Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2ª SECÇÃO | ||
Relator: | ROSA RIBEIRO COELHO | ||
Descritores: | USUCAPIÃO FRACCIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA FRACIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA NULIDADE ANULABILIDADE SANAÇÃO AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA POSSE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL UNIDADE DE CULTURA | ||
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Data do Acordão: | 02/21/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / TEMPO E REPERCUSSÃO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS / PRESCRIÇÃO – DIREITO DAS COISAS / POSSE / USUCAPIÃO / USUCAPIÃO DE IMÓVEIS – DIREITO DAS COISAS / DIREITO DE PROPRIEDADE / PROPRIEDADE DE IMÓVEIS / FRACCIONAMENTO E EMPARCELAMENTO DE PRÉDIOS RÚSTICOS / SERVIDÕES PREDIAIS / CONSTITUIÇÃO DAS SERVIDÕES. | ||
Doutrina: | - Abílio Vassalo Abreu, Titularidade Registral do Direito de Propriedade Imobiliária vs Usucapião, Coimbra, p. 19; - Borges Araújo, com colaboração de Albino Matos, Prática Notarial, 4ª ed. p. 339; - Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 4ª edição, p. 232 e ss.; - Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, p. 291; - Durval Ferreira, Posse e Usucapião, 3ª ed., p. 525 e ss.; - Fernando Pereira Rodrigues, Usucapião, Constituição Originária de Direitos através da Posse, p. 33; - José Alberto Vieira, Registo de usucapião titulada por escritura de justificação notarial e presunção de titularidade do direito, Anotação ao AUJ n.º 1/2008, de 04-12-2007, Cadernos de Direito Privado, n.º 24, Outubro/Dezembro de 2008, p. 37; - José Alberto Vieira, Direitos Reais, p. 405 a 409; - Mónica Jardim e Dulce Lopes, Acessão industrial imobiliária e usucapião parciais versus destaque, Da Intersecção entre o Direito Civil e o Direito Urbanístico, p. 810; - Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, p. 470; - Oliveira Ascensão, Efeitos Substantivos do Registo Predial na Ordem Jurídica Portuguesa, ROA, Ano 34, p. 43/46 ; Direitos Reais, Lisboa 1971, p. 337; - Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 4ª edição, vol. I, p. 263 e 269 ; Código Civil Anotado, 2ª edição, Vol. III, p. 65 e 259; - Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, 3ª edição, p. 341-342. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 303.º, 1287.º, 1288.º, 1292.º, 1293.º, 1376.º, 1379.º, N.º 1 E 1548.º, N.º 1. DECRETO N.° 16731, DE 13-04-1929: - ARTIGO 107.º. LEI N.º 111/2015, DE 27-08: - ARTIGO 1379.º. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - DE 19-10-2004, PROCESSO N.º 04A2988; - DE 27-06-2006, PROCESSO N.º 06A1471; - DE 04-02-2014, PROCESSO N.º 314/2000.P1.S1; - DE 06-04-2017, PROCESSO N.º 1578/11.9TBVNG.P1.S1; - DE 01-03-2018, PROCESSO N.º 1011/16.OT8STB.E1.S2; - DE 03-05-2018, PROCESSO N.º 7859/15.5T8STB.S1; - DE 12-07-2018, PROCESSO N.º 7601/16.3T8STB.E1.S1; - DE 08-11-2018, PROCESSO N.º 600/16.1T8STB.E1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT. | ||
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Sumário : | I – O fracionamento de um prédio rústico não se operou com as declarações de aquisição, por usucapião, das parcelas de terreno feitas nas escrituras de justificação. II – Tal fracionamento teve lugar com os atos de divisão material levados a cabo sobre o imóvel e concomitante início da posse de cada possuidor sobre as parcelas emergentes da divisão, posse essa que, prolongada no tempo, viabilizou a aquisição, por usucapião, declarada naqueles atos notariais. III – A proibição de fracionamento de prédios rústicos constante do art. 107º do Decreto nº 16731 e da Lei nº 2116 estabelecia a sanção de nulidade para a divisão de prédios rústicos de área inferior à estabelecida legalmente. IV – Com o art. 1379º, conjugado com o art. 1376º, ambos do C. Civil, e com a Portaria nº 202/70 esta sanção passou a ser a de anulabilidade, tendo voltado a ser a de nulidade com a redação dada ao mesmo art. 1379º pela Lei nº 111/2015. V – A usucapião é uma forma de aquisição originária da generalidade dos direitos reais de gozo que pressupõe o exercício da posse correspondente ao respetivo direito por um certo período de tempo; mas nem todos os direitos reais de gozo podem ser adquiridos por usucapião, sendo o próprio Código Civil a excluir do âmbito deste instituto o direito de uso e habitação e as servidões prediais aparentes, bem como as coisas que se encontram no domínio público e as que são, por sua natureza, insuscetíveis de apropriação individual. VI – A usucapião é uma forma de aquisição originária que surge “ex novo” na titularidade do sujeito, unicamente em função da posse exercida por certo período temporal, sendo, por isso, absolutamente autónoma e independente de eventuais vícios que afetem o ato ou negócio gerador da posse. VII – Mesmo sendo nulo o fracionamento de terreno apto para a cultura que despoletou o início da posse, tal vício não é suscetível de excluir a faculdade de usucapir por parte do possuidor de parcela emergente dessa divisão ilegal. VIII – Não se descortina, entre as normas legais reguladoras do fracionamento de prédios