Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
662/09.3TVPRT.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO JOAQUIM PIÇARRA
Descritores: DIREITO DE RETENÇÃO
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
TRADIÇÃO DA COISA
OPONIBILIDADE
TERCEIRO
EFICÁCIA REAL
TRANSMISSÃO DE DIREITO REAL
PROMITENTE-COMPRADOR
DIREITO REAL DE GARANTIA
GARANTIA DAS OBRIGAÇÕES
Data do Acordão: 12/14/2016
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVSITA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / DIREITO DE RETENÇÃO.
Doutrina:
- Ana Taveira da Fonseca, Da recusa de cumprimento da obrigação para tutela do direito de crédito, em especial na excepção de não cumprimento e no direito de retenção, Colecção Teses, Almedina, 2015, 304, 311, 314 e 315, 368 e 369.
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7.ª edição, 577 e 578; na R.L.J., ano 124, 351.
- Cláudia Madaleno, A Vulnerabilidade das Garantias Reais, Coimbra Editora, págs. 101 a 103.
- Francisco Rocha, Revista da F.D.U.L., 2010, Coimbra Editora, Volume LI, Nºs 1 e 2, 582 a 587, 590 a 591.
- Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, 48 (nota 17), 76 a 80.
- José Alberto Vieira, Direitos Reais, 2016, Almedina, 287/288,
- José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Reais, 5.ª edição, Coimbra editora, 551 a 553.
- Júlio Gomes, «Direito de retenção (arcaico, mas eficaz…)», Cadernos de Direito Privado, n.º 11 a 13.
- Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 6.ª edição, Quid Juris, 154, 163 e 164.
- Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume II, Almedina, 2002, 310,
- Luis Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, 2015, 2ª edição, Almedina, 358 a 359.
- Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª edição, Almedina, 431 a 432 (nota 3), e demais doutrina aí mencionada, 974 a 975 (nota 3)
- Pedro Romano Martinez/Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, 5.ª edição, Almedina, 226 a 228.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, Vol. I, 4.ª edição, 775.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 442.º, 670.º, AL. A), 754.º, 755.º, N.º1, AL. F), 758., 759.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 25.02.1986 (B.M.J. 354, 549), DE 23.01.1996 (C.J./S.T.J., ANO IV, TOMO I, 70), DE 13.01.2000 (B.M.J. 493, 362).
-DE 13.01.2000 (B.M.J. 493, 362), DE 27.11.2004 (C.J./S.T.J., ANO XII, TOMO 2, 77), DE 22.03.2011 (PROCESSO N.º 3121/06.2TVLSB.E1.S1), DE 12.03.2015 (PROCESSO N.º 1775/11.7TBOLH.E1.S1) E DE 15.04.2015 (PROCESSO N.º 2583/05.0TBST.E1.S1), ESTES ACESSÍVEIS ATRAVÉS DE WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I – O direito de retenção constitui uma forma de autotutela de direitos, com uma dupla função (garantia e compulsória), e encontra-se previsto, com carácter genérico, no art.º 754º do Cód. Civil.

II - Para além do grupo de situações que derivam da aplicação autónoma desse critério geral em que a conexão material e directa de créditos constitui o seu alicerce, o art.º 755º do Cód. Civil consagra casos especiais de direito de retenção em que se dilui (ou até inexiste) tal conexão objectiva, justificando, contudo, a garantia.

III - Entre esses casos especiais figura na al. f) do n.º 1, o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art.º 442º do Cód. Civil.

IV - O direito de retenção, reconhecido ao promitente-comprador que obteve tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, constitui um direito real de garantia, com eficácia erga omnes, produzindo efeitos contra eventuais adquirentes da coisa.

V – Até mesmo nas situações de mera conexão jurídica, o direito de retenção será oponível ao proprietário, estranho à dívida, maxime se o bem foi adquirido em momento posterior à detenção e ao nascimento do direito de retenção.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Relatório


I AA, Lda., com sede na Rua …, nº32, Palmeira de Faro, Esposende, intentou acção declarativa, sob a forma de processo ordinário (hoje, comum), contra BB, sua mulher, CC, residentes na Rua …, nº 872, r/c direito, Porto, e DD, residente no Lugar …, S. Cristóvão de Nogueira, em Cinfães, alegando, em síntese, que:

Por escritura pública celebrada em 23.2.2006 comprou o prédio urbano sito na Rua …, nº 872, em Campanhã, no Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº 21… do Livro B32.

