Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4573/17.0T8BRG.G1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ROSA RIBEIRO COELHO
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
DEVER DE VIGILÂNCIA
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
REDUÇÃO
ULTRAPASSAGEM
VELOCÍPEDE
MENOR
PROGENITOR
MUDANÇA DE DIRECÇÃO
MUDANÇA DE DIREÇÃO
CAPACETE DE PROTECÇÃO
CAPACETE DE PROTEÇÃO
NEXO DE CAUSALIDADE
TEORIA DA CAUSALIDADE ADEQUADA
CULPA
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
VIOLAÇÃO DE LEI
PERIGO
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 04/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS / RESPONSABILIDADE PELO RISCO / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
DIREITO ESTRADAL – TRANSITO DE VEÍCULOS E ANIMAIS / DISTANCIA ENTRE VEÍCULOS / ALGUMAS MANOBRAS EM ESPECIAL / ULTRAPASSAGEM / REALIZAÇÃO DA MANOBRA.
Doutrina:
- Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10.ª ed., p. 763 e 764;
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 8.ª ed., p. 917;
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 8.ª ed., p. 935;
- Calvão da Silva, RLJ, Ano 137º, p. 35 e ss.;
- Maria da Graça Trigo, Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade civil por acidente de viação, 2015, Direito e Justiça, Estudos dedicados ao Prof. Doutor Bernardo da Gama Lobo Xavier, vol. II, p. 493 e ss.;
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, VIII, 2016, p. 550;
- Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 13.ª ed., p. 313;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª ed., p. 493, 488 e 588;
- Sinde Monteiro, Responsabilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações, Almedina, 1989, p. 239 e 240.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 491.º, 505.º, 570.º E 571.º.
CÓDIGO DA ESTRADA (CEST): - ARTIGOS 18.º, N.º 3 E 38.º, N.º 2, ALÍNEA E).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 21-02-1961, IN BMJ N.º 104, P. 417;
- DE 14-10-1982, IN BMJ N.º 320, P. 422;
- DE 06-01-1987, IN BMJ N.º 363, P. 488;
- DE 04-10-2007, PROCESSO N.º 07B1710, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 07-05-2012, PROCESSO N.º 1272/04.7TBGDM.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 05-06-2012, PROCESSO N.º 100/10.9YFLSB, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 01-06-2017, PROCESSO N.º 1112/15.1T8VCT.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I – A interpretação, feita pela Relação, dos factos provados não vincula o STJ, que pode fazer deles uma outra interpretação como pressuposto da sua valoração jurídica, sem que com isso esteja a julgar matéria de facto.

II – Tendo um veículo automóvel colidido com um ciclista quando o ultrapassava a menos de 1,50 metro de distância lateral, devido a um súbito desvio do ciclista, a questão de saber se há nexo de causalidade entre a ultrapassagem e as consequências do acidente tem a mesma resposta, quer se adira à doutrina da causalidade adequada, quer se adira à doutrina do escopo da norma violada.

III – O nº 3 do art. 18º e a al. e) do nº 2 do art. 38º co C. Estrada, ao imporem a distância lateral mínima de 1,50 metro, são normas de perigo abstrato, que alargam fortemente o âmbito da conduta ilícita, pois o lesante responde mesmo quando a verificação do dano não era para ele previsível.

IV – Para a formulação destas normas foi determinante a consciência de que a circulação de um velocípede é, por natureza, instável, dependendo do equilíbrio de quem o conduz, sucedendo ainda que este é facilmente afetado por circunstâncias várias, quer externas -, quer internas.

V – Tem sido, desde há muito, orientação constante deste Supremo Tribunal aquela segundo a qual a prova da inobservância de leis e regulamentos faz presumir a culpa na produção dos danos dela decorrentes, dispensando-se a prova em concreto da falta de diligência.

VI – Havendo nestas circunstâncias culpa do condutor do veículo automóvel, e tendo concorrido para o acidente uma súbita guinada do ciclista, menor de oito anos e ao qual não é imputada culpa, não há que perspetivar a aplicação do art, 505º do CC, mas apenas a do art. 570º do mesmo diploma.

VI - A utilização de capacete constitui uma eficaz prevenção de danos em acidentes com intervenção de ciclistas, e um progenitor que promova o seu uso pelo filho ainda criança concorre de modo relevante para a obtenção de dois importantes resultados: a proteção imediata da saúde e segurança da criança e a interiorização, por parte desta, de uma conduta cautelosa e prudente no futuro.

VI – Viola o seu dever de vigilância o progenitor que acompanha, a pouca distância, o filho menor de oito anos sem providenciar a utilização, por este, de capacete, apesar de tal não ser legalmente imposto.

VII – Não tem aplicação, neste caso, o disposto no art. 491º do CC, por tal normativo respeitar aos danos causados pelo menor a terceiros.

VII – A culpa do progenitor é de tomar em conta para a redução da responsabilidade do condutor do veículo automóvel, nos termos dos arts. 570º e 571º do CC, justificando-se uma redução desta responsabilidade a metade.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL




I - AA e sua mulher BB intentaram contra CC - Companhia de Seguros, S. A., a presente ação declarativa, pedindo a condenação desta a pagar-lhes a quantia de € 231.550,00, com juros de mora à taxa legal a partir da citação, para indemnização dos danos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos em virtude de um acidente de viação ocorrido entre um velocípede sem motor conduzido por um seu filho menor e um veículo ligeiro de passageiros seguro na Ré, causado culposamente pela sua condutora, sendo que, em consequência de tal embate, sofreu o referido menor várias lesões que lhe causaram a morte.


Contestou a ré pugnando pela sua absolvição do pedido, atribuindo o acidente a culpa do menor falecido e do autor, este último por violação do dever de vigilância imposto pelo art.º 491º do Código Civil.

