/2003, DE 8-4: - ARTIGO 1.º-B. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 23/2/2010, PROCESSO N.º 1077/06.0TVLSB.L1.S1; -DE 2/3/2010, PROCESSO N.º 323/05.2TBTBU.C1.S1. -DE 11/2/2014, PROCESSO N.º 6723/09.1TVLSB.L1.S1; DE 15/3/2012, PROCESSO N.º 9818/09.8TBLVNG.P1.S1; E DE 12/6/03, PROCESSO N.º 03B1843, DISPONÍVEIS EM WWW.DGSI.PT . -DE 07/5/2014, PROCESSO N.º 5335/05.3TVLSB.L1.S1. | ||
Sumário : | I - Ocorrendo dupla conforme entre as decisões das instâncias que, de forma totalmente coincidente, concluíram que a autora, não tendo a qualidade de consumidora, não pode beneficiar, enquanto adquirente de coisa defeituosa, da protecção conferida pela LDC e pelo regime instituído pelo DL n.º 67/2003, de 08-04, está vedado o acesso ao STJ para reapreciar a referida solução convergente – art. 674.º, n.º 3, do CPC. II - Mesmo que houvesse lugar a essa reapreciação, a decisão teria de ser confirmatória do julgamento das instâncias uma vez que, tendo a autora – uma sociedade comercial –, adquirido o veículo para o exercício das actividades a que se dedica, não pode a mesma ser considerada como consumidora na acepção dos arts. 2.º, n.º 1, da LDC, e 1.º-B do DL n.º 67/2003, de 08-04. III - O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista, salvo nos casos excepcionais previstos no art. 674.º, n.º 3, do CPC; pelo que, incidindo o julgamento produzido pela Relação sobre o documento particular que corporiza a garantia do construtor, é o mesmo insusceptível de censura por parte do STJ, já que se trata de meio de prova livremente apreciável pelas instâncias. IV - Resulta do disposto no art. 916.º, n.º 2, do CC que o comprador dispõe do prazo de trinta dias para, depois de conhecido o defeito, o denunciar; porém, esta denúncia tem de ser feita dentro do prazo de seis meses após a entrega da coisa, sob pena de caducidade do direito. V - Tendo decorrido mais de seis meses entre a entrega do veículo (12-11-2012) e a denúncia do defeito (04-07-2013), deve ter-se por caducado o direito da autora à resolução do contrato – arts. 916.º, n.º 2, e 917.º, ambos do CC. VI - O facto de o veículo estar abrangido pela garantia prestada pelo fabricante em nada influencia o referido prazo de caducidade, já que, para além de a garantia apenas se referir à reparação ou à substituição da coisa (e não à resolução do contrato), a vendedora é-lhe alheia e, como tal, não pode ser, nesse âmbito, responsabilizada. VII - O reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido só impede a caducidade se tiver o mesmo efeito que teria a prática do acto a ela sujeito e se ocorrer antes de o direito em jogo ter caducado – art. 331.º, n.º 2, do CC. VIII - A resolução do contrato de compra e venda pressupõe a demonstração, por parte de quem pretende exercer esse direito, de que a contraparte está em mora e que, por força desta, desapareceu o seu interesse na manutenção do contrato, ou então que converteu a mora em incumprimento definitivo – arts. 342.º, n.º 1, e 808.º do CC. IX - O mero decurso do tempo não é, por si só, revelador da perda do interesse no negócio, posto que esta tem de ser apreciada objectivamente, isto é, através de factos concretos que, razoavelmente, a revelem. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I. Síntese dos termos essenciais da causa e do recurso AA Ldª, propôs em 22/10/2013 uma acção declarativa contra BB, SA, e CC, SA, pedindo: a) Que seja decretada a anulação do contrato de compra e venda do veículo identificado nos autos, celebrado entre a autora e a 1ª ré, e esta condenada a restituir-lhe 32.170,00 €, com juros legais de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento; b) Que as rés sejam condenadas a pagar-lhe 1974,00 € a título de indemnização pela privação do uso e fruição do veículo, acrescidos do que se apurar em sede de liquidação de sentença; 212,44 € a título de despesas com a contratação de serviços de transportes durante