Por contrato-promessa celebrado em 12.9.1984 os anteriores proprietários do prédio haviam prometido vender ao 1º réu marido e ao 2º réu, que prometeram comprar, os 7/8 de que eram comproprietários naquele prédio respeitante à fracção autónoma que, em virtude da propriedade horizontal a constituir, viesse a corresponder ao r/c direito.

Os 1ºs réus pagaram, a título de sinal, a quantia de um milhão de escudos, e passaram a habitar naquele r/c direito.

O aludido contrato-promessa de compra e venda caducou, já que no mesmo ficou estabelecido o prazo de 6 meses para celebração da escritura, a qual nunca foi realizada.

Os 1ºs réus continuam a habitar o referido r/c direito do prédio em questão sem que procedam ao pagamento de qualquer quantia.

Com tais fundamentos, concluiu por pedir que:

   a) se declare que o prédio descrito no artigo 1º da petição inicial é propriedade da autora;

   b) se declare a caducidade do contrato-promessa celebrado entre os anteriores proprietários daquele prédio e os aqui 1º réu marido e 2º réu;

   c) se condenem os réus a restituírem à autora o uso e fruição da parte do referido prédio que corresponde ao r/c direito;

   d) se condenem os réus a absterem-se da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização por parte da autora daquela parte do prédio.

   Subsidiariamente, peticiona se fixe o valor actualizado para a celebração do contrato definitivo, em montante a determinar em fase de liquidação de sentença.

Os 1ºs réus (o casal BB e CC) contestaram e deduziram reconvenção, sustentando, em resumo, que adquiriram a parte do prédio (1/12) em questão, por usucapião, é nula a aquisição do prédio pela autora, por ser contrária à ordem pública e ofensiva dos bons costumes, a autora abusa do seu direito e que, além disso, gozam do direito de retenção sobre a parte do imóvel em causa para garantia de um crédito que alegam ter sobre os promitentes-vendedores no montante de 57.518.03€.

Requereram, desse modo, a intervenção principal provocada, como associados da autora, dos anteriores proprietários do prédio, pugnaram pela condenação da autora como litigante de má-fé em multa e indemnização a seu favor em montante não inferior a 1.000,00€, concluindo ainda pela improcedência da acção, e pedindo, a título reconvencional, que:

- se declare que são comproprietários do prédio em causa, na parte indivisa de 1/12, por a terem adquirido por usucapião;

- caso assim não se entenda, deve conhecer-se do invocado abuso de direito e, em consequência, obstar a que as partes envolvidas obtenham ilicitamente, em prejuízo dos réus, as vantagens visadas com tal abuso, conservando o direito dos réus;

- caso assim não entenda, se declare nulo o contrato de compra e venda do referido imóvel celebrado entre a autora e os anteriores proprietários, com o cancelamento do respectivo registo;

- caso assim não se entenda, seja reconhecido aos réus o direito de retenção sobre o aludido prédio para garantia do seu invocado crédito de 57.518.03€.

A autora replicou, mantendo a sua posição inicial, pugnando pela improcedência da reconvenção e pedindo a condenação dos 1ºs réus como litigantes de má-fé em multa e indemnização a seu favor em montante não inferior a 1.000,00€.

Foi admitida a intervenção principal, do lado activo, dos anteriores proprietários do prédio, os quais foram citados para a acção, tendo apresentado articulado próprio e, tendo falecido alguns deles, foram habilitados os respectivos sucessores, por decisão de folhas 377 a 379, já transitada em julgado.