Realizado o julgamento foi proferida sentença que, na procedência parcial da ação, condenou a ré a pagar aos autores as quantias de € 53.333,33 e € 516,66, ambas com juros legais até integral pagamento contados, quanto à primeira, desde a data da sentença e, quanto à segunda, desde 25.9.2017.


Apelaram a ré e os autores – aquela pedindo a sua absolvição do pedido e estes sustentando a culpa integral da condutora do veículo seguro ou, ao menos, a repartição de responsabilidades concorrentes nas proporções de 1/3 para o menor e de 2/3 para a referida condutora.


Foi proferido acórdão pela Relação de Guimarães que, julgando procedente a apelação da ré e improcedente a dos autores, revogou a sentença e absolveu a ré do pedido.


Persistindo inconformados os autores trouxeram recurso de revista a este STJ, tendo apresentado alegações onde formulam as conclusões que passamos a transcrever:

“1.a - A factualidade tida por provada, desde a Primeira instância, impõe a conclusão evidente de que a condutora do veículo seguro pela recorrida agiu com culpa e provocou o acidente.

2.a - As mais elementares regras de cuidado e precaução impunham que se abstivesse de ultrapassar o infeliz menor.

3.a - Por outro lado, tendo decidido proceder à ultrapassagem de uma criança de tenra idade, deveria ter tomado consciência do perigo e rodear-se de cuidados redobrados e especialmente acrescidos.

4.a - Deveria ter guardado uma distância lateral de segurança relativamente ao velocípede tripulado pelo menor pelo menos igual, mas aconselhavelmente superior à mínima prescrita por lei, por forma a minimizar o risco de acidente.

5.a - Porém, fez uma ultrapassagem tangencial.

6.a - A escrupulosa observância das normas estradais (arts. 18.º, n.ºs 2 e 3 e 38.º, n.ºs 1 e 2, al. e), do Código da Estrada), que a condutora do veículo seguro pela recorrida violou grosseiramente, tornava-se mais exigível visto que o “utilizador vulnerável”, que ela pôs em risco, era uma criança de tenra idade.

7.a - Impõe-se, portanto, concluir que essa conduta leviana da condutora do veículo seguro deu causa culposa ao acidente.

8.a - Culpa esta que será exclusiva, ou, quando assim não se entenda de grau manifestamente superior à responsabilidade eventualmente imputável ao menor.

9.a - O douto acórdão recorrido violou, entre outras normas, os arts. 18.º, n.ºs 1 e 2 e 38.°, n.°s 1 e 2, al. e) do Código da Estrada e os arts. 483.°, 486.°, 487.°, n.° 2, 503.°, 505.° e 570.°, estes do Código Civil.


A ré seguradora contra-alegou a sustentar a manutenção do decidido no acórdão impugnado, defendendo, em resenha nossa, que:

 - coube ao recorrente a responsabilidade exclusiva pela produção do acidente por omissão de cumprimento do seu dever de vigilância sobre o menor, seu filho;

- a entender-se que houve culpa da condutora do ...., sempre a culpa do recorrente e do menor deveria afastar ou, ao menos, diminuir a responsabilidade daquela;

- sempre, de qualquer modo, a culpa do recorrente teria de levar a que ao mesmo nenhuma indemnização fosse devida.


Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo questões sujeitas à nossa apreciação:

- a da qualificação da atuação da condutora do ...como culposa e causadora do acidente – conclusões 1ª a 7ª;

- a da qualificação dessa culpa como exclusiva, ou, ao menos, de grau manifestamente superior à responsabilidade imputável ao menor, a distribuir nas proporções de 2/3 para aquela e de 1/3 para este – conclusão 8ª.


II –     A matéria de facto julgada como provada na sentença e que subsistiu inalterada no acórdão impugnado é a seguinte:

1. O menor DD, nascido em .........., era filho dos AA. e faleceu no dia ....... no estado de solteiro e sem descendentes – cfr. certidão de nascimento junta a fls.12 e seg. –, sendo os Autores seus únicos e universais herdeiros.

2. O óbito do DD foi declarado pelas 19H16 do dia ........

3. No dia ....... de 2014, pelas 15h10, ocorreu um acidente de viação na Via ....... (VIM), na localidade de J...., na área desta comarca, no qual foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros de matrícula 000000, conduzido por EE, e um velocípede sem motor conduzido pelo menor DD.

4. A VIM desenha-se naquele local como uma extensa reta, dividida em duas metades, destinadas a sentidos de trânsito inversos, separadas entre si por duas linhas longitudinais contínuas paralelas, pintadas com tinta de cor branca, distanciadas 20 cm entre si, tendo cada uma dessas metades da faixa de rodagem a largura disponível para o trânsito automóvel de 3,90 metros.

5. O seu piso, que era de alcatrão, encontrava-se seco e em bom estado de conservação.

6. Era pleno dia e as condições de visibilidade eram excelentes, visto que nenhum obstáculo a impedia, prejudicava ou diminuía.

7. No local é habitualmente muito intenso o movimento de viaturas e de peões.

8. Nesses dia, hora e local, o menor DD conduzia o referido velocípede sem motor, pela VIM, no sentido .... – Vizela.

9. Alguns metros atrás do menor e no mesmo sentido, seguia o seu pai – aqui A. – que tripulava um outro velocípede sem motor.

10. Aproximavam-se do local em que, à esquerda, considerando o seu sentido de marcha, entronca um arruamento que dá acesso a Mogege, sendo que, nesse local, pretendiam ambos virar à sua esquerda, para prosseguir a sua marcha pelo mencionado arruamento.

11. Por isso, com antecedência superior a 50 metros do aludido entroncamento, acercaram-se do eixo da via.

12. Nessa ocasião, circulava pela VIM, também no sentido .... – Vizela, o veículo automóvel de matrícula 000000.

13. O.... acercou-se do local em que, à sua frente, transitavam ambos.

14. A condutora do 000000, em lugar de abrandar e prosseguir a sua marcha atrás dos velocípedes, decidiu ultrapassá-los pelo lado direito.