rústicos, alguma que negue a possibilidade de adquirir por usucapião as parcelas de terreno que venham a ser objeto de posse mercê de fracionamento ilegal de prédio rústico. IX – Igualmente não tem essa natureza o art. 1376º do CC, pelo não existe a “disposição em contrário” que, nos termos do art. 1287º, pode obstar a que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculte ao possuidor a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação. X - A estar em causa uma mera anulabilidade, sanável no caso de sobre o ato de divisão decorrer o prazo de três anos sem que seja proposta a ação constitutiva tendente a anulá-lo, a violação das regras legais cometida no fracionamento perde, nessa hipótese, toda e qualquer relevância e deixa de poder ser invocada para qualquer efeito. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
2ª SECÇÃO CÍVEL I – O Exmo. Magistrado do Ministério Público intentou contra AA e BB, CC, DD e EE, e FF a presente ação declarativa constitutiva extintiva, pedindo que seja declarada a anulabilidade dos negócios jurídicos constantes de quatro escrituras de justificação notarial através das quais os 1.ºs, 2.º, 3.ºs e 4.ª réus invocaram o direito de propriedade, adquirido originariamente por usucapião, de parcelas de terreno compostas de terra de semeadura, sitas em …, freguesia e concelho de …, com as áreas de 1.357,00, 3.146,00, 1.573,00 e 1.473,00 metros quadrados, respetivamente, suprindo, desta forma, a inexistência de títulos adequados para procederem ao registo. Para tanto alega, em síntese, que as parcelas de terreno em causa foram desanexadas de um prédio rústico composto de vinha e horta, em violação do disposto no art. 1376.º do Código Civil quanto ao fracionamento dos prédios rústicos; logo, é proibida por lei a divisão dos prédios originais operada por esses negócios jurídicos. Foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, decidindo “não anular as escrituras públicas de justificação outorgadas pelos réus AA e BB, CC, DD e EE e FF em 22 de Novembro de 2013, no Cartório Notarial da Lic. GG em ….” Interposta apelação pelo Magistrado do M. P., veio a Relação de … a proferir acórdão que a julgou improcedente, confirmando a decisão da 1ª instância. Ainda inconformado, o Ministério Público interpôs recurso para este STJ, em primeira linha como revista normal e, subsidiariamente, como revista excecional. Distribuído o recurso como revista normal, pelo então Relator foi proferido despacho que o não admitiu como tal e determinou a remessa do processo à Formação a que alude o art. 672º, nº 3 do CPC, em ordem a aferir a verificação dos invocados pressupostos da revista excecional. Por esta Formação foi proferido acórdão que admitiu a revista como excecional. Nas alegações apresentadas, o recorrente, pugnando pela revogação do acórdão impugnado, formula as conclusões que seguidamente se transcrevem, expurgadas da parte relativa à admissibilidade da revista: (…) III - As escrituras de justificação, embora não constituindo actos translativos da propriedade, não deixam por isso de constituir actos de fracionamento, que só a partir da sua celebração é possível impugnar, porque só então é possível ter acesso a um documento escrito onde fica visível a violação das regas impeditivas do fracionamento. IV - Uma adequada interpretação do art° 1379° n° 3 do CC, quando dispõe que " A acção de anulação caduca no fim de três anos, a contar da celebração do acto ..." leva a concluir que o único acto "celebrado", a partir do qual começa a correr o prazo para anulação do fracionamento, só pode ser o da " celebração" da escritura de justificação onde é invocada a usucapião, dado que no início da posse não houve qualquer acto "celebrado", mas apenas uma divisão material e uma doação verbal. V - Deve, por isso entender-se que, na realidade, o fracionamento só se tornou operante com as escrituras de justificação, uma vez que só nesse momento os justificantes obtiveram título jurídico válido do fracionamento realizado. VI - Porém, se se entender dever ser seguido o entendimento do acórdão recorrido, de que as escrituras de justificação não constituem acto de fracionamento, tem este de considerar-se como realizado, não no momento das posteriores doações, mas sim no momento da divisão material do prédio, a qual se verificou em 1969, pelo que teria então de ser apreciado se esse acto de fracionamento, praticado em 1969, violava as normas então vigentes relativas ao fracionamento. VII - Dado que se encontrava em vigor em 1969 o disposto no art° 107° do Decreto n° 16731, de 13/4/1929, que proibia, sob pena de nulidade, a divisão de prédio rústico em novos prédios de menos de meio hectare, como sucede no caso dos autos, o fracionamento então realizado pela divisão do prédio em parcelas posteriormente doadas, é nulo, podendo ser como tal declarado a todo o tempo. VIII - Dispondo o art° 1287° do CC, que a usucapião opera, "salvo disposição em contrário", deverá entender-se que tal disposição em contrário é a constante do art° 1376° do CC, que impede o fracionamento de prédios rústicos em novos prédios com área inferior à unidade de cultura. IX - Tal entendimento