Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2679/13.4TBVCD.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: COMPRA E VENDA
VEÍCULO AUTOMÓVEL
DEFEITOS
CONSUMIDOR
DENÚNCIA
CADUCIDADE
GARANTIA DE BOM FUNCIONAMENTO
PRODUTOR
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
PRESSUPOSTOS
PERDA DE INTERESSE DO CREDOR
RECONHECIMENTO DO DIREITO
DIREITOS DO CONSUMIDOR
DUPLA CONFORME
ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
DOCUMENTO PARTICULAR
INTERPRETAÇÃO DE DOCUMENTO
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 10/04/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / TEMPO E SUA REPERCUSSÃO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS / CADUCIDADE / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / COMPRA E VENDA / VENDA DE COISAS DEFEITUOSAS.
DIREITO DO CONSUMO - CONSUMIDOR.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / FUNDAMENTOS DA REVISTA / PODERES DE COGNIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
Doutrina:
- Ana Filipa Antunes, Prescrição e Caducidade, Coimbra Editora, 2008, 178.
- Calvão da Silva, Responsabilidade Civil do Produtor, Almedina, Coimbra, 1990, 209, nota 2.
- Meneses Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Tomo IV, 225.
- Pedro Romano Martinez, Cumprimento defeituoso em especial na compra e venda e na empreitada, Almedina, Coimbra, 1994, 440, 424 a 426; Direito das Obrigações, Parte Especial, Contratos, 2.ª edição, 143.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 4.º, 331.º, N.º2, 342.º, N.º1, 432.º, 801.º, N.º2, 802.º, 804.º, N.º2, 808.º, 913.º, 914.º, 916.º, 917.º, 921.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 671.º, N.º3, 674.º, N.º3, 682.º, N.ºS 1 E 2.
LEI DE DEFESA DO CONSUMIDOR (LDC), APROVADA PELA LEI N.º 24/96, DE 31-7: - ARTIGO 2.º, N.º1.
REGIME DE COMPRA E VENDA CELEBRADOS ENTRE PROFISSIONAIS E CONSUMIDORES, INSTITUÍDO PELO D.L. N.º 67/2003, DE 8-4: - ARTIGO 1.º-B.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 23/2/2010, PROCESSO N.º 1077/06.0TVLSB.L1.S1;
-DE 2/3/2010, PROCESSO N.º 323/05.2TBTBU.C1.S1.
-DE 11/2/2014, PROCESSO N.º 6723/09.1TVLSB.L1.S1; DE 15/3/2012, PROCESSO N.º 9818/09.8TBLVNG.P1.S1; E DE 12/6/03, PROCESSO N.º 03B1843, DISPONÍVEIS EM WWW.DGSI.PT .
-DE 07/5/2014, PROCESSO N.º 5335/05.3TVLSB.L1.S1.
Sumário :
I - Ocorrendo dupla conforme entre as decisões das instâncias que, de forma totalmente coincidente, concluíram que a autora, não tendo a qualidade de consumidora, não pode beneficiar, enquanto adquirente de coisa defeituosa, da protecção conferida pela LDC e pelo regime instituído pelo DL n.º 67/2003, de 08-04, está vedado o acesso ao STJ para reapreciar a referida solução convergente – art. 674.º, n.º 3, do CPC.

II - Mesmo que houvesse lugar a essa reapreciação, a decisão teria de ser confirmatória do julgamento das instâncias uma vez que, tendo a autora – uma sociedade comercial –, adquirido o veículo para o exercício das actividades a que se dedica, não pode a mesma ser considerada como consumidora na acepção dos arts. 2.º, n.º 1, da LDC, e 1.º-B do DL n.º 67/2003, de 08-04.

III - O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista, salvo nos casos excepcionais previstos no art. 674.º, n.º 3, do CPC; pelo que, incidindo o julgamento produzido pela Relação sobre o documento particular que corporiza a garantia do construtor, é o mesmo insusceptível de censura por parte do STJ, já que se trata de meio de prova livremente apreciável pelas instâncias.

IV - Resulta do disposto no art. 916.º, n.º 2, do CC que o comprador dispõe do prazo de trinta dias para, depois de conhecido o defeito, o denunciar; porém, esta denúncia tem de ser feita dentro do prazo de seis meses após a entrega da coisa, sob pena de caducidade do direito.

V - Tendo decorrido mais de seis meses entre a entrega do veículo (12-11-2012) e a denúncia do defeito (04-07-2013), deve ter-se por caducado o direito da autora à resolução do contrato – arts. 916.º, n.º 2, e 917.º, ambos do CC.

VI - O facto de o veículo estar abrangido pela garantia prestada pelo fabricante em nada influencia o referido prazo de caducidade, já que, para além de a garantia apenas se referir à reparação ou à substituição da coisa (e não à resolução do contrato), a vendedora é-lhe alheia e, como tal, não pode ser, nesse âmbito, responsabilizada.

VII - O reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido só impede a caducidade se tiver o mesmo efeito que teria a prática do acto a ela sujeito e se ocorrer antes de o direito em jogo ter caducado – art. 331.º, n.º 2, do CC.

VIII - A resolução do contrato de compra e venda pressupõe a demonstração, por parte de quem pretende exercer esse direito, de que a contraparte está em mora e que, por força desta, desapareceu o seu interesse na manutenção do contrato,  ou então que converteu a mora em incumprimento definitivo – arts. 342.º, n.º 1, e 808.º do CC.