15. A condutora do .... dispunha de um espaço livre na faixa de rodagem de cerca de 3,40 metros, entre os velocípedes e a linha da berma direita, para proceder a essa manobra de ultrapassagem.

16. A condutora do ...... indicou às autoridades que tomaram conta da ocorrência que o embate ocorreu na metade direita da faixa de rodagem, considerando o sentido em que prosseguia o velocípede, a cerca de 0,50 metros do eixo da via.

17. Em consequência do descrito embate, o velocípede e o menor DD foram projetados para o lado esquerdo e para a faixa de rodagem contrária.

18. A responsabilidade civil emergente da circulação do veículo 000000 havia sido transferida para a CC – Companhia de Seguros, S.A., através do contrato de seguro, válido e em vigor na data em que ocorreu o acidente em apreço, titulado pela apólice n.º 000000.

19. O ... era pertença da sociedade “FF, Lda.

20. Logo que os avistou, a condutora do 000000 notou que um desses velocípedes era tripulado por uma criança.

21. Antes do local do embate, deparou-se à condutora do ... o sinal regulamentar de trânsito vertical C14a, indicativo de proibição de ultrapassagem.

22. A condutora do ...., ao realizar a ultrapassagem, guardou distância de cerca de 1,15 metro em relação aos velocípedes.

23. A condutora do .... seguia a uma velocidade não superior a 30 km/h.

24. Ambos os ciclistas circulavam sem capacete protetor na cabeça.

25. Os ciclistas circulavam um atrás do outro, junto ao eixo da via e das linhas, pintadas no pavimento, separadoras da hemifaixa de rodagem de sentido contrário.

26. No local, do lado direito, atento o sentido de marcha dos veículos, existia uma berma com 1,80 metros de largura.

27. O .... tinha a largura de 1,60 metros.

28. O .... passou primeiro pelo Autor.

29. Quando, depois de passar o Autor, se encontrava a par do menor DD, este, sem de alguma forma sinalizar a sua manobra e sem que nada o fizesse prever, guinou subitamente para o seu lado direito.

30. Depois de guinar para o seu lado direito, o DD percorreu, pelo menos 1,15 metro, atravessando-se, desse modo, na diagonal, à frente do .....

31. No qual foi embater, com o seu lado frontal direito e com o pedal do lado direito, na frente esquerda do .... e na lateral esquerda deste, sobre a roda desse lado.

32. O embate ocorreu na metade direita da faixa de rodagem, considerando o sentido em que prosseguia o velocípede, a cerca de 1,15 metro do eixo da via.

33. O menor DD caiu na hemifaixa de rodagem do lado esquerdo, atento o sentido de marcha dos veículos, e embateu com a cabeça no solo sofrendo as lesões crânio-encefálicas que vieram a determinar a sua morte.

34. Após o embate o .... parou a cerca de 3 metros do local do mesmo.

35. As sobreditas lesões crânio-encefálicas teriam sido evitadas se o menor levasse um capacete protetor na cabeça.

36. O menor DD, logo após o acidente, foi assistido, ainda no local, pelos bombeiros, que lhe prestaram os primeiros socorros e o transportaram ao Hospital de S. João, na cidade do Porto onde deu entrada na urgência e foi levado para o serviço de cuidados intensivos de pediatria, em situação clínica de politraumatizado grave, apresentando graves lesões por todo o corpo, com especial incidência ao nível craniano.

37. Apesar dos tratamentos que lhe foram ministrados, designadamente, craniectomia descompressiva, não resistiu aos ditos ferimentos.

38. As lesões sofridas no acidente foram a causa direta e necessária da morte do menor DD.

39. O DD era uma criança saudável e alegre, na qual tinham muito orgulho os seus pais.

40. O DD tinha toda uma vida pela frente.

41. Os AA. perderam o gosto pela vida, continuam amargurados e choram desesperadamente quando se fala no acidente que vitimou o seu filho.

42. O DD residia com os seus pais, com quem convivia diariamente e a quem dava especial carinho e atenção, proporcionando-lhes uma grande e indescritível alegria.

43. Os AA. sentiram de forma muito intensa a perda do seu filho, que permanece na sua memória.

44. Os AA. compensavam a dedicação do seu filho com muito carinho e afeto.

45. Por isso, sofreram e ainda sofrem profunda dor e desgosto com a perda de seu filho, que continuamente choram, mormente porque se tratou de uma morte totalmente inesperada e violenta.

46. Com o funeral do seu filho, os AA. despenderam a quantia de € 1.550,00 (mil, quinhentos e cinquenta euros).


III – Abordemos então as questões de que nos cabe conhecer.


Da atuação da condutora do ....:

A obrigação de indemnizar que os autores, aqui recorrentes, defendem impender sobre a ré seguradora advirá da sua qualidade de garante da responsabilidade por acidente de viação que venha a resultar da circulação do veículo automóvel com a matrícula 000000.

Tal responsabilidade pode constituir-se por um de dois títulos jurídicos: ou a culpa da condutora do 000000, conjugada com os demais pressupostos contidos no art. 483º do CC[1], ou a responsabilidade pelo risco emergente da circulação do mesmo veículo, conforme se estabelece no art. 503º.

A configuração do primeiro destes títulos pressupõe que se dê como verificada a existência de uma conduta violadora de direitos subjetivos ou de normas destinadas a proteger interesses alheios que tenha dado lugar a um dano a ela ligado por um nexo de causalidade legalmente relevante, conduta essa imputável com dolo ou com culpa à referida condutora.

Dissentiram as instâncias a este propósito, como se vê dos argumentos e raciocínio usados na sentença e no acórdão recorrido que passamos a resumir.