mostra-se reforçado quando se compara tal norma com a correspondente disposição do Código Civil de 1867, em cujo art° 530° se estabelecia o seguinte: “As disposições dos artigos antecedentes, com relação à prescrição de direitos imobiliários, só podem ter excepção nos casos em que a lei expressamente o declarar." X - O Código Civil vigente deixou de exigir para exclusão da usucapião uma excepção expressamente declarada, bastando-se com a existência de uma "disposição em contrário", o que, manifestamente ocorre com a existência do art° 1376°. XI - As regras de ordenamento do território, nelas se incluindo tanto as respeitantes a loteamentos e destaques, como as de proibição de fracionamento, por revestirem inequívoca natureza pública, devem prevalecer sobre as normas de direito privado relativas à usucapião, sob pena de, assim não se entendendo, se estar a deixar sem qualquer protecção o ordenamento do território nacional. XII - Ao alterar a redacção do disposto no art° 1379° n° 1 do CC, passando a impor a sanção de nulidade para os actos de fracionamento violadores da unidade de cultura, a Lei n° 111/2015, de 27/08, reafirmou o carácter imperativo do disposto no art° 1376° do CC e confirmou, sem qualquer dúvida, a não prevalência da usucapião sobre as regras legais de proibição de fracionamento. XIII - O legislador demonstrou claramente, na exposição de motivos da Lei n° 111/2015, que pretendeu intervir "através da possibilidade de impedimento dos atos jurídicos que contrariem esses limites, com o objetivo de se garantir a sustentabilidade das estruturas fundiárias." XIV - Assim, é de acolher, no caso dos autos, a posição jurisprudencial que decorre dos Acórdãos do STJ de 30/4/2015 e de 26/1/2016 (Procs. n° 10495/08.9TMSNT.L1.S1 e n° 5434/09.2TVLSB.L1.S1), bem como dos acórdãos da Relação de Évora de 25/5/2017 e 26/10/2017 (Procs. n° 1214/16.7T8STB.E1 e n° 7859/15.5T8STB.E1), tendo estes últimos decidido, em situação absolutamente idêntica, no sentido de que a usucapião não prevalece sobre as regras de proibição do fracionamento. XV - Uma vez que, na presente acção, cada uma das parcelas fraccionadas tem área inferior a 0,5 ha, - valor mínimo da unidade de cultura prevista na Porta n° 202/70 e igualmente inferior à área de 0,5 ha, prevista no art° 107° do Decreto n° 16731 de 13/4/1929, - não pode a usucapião ser reconhecida como eficaz, dado que não prevalece sobre norma imperativa de proibição de fracionamento, quer a contida no art° 1376° n° 1 do C Civil, quer a contida no art° 107° do Decreto n° 16731, de 13/4/1929. XVI - Não tendo assim decidido violou o douto acórdão recorrido o disposto nos art°s 286°, 294°, 1287°, 1376° e 1379° do Código Civil, devendo ter interpretado os mesmos com o sentido que decorre das conclusões que antecedem. Não foram apresentadas contra-alegações. Cumpre decidir, sendo questões sujeitas à nossa apreciação as de saber se: - as escrituras de justificação podem ser consideradas como atos de fracionamento para efeitos do que dispõe o art. 1379º do CC, na redação aplicável, a anterior à introduzida pela Lei nº 111/2015, de 27.08 – conclusões III a V; - tendo ocorrido em 1969, por então se ter operado a divisão material do imóvel, o fracionamento em causa está ferido de nulidade – conclusões VI e VII; - a usucapião prevalece, ou não, sobre as regras de proibição do fracionamento de prédios rústicos – demais conclusões. II – Vêm descritos como provados os seguintes factos: 1. No dia 22 de Novembro de 2013, por escritura pública celebrada no Cartório Notarial da Lic. GG em …, os 1.ºs réus justificaram a posse de uma parcela de terreno com a área de 1 573, 00 m2, sita em …, freguesia de …, concelho de …, composta de terras de semeadura, confrontando de Norte com HH, de Sul com Rua …, de Nascente com II e de Poente com DD. 2. No dia 22 de Novembro de 2013, por escritura pública celebrada no mesmo Cartório Notarial, o 2.º réu justificou a posse de uma parcela de terreno com a área de 3 146, 00 m2, sita em …, freguesia de …, concelho de …, composta de terras de semeadura, confrontando de Norte com HH, de Sul com Rua … e JJ, de poente com o DD e de Nascente com JJ. 3. No dia 22 de Novembro de 2013, por escritura pública celebrada no mesmo Cartório Notarial, os 3.ºs réus justificaram a posse de uma parcela de terreno com a área de 1 573, 00 m2, sita em …, freguesia de …, concelho de …, composta de terras de semeadura, confrontando de Norte com HH, de Sul com Rua …, de poente com AA e de Nascente com CC. 4. No dia 29 de Novembro de 2013, por escritura pública celebrada no mesmo Cartório Notarial, a 4.ª ré justificou a posse de uma parcela de terreno com a área de 1 473, 00 m2, sita em …, freguesia de …, concelho de …, composta de terras de semeadura, confrontando de Norte com HH, de Sul com Rua …, de poente com KK e de Nascente com II. 5. Tais prédios foram, assim e naquela data, desanexados de um prédio rústico composto de vinha e horta, inscrito na matriz sob o art.º 60-S- da Freguesia de …. 6. A totalidade do prédio veio à posse de LL e marido MM por óbito dos pais dela, por adjudicação em partilha verbal, por volta do ano de 1960. 