IX - O mero decurso do tempo não é, por si só, revelador da perda do interesse no negócio, posto que esta tem de ser apreciada objectivamente, isto é, através de factos concretos que, razoavelmente, a revelem.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

                                                                      

I. Síntese dos termos essenciais da causa e do recurso

AA Ldª, propôs em 22/10/2013 uma acção declarativa contra BB, SA, e CC, SA, pedindo:

a) Que seja decretada a anulação do contrato de compra e venda do veículo identificado nos autos, celebrado entre a autora e a 1ª ré, e esta condenada a restituir-lhe 32.170,00 €, com juros legais de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento;

b) Que as rés sejam condenadas a pagar-lhe 1974,00 € a título de indemnização pela privação do uso e fruição do veículo, acrescidos do que se apurar em sede de liquidação de sentença; 212,44 € a título de despesas com a contratação de serviços de transportes durante a imobilização da viatura; e 1.500,00 € a título de danos não patrimoniais causados pela venda de veículo defeituoso e a não eliminação do defeito.

Alegou, em resumo,  que necessitando para o exercício das actividades incluídas no seu escopo social de uma viatura automóvel apta a garantir as deslocações de natureza comercial e as entregas e recolha de máquinas e acessórios, e ainda a prestação de assistência técnica aos equipamentos dos seus clientes, adquiriu à 1ª ré, em 12/11/2012, pelo preço de 32.170,00 €, o veículo automóvel que identifica na petição inicial, em estado novo, acordando uma garantia pelo período de 36 meses.

Porém, a viatura deixou de funcionar quando com ela circulava, tendo sido objecto de sucessivas intervenções e de imobilização, face à inoperacionalidade de que ficou a padecer e ao abandono a que foi votada.

Em 20/9/2013 dirigiu uma comunicação escrita às rés, interpelando-as para no prazo de 5 dias úteis contados da respectiva recepção lhe entregarem o veículo em perfeito estado de funcionamento, sob pena de perda de interesse na prestação.  

Mas porque os defeitos não foram eliminados, entende ter direito à resolução do contrato.

As rés contestaram, invocando a caducidade parcial dos direitos invocados, a culpa da autora pela não reparação do veículo e a ausência de danos, concluindo pela improcedência da ação.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, decidindo:

a) Julgar validamente resolvido o contrato celebrado entre a autora e a primeira ré, referente à compra e venda do veículo automóvel com a matrícula 00-XX-00;

b) Reconhecer à primeira ré o direito de reaver o veículo mencionado em a) e condená-la a restituir à autora 32.170,00 €, deduzidos da quantia correspondente à desvalorização sofrida por força da sua utilização entre 12.11.2012 e 4.7.2013, a liquidar ulteriormente nos termos dos artigos 358º e seguintes do CPC;

c) Condenar a primeira ré a pagar juros de mora vincendos sobre a quantia referida em b), a partir da sua liquidação, à taxa comercial em vigor a cada momento;

d) Condenar ambas as rés a pagar à autora 750,00 €, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos;

e) Condenar ambas as rés a pagar à autora 360,00 € a título de indemnização pela privação do uso do veículo automóvel em causa.
A 1ª ré apelou, de facto e de direito.
Por acórdão unânime de 23/2/16 a Relação do Porto julgou procedente o recurso e, revogando a sentença na parte em que condenou a apelante, absolveu-a de todos os pedidos, mantendo no mais o ali decidido.
Agora é a autora que, inconformada, pede revista, defendendo a reposição integral da sentença da 1ª instância com base em trinta e nove conclusões que se resumem – e reordenam - assim:
1ª - Perante os factos 1), 2), 6) a 8) e 23) a 32) não pode excluir-se a aplicação ao caso dos autos dos diplomas que regulam os direitos dos consumidores - Lei nº 24/96 de 31/7 e Dec- Lei nº 67/2003 de 08/4 - no que se refere à extensão à recorrente do conceito de consumidor e ao consequente alargamento dos prazos de garantia, de denúncia dos defeitos e de resolução do contrato de compra e venda previstos nos artºs 4º, 5º e 5º-A, todos do DL 67/2003;
2ª - No caso dos autos, de acordo com a boa doutrina e jurisprudência, designadamente a fixada no acórdão da Relação do Porto de 11.9.08 (Procº nº 4643/2008), a questão de saber se a recorrente deve ser considerada “consumidor” e se o concreto uso que deu ao veículo preenche uma finalidade não profissional devia ter sido julgada segundo a equidade, o que levaria a concluir ser merecedora da protecção conferida aos consumidores, equiparando-se-lhes, atento o conceito acolhido na Lei 24/96 de 31/7;
3ª - O acórdão recorrido enferma de erro nos seus pressupostos de facto ao excluir a vinculação da 1ª ré do âmbito da garantia de bom funcionamento do veículo prestada à recorrente e referida no facto provado nº 4;
4ª - O acórdão recorrido julgou erradamente ao concluir pela caducidade do exercício do direito de anulação ou resolução do contrato em virtude da denúncia do vício ou falta de qualidade ter sido feita depois dos seis meses subsequentes à sua entrega pela 1ª ré;
5ª -  O acórdão recorrido errou ao não interpretar extensivamente o artigo 917º do CC, de molde a abranger todas as acções baseadas no cumprimento defeituoso, tal como defendem a doutrina e jurisprudência citadas na sentença e, designadamente, o acórdão da Relação do Porto de 28/6/11 (Procº 821/10-6TBPFR-AP.1), no qual se afirma que “ caduca a acção se o comprador não denunciar os defeitos até trinta dias depois de os conhecer e dentro de seis meses após a entrega da coisa ou decorridos que sejam seis meses após a denúncia”;
6ª -  O acórdão recorrido interpretou e aplicou erradamente o artº 921º, nº 4, do CC ao desconsiderar que tendo sido contratualizada a garantia por 36 meses contados da entrega da viatura (13.11.12), o prazo de caducidade para a acção ainda não se esgotara à data em que a recorrente teve conhecimento do defeito e o denunciou (4.7.13);
7ª - O acórdão recorrido errou ao não efectuar a compatibilização dos factos 7) 16) e 17), dos quais resulta que a recorrida e a 2ª ré reconheceram o direito da recorrente à reparação do veículo, impeditivo da caducidade nos termos do artº 331º, nº 2, do CC;
8ª - Ao não reconhecer à autora, perante os factos 3), 9), 10), 11), 14) e 15), o direito à resolução do contrato, o acórdão recorrido violou os artºs 432º, 801º, nº 2, 802º, nº 2, e 808º do CC;
9ª - Aplicou erradamente os artºs 342º do CC e 607º, nº 4, do CPC ao  afirmar que recaía sobre a autora o ónus de demonstrar que a 2ª ré recusou a reparação do veículo e ao desconsiderar ter resultado provado que esta não reparou a viatura nem a entregou à recorrente em perfeito estado de funcionamento;
10ª - E desprezou a prova fixada nos autos, designadamente os factos 3) a 15), que consubstanciam a transformação da mora em incumprimento definitivo através da interpelação admonitória efectuada e como consequência da perda do interesse da autora, apreciada objectivamente.
A recorrida contra alegou, defendendo a confirmação do julgado pela Relação.