 Na sentença entendeu-se que:

 - por não existir relação de comissão entre a condutora e a proprietária do veículo não há presunção de culpa contra aquela;

- é ilícita a conduta do menor ciclista por, pretendendo efetuar uma manobra de mudança de direção à esquerda, ter guinado subitamente e sem qualquer razão aparente para a sua direita quando o .... já tinha iniciado a manobra de ultrapassagem;

- é, também, ilícita porque, nos termos do art. 90º, nº 3 do Código da Estrada, deveria rodar pela direita, só podendo aproximar-se do eixo da via mais próximo do entroncamento;

- do sinal vertical de trânsito C14a não resulta a ilicitude da manobra de ultrapassagem feita pelo ...., porque tal sinal apenas interdita a ultrapassagem de outros veículos que não sejam velocípedes, ciclomotores de duas rodas ou motociclos de duas rodas sem carro lateral;

- esta ultrapassagem podia ser feita pela direita porque a posição dos ciclistas indiciava o seu propósito de virar à esquerda;

- mas a condutora do .... não respeitou a distância lateral mínima a que estava obrigada pelo art. 38º do Código da Estrada, o que integra culpa;

- a atuação do menor não é de considerar culposa por a sua imprevidência não ser criticável, por falta de capacidade natural de previsão dos efeitos dos seus atos;

- o autor, por ter permitido que o menor circulasse sem utilização de capacete e que o mesmo guinasse à direita, é responsável a título de culpa;

- mas não pode invocar-se o art. 491º para limitar a responsabilidade da seguradora porque a presunção de culpa nele estabelecida respeita aos danos causados a terceiros, e não aos danos sofridos pela pessoa a vigiar;

- no entanto, a pessoa obrigada à vigilância responde, nos termos gerais, pelos danos que a omissão desse dever causar à pessoa a vigiar;

- a indemnização pela perda do direito à vida deve ser fixada em € 100.000,00;

- a compensação dos danos não patrimoniais sofridos pelos pais do menor falecido deve ser calculada em € 30.000,00 para cada um;

- os danos patrimoniais sofridos pelos pais do menor montam a € 1.550,00;

- a responsabilidade pelos danos deve ser repartida entre o autor e a condutora nas proporções de 2/3 e 1/3, respetivamente.


Já no acórdão impugnado considerou-se o seguinte:

- as questões a apreciar são a da culpa/risco na produção do acidente e a do “quantum” indemnizatório;

- a manobra feita pelo ciclista menor foi a única causa do acidente, não havendo nexo de causalidade entre este e a atuação da condutora;

- não se provou de forma indubitável e precisa que o .... seguisse com a distância lateral de 1,15 metros em relação aos velocípedes, antes se provou que a sua condutora, ao realizar a ultrapassagem, guardou distância de cerca de 1,15 metro em relação aos velocípedes, por isso não havendo prova da sua culpa;

- na perspetiva da responsabilidade pelo risco, verifica-se que o acidente foi exclusivamente imputável ao menor, não a título de culpa, mas em termos de causalidade adequada, assim se excluindo a responsabilidade da seguradora; nesta conformidade, ficam prejudicadas as questões suscitadas quanto à compensação do direito à vida.


Assinale-se que o acórdão recorrido não procedeu a qualquer alteração na matéria de facto julgada como provada pela 1ª instância, limitando-se a interpretá-la, o que também nós devemos fazer, como pressuposto da sua correta valoração jurídica, sem que com isso estejamos a conhecer – no sentido de “julgar” – de matéria de facto, o que, nos termos dos arts. 674º, nº 3 e 682º, nºs 1 e 2 do CPC, estaria subtraído da esfera de intervenção deste STJ.

Quer isto dizer que não vincula este tribunal a valoração dos factos provados que foi feita pela Relação, cabendo-nos também proceder livremente a essa valoração e ulterior subsunção ao Direito aplicável.


Vejamos então.

Da factualidade acima descrita como provada, assumem particular relevo, a nosso ver, os factos enunciados sob os nºs 4, 15, 22, 25, 30, 31 e 32.

Consta do facto nº 22 o seguinte: “A condutora do ...., ao realizar a ultrapassagem, guardou distância de cerca de 1,15 metro em relação aos velocípedes”. (sublinhado nosso).

E na sentença inferiu-se, a partir dele que a condutora do ...., ao não deixar “(…) uma distância lateral do velocípede superior a 1,15 metros (…)”, não cumprira o disposto no nº 3 do art. 18º do Código da Estrada, segundo o qual “O condutor de um veículo motorizado deve manter entre o seu veículo e um velocípede que transite na mesma faixa de rodagem uma distância lateral de pelo menos 1,5 m, para evitar acidentes.”

Para além disto, a al. e) do nº 2 do art. 38º do mesmo diploma estabelece que “O condutor deve, especialmente, certificar-se de que: (…) Na ultrapassagem de velocípedes ou à passagem de peões que circulem ou se encontrem na berma, guarda a distância lateral mínima de 1,5 m (..)”.

A sobredita conclusão a que a sentença chegou não foi posta em causa pelas partes, nomeadamente pela seguradora, que, ao alegar no recurso de apelação, refere explicitamente, com apoio no dito facto provado nº 22, que o .... circulava a 1,15 metros do velocípede[2]; limita-se, a este respeito, a sustentar, acerca da exigência legal da distância lateral de 1,5 metro, “(…) que a razão de ser daquela dita distância se destina a prevenir acidentes laterais entre os veículos, ou seja, embates entre veículos por transitarem lateralmente ou paralelamente demasiado próximos uns dos outros, e não, como no caso, e parece ser evidente (!!) prevenir embates que decorram do desvio de trajectória de um deles que, por tal motivo, se atravessa à frente do outro e lhe vai bater lateralmente.”