7. Com vista à regularização documental e divisão do prédio como consta atualmente do registo predial, LL e marido fizeram partilha com os restantes herdeiros de NN e de OO (pais de LL) em 1983, por via da qual a totalidade do imóvel, foi formalmente inscrita a seu favor, não obstante já se encontrar dividido desde 1969. 8. Em 1969, LL e marido dividiram no terreno o prédio em diversas parcelas com vista a futura doação aos filhos. 9. Em 1984, LL e marido doaram a parcela de terreno justificada pelos aqui réus AA e cônjuge BB, à filha daqueles PP, que por sua vez, no ano seguinte, em 1985, vendeu de modo verbal aos identificados réus. 10. Pelo que há mais de vinte anos à data da outorga da escritura pública de justificação por usucapião, que os réus AA e BB possuem a parcela de terreno com 1573 m2, em …, descrita na CRPP sob o nº 3402, o que fazem em nome próprio, ininterruptamente, a qual se encontra desde há muito demarcada, com total exclusividade e independência. 11. Os réus AA e cônjuge praticam desde sempre nessa parcela de terreno todos os atos inerentes à qualidade de exclusivos proprietários, cultivam na, executam demais trabalhos de cariz agrícola, colhem frutos, edificaram uma benfeitoria em que residem, o que fazem na plena convicção de exercerem direito próprio e exclusivo, à vista de todos desde o início da posse e sem oposição e quem quer que seja. 12. De modo contínuo e de boa-fé não obstante, até à celebração da escritura de justificação em apreço, não existir título que justificasse a divisão e as transmissões sequenciais verificadas, por não tituladas, por isso à data sem registo predial. 13. Em 1972, LL e marido doaram duas parcelas de terreno, cada uma com 1573 m2, às filhas QQ e RR, que por sua vez, no ano seguinte, em 1973, as venderam verbalmente ao réu CC, que depois as anexou, por serem contíguas, constituindo um prédio único há mais de trinta anos. 14. Desde essa altura que o réu CC tem em seu poder a parcela justificada, o que faz em nome próprio, ininterruptamente, desde sempre também demarcada, com total exclusividade e independência. 15. O réu CC também pratica nessa parcela os atos inerentes à qualidade de exclusivo proprietário, cultiva-a, executa demais trabalhos agrícolas, colhe frutos, o que faz na plena convicção de exercer direito próprio e exclusivo, à vista de todos desde o início da posse e sem oposição de quem quer que seja. 16. Também com continuidade e de boa-fé, sem antes dispor de título justificativo. 17. Em 1975, a referida LL e marido MM, doaram verbalmente a parcela de terreno aos réus DD e marido EE. 18. Desde essa altura que os réus DD e marido EE detêm o poder sobre a parcela justificada, o que fazem em nome próprio, ininterruptamente, há muito demarcada e independente. 19. Os réus DD e marido praticam desde sempre no terreno todos os atos inerentes à qualidade de exclusivos proprietários, cultivam-na, edificaram aí a casa em que residem, o que fazem na plena convicção de exercerem, como efetivamente exercem, direito próprio e exclusivo, à vista de todos desde o início da posse e sem oposição e quem quer que seja. 20. Em 1975, LL e o marido MM, doaram verbalmente esta parcela de terreno à ré FF. 21. Desde essa altura que a ré FF detém o poder sobre a parcela justificada, o que faz em nome próprio, ininterruptamente, em imóvel demarcado e independente. 22. A ré pratica desde sempre nessa parcela os atos inerentes à qualidade de exclusiva proprietária, cultiva-a, colhe frutos, o que faz na plena convicção de exercer um direito próprio e exclusivo, à vista de todos desde o início da posse e sem oposição e quem quer que seja. 23. O que a ré sempre fez e faz de modo contínuo e de boa-fé. 24. Os réus justificaram assim para si as mencionadas quatro parcelas de terreno, que se encontravam há muito devidamente autonomizadas. 25. Todas as parcelas de terreno, que desde, pelo menos, a década de oitenta do século passado estão fisicamente consolidadas e demarcadas. III – É agora altura de abordar as questões suscitadas. Das escrituras de justificação e dos atos de fracionamento: Como vimos já, o autor pretende ver declarada a anulabilidade dos negócios jurídicos que as escrituras de justificação notarial titulam, por estas, como sustentam em primeira linha, constituírem atos de divisão de prédio rústico violadores das regras de fracionamento instituídas nas disposições combinadas dos arts. 1379º, nº 1 e 1376º do Código Civil[1], aquele na redação vigente em 2013, e da Portaria nº 202/70, de 21.04. A primeira daquelas normas – cuja redação foi entretanto alterada pelo art. 59º da Lei nº 111/2015, de 27.08[2] – feria de anulabilidade “os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos arts. 1376º e 1378º …”, prescrevendo ainda no seu nº 3 que “A ação de anulação caduca ao fim de três anos a contar da celebração do acto (…)” Por seu lado, o nº 1 do art. 1376º dispõe que “Os terrenos aptos para cultura não podem fracionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para zona do País (…)” E a Portaria nº 202/70, de 21.04[3], então em vigor[4], fixava, para a área de Setúbal[5], em 0,50 hectares (5.000 m2), a unidade