Saneado o processo e realizada a audiência de julgamento, com gravação dos depoimentos nela prestados, foi proferida sentença, datada de 21.05.2015, em que, na parcial procedência da acção e da reconvenção, se decidiu o seguinte:

a) declara-se o direito de propriedade exclusiva da autora “AA, Lda.” sobre o prédio urbano composto de casa de cave, rés-do-chão e dois andares, com entrada pelo nº 872, e uma casa de cave, rés-do-chão e dois andares, com entrada pelo nº 884, sito na Rua …, nº 872 e 884, Campanhã, Porto, descrito na 1ª Conservatória de Registo Predial sob o nº 21...;

b) absolvem-se os réus do demais peticionado pela autora;

c) declara-se o direito de retenção dos réus/reconvintes BB e mulher CC sobre o r/c direito do prédio urbano composto de casa de cave, rés-do-chão e dois andares, com entrada pelo nº 872, e uma casa de cave, rés-do-chão e dois andares, com entrada pelo nº 884, sito na Rua …, nº 872 e 884, Campanhã, Porto, descrito na 1ª Conservatória de Registo Predial sob o nº 21…, como garantia do crédito detido sobre os intervenientes resultante do incumprimento por parte destes últimos do contrato-promessa referido em 3. dos factos provados;

d) absolve-se a reconvinda “AA, Lda.” do demais peticionado pelos reconvintes.

Apelaram a autora e os intervenientes, com parcial êxito, tendo a Relação do Porto decidido alterar a sentença nos termos seguintes:

a) declara-se o direito de propriedade exclusiva da autora sobre o prédio urbano composto de casa de cave, rés-do-chão e dois andares, com entrada pelo nº 872, e uma casa de cave, rés-do-chão e dois andares, com entrada pelo nº 884, sito na Rua …, nº 872 e 884, Campanhã, Porto, descrito na 1ª Conservatória de Registo Predial sob o nº 21…;

b) condenam-se os réus a restituir à autora o uso e fruição da parte do prédio descrito em a) que corresponde ao rés-do-chão direito;

c) condenam-se os réus a absterem-se da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização pela autora da parte do prédio referida em b);

d) absolvem-se os réus no que concerne ao pedido de declaração de caducidade do contrato-promessa mencionado em 3. dos Factos Provados;

II – Julga-se integralmente improcedente o pedido reconvencional formulado pelos réus/reconvintes.


Inconformados, interpuseram os réus/reconvintes recurso de revista, finalizando a sua alegação, com as conclusões seguintes:

A) O direito de retenção é uma importante garantia da obrigação, onde se sobrepõe inclusive à hipoteca, ainda que registada anteriormente ao exercício deste direito.

B) O reconhecimento à recorrida AA, SA, da qualidade de proprietária do imóvel, não é susceptível de, sem mais, determinar a procedência do pedido de imediata restituição do mesmo.

C) O reconhecimento do direito de propriedade não pode nem deve fazer esquecer o contrato promessa de compra e venda celebrado com os recorrentes que envolveu tradição e uso continuado do rés do chão direito do prédio há 30 anos pelos promitentes compradores.

D) Tal origina a favor dos recorrentes a titularidade do direito de retenção, até lhe ser satisfeita a indemnização devida por incumprimento definitivo imputável à contraparte.

E) Se o direito de retenção é uma importante garantia da obrigação, onde se sobrepõe inclusive à hipoteca, ainda que registada anteriormente ao exercício deste direito.

F) Dispondo o artº artigo 754º do Código Civil que o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados.

G) O direito real de garantia do direito de retenção é, oponível erga omnes, portanto oponível contra todos aqueles que desejem a coisa, até que seja integralmente satisfeita a obrigação.

H) "O que a entrega (tradição) do móvel ou imóvel atribui ao promitente-comprador é um direito pessoal de gozo sobre a coisa, semelhante ao do locatário ou do comodatário, e mais forte, em certos aspectos, do que o conferido ao mandatário..., ao credor pignoratício, ao depositário ou ao empreiteiro cuja obra se refira à coisa entregue, e muito diferente do direito que compete ao mutuário" (cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-01-2000 www.dgsi.pt e ANTUNES VARELA em anotação ao acórdão deste Supremo Tribunal, de 25 de Fevereiro de 1986).