Todavia, indo mais longe, o acórdão impugnado entendeu “(…) que não resulta dos factos, de forma indubitável e precisa, como se considera na sentença recorrida, que o veículo seguisse com a distância de 1,15 metros em relação aos velocípedes (…)”, o que, tudo leva a crer, é extraído da expressão “cerca de” que faz parte integrante do facto julgado como provado nº 22.

É dizer que, aceita-se, retira a esta distância a desejável caraterística de exatidão, mas, por outro lado, deixa a certeza de que é de pouco significado a variação previsível.

É indispensável, porém, conjugar este facto com o seguinte quadro factual igualmente demonstrado nos autos:

- os velocípedes rodavam a cerca de 50 centímetros do eixo da via – factos nºs 4, 15 e 25;

- ao guinar para a direita o menor ciclista percorreu pelo menos 1,15 metro, atravessando-se na diagonal à frente do .... – facto nº 30.

- o embate entre o .... e o velocípede ocorreu a cerca de 1,15 metro do eixo da via – facto nº 32;

- este embate deu-se entre o lado direito frontal e o pedal direito da bicicleta e a frente esquerda e a lateral esquerda, sobre a roda, do .... – facto nº 31.

Ora, o velocípede deslocou-se para a direita em diagonal, e não perpendicularmente, o que implica que a medida em que essa manobra o fez aproximar-se da trajetória do .... foi inferior à distância por ele efetivamente percorrida.

Por isso pôde embater com o seu lado frontal direito e com o pedal do lado direito na frente e na lateral do ...., e não apenas com a sua dianteira ou com a sua lateral direita na lateral esquerda ou na frente do ...., como seria próprio de uma trajetória perpendicular; e também por isso, apesar de ter guinado cerca de 1,15 metro, e de vir rodando anteriormente a cerca de 50 centímetros do eixo da via, o embate pôde ter ocorrido apenas a cerca de 1,15 metro deste eixo.

Conclui-se que o .... vinha rodando necessariamente a menos de 1,50 metro do velocípede – realidade absolutamente compatível com a expressão “cerca de 1,15 metro” vertida no facto nº 22 – o que reconduz a situação às previsões normativas do CE sobreditas e leva a qualificar como ilícita a correspondente atuação da sua condutora.

Resta saber se, havendo conduta ilícita e dano, este está ligado àquela por um nexo causal legalmente relevante e é imputável a título de culpa a essa condutora.

Como propõe Antunes Varela[3], em caso de lesão procedente de facto ilícito, para apuramento da existência de um nexo de causalidade adequado deve ter-se em vista, no nosso Direito, a fórmula negativa de Enneccerus-Lehmann, ou seja, “(…) o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo em todo indiferente (…) para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto.”

Doutrina mais recente, já representada entre nós, vem invocando nesta matéria a teoria do escopo da norma violada, segundo a qual “(…) para o estabelecimento do nexo de causalidade é apenas necessário averiguar se os danos que resultaram do facto correspondem à frustração das utilidades que a norma visava conferir ao sujeito através do direito subjectivo ou da norma de protecção (…)”, o que “(…) acaba por se reconduzir a um problema de interpretação do conteúdo e fim específico da norma que serviu de base à imputação dos danos.”[4]


Qualquer destas correntes doutrinárias leva no caso em exame a conclusões idênticas.

Importa averiguar por que razão o legislador, perante o comando já contido no nº 2 do art. 18º do CE[5], teve a preocupação de introduzir ainda a especificidade constante do nº 3 do mesmo preceito e, bem assim, da al. e) do nº 2 do art. 38º, ao concretizar a distância lateral mínima a observar.

Enquanto que o nº 2 do art. 18º é uma norma de perigo concreto, em cuja observância o agente tem de prever a realização do resultado, as assim contrapostas normas do nº 3 do art. 18º e da al. e) do nº 2 do art. 38º são normas de perigo abstrato, que alargam “(…) fortemente o âmbito da conduta ilícita, pois o lesante responde mesmo quando a verificação do dano não era para ele previsível (…)[6]

Para a formulação destas últimas normas foi determinante a consciência de que a circulação de um velocípede é, por natureza, instável, dependendo do equilíbrio de quem o conduz, sucedendo ainda que este é facilmente afetado por circunstâncias várias, quer externas – como o vento, ou o confronto de pessoas ou de animal -, quer internas – como a destreza do seu tripulante.

Como reconhece a al. q) do art. 1º do mesmo Código, os velocípedes são utilizadores vulneráveis das vias públicas, o que se acentua sobremaneira quando são crianças a tripulá-los; e o nº 3 do art. 11º impõe aos condutores a obrigação de não porem em risco os utilizadores vulneráveis.

Daí que um desvio de trajetória de um velocípede não possa ser, para um condutor que circule na mesma via, uma circunstância excecional, imprevisível ou anormal, pretendendo o legislador criar condições para que sejam evitados os riscos inerentes. Por isso, a circulação de um veículo automóvel ao lado de um velocípede – ademais tripulado por criança de 8 anos de idade - a uma distância inferior a 1,5 metro é uma atuação configurável como podendo causar em concreto os danos provenientes de um eventual embate ou colisão entre ambos, em qualquer das teorias acima referidas.[7]

Diga-se ainda que, no caso, esta circunstância concorreu, de forma evidente, para a eclosão do acidente, o que se conclui a partir da sua conjugação com a trajetória em diagonal seguida pelo velocípede quando se desviou para a direita; trinta ou quarenta centímetros de maior afastamento do .... poderiam facilmente ter permitido que a colisão não tivesse ocorrido.

Existe, pois, no caso em apreço o nexo causal, cuja verificação em concreto o acórdão recorrido negou, entre a atuação da condutora do ...., por um lado, e o acidente e suas consequências, por outro.

Por outro lado, a culpa da condutora do .... é incontestável.

Viu à sua frente os dois ciclistas, apercebendo-se de que um deles era uma criança – facto nº 20.