de cultura para terrenos de regadio hortícola, como são de qualificar os que aqui estão em causa. Em face deste regime legal e tendo em conta que cada uma das parcelas, cuja aquisição, por usucapião, os réus justificaram, não atinge a área mínima de 0,5 hectares, tanto a sentença como o acórdão impugnado concluíram que a divisão do prédio assim operada viola a regra imperativamente fixada no art. 1376º, nº 1. Mas enquanto a sentença parece ter considerado como “acto de fracionamento” o negócio jurídico a que cada uma das escrituras dá corpo, já o acórdão recorrido rejeitou, e a nosso ver acertadamente, tal maneira de ver as coisas, discorrendo sobre a natureza da escritura de justificação notarial a que aludem os arts. 116º do Código de Registo Predial[6] e 98º, nº 1 do Código de Notariado do seguinte modo [7]: “As referidas escrituras públicas em causa constituem o instrumento através do qual cada um dos RR (ou grupo de RR) declararam ser possuidores de uma parcela de terreno desanexada do prédio rústico composto de vinha e horta, com exclusão de outrem, sendo que, atendendo à duração e carateres da concreta posse, adquiriram a referida parcela por usucapião, suprindo, desta forma, a inexistência de título adequado para procederem ao registo (…) Trata-se de um expediente técnico simplificado, um processo anormal de titulação, de uma forma especial de titular direitos sobre imóveis, para efeito de descrição na Conservatória do Registo Predial, baseada em declarações dos próprios interessados, embora confirmadas por três declarantes. «Na génese do sistema em que assenta a justificação notarial está o princípio do trato sucessivo. Partindo da ideia de que, respeitando este princípio, se poderia criar um documento que substituísse, para efeitos de registo, títulos faltosos, criou-se um sistema em que nos aparece a nova escritura, de natureza excepcional, para apoiar e servir as necessidades do registo obrigatório, que se pretendia estabelecer. O novo título foi buscar ao princípio do trato sucessivo a sua razão de ser, servindo não só o registo obrigatório como o registo predial em geral, ao possibilitar registos que de outro modo seriam impossíveis.»[8] A escritura de justificação notarial “tem por escopo providenciar aos interessados um meio de titulação de factos jurídicos relativos a imóveis que ou não possam ser provados pela forma original ou cuja eficácia se desencadeia legalmente sem necessidade de observância de forma escrita, como a usucapião ou a acessão”.[9] (…) Certo é que a justificação notarial não constitui ato translativo[10] nem constitutivo de direitos. Efetivamente, a declaração prestada pelo interessado na outorga da escritura de justificação nos moldes previstos no art.º 89.º do Código do Notariado consubstancia um negócio jurídico unilateral. Seguindo de perto os ensinamentos de Manuel de Andrade[11], o negócio jurídico pode definir-se «como um facto voluntário lícito cujo núcleo essencial é constituído por uma ou várias declarações de vontade privada, tendo em vista a produção de certos efeitos práticos ou empíricos, predominantemente de natureza patrimonial (económica), com ânimo de que tais efeitos sejam tutelados pelo direito – isto é, que obtenham a sanção da ordem jurídica – e a que a lei atribui efeitos jurídicos correspondentes, determinados, grosso modo, em conformidade com a intenção do declarante ou declarantes (autores ou sujeitos do negócio).» (…) «Nos negócios unilaterais há uma só declaração de vontade ou há várias declarações de vontade, mas concorrentes ou paralelas. (…) há nestes negócios um só lado, uma única parte. (…) não há neles interesses contrapostos, mas um único interesse ou interesses análogos – uma comunidade de interesses, como talvez se pode dizer.» (…) Em face do exposto, os atos titulados nas escrituras públicas cuja anulação aqui vem peticionada constituem negócios jurídicos unilaterais declarativos da aquisição de cada uma das parcelas de forma originária, por via da usucapião; não consubstanciam atos constitutivos ou translativos do direito de propriedade nem atos constitutivos do fracionamento do prédio rústico composto de vinha e horta (…). É entendimento que pela sua inteira correção acolhemos na íntegra. O fracionamento do prédio rústico não se operou com as declarações de aquisição, por usucapião, das parcelas de terreno feitas pelos réus nas escrituras de justificação, teve lugar, isso sim, com os atos de divisão material levados a cabo sobre o imóvel e concomitante início da posse de cada um dos réus sobre as parcelas emergentes da divisão, posse essa que, prolongada no tempo, viabilizou a aquisição, por usucapião, declarada naqueles atos notariais. Como se escreveu no acórdão deste STJ de 8.11.2018[12]: (…) a justificação notarial constitui um mero instrumento jurídico através do qual, por via da invocação de razões de ciência, se obtém um título justificativo da aquisição do direito real por usucapião. (…) Não é o referido ato que traduz o fracionamento do prédio, o qual deve corresponder ao ato de divisão material, a partir do qual se iniciou a posse sobre cada uma das parcelas que, prolongando-se no tempo, por período legalmente suficiente, permitiu a invocação por parte dos RR. da aquisição originária do direito de propriedade sobre cada uma delas por via da usucapião.”