II. Fundamentação
a) Matéria de Facto
1) A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à importação e exportação de máquinas industriais, representações e serviços de assistência técnica.
2) Para o exercício da atividade referida em 1, a Autora necessita de uma viatura automóvel apta a garantir as deslocações de natureza comercial e, bem assim, a entrega e recolha de máquinas e acessórios e ainda a prestação de assistência técnica aos equipamentos dos seus clientes.
3) Para tais utilidades, a Autora adquiriu à primeira Ré, no dia 12.11.2012, pelo preço de 32.170,00 €, um veículo automóvel, ligeiro, de passageiros, da marca ..., modelo ..., com a matrícula 00-XX-00, em estado de novo.
4) O veículo adquirido pela Autora, referido em 3), encontra-se abrangido pela garantia do construtor, enformada pelo documento n.º 10 junto com a petição inicial.
5) A garantia referida em 4) é válida para o período de 36 meses, contados desde 13/11/2012, ou até aos 150.000 km percorridos pela viatura, acrescendo que durante os primeiros 24 meses tal limite de quilometragem não é aplicável.
6) No dia 4/7/2013 circulava a viatura referida em 3) ao serviço da Autora, em via pública do concelho de ..., quando o respetivo motor deixou de funcionar e a mesma se imobilizou.
7) A Autora contactou de imediato o serviço de assistência em viagem da 2ª Ré, a qual determinou, ainda nesse dia, o reboque da viatura para o concessionário da rede “...” mais próximo, em concreto, a oficina da “DD”, para ali ser reparada ao abrigo da garantia contratual do fabricante.
8) Desde então, a referida viatura foi objecto de múltiplas intervenções pelo aludido concessionário da segunda Ré, com vista à sua reparação.
9) Em 22/7/2013 a Autora endereçou a CC um e-mail com o teor do documento n.º 3 junto com a petição inicial.
10) Em 2/8/2013, a Autora enviou um e-mail com o teor do documento n.º 4 junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, através do e-mail , disponível no website internacional da marca, com conhecimento a …, ….
11) No mail referido em 10, a Autora denunciou o seu desagrado com o facto da viatura ainda não estar reparada e solicitou a substituição desta por outra igual ou a devolução do preço pago.
12) A primeira Ré solicitou à Autora a restituição do veículo de substituição que lhe havia facultado.
13) Na sequência do referido em 12, a Autora devolveu o veículo de substituição em 9/9/2013, não lhe tendo sido entregue nenhum outro.
14) Em 20/9/2013 a Autora enviou a cada uma das Rés uma carta com o teor do documento nº 8 junto com a petição inicial, interpelando-as para no prazo de cinco dias úteis contados da respetiva recepção lhe entregarem a viatura referida em 3) em perfeito estado de funcionamento, “sob pena de perda de interesse, com todas as legais consequências”.
15) Transcorrido o prazo referido em 14) a viatura referida em 3) não foi restituída à Autora, em perfeito estado de funcionamento.
16) Por carta datada de 2/10/2013, a primeira Ré remeteu à Autora uma carta com o teor do documento n.º 9 junto com a petição inicial.
17) Na carta referida em 16) a primeira Ré referiu, além do mais, que “…contactamos a CC, a qual nos informou que a viatura necessitará de uma intervenção de fundo confirmando a inteira disponibilidade para a imediata reparação da mesma, bastando que, para tal, dê o seu assentimento. Naturalmente que, encontrando-se a viatura ainda em período de garantia essa reparação não importará qualquer custo para V. Exas…”.
18) Entre 8/7/2013 e 26/9/2013 a Autora contratou serviços de transporte e entregas com a EE, Ldª, para acorrer a necessidades da sua atividade comercial, tendo pago a quantia global de 212,44 €, conforme discriminado nos documentos 12) a 14) juntos com a petição inicial.
19) Entre 6/11/2013 e 30/12/2014 a Autora contratou serviços de transporte e entregas com a EE, Ldª, para acorrer a necessidades da sua atividade comercial, tendo pago a quantia global de 1.033,92 €, conforme discriminado nos documentos 1) a 13) juntos de fls. 137 a 149.
20) A situação descrita de 6) a 19) causa transtornos e perturbação na gestão da atividade da Autora.
21) A segunda Ré enviou à Autora uma carta datada de 14/10/2013, com o teor do documento n.º 1 junto com a contestação.
22) A Autora não respondeu às cartas referidas em 16) e em 21).
23) A avaria que se detetou no veículo referido em 3) nos termos mencionados em 6), foi difícil de encontrar e descobrir.
24) Em toda a rede da ... não havia registo de qualquer avaria semelhante.
25) Tendo-se apurado que a avaria se devia a um problema de conectividade da cablagem, percebeu-se que a mesma se resolvia com a sua substituição.
26) Na sequência do referido em 25) a segunda Ré ordenou, em 6 de agosto de 2013, a completa substituição da cablagem.
27) Para chegar à conclusão referida em 25) foi necessário ao reparador pedir ajuda e assistência aos serviços centrais da CC em Portugal e em França.
28) Só com a ajuda e assistência referida em 27) foi possível chegar à conclusão referida em 25).
29) Antes de se chegar à conclusão referida em 25) procedeu-se à substituição de outras peças, na tentativa de encontrar a causa da avaria e a sua solução.
30) Para o efeito houve necessidade de encomendar a França a Centralina, dado tratar-se de uma peça não existente em stock por não ser de avaria frequente, demandando a sua chegada alguns dias.
31) Substituída a Centralina, verificou-se a necessidade de substituição da caixa de borboleta e da válvula EGR.
32) O que foi efetuado.
33) A Autora não reclamou do veículo de substituição referido em 12).