A parte da via livre à direita dos ciclistas media cerca de 3,40 metros até à linha que a delimitava da berma, sendo que esta última media ainda 1,80 metro de largura – factos nºs 15 e 26.

A largura do .... era de 1,60 metro – facto nº 27. É inaceitável, face à diligência exigível a um bom pai de família, a proximidade a que rodou em relação aos ciclistas, nomeadamente a criança, quando procedeu à sua ultrapassagem.

Aliás, tem sido, desde há muito, orientação constante deste Supremo Tribunal[8] aquela segundo a qual a prova da inobservância de leis e regulamentos faz presumir a culpa na produção dos danos dela decorrentes, dispensando-se a prova em concreto da falta de diligência.[9]

Existiu, pois, responsabilidade culposa, efetiva e não simplesmente presumida, da condutora do .... pelos danos resultantes do acidente, nomeadamente os inerentes ao falecimento do menor DD.


Da medida da culpa da condutora do ....

Na sentença afastou-se a existência de culpa por parte do menor DD considerando a sua tenra idade – na data do acidente completara oito anos há escassos seis dias – e estabelecendo-se um claro paralelo entre o caso dos autos e o versado no acórdão deste STJ de 5.6.2012 [10], no qual, perante um acidente ocorrido com um velocípede tripulado por um menor de seis anos, se fez prevalecer a ideia segundo a qual a imprevidência própria desta idade impede que o menor tenha a representação mental dos riscos de uma condução desgovernada e perigosa para a segurança da via e dos seus utentes.

Esta conclusão não mereceu crítica do acórdão recorrido, onde, porém, se escreveu que “(…) a causa do acidente foi o desequilíbrio sofrido pelo menor e que provocou a queda (cfr. factos provados n.º 29 a 31, supra citados) (…)”, considerando-se depois ser o acidente imputável ao menor, assim se reconduzindo o caso à previsão do art. 505º, dada a conclusão antes firmada no sentido da ausência de culpa da condutora do .... e da mera possibilidade de configuração de responsabilidade pelo risco.

Ressalvada a falta de demonstração de um desequilíbrio, estando diversamente demonstrada uma súbita guinada do menor para a direita, de causa não apurada, esta conclusão era, considerado o pressuposto de que partia, correta.

Havendo, porém, culpa da condutora do .... e configurando-se a existência de responsabilidade por facto ilícito, não há sequer que perspetivar a aplicação do art. 505º, sendo antes no art. 570º que deverá procurar-se resposta para a questão de saber se há razões para a redução ou exclusão da obrigação de indemnizar assumida pela seguradora, o que nos confronta com a questão da existência de culpa do menor.

Um facto culposo do menor DD poderia, nos termos do nº 1 do citado art. 570º, conduzir, conforme a valoração feita das circunstâncias do caso, a que essa obrigação fosse mantida por inteiro, reduzida, ou excluída; embora, em rigor, se não possa falar de facto culposo do lesado, “(…) pois a culpa pressupõe um facto ilícito danoso (para outrem) (…”), a “(…) expressão legal visa, no entanto, afastar os actos do lesado que, embora contribuindo para a produção ou agravamento do dano, não traduzam um comportamento censurável, por não se poder afirmar que ele tenha agido com dolo ou negligência.”[11]

Não sendo possível formular sobre o menor DD tal juízo de censura, a sua conduta não se repercute na medida da responsabilidade assumida pela seguradora.

A 1ª instância, isentando de culpa o menor, considerou que seu pai, autor na ação, havia violado o dever de vigilância que lhe cabia exercer sobre o seu filho e que a negligência assim evidenciada levava a considerar-se que este mesmo autor concorrera culposamente para a eclosão do acidente, repartindo-se nas proporções de 2/3 e 1/3 as responsabilidades a atribuir àquele e à condutora do ...., respetivamente.

Este dever de vigilância resulta da conjugação dos arts. 1877º e 1878º, já que até à maioridade ou emancipação compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes.

Como se disse já, com acerto, na sentença, não está aqui em causa o art. 491º, preceito que consagra a este propósito uma presunção de culpa, uma vez que o seu campo de aplicação é o da responsabilidade por danos causados a terceiros em virtude de omissão imputável ao obrigado à vigilância, hipótese que, manifestamente, não é a debatida nestes autos.

Porém, a omissão, por parte de um pai em relação a um filho menor, de cumprimento do correspondente dever de vigilância pode ainda ser encarada sob ângulos diversos, um dos quais abrangerá os casos em que dessa omissão resultam danos para o menor.

Segundo Pires de Lima e Antunes Varela[12], excluída aí a aplicação da presunção de culpa, poderá haver responsabilidade nos termos gerais, “ex vi” art. 486º.

E, ainda dentro desta hipótese, casos haverá em que para os danos sofridos pelo menor concorreu, para além dessa omissão culposa por parte do pai, a conduta de terceiro, como será o caso do condutor de um veículo automóvel que o tenha colhido.

Este STJ pronunciou-se já sobre casos deste tipo, nomeadamente nos seus acórdãos de 7.5.2012[13] e de 1.6.2017[14]       .

Em ambos estes acórdãos foi prosseguida a senda iniciada pelo acórdão deste STJ de 4.10.2007[15],[16], no sentido de interpretar o art. 505º  como excluindo a responsabilidade pelo risco, apenas quando  o acidente for unicamente imputável ao lesado ou a terceiro ou resultar exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.