[13] Não colhe, pois, a tese defendida, em primeira linha, pelo recorrente quanto a esta questão. Da divisão material/fracionamento do prédio e sua invalidade: Para o caso de se acolher como boa a tese do acórdão recorrido e se entender que o fracionamento ocorreu, não com a outorga das escrituras públicas de justificação, mas com os atos de divisão material do prédio, o autor sustenta agora que essa divisão, tendo ocorrido em 1969, é nula nos termos do art. 107º do Decreto n° 16731, de 13/4/1929, vício que a todo o tempo e oficiosamente pode ser declarado. Dizendo que não valem como atos de divisão material do prédio as doações feitas, o recorrente situa essa divisão em 1969, certamente a partir do que se apurou no facto nº 8, que, relembremos, tem o seguinte teor: “Em 1969, LL e marido dividiram no terreno o prédio em diversas parcelas com vista a futura doação aos filhos.” Este facto, tal como se acha redigido, não permite concluir que então tenha ocorrido a divisão material do prédio que pressupõe a sua distribuição por dois ou mais proprietários[14], ressalvado o caso da constituição de usufruto. Sem melhor concretização, o mesmo apenas permite inferir que LL e marido procederam naquela data à sua divisão em abstrato, ficando-se na ignorância sobre se a partir de então a posse sobre as parcelas – cujo número, área e configuração igualmente se ignoram - passou a ser exercida por titulares diversos. A nosso ver essa divisão material ocorreu com as posteriores doações a que aludem os factos nºs 9, 13, 17 e 20 e subsequentes atos possessórios. Mas ainda que se situasse em 1969 a divisão material do prédio, ao caso não seria aplicável, ao invés do que sustenta o recorrente, o art. 107º do Decreto n° 16731, de 13/4/1929 que estabelecia ser “proibida, sob pena de nulidade … a divisão de prédios rústicos de superfície inferior a 1 hectare ou de que provenham novos prédios de menos de ½ hectare”. (sublinhado nosso) Isto porque tal regime, mantido na sua essência pela Lei nº 2.116, de 18.4.62[15], [16], veio a ser alterado pelo Código Civil de 1967 que estabeleceu no art. 1379º, nº 1 serem “anuláveis os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos arts. 1376º e 1378º …”; e é este o regime aplicável em 1969 – e também em 1972, 1975 e 1984, data das doações -, já que o Código Civil entrou em vigor em 1 de Junho de 1967[17]. Assim, sempre estaria em causa o vício da anulabilidade e não o da nulidade. Da usucapião e das regras sobre a proibição do fracionamento de prédios rústicos: Sustenta o recorrente, em síntese nossa, que a usucapião não prevalece sobre a divisão ilegal de prédio rústico, devendo entender-se que é “disposição em contrário” ressalvada no art. 1287º do C. Civil, a constante do art° 1376º que impede o fracionamento de prédios rústicos em novos prédios com área inferior à unidade de cultura. Cremos que também quanto a este ponto se não pode acolher a sua tese. A usucapião é, como se sabe, uma forma de aquisição originária da generalidade dos direitos reais de gozo que pressupõe o exercício da posse correspondente ao respetivo direito por um certo período de tempo – art. 1287º. Porém, só é boa para usucapião a posse que observe certas características, não valendo como sustentáculo desta forma de aquisição de direitos reais a que se tenha constituído com violência ou ocultamente; apenas se cessar essa violência ou se se tornar pública a posse terá início o decurso do prazo da usucapião – arts. 1297º e 1300º, nº 1 –, a significar que só a posse pública e pacífica pode desencadear o funcionamento deste instituto.[18] Ainda, a aquisição por usucapião não funciona “ipso iure”, sendo necessária a sua invocação por parte daquele a quem aproveita, manifestando, por via judicial ou extrajudicial, a vontade de usucapir o direito a que se refere a sua posse – arts. 303º e 1292º; e uma vez invocada, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse – art. 1288º.[19] Porém, como resulta do que acima dissemos já, nem todos os direitos reais de gozo podem ser adquiridos por usucapião, sendo o próprio Código Civil a excluir expressamente, nos seus arts. 1293º e 1548º, nº 1, do âmbito deste instituto o direito de uso e habitação e as servidões prediais aparentes. Cada uma destas normas constitui, em margem para dúvidas, “disposição em contrário” conforme ressalvado no art. 1287º.