b) Matéria de Direito
1) A questão colocada nas conclusões 1ª e 2ª recebeu uma resposta totalmente coincidente na 1ª e na 2ª instância: com fundamentação idêntica, decidiu-se que a autora não beneficia, enquanto adquirente de coisa defeituosa, da proteção conferida pela Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei 24/96, de 31/7 (LDC), bem como do regime de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores, instituído pelo DL 67/2003, de 8/4.
Por consequência, havendo dupla conforme, nos termos definidos pelo artº 671º, nº 3, do CPC, a respeito da questão em apreço, o acesso ao STJ para reapreciar a solução convergente das instâncias a seu respeito encontra-se vedado.
De qualquer modo, caso houvesse lugar à reapreciação da questão, a decisão teria de ser confirmatória do julgamento das instâncias.
Efectivamente, segundo o art.º 2º, nº1, da LDC, “ Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com caráter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios.”. E de acordo com o disposto no artº 1º-B, do DL 67/2003, de 8/4, considera-se consumidor, para efeitos de aplicação deste diploma legal, “aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do nº 1 do artigo 2º da Lei 24/96, de 31 de Julho”.
Ora, provado que a autora é uma sociedade comercial que se dedica à importação e exportação de máquinas industriais, reparações e serviços de assistência técnica, e que adquiriu o veículo ajuizado para o exercício destas actividades – factos 1), 2) e 3) – torna-se evidente que não pode ser considerada um consumidor, na acepção dos mencionados diplomas legais, porquanto não adquiriu a viatura para uso não profissional.
E o recurso à equidade que a recorrente defende para resolver esta questão é deslocado porque, justamente, a lei o impede fora dos três casos elencados no artº 4º do CC, que, patentemente, não ocorrem na hipótese dos autos. De facto, não existe disposição legal que o permita; não houve acordo das partes nesse sentido; e também não existiu prévia convenção, nos termos aplicáveis à cláusula compromissória, para decidir segundo a equidade.
2) A recorrente sustenta que o acórdão recorrido errou ao não considerar como provado que a 1ª ré se vinculou, tal como a 2ª e nos mesmos termos que esta, à garantia do construtor (documento nº 10 junto com a petição inicial).

Acontece, todavia, que o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (artº 674º, nº 3, do CPC). Não se verificando nenhuma destas hipóteses, o STJ tem de acatar a decisão de facto recorrida, visto que somente lhe compete, enquanto tribunal de revista, aplicar aos factos materiais fixados pela Relação o regime jurídico que julgue adequado (artº 682º, nºs 1 e 2, do CPC). Ora, no caso dos autos é patente que não ocorre nenhuma das situações, acima referidas, em que o STJ pode intervir, ainda que indirectamente, no estabelecimento dos factos. Com efeito, ao decidir que o documento (particular) que corporiza a garantia do construtor vincula somente a 2ª ré, e não também a 1ª ré, a Relação, sem deixar de estar situada no âmbito exclusivo da matéria de facto, onde julga em última instância, não desrespeitou nenhuma norma imperativa de direito probatório material; para além disso, não sofre dúvida que “a apreciação do teor de um documento, que constitua escrito particular sem força vinculativa, e, portanto, livremente apreciável pelo tribunal, escapa ao âmbito de apreciação de uma revista” (Ac. STJ de 23/2/10 - Revª 1077/06.0TVLSB.L1.S1); e é certo, ainda, que  “ a interpretação dos documentos, enquanto determinação da vontade real do declarante, considera-se matéria de facto e deve ser feita tendo em conta a apreciação da globalidade da prova produzida através do recurso a critérios de decisão não normativos, que estão excluídos dos poderes cognitivos do STJ” (Ac. STJ de 07/5/2014 – Revª 5335/05.3TVLSB.L1.S1). Deste modo, ao não dar como assente, perante o documento nº 10 junto com a petição inicial, que a recorrida se vinculou contratualmente à garantia do fabricante, a Relação produziu um julgamento que, não podendo ser incluído no objecto da revista, por idêntica razão é insusceptível de censura por parte do STJ.