I) O titular do direito de retenção poderá fazê-lo valer contra todos, tem sobre a coisa o chamado poder de sequela, sendo que o titular de qualquer jus in re, sempre que a coisa que constitui o respectivo objecto se encontra sob o domínio de um terceiro, pode actuar sobre ela - pode segui-la.

A autora ofereceu contra-alegação a pugnar pelo insucesso do recurso e, colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir se os recorrentes gozam do direito de retenção e não estão obrigados a restituir, de imediato, à autora a parte do reivindicado imóvel.

II - Fundamentação de facto

As instâncias consideraram provados os factos seguintes:

1 - Em escritura pública outorgada em 23 de Fevereiro de 2006 entre a autora e EE e FF, GG e HH, II, JJ, KK, LL, MM e NN, aquela declarou comprar, e estes declararam vender, o prédio urbano composto de casa de cave, rés-do-chão e dois andares, com entrada pelo nº 872, e uma casa de cave, rés-do-chão e dois andares, com entrada pelo nº 884, sito na Rua …, nº 872 e 884, Campanhã, Porto, descrito na 1ª Conservatória de Registo Predial sob o nº 21…;

2 - Tal aquisição por parte da autora foi levada a registo mediante a AP. 42, de 2006/02/27;

3 - Em 12 de Setembro de 1984 os intervenientes EE e II, por si e como mandatários de JJ, KK, de todos os seus cônjuges, e de LL, por um lado, e o réu BB, por si e em representação do réu DD, outorgaram o denominado "Contrato de promessa de compra e venda";

4 - Após a celebração do referido contrato, os 1ºs réus começaram a habitar o R/C direito do aludido prédio;

5 - A escritura pública referida no dito "Contrato de promessa de compra e venda" nunca chegou a ser celebrada;

6 - Os 1ºs réus intentaram contra os Intervenientes uma acção judicial, que correu termos pela 2ª Secção da 8ª Vara Cível do Porto, sob o nº 47/06.3TVPRT, na qual foi proferida sentença, que foi objecto de recurso, e sobre ela versou o acórdão da Relação do Porto, entretanto transitado em julgado;

7 - Os 1ºs réus, até hoje, continuam a viver no referido R/C direito, sem que tenham pago, em todo este período, qualquer quantia que não o sinal entregue aquando da celebração do contrato referido em 3.;

8 - A autora e os vendedores sabiam, muito antes da aquisição referida em 1. e respectivo registo, que os réus tinham proposto, e inscrito no registo, a acção referida na Ap. 16 de 2005/12/28;

9 - Os réus não procederam ao pagamento da parte restante do preço considerado no contrato referido em 3.;

10 - Em 19/11/2005 os réus receberam a comunicação de EE, datada de 15 de Novembro de 2005, dando-lhes conta da intenção de vender o prédio à aqui autora e interpelando-os para exercerem, querendo, o direito de preferência;

11 - Durante estes cerca de 25 anos nunca os anteriores proprietários exigiram qualquer renda ou outra prestação como contrapartida pela ocupação do prédio;

12 - Aos proprietários promitentes-vendedores não era possível formalizar a compra e venda através de escritura pública pois ainda não tinham constituído a propriedade horizontal;

13 - Logo no mês seguinte à data da celebração do contrato referido em 3., os réus alteraram o hall de entrada e ajustaram alguns compartimentos;

14 - Daí em diante e até ao presente os réus: a) providenciaram pela sua limpeza; b) contrataram a prestação de serviços de água, electricidade, televisão e telefone em seu nome; c) aí criaram os 3 filhos e ajudam a criar 5 netos; d) confeccionaram a comida e trataram da roupa; e) recebiam e conviviam com familiares e amigos; f) criaram e cultivaram laços de amizade com os vizinhos; g) substituindo canalizações e o sistema de aquecimento de água; h) cortaram e plantaram árvores de fruto no quintal, nomeadamente limoeiros, figueiras e tangerineiras; i) reconstruíram o pátio exterior; j) demoliram e removeram o tanque em betão armado aí existente; k) construíram, no exterior, um anexo;

15 - A prorrogação do prazo para realização da escritura foi sendo transmitida regularmente aos ora réus;