[20] Disposição em contrário é ainda o art. 202º, nº 2 que exclui do objecto das relações jurídicas “todas as coisas que não podem ser objecto de direitos privados, tais como as que se encontram no domínio público e as que são, por sua natureza, insusceptíveis de apropriação individual.” Estando fora do objecto da posse privada, os direitos reais sobre tais coisas não podem, naturalmente, ser adquiridos por usucapião. [21] No campo dos atos de fracionamento, levados a cabo com violação de normas de natureza imperativa reguladoras da gestão do património, vem sendo defendido por alguma da nossa doutrina a inadmissibilidade de invocação da usucapião como meio de superar os obstáculos legais criados à realização desses fracionamentos. Nesta senda e como outros direitos reais de gozo que não podem ser adquiridos por usucapião, Fernando Pereira Rodrigues[22] indica os relativos a parcela de terreno de um prédio rústico que tenha sido loteado em violação da norma imperativa do art. 54º, nº1, da Lei nº 91/95, de 2.09 que, na sua versão original, feria de nulidade “os negócios jurídicos entre vivos de que resultem ou possam vir a resultar a constituição da compropriedade ou a ampliação do número de compartes de prédios rústicos, quando tais actos visem ou deles resulte parcelamento físico em violação ao regime legal dos loteamentos urbanos.” Prossegue este autor dizendo que “o reconhecimento da autonomia jurídica da dita parcela, mediante recurso à figura da usucapião, redundaria na violação de normas imperativas, designadamente daquelas que visam a recuperação de áreas degradadas. (…) a usucapião é um meio alternativo de constituição do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo através da posse, no pressuposto de que essa aquisição, em abstrato, também poderia ter lugar através de outro meio legal de aquisição, designadamente o negócio jurídico ou o contrato. (…) não pode funcionar como válvula de escape para se adquirir o bem que de outro modo nunca seria suscetível de aquisição. Não pode a usucapião ser vista, em qualquer circunstância, como um processo singular de aquisição de direitos que, de outra forma, não poderiam ser adquiridos em face do direito constituído. Deste modo, não só os bens expressamente excluídos por lei da usucapião não podem ser usucapidos, como também, não podem ser objeto de usucapião aqueles outros que, por natureza, ou por disposição da lei, estão excluídos do comércio jurídico. (…) se um prédio rústico, em termos legais, não podem ser objeto de fracionamento, não pode o mesmo operar-se mediante invocação da usucapião, ainda que no plano da realidade empírica ele se verifique.” No mesmo sentido opinam Mónica Jardim e Dulce Lopes.[23] Mas não é entendimento que seja unanimemente acolhido pela nossa doutrina. Mesmo em casos de posse fundada em negócio de que resulte um fracionamento proibido por lei e que por esta seja cominado com o vício da nulidade, há que lembrar os ensinamentos doutrinários que passamos a enunciar. Ensinam Mota Pinto[24] e Castro Mendes[25] que a possibilidade de invocação perpétua da nulidade do negócio pode ser precludida pela verificação da prescrição aquisitiva. No mesmo sentido, Pires de Lima e Antunes Varela[26] escrevem que o não estabelecimento de um prazo para a arguição da nulidade “não afecta os direitos que hajam sido adquiridos por usucapião”. No dizer de Oliveira Ascenção “A usucapião representa (como aliás a ocupação e a acessão) uma forma de aquisição originária. O novo titular recebe o seu direito independentemente do direito do titular antigo. Em consequência, não lhe podem ser opostas as excepções de que seria passível o direito daquele titular”[27]. Ainda segundo Abílio Vassalo Abreu[28], “o direito adquirido por usucapião surge ex novo na esfera jurídica do sujeito, pois não depende geneticamente de um direito anterior, depende tão só, do facto aquisitivo em que o processo de usucapião se analisa”. Finalmente, Durval Ferreira[29], tratando a matéria com profundidade – em capítulo com a epígrafe “Usucapião e Lei do Ordenamento do Território” –, faz notar que a aquisição do direito por usucapião é originária, genética e endógena, na medida em que tem por causa, tem na sua génese, apenas a posse; esta e a “aquisição do direito por usucapião são originárias, agnósticas e bastam-se com certo senhorio de facto, tal como é, por certo lapso de tempo.” E ainda que, visando a usucapião satisfazer o interesse público “da certeza da existência dos direitos reais sobre as coisas e da respetiva titularidade e de a conseguir através da respetiva prova – «pela posse» (…)”, o possuidor que invoca a usucapião apenas tem de se preocupar com a posse que alega e respetiva demonstração. Salienta ainda o facto de não existir nos diplomas legais sobre loteamentos, destaques ou fracionamento de prédios rústicos “a disposição em contrário”, exigida pelo art. 1287º para que a posse exercida por certo lapso de tempo não faculte ao possuidor a aquisição do direito por usucapião. E porque esta se funda diretamente na posse, com absoluta independência relativamente aos direitos que antes tenham incidido sobre a coisa, este autor conclui que a ilegalidade do fracionamento de prédio rústico carece de idoneidade para interferir, excluindo, na aquisição, por usucapião, de parcela de terreno resultante daquela divisão. A nossa jurisprudência sobre a matéria adota, em larga maioria[30], esta segunda posição, considerando que a usucapião prevalece sobre fracionamento ilegal de terreno apto para cultura, como nos dão conta os acórdãos deste STJ de 19.10.2004[31]; de 27.06.2006[32], de 4.02.2014[33]; de 6.04.2017[34], de 1.03.2018[35], de 3.05.2018[36], de 12.07.2018[37] e de 8.11.2018[38]. Sendo a usucapião uma forma de aquisição