a imobilização da viatura; e 1.500,00 € a título de danos não patrimoniais causados pela venda de veículo defeituoso e a não eliminação do defeito. Alegou, em resumo, que necessitando para o exercício das actividades incluídas no seu escopo social de uma viatura automóvel apta a garantir as deslocações de natureza comercial e as entregas e recolha de máquinas e acessórios, e ainda a prestação de assistência técnica aos equipamentos dos seus clientes, adquiriu à 1ª ré, em 12/11/2012, pelo preço de 32.170,00 €, o veículo automóvel que identifica na petição inicial, em estado novo, acordando uma garantia pelo período de 36 meses. Porém, a viatura deixou de funcionar quando com ela circulava, tendo sido objecto de sucessivas intervenções e de imobilização, face à inoperacionalidade de que ficou a padecer e ao abandono a que foi votada. Em 20/9/2013 dirigiu uma comunicação escrita às rés, interpelando-as para no prazo de 5 dias úteis contados da respectiva recepção lhe entregarem o veículo em perfeito estado de funcionamento, sob pena de perda de interesse na prestação. Mas porque os defeitos não foram eliminados, entende ter direito à resolução do contrato. As rés contestaram, invocando a caducidade parcial dos direitos invocados, a culpa da autora pela não reparação do veículo e a ausência de danos, concluindo pela improcedência da ação. Realizado o julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, decidindo: a) Julgar validamente resolvido o contrato celebrado entre a autora e a primeira ré, referente à compra e venda do veículo automóvel com a matrícula 00-XX-00; b) Reconhecer à primeira ré o direito de reaver o veículo mencionado em a) e condená-la a restituir à autora 32.170,00 €, deduzidos da quantia correspondente à desvalorização sofrida por força da sua utilização entre 12.11.2012 e 4.7.2013, a liquidar ulteriormente nos termos dos artigos 358º e seguintes do CPC; c) Condenar a primeira ré a pagar juros de mora vincendos sobre a quantia referida em b), a partir da sua liquidação, à taxa comercial em vigor a cada momento; d) Condenar ambas as rés a pagar à autora 750,00 €, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos; e) Condenar ambas as rés a pagar à autora 360,00 € a título de indemnização pela privação do uso do veículo automóvel em causa. Acontece, todavia, que o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (artº 674º, nº 3, do CPC). Não se verificando nenhuma destas hipóteses, o STJ tem de acatar a decisão de facto recorrida, visto que somente lhe compete, enquanto tribunal de revista, aplicar aos factos materiais fixados pela Relação o regime jurídico que julgue adequado (artº 682º, nºs 1 e 2, do CPC). Ora, no caso dos autos é patente que não ocorre nenhuma das situações, acima referidas, em que o STJ pode intervir, ainda que indirectamente, no estabelecimento dos factos. Com efeito, ao decidir que o documento (particular) que corporiza a garantia do construtor vincula somente a 2ª ré, e não também a 1ª ré, a Relação, sem deixar de estar situada no âmbito exclusivo da matéria de facto, onde julga em última instância, não desrespeitou nenhuma norma imperativa de direito probatório material; para além disso, não sofre dúvida que “a apreciação do teor de um documento, que constitua escrito particular sem força vinculativa, e, portanto, livremente apreciável pelo tribunal, escapa ao âmbito de apreciação de uma revista” (Ac. STJ de 23/2/10 - Revª 1077/06.0TVLSB.L1.S1); e é certo, ainda, que “ a interpretação dos documentos, enquanto determinação da vontade real do declarante, considera-se matéria de facto e deve ser feita tendo em conta a apreciação da globalidade da prova produzida através do recurso a critérios de decisão não normativos, que estão excluídos dos poderes cognitivos do STJ” (Ac. STJ de 07/5/2014 – Revª 5335/05.3TVLSB.L1.S1). Deste modo, ao não dar como assente, perante o documento nº 10 junto com a petição