16 - Um dos intervenientes era o Engº. Técnico do departamento de urbanismo da Câmara Municipal do Porto;

17 - Alguns dos intervenientes habitaram o prédio, tendo sido vizinhos dos ora réus;

18 - Aquando da propositura da acção, a autora conhecia as decisões aludidas em 6.;

19 - Desde o início das negociações tendentes à celebração do contrato referido em 1., a autora conhecia todos os factos vertidos nos pontos anteriores;

20 - Quando a autora examinava, acompanhada pelos vendedores, o prédio e respectivas fracções – incluindo a ocupada pelos réus - com o fim de aquilatar do valor e estado de conservação dos mesmos, foi reiterada pelos réus à autora a existência do contrato referido em 3.;

21 - A autora dedica-se à construção e comercialização de imóveis;

22 - Os 1ºs réus começaram a habitar a “fracção” em causa como detentores do espaço em causa, atenta a sua qualidade de “promitentes-compradores”;

23 - Nunca os réus pagaram condomínio, nem qualquer despesa inerente à manutenção ou conservação das partes comuns;

24 - A autora, desde que adquiriu o imóvel, pintou-o por fora;

25 - E, depois, tratou e cultivou todos os espaços exteriores pertencentes ao imóvel, com excepção da parte habitada pelos 1ºs réus;

26 - A Câmara Municipal do Porto indeferiu a constituição da propriedade horizontal;

27 - Em 12 de Setembro de 1984, para além do R/C direito, o prédio era composto por mais 11 idênticas divisões, a que deveriam corresponder fracções autónomas;

28 - O prédio tem entrada pelo número 884 e entrada pelo número 872, as quais são independentes entre si;

29 - Enquanto o prédio foi pertença dos intervenientes, os réus nunca pediram licença camarária para efectuar “alteração do hall” e “ajuste de alguns compartimentos”;

30 - Até há cerca de 11 anos, o interveniente EE residiu na parte do prédio com entrada pelo nº 884, não tendo, no entanto, qualquer relação de amizade com os réus;

31 - No que às “partes comuns” diz respeito, pelo menos até há cerca de 11 anos, nunca os réus contribuíram para a reparação, manutenção e segurança de tais espaços;

32 - Os intervenientes sempre consideraram os réus, e assim os trataram, como promitentes-compradores;

33 - Os intervenientes alertaram os réus para o facto de a parte exterior da habitação por eles ocupada se encontrar desprovida de cuidado, limpeza ou arranjo;

34 - E para o facto de aí possuírem “barracos”;

35 - Os intervenientes transmitiram aos réus as dificuldades sentidas para a obtenção da aprovação necessária junto da Câmara Municipal para a constituição da propriedade horizontal;

36 - O interveniente GG, Engenheiro Civil, foi Director do Departamento de Urbanismo da Câmara Municipal do ... nos inícios dos anos 90;

37 - O qual tentou saber da possibilidade de ser autorizada e constituída a propriedade horizontal no prédio em causa;

38 - Tendo-lhe sido transmitido que não era possível autorizar nem constituir a propriedade horizontal;

39 - O que foi transmitido aos réus, na qualidade de promitentes-compradores.


III – Fundamentação de direito

A apreciação e decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões da alegação (art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1, do Cód. de Proc. Civil[1]), passam pela análise e resolução da única questão jurídica colocada a este tribunal e que consiste em determinar se os recorrentes gozam do direito de retenção e não estão obrigados a restituir, de imediato, à autora a parte do imóvel em que habitam, desde 1984, na sequência do contrato-promessa de compra e venda celebrado com os intervenientes.

Antes de nos debruçarmos sobre tal temática, convém clarificar que se mostra já definitivamente decidido que a autora é proprietária da parte (rés-do-chão) do imóvel que reivindica, desde Fevereiro 2006, e que os anteriores proprietários (e aqui intervenientes principais, como associados da autora) incumpriram o contrato-promessa de compra e venda que celebraram, em Setembro de 1984, com os réus, acompanhado da traditio desse rés-do-chão, tendo os réus, enquanto promitentes-compradores, os direitos de crédito que vêm assinalados no art. 442º, nº 2 do Cód. Civil (restituição do sinal em dobro ou indemnização pelo valor da coisa) de que são devedores os incumpridores desse contrato, relativamente aos quais gozam do direito de retenção conferido pelo art.º 755º, n.º 1, alínea f), do Cód. Civil.