3) É improcedente, de igual modo, a censura que a recorrente dirige ao acórdão recorrido a respeito da interpretação e aplicação dos artºs 917º e 921º do CC.

O primeiro dos preceitos citados dispõe que “a acção de anulação por simples erro caduca, findo qualquer dos prazos fixados no artigo anterior sem o comprador ter feito a denúncia, ou decorridos sobre esta seis meses, sem prejuízo, neste último caso, do disposto no nº 2 do artº 287º”.

O artigo anterior é o 916º, que no nº 1 diz que “o comprador deve denunciar ao vendedor o vício ou a falta de qualidade da coisa, excepto se este houver usado de dolo”, e no nº 2 estabelece que “a denúncia será feita até trinta dias depois de conhecido o defeito e dentro de seis meses após a entrega da coisa”.

No caso dos autos, nenhuma dúvida se levanta ou levantou acerca do momento a partir do qual se deve contar o prazo de seis meses após a entrega, certo que o contacto material da autora com o veículo – e, portanto, a possibilidade de descobrir o vício (defeito) – coincidiu com a data da compra e venda ajuizada (12/11/12); nada a recorrente alegou ou provou em contrário disto. Por outro lado, também não há qualquer dúvida que o vício surgiu no dia 4/7/13, e nesse mesmo dia foi conhecido da autora e denunciado à 2ª ré (factos 6 e  7).

Nestas circunstâncias, sendo evidente que decorreram mais de seis meses entre a entrega do veículo e a denúncia do defeito, não resta senão concluir que o prazo para a recorrente interpor a presente acção foi ultrapassado (esgotou-se em 12/5/13), determinando, assim, a caducidade do direito da autora à resolução do contrato.

Da conjugação dos dois mencionados preceitos resulta claramente, como ensina Pedro Romano Martinez (Direito das Obrigações, Parte Especial, Contratos, 2ª edição, pág. 143), que “a denúncia tem de ser feita nos seis meses posteriores à entrega da coisa (artº 916º, nº 2 CC). Assim, o comprador tem seis meses a contar da entrega para descobrir o defeito; depois de descoberto o defeito, o adquirente tem trinta dias para o comunicar ao vendedor. Se o defeito for detectado ao fim de sete meses após a entrega já nada poderá ser feito, mas se for descoberto cinco meses e meio depois da entrega, ao comprador cabe fazer a denúncia nos restantes quinze dias.”

Afigura-se deslocado, salvo o devido respeito, o apelo que a autora faz para uma interpretação extensiva do artº 917º, bem como a chamada à colação do acórdão da Relação do Porto de 28/6/11 (disponível em www.dgsi.pt).

Com efeito, a interpretação extensiva justifica-se quando o intérprete, chegando à conclusão de que o legislador disse menos do que aquilo que pretendia, se vê na necessidade, por causa disso, de estender o texto da lei, assim fazendo corresponder a letra da norma ao seu espírito. Ora, não é este o caso, pois o sentido que se retira do texto da lei quanto ao ponto em questão, nos termos que acima se evidenciaram, corresponde com exactidão ao pensamento legislativo. Aliás, bem vistas as coisas, no caso dos autos a interpretação extensiva preconizada é totalmente irrelevante - no sentido de que não pode ter reflexo prático na correcta solução do litígio - visto que, como observa a recorrida, a denúncia dentro dos seis meses após a compra e venda teria sempre de verificar-se, seria sempre de exigir, e, como se viu, não foi isso o que na realidade aconteceu. Por outro lado, no que toca ao aresto em causa, a situação de facto nele versada é muito diversa da tratada no presente processo e, por isso, a doutrina que adoptou não pode sem mais ser transposta para este caso. Na verdade, naquele acórdão estava em causa a elevada resistência ao desgaste de um produto para revestimento de chão adequado a um uso intensivo por parte de utentes de uma unidade de saúde privada; por tal motivo, considerou-se que o prazo para o exercício da denúncia só poderia iniciar-se no momento em que pudesse ter lugar a verificação da resistência desse material. Seguiu-se, ao cabo e ao resto, a posição de Pedro Romano Martinez (Cumprimento defeituoso em especial na compra e venda e na empreitada, Almedina, Coimbra, 1994, p. 424 a 426). Segundo este autor, apesar da regra ser a de que o prazo limite de garantia tem o seu início com a entrega da coisa (artigo 916º, nº 2, do CC), existem situações em que isso pode suceder num momento posterior à entrega; trata-se, porém, de excepções que, embora não referidas explicitamente na lei, “têm de ser admitidas pela natureza dos circunstancialismos que as rodeiam. Assim, se, por exemplo, a máquina tiver de ser montada, o prazo só começa a correr quando ela estiver em condições de funcionar; da mesma forma, tendo sido assegurada uma determinada qualidade, cuja existência só se pode verificar em momento futuro (p. ex, que o automóvel gastará seis litros de gasolina por cada cem quilómetros percorridos, depois de feita a rodagem), o prazo só poderá ter início nessa altura.