Apoiou-se o acórdão de 1.6.2017, designadamente, na opinião de Maria da Graça Trigo [17], de que transcreveu a seguinte passagem:

«Dispõe o art. 571º que “ao facto culposo do lesado é equiparado o facto culposo dos seus representantes e das pessoas de quem ele se tenha utilizado.” A aplicação, sem mais, desta norma levaria a que, na maior parte das vezes, a indemnização pudesse ser reduzida ou fortemente excluída. Não é, porém, este o caminho correcto. Seguindo aqui a lição de BRANDÃO PROENÇA, “duvidoso é o saber-se, nos casos de culpa extracontratual do lesante, se a omissão do vigilante conduz à aplicação do regime do artigo 570º ou é apenas fonte constitutiva de uma solidariedade passiva. Preferimos a defesa desta última unidade...”. Afigura-se ser a solução adequada para as hipóteses em que o vigilante consiste numa pessoa singular ou colectiva distinta dos pais (ou de outros vigilantes que com ela têm uma comunidade de vida). Se, por exemplo, uma criança que brinca no pátio da escola foge para a rua onde é atropelada por um condutor que actua sem culpa, serão solidariamente responsáveis o detentor do veículo e a pessoa responsável pela vigilância, bem como a própria escola, se se verificarem os pressupostos do art. 500º, mas o primeiro terá direito de regresso contra os segundos. Visto de um prisma complementar, quer dizer que a responsabilidade do detentor do veículo não pode ser afastada, convocando-se o art. 505º, por facto do terceiro, que seria precisamente o vigilante.

Contudo, esta solução não será adequada se o vigilante ou vigilantes são os pais da criança (ou outros vigilantes que com ela têm uma comunidade de vida), como sucederá na maior parte dos casos. Cabendo-lhes a obrigação de sustento do filho, obrigá-los a reembolsar a seguradora do detentor do veículo poderá traduzir-se, em última análise, em prejuízo para a criança, para além de tornar a lide inútil porque, em regra, são os pais quem acciona o segurador. Temos para nós que o art. 571º não pode ele mesmo deixar ser interpretado em conformidade com as exigências do direito comunitário dos seguros, isto é, de forma a assegurar a protecção das vítimas ditas mais frágeis. A culpa dos pais obrigados à vigilância não pode, por isso, conduzir a qualquer redução da indemnização a pagar pelo detentor do veículo, nem permitirá que este exerça o direito de regresso contra os pais, salvo se não existir ou quando tiver cessado a comunidade de vida entre eles e a vítima.

A situação será inteiramente distinta nos casos de morte do menor. Nestas hipóteses, ao apreciar-se o pedido de indemnização interposto pelos pais (ou outros vigilantes que sejam simultaneamente titulares de direito de indemnização por morte da vítima), quase sempre por danos não patrimoniais, não pode esquecer-se que, por definição, não será o lesado a aproveitar da quantia indemnizatória mas os próprios vigilantes, que contribuíram, em maior ou menor grau, para o dano morte. Como se sabe, a reparação dos danos não patrimoniais em caso de morte engloba três componentes: a perda da vida, os danos não patrimoniais sofridos pelos parentes sobrevivos e os danos não patrimoniais da vítima sofridos entre o facto lesivo e a morte.

Quer se defenda que a reparação da perda da vida constitui um direito transmissível por via sucessória, quer se defenda que é um direito próprio dos parentes elencados no art. 496º, nº 2, certo é que a dita reparação não é nunca inteiramente autónoma em relação aos danos não patrimoniais sofridos pelos parentes.

Assim sendo, na hipótese de morte da vítima, o art. 571º pode ser aplicado sem condicionantes e, em conjugação com o regime do art. 570º, a culpa do vigilante conduzirá à redução ou exclusão da indemnização. Por outro prisma mais favorável ao detentor do veículo, o facto do terceiro vigilante permitirá excluir a sua responsabilidade, convocando-se para tal o art. 505º.»


Será que também aqui há que chegar a conclusão idêntica?


Revisitemos o que se escreveu na sentença a propósito da contribuição do pai do menor, autor na ação e aqui recorrente, para a eclosão do acidente:

"No caso em apreço, o Autor circulava, também de velocípede, atrás do menor DD, numa via onde é habitualmente intenso o trânsito de viaturas, permitindo que o mesmo menor circulasse sem capacete, junto ao eixo da via, mais vindo a permitir que o mesmo guinasse inopinadamente para a direita, omitindo as diligências necessárias para impedir tais comportamentos.

Se é apodíctico não ser legalmente obrigatória a condução de velocípedes com capacete, não pode deixar de se afirmar que o Autor, ao permitir a circulação do DD sem capacete no velocípede, colocou em risco a sua integridade física, minimizando, ainda mais, no próprio menor a percepção desse risco, o qual, lamentavelmente se veio a concretizar, violando o Autor, consequentemente, o dever de velar pela segurança e saúde do seu filho em cumprimento da responsabilidade parental que sobre si impe[n]dia.

Acresce que o Autor contribuiu para a produção dos danos em causa, tanto mais que, como se provou, as le[s]ões crânio-encefálicas que determinaram a morte do menor teriam sido evitadas caso o mesmo fosse portador de capacete e, obviamente, caso circulasse correctamente na faixa de rodagem.”


Trata-se de juízo que, pela sua correção, secundamos na íntegra.

A utilização de capacete constitui, na verdade, uma eficaz prevenção de danos em acidentes com intervenção de ciclistas, e um progenitor que promova o seu uso pelo filho ainda criança concorre de modo relevante para a obtenção de dois importantes resultados: a proteção imediata da saúde e segurança da criança e a interiorização, por parte desta, de uma conduta cautelosa e prudente no futuro.

Por outro lado, circulando ambos numa via com condições de tráfego adversas, constata-se que, indo o menor à frente do pai, estava este privado de qualquer possibilidade de intervenção útil e relevante perante qualquer perigo, o que se confirma com a mera descrição do acidente constante dos factos nºs 8, 9, 14, 25 e 29-31.

Ao permitir a circulação do menor DD nestas circunstâncias incorreu em grave omissão de cumprimento do acima referido dever de vigilância.