inicial, que a recorrida se vinculou contratualmente à garantia do fabricante, a Relação produziu um julgamento que, não podendo ser incluído no objecto da revista, por idêntica razão é insusceptível de censura por parte do STJ. 3) É improcedente, de igual modo, a censura que a recorrente dirige ao acórdão recorrido a respeito da interpretação e aplicação dos artºs 917º e 921º do CC. O primeiro dos preceitos citados dispõe que “a acção de anulação por simples erro caduca, findo qualquer dos prazos fixados no artigo anterior sem o comprador ter feito a denúncia, ou decorridos sobre esta seis meses, sem prejuízo, neste último caso, do disposto no nº 2 do artº 287º”. O artigo anterior é o 916º, que no nº 1 diz que “o comprador deve denunciar ao vendedor o vício ou a falta de qualidade da coisa, excepto se este houver usado de dolo”, e no nº 2 estabelece que “a denúncia será feita até trinta dias depois de conhecido o defeito e dentro de seis meses após a entrega da coisa”. No caso dos autos, nenhuma dúvida se levanta ou levantou acerca do momento a partir do qual se deve contar o prazo de seis meses após a entrega, certo que o contacto material da autora com o veículo – e, portanto, a possibilidade de descobrir o vício (defeito) – coincidiu com a data da compra e venda ajuizada (12/11/12); nada a recorrente alegou ou provou em contrário disto. Por outro lado, também não há qualquer dúvida que o vício surgiu no dia 4/7/13, e nesse mesmo dia foi conhecido da autora e denunciado à 2ª ré (factos 6 e 7). Nestas circunstâncias, sendo evidente que decorreram mais de seis meses entre a entrega do veículo e a denúncia do defeito, não resta senão concluir que o prazo para a recorrente interpor a presente acção foi ultrapassado (esgotou-se em 12/5/13), determinando, assim, a caducidade do direito da autora à resolução do contrato. Da conjugação dos dois mencionados preceitos resulta claramente, como ensina Pedro Romano Martinez (Direito das Obrigações, Parte Especial, Contratos, 2ª edição, pág. 143), que “a denúncia tem de ser feita nos seis meses posteriores à entrega da coisa (artº 916º, nº 2 CC). Assim, o comprador tem seis meses a contar da entrega para descobrir o defeito; depois de descoberto o defeito, o adquirente tem trinta dias para o comunicar ao vendedor. Se o defeito for detectado ao fim de sete meses após a entrega já nada poderá ser feito, mas se for descoberto cinco meses e meio depois da entrega, ao comprador cabe fazer a denúncia nos restantes quinze dias.” Afigura-se deslocado, salvo o devido respeito, o apelo que a autora faz para uma interpretação extensiva do artº 917º, bem como a chamada à colação do acórdão da Relação do Porto de 28/6/11 (disponível em www.dgsi.pt). Com efeito, a interpretação extensiva justifica-se quando o intérprete, chegando à conclusão de que o legislador disse menos do que aquilo que pretendia, se vê na necessidade, por causa disso, de estender o texto da lei, assim fazendo corresponder a letra da norma ao seu espírito. Ora, não é este o caso, pois o sentido que se retira do texto da lei quanto ao ponto em questão, nos termos que acima se evidenciaram, corresponde com exactidão ao pensamento legislativo. Aliás, bem vistas as coisas, no caso dos autos a interpretação extensiva preconizada é totalmente irrelevante - no sentido de que não pode ter reflexo prático na correcta solução do litígio - visto que, como observa a recorrida, a denúncia dentro dos seis meses após a compra e venda teria sempre de verificar-se, seria sempre de exigir, e, como se viu, não foi isso o que na realidade aconteceu. Por outro lado, no que toca ao aresto em causa, a situação de facto nele versada é muito diversa da tratada no presente processo e, por isso, a doutrina que adoptou não pode sem mais ser transposta para este caso. Na verdade, naquele acórdão estava em causa a elevada resistência ao desgaste de um produto para revestimento de