Por solucionar, resta, pois, dilucidar se esse direito de retenção é oponível somente aos anteriores proprietários, intervenientes no contrato-promessa, ou também à autora que adquiriu daqueles, em momento posterior, o referido rés-do-chão, constituindo essa questão precisamente o fulcro do recurso trazido a este Tribunal pelos réus e em relação à qual as instâncias assumiram frontal divergência concretizada na qualificação feita na sentença da 1ª instância do direito de retenção como garantia real e eficácia erga omnes, e na redução dessa eficácia, operada pela Relação no acórdão recorrido, aos intervenientes no contrato-promessa, dela excluindo, portanto, a autora.

Focando-nos, agora, nessa problemática, importa sublinhar que o direito de retenção constitui uma forma de autotutela de direitos, com uma dupla função (de garantia e coercitiva ou compulsória)[2], e encontra-se previsto, com carácter genérico, no art.º 754º do Cód. Civil, podendo ser definido como a faculdade conferida pela lei ao credor de continuar na detenção de uma coisa pertencente a outrem e de não a entregar, como deveria, a outra pessoa enquanto o seu crédito não for satisfeito.

Para além do grupo de situações que derivam da aplicação autónoma desse critério geral em que a conexão material e directa de créditos constitui o seu alicerce, o art.º 755º do Cód. Civil consagra casos especiais de direito de retenção em que se dilui (ou até inexiste) tal conexão objectiva, justificando, contudo, a garantia[3]. Entre esses casos especiais[4] figura na al. f) do n.º 1, o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art.º 442º, posição em que se encontram os réus, como assertivamente decidiram já as instâncias.

Acrescenta, por seu turno, o art.º 759º, n.º 1, do Cód. Civil que, recaindo o direito de retenção sobre coisa imóvel, o respectivo titular, enquanto não entregar a coisa retida, tem a faculdade de a executar, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário (…) e o seu n.º 3 estabelece que até à entrega da coisa são aplicáveis, quanto aos direitos e obrigações do titular da retenção, as regras do penhor, com as necessárias adaptações. Entre estas regras, sobressai a prevista no art.º 670º al. a) do Cód. Civil, em que se reconhece ao credor pignoratício o direito de usar, em relação à coisa empenhada, das acções destinadas à defesa da posse, ainda que seja contra o próprio dono.

Decorre deste regime que "o direito de retenção constitui hoje um verdadeiro direito real (não de gozo, mas) de garantia, como resulta não apenas da sua implantação sistemática no Código Civil, paredes meias com o penhor, a hipoteca e os privilégios creditórios, mas principalmente do regime traçado na lei, ao equiparar em princípio o titular da retenção ao credor pignoratício (arts. 758º e 759º nº 3) e ao colocá-lo expressamente à frente do credor hipotecário, ainda que a hipoteca tenha sido anteriormente registada, na graduação dos vários créditos sobre o mesmo devedor (art. 759º nºs 1 e 2), independentemente do registo desse direito. Quer isto significar que, em atenção à finalidade precípua da concessão do direito de retenção, o promitente-comprador que seja credor da indemnização prevista no art. 442º do Código Civil goza (contra quem quer que seja) da faculdade de não abrir mão da coisa enquanto se não extinguir o seu crédito"[5].

Aliás, sendo o direito de retenção configurado como um direito real de garantia[6] (e não meramente obrigacional), está dotado de todas as características deste tipo de direitos, incluindo a inerência à coisa sobre que incide, eficácia erga omnes e poder de sequela[7], que a todos se impõe, produzindo efeitos contra eventuais adquirentes da coisa sobre que incide. É certo que a autora, como sublinha o acórdão recorrido, é estranha ao contrato-promessa celebrado pelos réus e às obrigações que daí emergiram, não existindo a reciprocidade de créditos que é, em princípio, pressuposta pelo direito de retenção. Isso não obsta, porém, ao ius retentionis dos réus, atenta a conexão jurídica existente entre a obrigação de entrega e o crédito de que são titulares e que procedem da mesma relação jurídica[8].