Em idêntico sentido, Calvão da Silva (Responsabilidade Civil do Produtor, Almedina, Coimbra, 1990, p. 209, nota 2) sublinha que “...no caso de aparelhos, máquinas e produtos similares que pela sua complexidade requeiram instalação ou montagem a fazer pelo vendedor, deve entender-se que a entrega só ocorre verdadeiramente quando os mesmos ficam aptos a funcionar, pois apenas nesse momento começa realmente a durée d¢ epreuve em que se consubstancia o prazo de garantia”.

Não existindo, portanto, similitude relevante entre os dois casos, nenhuma razão se verifica para que o prazo de caducidade aqui em causa se conte apenas a partir do momento em que o vício surgiu e foi conhecido, e não antes. Deve, em suma, aplicar-se a regra – artº 916º, nº 2, do CC – que é clara e não dá lugar a dúvidas: o comprador dispõe do prazo de trinta dias depois de conhecido o defeito para o denunciar, mas esta denúncia tem de ser feita dentro do prazo de seis meses após a entrega da coisa, sob pena de caducidade do direito.

No que se refere ao artº 921º, não merece o mínimo reparo aquilo que a tal respeito se escreve no acórdão recorrido, a saber:
“.... o veículo adquirido pela Autora encontra-se abrangido pela garantia do construtor, enformada pelo documento nº 10 junto com a petição inicial, válida para o período de 36 meses, contados desde 13.11.2012, ou até aos 150.000 km percorridos pela viatura, acrescendo que durante os primeiros 24 meses tal limite de quilometragem não é aplicável.
Reza o art.º 921.º do C. Civil:
1. Se o vendedor estiver obrigado, por convenção das partes ou por força dos usos, a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, cabe-lhe repará-la, ou substituí-la quando a substituição for necessária e a coisa tiver natureza fungível, independentemente de culpa sua ou de erro do comprador”.
2. No silêncio do contrato, o prazo da garantia expira seis meses após a entrega da coisa, se os usos não estabelecerem prazo maior.
3. O defeito de funcionamento deve ser denunciado ao vendedor dentro do prazo da garantia e, salvo estipulação em contrário, até trinta dias depois de conhecido.
4. A ação caduca logo que finde o tempo para a denúncia sem o comprador a ter feito, ou passados seis meses sobre a data em que a denúncia foi efetuada”.
A respeito do funcionamento da garantia cita-se o que se escreveu no Acórdão do STJ de 6 de Setembro de 2011, proferido no processo 4757/05.4TVLSB.L1.S1 (ALVES VELHO):
«Mediante a concessão da “garantia” o vendedor assegura, pelo período da sua duração, o bom funcionamento da coisa, assumindo a responsabilidade pela sanação das avarias, anomalias ou quaisquer deficiências de funcionamento verificadas em circunstâncias de normal utilização do bem.
Como, nestes casos, o vendedor assume a “garantia de um resultado” bastará ao comprador provar o mau funcionamento durante o período de duração da mesma, sem necessidade de identificar a respetiva causa ou demonstrar a respetiva existência no momento da entrega, cabendo ao vendedor que pretenda subtrair-se à responsabilidade (obrigação de reparação, troca, indemnização) opor-lhe e provar que a concreta causa de mau funcionamento é posterior à entrega da coisa (afastando a presunção de existência do defeito ao tempo da entrega que justifica e caracteriza a garantia de bom estado e funcionamento) e imputável a ato do comprador, de terceiro ou devida a caso fortuito (cf. CALVÃO DA SILVA, “Compra e Venda de Coisas Defeituosas”, 4ª ed., 65; Ac. STJ, de 03/4/2003 – proc. 03B809)»[1].
Todavia, esta garantia pese embora esteja diretamente relacionada com o contrato de compra e venda, a verdade é que a Recorrente não teve qualquer intervenção na concessão da garantia, resultando a sua vinculação exclusivamente ao contrato de compra e venda e não da garantia citada.
Citando Luis Manuel Teles de Menezes de Leitão, “Direito das Obrigações”, Vol. III, Contratos em Especial, pág. 1307131, dado que a garantiase refere apenas ao vendedor, o art.º 921.º não abrange os casos em que a garantia é prestada pelo fabricante, situação que é qualificada por alguns autores como promessa ao público, e por outros como contrato unilateral de garantia, mas que, em qualquer caso institui uma relação direta entre produtor e consumidor, à qual o vendedor permanece estranho e que não exclui nem limita as garantias por ele prestadas” ( nosso sublinhado).
A garantia de bom funcionamento refere-se apenas à reparação ou substituição da coisa, independentemente de culpa do vendedor ou do produtor, mas não à anulação do contrato ou redução do preço, nem indemnização (ibidem).
No caso concreto, a recorrente/vendedora é alheia à garantia de funcionamento prestada pela marca “...”, na qualidade de produtor do veículo automóvel.
Por isso, apenas a 2.ª Ré poderá ser responsabilizada no âmbito da garantia de funcionamento prestada.
Responsabilidade  atinente  à  reparação, ou substituição caso se mostre necessária, já não a resolução do contrato”.
4) É inatendível, de igual modo, a questão posta na conclusão 7ª do recurso.
Nos termos do artº 331º, nº 1, do CC, “só impede a caducidade a prática, dentro do prazo legal ou convencional, do acto a que a lei ou a convenção atribua efeito resolutivo”. E consoante o nº 2 deste mesmo preceito, “quando...se trate de prazo fixado por contrato ou disposição legal relativa a direito disponível, impede também a caducidade o reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido”.
Ora, no caso dos autos é manifesto que a 1ª ré nunca reconheceu o direito accionado pela autora no âmbito da garantia legal dado que esta, como vimos, cessou em 12/5/13 e a denúncia só teve lugar em  4/7/13; reconhecimento houve, sim, mas no âmbito da garantia do fabricante ou construtor (a 2ª ré), e somente por parte desta – factos 4 ), 7) e 17); a autora, todavia, não a demandou neste processo com base na responsabilidade  assumida por tal via, tendo dirigido o pedido de anulação do contrato exclusivamente contra a 1ª ré.
De todo o modo,  uma vez que o reconhecimento a que o artº 331º, nº 2, do CC alude só impede a caducidade se tiver o mesmo efeito que teria a prática do acto a ela sujeito e se ocorrer antes de esgotado o respectivo prazo, isto é, antes de o próprio direito em jogo ter caducado (neste preciso sentido, Ana Filipa Antunes – Prescrição e Caducidade, pág. 178, Coimbra Editora, 2008, e Meneses Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Tomo IV, pág. 225), nunca esta causa impeditiva poderia no caso dos autos operar eficazmente: na verdade, conforme se disse, à data da denúncia (4/7/13) já o exercício dos direitos legalmente conferidos ao comprador lesado nos termos estabelecidos nos artºs 913º e sgs do CC estava extinto pelo decurso do prazo de caducidade (que se completou em 12/5/13).