chão adequado a um uso intensivo por parte de utentes de uma unidade de saúde privada; por tal motivo, considerou-se que o prazo para o exercício da denúncia só poderia iniciar-se no momento em que pudesse ter lugar a verificação da resistência desse material. Seguiu-se, ao cabo e ao resto, a posição de Pedro Romano Martinez (Cumprimento defeituoso em especial na compra e venda e na empreitada, Almedina, Coimbra, 1994, p. 424 a 426). Segundo este autor, apesar da regra ser a de que o prazo limite de garantia tem o seu início com a entrega da coisa (artigo 916º, nº 2, do CC), existem situações em que isso pode suceder num momento posterior à entrega; trata-se, porém, de excepções que, embora não referidas explicitamente na lei, “têm de ser admitidas pela natureza dos circunstancialismos que as rodeiam. Assim, se, por exemplo, a máquina tiver de ser montada, o prazo só começa a correr quando ela estiver em condições de funcionar; da mesma forma, tendo sido assegurada uma determinada qualidade, cuja existência só se pode verificar em momento futuro (p. ex, que o automóvel gastará seis litros de gasolina por cada cem quilómetros percorridos, depois de feita a rodagem), o prazo só poderá ter início nessa altura. Em idêntico sentido, Calvão da Silva (Responsabilidade Civil do Produtor, Almedina, Coimbra, 1990, p. 209, nota 2) sublinha que “...no caso de aparelhos, máquinas e produtos similares que pela sua complexidade requeiram instalação ou montagem a fazer pelo vendedor, deve entender-se que a entrega só ocorre verdadeiramente quando os mesmos ficam aptos a funcionar, pois apenas nesse momento começa realmente a durée d¢ epreuve em que se consubstancia o prazo de garantia”. Não existindo, portanto, similitude relevante entre os dois casos, nenhuma razão se verifica para que o prazo de caducidade aqui em causa se conte apenas a partir do momento em que o vício surgiu e foi conhecido, e não antes. Deve, em suma, aplicar-se a regra – artº 916º, nº 2, do CC – que é clara e não dá lugar a dúvidas: o comprador dispõe do prazo de trinta dias depois de conhecido o defeito para o denunciar, mas esta denúncia tem de ser feita dentro do prazo de seis meses após a entrega da coisa, sob pena de caducidade do direito. No que se refere ao artº 921º, não merece o mínimo reparo aquilo que a tal respeito se escreve no acórdão recorrido, a saber: 5) Quanto à questão posta nas conclusões 8ª, 9ª e 10ª decidiu-se no acórdão recorrido que não tendo sido invocado qualquer fundamento que possa justificar em termos objectivos, e não apenas subjectivos, a perda de interesse no veículo automóvel em causa no processo, e não se encontrando as rés em mora, já que sempre manifestaram vontade de o reparar, a acção teria em qualquer caso de improceder por faltarem os pressupostos de resolução do contrato. O julgamento da Relação foi acertado, não merecendo nenhuma censura ou reserva. A resolução tem sempre por fundamento a violação do contrato, distinguindo a lei, no que toca às consequências jurídicas do incumprimento, entre a falta de cumprimento, a mora e o cumprimento defeituoso. Estando em causa uma compra e venda defeituosa aplicam-se, tanto no que respeita aos pressupostos da resolução, como aos seus efeitos, as regras gerais contidas nos artºs 432º, 801º, nº2, 802º e 808º do CC, complementadas pelas disposições especiais previstas para o contrato de compra e venda. No que aqui interessa, o artigo 808º, nº 1 dispõe que “se o credor, em consequência da mora, perder o interesse na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação”; e o nº 2 do mesmo preceito esclarece que “a perda do interesse na prestação é apreciada objectivamente”. Isto significa que o credor não tem, em princípio, o direito de resolver o negócio em consequência da mora do devedor, mas tão só o de exigir o cumprimento da obrigação e a indemnização pelos danos sofridos, já que o direito potestativo de resolução