Acresce que, como a este respeito, enfatiza Ana Taveira da Fonseca[9]ao contrário do que acontece com a excepção de não cumprimento, o direito de retenção é oponível não só àqueles que, no contrato, vierem a suceder nos direitos e obrigações dos contraentes, como também a todos os terceiros adquirentes da coisa retida. Da oponibilidade erga omnes do direito de retenção resulta a susceptibilidade de oposição desta garantia àqueles que tiverem adquirido a coisa depois de esta se ter constituído», no que é secundada também por Cláudia Madaleno[10] quando assinala que «a retenção é hoje oponível quer ao terceiro adquirente da coisa, quer ao terceiro que reivindique a coisa como sua…..nenhuma outra conclusão parece possível retirar do regime constante dos artigos 756º e seguintes do CC, nos quais a lei claramente admite a oponibilidade erga omnes deste direito e não apenas ao credor da obrigação de entrega da coisa».

Nesta conformidade, procedem as conclusões dos recorrentes, a quem assiste razão em insurgir-se contra o decidido, neste ponto, pela Relação e que não deve subsistir, na medida em que, sendo o direito de propriedade da autora posterior ao direito de retenção que lhes assiste, a eficácia erga omnes deste também lhe é oponível, face à sua natureza real.

De outro modo, seria bem ilusória a eficácia dessa garantia. Na verdade, seria incompreensível conferir ao beneficiário da promessa, com traditio[11], essa garantia real particularmente forte e, depois, permitir que a mesma se viesse a esboroar pela mera transmissão da coisa a terceiro. A garantia de que os recorrentes beneficiam sobre o rés-do-chão reivindicado pela autora e traduzida no direito de retenção do mesmo já o onerava, na altura da venda, e esse ónus, inerente ao próprio rés-do-chão, acompanhou-o, quando foi adquirido pela autora que inclusive tinha perfeito conhecimento dessa situação, como se alcança do ponto 19. do elenco factual provado.    


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Pode, assim, concluir-se, em síntese, que:

1 – O direito de retenção constitui uma forma de autotutela de direitos, com uma dupla função (garantia e compulsória), e encontra-se previsto, com carácter genérico, no art.º 754º do Cód. Civil.

2 - Para além do grupo de situações que derivam da aplicação autónoma desse critério geral em que a conexão material e directa de créditos constitui o seu alicerce, o art.º 755º do Cód. Civil consagra casos especiais de direito de retenção em que se dilui (ou até inexiste) tal conexão objectiva, justificando, contudo, a garantia.

3 - Entre esses casos especiais figura na al. f) do n.º 1, o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art.º 442º do Cód. Civil.

4 - O direito de retenção, reconhecido ao promitente-comprador que obteve tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, constitui um direito real de garantia, com eficácia erga omnes, produzindo efeitos contra eventuais adquirentes da coisa.

5 – Até mesmo nas situações de mera conexão jurídica, o direito de retenção será oponível ao proprietário, estranho à dívida, maxime se o bem foi adquirido em momento posterior à detenção e ao nascimento do direito de retenção.


IV – Decisão

Nos termos expostos, decide-se conceder a revista e revogar o acórdão recorrido, na parte em que negou eficácia erga omnes ao direito de retenção dos réus, ficando a subsistir o sentenciado na 1ª instância, a tal respeito.

Custas pela autora.


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Anexa-se sumário do acórdão (art.ºs 663º, n.º 7, e 679º, ambos do CPC).