Porém, no caso que não há que excluir a responsabilidade da condutora do 000000 por se registar a existência, em relação às hipóteses tratadas nos acórdãos acima citados, de uma diferença essencial, que é a seguinte: não estamos perante um caso em que possa perspetivar-se a responsabilidade pelo risco porque se formula sobre esta condutora um claro juízo de culpa.

Assim, não temos de levar em conta a previsão do art. 505º, mas, apenas, a dos arts. 570º e 571º.

Dando exemplo de situação em que é convocável a previsão desta última norma[18], escrevem Pires de Lima e Antunes Varela[19] “É o caso, por exemplo, de um pai deixar, imprudentemente, um menor num local de grande circulação de automóveis e verificar-se um acidente. Embora não seja imputável o menor, pela sua idade (…), entende-se que há culpa do lesado, sendo aplicável o disposto no artigo anterior.”

É manifesto o paralelismo das situações, impondo-se concluir que o recorrente AA contribuiu culposamente para o acidente, equivalendo esta sua culpa a uma “culpa” pessoal do menor DD, culpa que, sendo de negar nos termos acime expostos, é de recuperar por esta via.

E, por isso, estamos novamente confrontados com a questão de saber se, e em que medida, a responsabilidade assumida pela seguradora deve ser confirmada, reduzida ou excluída.

Na tese dos recorrentes não se justifica a sua redução; mas para o caso de se adotar entendimento diverso sustentam que a responsabilidade da condutora deve ser graduada em proporção manifestamente superior à do menor.

É posição que, no seu extremo, não tem sustentação plausível.

A culpa do pai do menor é manifesta e o seu comportamento assenta na aceitação de um risco que não é compatível com uma orientação responsável.

Mas, por outro lado, também a culpa da condutora do .... é efetiva e grave, visto que traduz uma condução ilícita, criadora de um risco notório para os demais utentes da via, em circunstâncias por si plenamente apercebidas, dado que tudo se vinha passando à frente dos seus olhos.

A ponderação de todas estas circunstâncias leva-nos a graduar, na proporção de metade para cada um, a medida em que esta condutora e o recorrente AA contribuíram para o acidente.


A Relação, porque considerou inexistir culpa da condutora do .... na produção do acidente – absolvendo, por isso, a ré do pedido -, teve como prejudicadas as questões relativas à fixação do “quantum” indemnizatório.

Tendo em conta o que dispõe o art. 679º do CPC, não cabe a este STJ, por não ser aplicável à revista o estabelecido no nº 2 do art. 665º do mesmo diploma, conhecer das questões de que a Relação não conheceu por considerar prejudicada a sua apreciação - questões essas que, provavelmente por estarem cientes desta regra, os recorrentes não chegaram a versar no presente recurso de revista.

 

IV - Pelo exposto, decide-se:

- Conceder em parte a revista, revogando-se o acórdão recorrido e declarando-se:

- que a condutora do 000000 concorreu com culpa sua para a produção do acidente;

- que a obrigação de indemnizar daí resultante e a cargo da recorrida é, devido à contribuição culposa do recorrente AA para o acidente, reduzida a metade;

- Ordenar que os autos baixem à Relação de Guimarães para que aí prossiga a apreciação do recurso de apelação.


Custas deste recurso em partes iguais a cargo dos recorrentes e da recorrida.


Lisboa, 11 de Abril de 2019


Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho (Relatora)

Catarina Serra

Bernardo Domingos

__________________

[1] Diploma a que pertencem as normas de ora em diante referidas sem menção de diferente proveniência.
[2] Como se lê a fls. 317 verso
[3] “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 8ª edição, pág. 917 e, em sentido idêntico, Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª edição, págs. 763-764.
[4] Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 13ª edição, pág. 313 e Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, VIII, 2016, pág. 550.
[5] Do seguinte teor:“O condutor de um veículo em marcha deve manter distância lateral suficiente para evitar acidentes entre o seu veículo e os veículos que transitam na mesma faixa de rodagem, no mesmo sentido ou em sentido oposto.”
[6] Sinde Monteiro, “Responsabilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações”, Almedina, 1989, págs. 239-240.
[7] Como se reconhece na obra citada na nota anterior, pág. 271, “A periculosidade é num caso analisada de uma forma concreta (adequação) e no outro de uma forma geral e abstracta (a partir da perspectiva do legislador) (…) os critérios são intimamente aparentados e conduzirão na esmagadora maioria dos casos a conclusões idênticas (…)”.
[8] Exemplificativamente, crf. os seus acórdãos de 21/2/61, 14/10/82 e 6/1/87, publicados, respetivamente, nos BMJ nº 104, pg. 417, nº 320, pág. 422 e nº 363, pág. 488
[9] Cfr., em sentido favorável, autor e obra citados na nota 6, págs. 264-267.
[10] Relator Conselheiro Orlando Afonso, proc. nº 100/10.9YFLSB, acessível em www.dgsi.pt
[11] Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 8ª edição, pág. 935, nota 1.
[12] Cfr. Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, págs. 493 e 488

[13] Relator Cons. Abrantes Geraldes, proc. nº 1272/04.7TBGDM.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt.

[14] Relator Lopes do Rego, proc. nº 1112/15.1T8VCT.G1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[15] Relator Cons. Santos Bernardino, proc. 07B1710, www.dgsi.pt
[16] Com anotação favorável de Calvão da Silva, em Rev. Leg. Jur., ano 137º, págs. 35 e segs.
[17] Cfr. Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade civil por acidente de viação, 2015, Direito e Justiça, Estudos dedicados ao Prof. Doutor Bernardo da Gama Lobo Xavier, vol. II, pag. 493 e segs.
[18] Que dispõe “Ao facto culposo do lesado é equiparado o facto culposo dos seus representantes legais e das pessoas de quem ele se tenha utilizado.”
[19] Obra citada na nota 12, pág. 588