só é concedido no caso de impossibilidade culposa (artº 801º, nº 2). Pode, porém, suceder que em consequência da mora o credor perca logo o interesse na prestação, perda essa que, no entanto, terá de ser apreciada objectivamente, como diz a lei, isto é, terá de transparecer duma apreciação objectiva da situação, não bastando uma perda subjectiva desse interesse. Por outro lado, e independentemente da perda do interesse do credor, no preceito transcrito consagra-se a figura da interpelação admonitória, que se destina a converter a mora em incumprimento definitivo, evitando-se assim que o credor fique por tempo indeterminado numa situação de impasse. As disposições especiais da compra e venda apontam também no sentido acabado de expor, já que neste contrato a resolução funciona subsidiariamente, isto é, só se pode pôr termo a ele quando não for viável recorrer à eliminação do defeito ou à substituição da prestação (artºs 913º e 914º do CC). Conforme ensina Pedro Romano Martinez (obra e loc. cit, pág. 440) “enquanto o cumprimento da prestação acordada for possível, mediante a eliminação do defeito ou através da sua substituição, não pode estar aberto o caminho para a resolução do contrato (…). No sistema jurídico português há uma espécie de sequência lógica: em primeiro lugar, o devedor está adstrito a eliminar os defeitos ou a substituir a prestação; frustrando-se estas pretensões, pode ser exigida a redução do preço ou a resolução do contrato. A regra que impõe este seguimento está patente no art.º 1222, n.º 1, em relação ao contrato de empreitada, mas apesar de não haver norma expressa neste sentido no domínio da compra e venda, ela depreende-se dos princípios gerais (art.ºs 562º, 566º, n.º 1, 801º, n.º 2 e 808º, n.º 1), para além de ser defensável a aplicação analógica do n.º 1 do art.º 1222º, no que se refere à imposição desta sequência, às hipóteses de compra e venda. Assim, em ordem a obter a pretendida resolução impunha-se que a recorrente tivesse provado que as rés estavam em mora e que, por força desta, desaparecera o seu interesse na manutenção do contrato, ou então que a convertera incumprimento definitivo, nos termos que se assinalaram (artº 342º, n.º 1, do CC). Os factos provados, no entanto, não autorizam semelhante conclusão. Repare-se: Ficou assente que o veículo em causa nos autos avariou em 4/7/13 porque o motor deixou de trabalhar e que em 2/10/13 ainda não estava reparado; no entanto, ficou igualmente provado que a avaria foi difícil de encontrar e descobrir, que não havia registo, em toda a rede da CC, de qualquer avaria semelhante, e que para se chegar à conclusão de que a mesma se devera a um problema de conectividade da cablagem a resolver com a sua substituição foi necessário pedir ajuda e assistência aos serviços centrais da marca em Portugal e França (factos 23 a 25, 27 e 28). Provou-se ainda que durante o período em que o veículo permaneceu na oficina do concessionário da CC com vista à sua reparação se procedeu à substituição de várias peças, sendo que uma delas teve de ser encomendada de França, demorando alguns dias a chegar, e que a recorrente foi sendo informada das dificuldades surgidas (factos 29 e 30). Não resulta, porém, da matéria de facto que durante o período em que o veículo permaneceu na oficina e foi alvo de reparações a recorrente tenha fixado qualquer prazo às rés para tal efeito. Na verdade, o que se extrai da comunicação de 2/8/13 (factos 10 e 11) é que a autora se limitou a manifestar desagrado pelo facto da viatura não estar ainda reparada, tendo solicitado a sua substituição ou a devolução do preço, mas sem estabelecer qualquer prazo para isso. Assim sendo, não resultando dos restantes factos apurados que as rés estivessem obrigadas ao cumprimento de qualquer prazo para eliminar os defeitos que a 2ª ré se disponibilizou a corrigir ao abrigo da garantia do construtor, e não se retirando igualmente desses factos a fixação de prazo nos termos a que aludimos, tem de concluir-se que em 20/9/13, quando a autora dirigiu às rés a comunicação referida no ponto 14) da matéria de facto, nenhuma delas estava em mora, já que a obrigação em causa não tinha prazo certo (artº 804º, n.