5) Quanto à questão posta nas conclusões 8ª, 9ª e 10ª decidiu-se no acórdão recorrido que não tendo sido invocado qualquer fundamento que possa justificar em termos objectivos, e não apenas subjectivos, a perda de interesse no veículo automóvel em causa no processo, e não se encontrando as rés em mora, já que sempre manifestaram vontade de o reparar, a acção teria em qualquer caso de improceder por faltarem os pressupostos de resolução do contrato.

O julgamento da Relação foi acertado, não merecendo nenhuma censura ou reserva.

A resolução tem sempre por fundamento a violação do contrato, distinguindo a lei, no que toca às consequências jurídicas do incumprimento, entre a falta de cumprimento, a mora e o cumprimento defeituoso.

Estando em causa uma compra e venda defeituosa aplicam-se, tanto no que respeita aos pressupostos da resolução, como aos seus efeitos, as regras gerais contidas nos artºs 432º, 801º, nº2, 802º e 808º do CC, complementadas pelas disposições especiais previstas para o contrato de compra e venda.

No que aqui interessa, o artigo 808º, nº 1 dispõe que “se o credor, em consequência da mora, perder o interesse na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação”; e o nº 2 do mesmo preceito esclarece que “a perda do interesse na prestação é apreciada objectivamente”.

Isto significa que o credor não tem, em princípio, o direito de resolver o negócio em consequência da mora do devedor, mas tão só o de exigir o cumprimento da obrigação e a indemnização pelos danos sofridos, já que o direito potestativo de resolução só é concedido no caso de impossibilidade culposa (artº 801º, nº 2). Pode, porém, suceder que em consequência da mora o credor perca logo o interesse na prestação, perda essa que, no entanto, terá de ser apreciada objectivamente, como diz a lei, isto é, terá de transparecer duma apreciação objectiva da situação, não bastando uma perda subjectiva desse interesse. Por outro lado, e independentemente da perda do interesse do credor, no preceito transcrito consagra-se a figura da interpelação admonitória, que se destina a converter a mora em incumprimento definitivo, evitando-se assim que o credor fique por tempo indeterminado numa situação de impasse.

As disposições especiais da compra e venda apontam também no sentido acabado de expor, já que neste contrato a resolução funciona subsidiariamente, isto é, só se pode pôr termo a ele quando não for viável recorrer à eliminação do defeito ou à substituição da prestação (artºs 913º e 914º do CC).

Conforme ensina Pedro Romano Martinez (obra e loc. cit, pág. 440) “enquanto o cumprimento da prestação acordada for possível, mediante a eliminação do defeito ou através da sua substituição, não pode estar aberto o caminho para a resolução do contrato (…). No sistema jurídico português há uma espécie de sequência lógica: em primeiro lugar, o devedor está adstrito a eliminar os defeitos ou a substituir a prestação; frustrando-se estas pretensões, pode ser exigida a redução do preço ou a resolução do contrato. A regra que impõe este seguimento está patente no art.º 1222, n.º 1, em relação ao contrato de empreitada, mas apesar de não haver norma expressa neste sentido no domínio da compra e venda, ela depreende-se dos princípios gerais (art.ºs 562º, 566º, n.º 1, 801º, n.º 2 e 808º, n.º 1), para além de ser defensável a aplicação analógica do n.º 1 do art.º 1222º, no que se refere à imposição desta sequência, às hipóteses de compra e venda.

Assim, em ordem a obter a pretendida resolução impunha-se que a recorrente tivesse provado que as rés estavam em mora e que, por força desta, desaparecera o seu interesse na manutenção do contrato, ou então que a convertera incumprimento definitivo, nos termos que se assinalaram (artº 342º, n.º 1, do CC).

Os factos provados, no entanto, não autorizam semelhante conclusão.