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Lisboa, 14 de Dezembro de 2016

António Piçarra (relator)

Fernanda Isabel Pereira

Olindo Geraldes

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[1] Na versão aprovada pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, uma vez que o recurso tem por objecto decisão proferida já depois de 01 de Setembro de 2013 e o processo é posterior a 01 de Janeiro de 2008 (cfr. os seus art.ºs 5º, n.º 1, 7º, n.º 1, e 8º).
[2]Cfr, neste sentido, Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, pág. 974, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª edição, págs. 577 e 578, Francisco Rocha, Revista da FDUL, 2010, Coimbra Editora, Volume LI, Nºs 1 e 2, págs. 590 e 591, Júlio Gomes, Direito de retenção (arcaico, mas eficaz…), Cadernos de Direito Privado, n.º 11, pág. 12, Pedro Romano Martinez/Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, 5ª edição, Almedina, págs 226 e 227, e Luis Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, 2015, 2ª edição, Almedina, págs. 358/359.
 
[3] Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, pág. 975, nota de rodapé 3, e Pedro Romano Martinez/Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, 5ª edição, Almedina, pág. 228, indicam outros casos especiais de retenção.
[4] neste sentido, Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, pág. 974, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª edição, págs. 577 e 578, Francisco Rocha, Revista da FDUL, 2010, Coimbra Editora, Volume LI, Nºs 1 e 2, págs. 590 e 591, Júlio Gomes, Direito de retenção (arcaico, mas eficaz…), Cadernos de Direito Privado, n.º 11, pág. 12, Pedro Romano Martinez/Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, 5ª edição, Almedina, págs 226 e 227
[5] Cfr, neste sentido, Antunes Varela, RLJ ano 124, pág. 351, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, pág. 775, e, entre outros, os acórdãos do STJ de 13.01.2000 (BMJ 493, pág. 362), de 27.11.2004 (CJ/STJ, ano XII, Tomo 2, pág. 77), de 22.03.2011 (processo 3121/06.2TVLSB.E1.S1), de 12.03.2015 (processo 1775/11.7TBOLH.E1.S1) e de 15.04.2015 (processo 2583/05.0TBST.E1.S1), estes acessíveis através de www.dgsi.pt.
[6] Cfr, neste sentido, Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, pág. 48, nota 17, José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Reais, 5ª edição, Coimbra editora, págs. 551 a 553, Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 6ª edição, Quid Juris, págs. 154, 163 e 164, José Alberto Vieira, Direitos Reais, 2016, Almedina, págs. 287/288, Luis Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume II, Almedina, 2002, pág. 310, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª edição, pág. 578, Francisco Rocha, Revista da FDUL, 2010, Coimbra Editora, Volume LI, Nºs 1 e 2, págs. 582 e 583, e Luis Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, 2015, 2ª edição, Almedina, pág. 358.
[7] Cfr, neste sentido, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25.02.1986 (BMJ 354, pág. 549), de 23.01.1996 (CJ/STJ, ano IV , Tomo I, pág. 70), de 13.01.2000 (BMJ 493, pág. 362), Cláudia Madaleno, A Vulnerabilidade das Garantias Reais, Coimbra Editora, págs. 101 a 103, e Francisco Rocha, Revista da FDUL, 2010, Coimbra Editora, Volume LI, Nºs 1 e 2, págs. 582 a 587.
[8] Cfr, neste sentido, Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, págs. 76 a 80, Ana Taveira da Fonseca, Da Recusa de cumprimento da obrigação para tutela do direito de crédito, em especial na excepção de não cumprimento e no direito de retenção, teses, Almedina, 2015, págs. 304, 311, 314 e 315, Francisco Rocha, Revista da FDUL, 2010, Coimbra Editora, Volume LI, Nºs 1 e 2, págs. 585 a 587, e Júlio Gomes, Direito de retenção (arcaico, mas eficaz…), Cadernos de Direito Privado, n.º 11, págs. 11 a 13.
[9] In Da recusa de cumprimento da obrigação para tutela do direito de crédito, em especial na excepção de não cumprimento e no direito de retenção, teses, Almedina, 2015, págs. 368 e 369.
[10]  In A Vulnerabilidade das Garantias Reais, Coimbra Editora, pág. 101.
[11] Sobre o exagero da protecção conferida ao promitente- comprador e as críticas relativas à atribuição do direito de retenção, vide Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, págs. 431/432, nota de rodapé 3, e demais doutrina aí mencionada.