º 2, do CC). Vistas as coisas por outro prisma, e ainda que se considere que a declaração antecipada do devedor de não querer cumprir equivale a incumprimento, legitimando a resolução imediata do contrato, certo é que no caso presente tal recusa não se provou. Bem pelo contrário, o que transparece da matéria de facto é que em 2/10/13 - cerca de 6 dias úteis após a recepção da carta da recorrente de 20/9/13 - a 2ª ré se ofereceu para efectuar, sem custos para a recorrente, a reparação do veículo (factos 16 e 17). Ou seja, para além de não poder afirmar-se que as rés estivessem em mora, também não é possível concluir que tenha havido da sua parte recusa no cumprimento da obrigação a que a 2ª ré estava adstrita ou, mesmo, a adopção de qualquer outro comportamento concludente nesse sentido. E sendo a mora, como já se referiu, um pressuposto necessário da perda do interesse na prestação, segue-se que também esta não se verifica no caso sub judice. É certo que a recorrente sustenta, a este respeito, que a perda do interesse decorre do teor da comunicação de 20/9/2013 (facto 14), já que deixou aí dito que “atenta a delonga na reparação da avaria e o facto de se tratar de veículo afecto ao exercício da nossa actividade empresarial, não podemos eternizar a privação do seu uso e fruição”. Isto, porém, não é de modo nenhum decisivo; decisiva é, sim, a circunstância de não constar da matéria assente qualquer facto do qual se possa extrair que, face ao decurso do tempo, o veículo que a autora adquiriu deixou de revestir utilidade para o fim a que se destinava; provou-se apenas que a avaria surgida em 4/7/13 e a consequente indisponibilidade da viatura foi causa de transtornos e perturbação na gestão da actividade da autora (facto 20). Ora, desacompanhado de outras circunstâncias, o mero decurso do tempo não é por si só revelador da perda do interesse no negócio, a qual, como a lei manda e já atrás se observou, tem de ser apreciada objectivamente. De resto, é neste sentido que o STJ tem sempre decidido, adoptando uniformemente o entendimento de que “a perda do interesse na prestação deve ser apreciada objectivamente, em termos concretos, não bastando que o credor se limite a alegá-la, (…), e deve ter na sua base “....uma razão objectivamente perceptível e compreensível para o cidadão comum. A perda do interesse na prestação por parte do credor não é aferida pelo que a esse propósito o último considera, mas pela apreciação objectiva dos factos que razoavelmente a revelem”, cabendo-lhe “alegar e provar os factos objectivos e concretos que substanciem a perda do interesse, susceptível de caracterizar o comportamento do inadimplente como equiparável à impossibilidade de cumprir”. A perda do interesse reveste a natureza de facto constitutivo do direito que o credor se arroga de proceder, com esse fundamento, à liquidação da relação contratual – artº 342º, nº1, do CC (cfr. acórdãos do STJ de 11/2/14, Procº 6723/09.1TVLSB.L1.S1; de 15/3/12, Procº 9818/09.8TBLVNG.P1.S1; e de 12/6/03, Procº 03B1843, disponíveis em www.dgsi.pt). Assim, conclui-se que, não resultando dos factos apurados que a 1ª ré tenha incumprido definitivamente o contrato de compra e venda celebrado com a autora, nem que esta tenha perdido, objectivamente, o interesse na manutenção do negócio, não lhe assiste o direito de o resolver. Improcedem, consequentemente, ou mostram-se deslocadas todas as conclusões do recurso.
3. Decisão Com os fundamentos expostos, acorda-se em negar a revista. Custas pela recorrente.
Lisboa, 04 de outubro de 2016 Nuno Cameira - Relator Salreta Pereira João Camilo
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