Repare-se:

Ficou assente que o veículo em causa nos autos avariou em 4/7/13 porque o motor deixou de trabalhar e que em 2/10/13 ainda não estava reparado; no entanto, ficou igualmente provado que a avaria foi difícil de encontrar e descobrir, que não havia registo, em toda a rede da CC, de qualquer avaria semelhante, e que para se chegar à conclusão de que a mesma se devera a um problema de conectividade da cablagem a resolver com a sua substituição foi necessário pedir ajuda e assistência aos serviços centrais da marca em Portugal e França (factos 23 a 25, 27 e 28). Provou-se ainda que durante o período em que o veículo permaneceu na oficina do concessionário da CC com vista à sua reparação se procedeu à substituição de várias peças, sendo que uma delas teve de ser encomendada de França, demorando alguns dias a chegar, e que a recorrente foi sendo informada das dificuldades surgidas (factos 29 e 30).

Não resulta, porém, da matéria de facto que durante o período em que o veículo permaneceu na oficina e foi alvo de reparações a recorrente tenha fixado qualquer prazo às rés para tal efeito. Na verdade, o que se extrai da comunicação de 2/8/13 (factos 10 e 11) é que a autora se limitou a manifestar desagrado pelo facto da viatura não estar ainda reparada, tendo solicitado a sua substituição ou a devolução do preço, mas sem estabelecer qualquer prazo para isso.

Assim sendo, não resultando dos restantes factos apurados que as rés estivessem obrigadas ao cumprimento de qualquer prazo para eliminar os defeitos que a 2ª ré se disponibilizou a corrigir ao abrigo da garantia do construtor, e não se retirando igualmente desses factos a fixação de prazo nos termos a que aludimos, tem de concluir-se que em 20/9/13, quando a autora dirigiu às rés a comunicação referida no ponto 14) da matéria de facto, nenhuma delas estava em mora, já que a obrigação em causa não tinha prazo certo (artº 804º, n.º 2, do CC).

Vistas as coisas por outro prisma, e ainda que se considere que a declaração antecipada do devedor de não querer cumprir equivale a incumprimento, legitimando a resolução imediata do contrato, certo é que no caso presente tal recusa não se provou. Bem pelo contrário, o que transparece da matéria de facto é que em 2/10/13 - cerca de 6 dias úteis após a recepção da carta da recorrente de 20/9/13 - a 2ª ré se ofereceu para efectuar, sem custos para a recorrente, a reparação do veículo (factos 16 e 17).

Ou seja, para além de não poder afirmar-se que as rés estivessem em mora, também não é possível concluir que tenha havido da sua parte recusa no cumprimento da obrigação a que a 2ª ré estava adstrita ou, mesmo, a adopção de qualquer outro comportamento concludente nesse sentido. E sendo a mora, como já se referiu, um pressuposto necessário da perda do interesse na prestação, segue-se que também esta não se verifica no caso sub judice.

É certo que a recorrente sustenta, a este respeito, que a perda do interesse decorre do teor da comunicação de 20/9/2013 (facto 14), já que deixou aí dito que “atenta a delonga na reparação da avaria e o facto de se tratar de veículo afecto ao exercício da nossa actividade empresarial, não podemos eternizar a privação do seu uso e fruição”. Isto, porém, não é de modo nenhum decisivo; decisiva é, sim, a circunstância de não constar da matéria assente qualquer facto do qual se possa extrair que, face ao decurso do tempo, o veículo que a autora adquiriu deixou de revestir utilidade para o fim a que se destinava; provou-se apenas que a avaria surgida em 4/7/13 e a consequente indisponibilidade da viatura foi causa de transtornos e perturbação na gestão da actividade da autora (facto 20). Ora, desacompanhado de outras circunstâncias, o mero decurso do tempo não é por si só revelador da perda do interesse no negócio, a qual, como a lei manda e já atrás se observou, tem de ser apreciada objectivamente.

De resto, é neste sentido que o STJ tem sempre decidido, adoptando uniformemente o entendimento de que “a perda do interesse na prestação deve ser apreciada objectivamente, em termos concretos, não bastando que o credor se limite a alegá-la, (…), e deve ter na sua base “....uma razão objectivamente perceptível e compreensível para o cidadão comum. A perda do interesse na prestação por parte do credor não é aferida pelo que a esse propósito o último considera, mas pela apreciação objectiva dos factos que razoavelmente a revelem”, cabendo-lhe “alegar e provar os factos objectivos e concretos que substanciem a perda do interesse, susceptível de caracterizar o comportamento do inadimplente como equiparável à impossibilidade de cumprir”.

A perda do interesse reveste a natureza de facto constitutivo do direito que o credor se arroga de proceder, com esse fundamento, à liquidação da relação contratual – artº 342º, nº1, do CC (cfr. acórdãos do STJ de 11/2/14, Procº 6723/09.1TVLSB.L1.S1; de 15/3/12, Procº 9818/09.8TBLVNG.P1.S1; e de 12/6/03, Procº 03B1843, disponíveis em  www.dgsi.pt).

Assim, conclui-se que, não resultando dos factos apurados que a 1ª ré tenha incumprido definitivamente o contrato de compra e venda celebrado com a autora, nem que esta tenha perdido, objectivamente, o interesse na manutenção do negócio, não lhe assiste o direito de o resolver.

Improcedem, consequentemente, ou mostram-se deslocadas todas as conclusões do recurso.

3. Decisão

Com os fundamentos expostos, acorda-se em negar a revista.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 04 de outubro de 2016

Nuno Cameira - Relator

Salreta Pereira

João Camilo

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[1] No mesmo sentido, aliás pacífico, o Acórdão do mesmo Supremo Tribunal de 2 de Março de 2010 proferido no Procº 323/05.2TBTBU.C1.S1 (Urbano Dias).