originária que surge “ex novo” na titularidade do sujeito, unicamente em função da posse exercida por certo período temporal, sendo, por isso, absolutamente autónoma e independente de eventuais vícios que afetem o ato ou negócio gerador da posse, afigura-se-nos também a nós que mesmo sendo nulo o fracionamento de terreno apto para a cultura que despoletou o início da posse, tal vício não é suscetível de interferir negativamente - excluindo-a - na faculdade de usucapir por parte do possuidor de parcela emergente dessa divisão ilegal. No dizer claro e certeiro do já citado acórdão deste STJ de 27.06.2006: “Invocada a usucapião, como forma de aquisição, justamente porque de aquisição originária se trata, irrelevam quaisquer irregularidades precedentes e eventualmente atinentes à alienação ou transferência da coisa para o novo titular, sejam os vícios de natureza formal ou substancial. O que passa a relevar e a obter tutela jurídica é a realidade substancial sobre a qual incide a situação de posse. Concorrendo, aferidas pelas características desta, os requisitos da usucapião, os vícios anteriores não afectam o novo direito, que decorre apenas dessa posse, em cujo início de exercício corta todos os laços com eventuais direitos e vícios, incluindo de transmissão, anteriormente existentes. Daí que, pode concluir-se, porque a usucapião se funda directa e imediatamente na posse, cujo conteúdo define o do direito adquirido, com absoluta independência relativamente aos direitos que antes dessa aquisição tenham incidido sobre a coisa, aquela invalidade formal, que afastou quaisquer efeitos da aquisição derivada, e a ilegalidade do fraccionamento, de resto há muito sanada (art. 1379º-2 e 3 C. Civil), careçam de qualquer potencialidade ou idoneidade para interferir na operância da invocada forma de aquisição da parcela, tal como se mostra formulada na reconvenção (no mesmo sentido, o ac. deste STJ de 19/10/04, Proc. 04A2988, ITIJ).” Acresce notar que, em face do já citado art. 1287º, a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, só deixa de facultar ao possuidor a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação, se houver disposição em contrário; e não se descortina que, entre as normas legais reguladoras do fracionamento de prédios rústicos, alguma disponha em sentido idêntico aos já referidos arts. 1293º e 1548º, nº 1, ou seja, negue a possibilidade de adquirir por usucapião as parcelas de terreno que venham a ser objeto de posse mercê de fracionamento ilegal de prédio rústico.[39] “(…) disposição legal em contrário será aquela que estabeleça, precisamente, que certa e determinada posse não conduz a usucapião.” Disposição “que no plano do «senhorio de facto», da realidade empírica exclua a sua existência ou a sua relevância perante os preceitos legais e normativos (…) da posse e do usucapião.”[40] E, contra o que defende o recorrente, também não tem esta natureza o art. 1376º. Ademais no caso dos autos, como referimos já, o fracionamento ilegal que despoletou o início da posse nem sequer é sancionado com o vício da nulidade. É-lhe aplicável, como vimos, o art. 1379º, na redação anterior à ora vigente, que, no seu nº 1, feria de mera anulabilidade os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos arts. 1376º e 1378º e no nº 3 estabelecia a caducidade da ação de anulação que não fosse proposta no prazo de três anos a contar da celebração do ato. Em causa está, pois, uma mera anulabilidade que ficará sanada no caso de sobre o ato decorrer o prazo de três anos sem que seja proposta a ação constitutiva tendente a anulá-lo, a significar que a violação das regras legais cometida no fracionamento perde, nessa hipótese, toda e qualquer relevância e deixa de poder ser invocada para qualquer efeito. Assim, no dizer da Pires de Lima e Antunes Varela[41], em comentário ao art. 1379º, na redação anterior à introduzida pela Lei nº 111/2015, de 27.08, “se através de um negócio jurídico nulo (v.g. por falta de forma) se realizar um fracionamento ou uma troca contrária ao disposto nos artigos 1376º e 1379º, e se, na sequência disso, se constituírem as situações possessórias correspondentes, aqueles preceitos não obstam a que estas situações se consolidem por usucapião, logo que se verifiquem todos os requisitos legais. Embora as regras sobre fracionamento e troca de terrenos aptos para cultura sejam determinados por razões de interesse público, os negócios que as infrinjam só são impugnáveis dentro de um prazo bastante curto (o prazo indicado no nº 3). Decorrido este prazo, a violação da lei deixa de relevar seja para que efeito for, não podendo, por conseguinte, impedir a aquisição de direitos por usucapião." Deste modo, e considerando a data em que ocorreram os fracionamentos - em 1972, 1975 e 1984 - que estiveram na base do início da posse de cada um dos réus sobre as respetivas parcelas e o lapso de tempo entretanto decorrido com manutenção ininterrupta dessa mesma posse, tem de concluir-se que esta determinou, independentemente do vício de anulabilidade efetivamente verificado – e há muito sanado -, a aquisição originária, por usucapião, do direito de propriedade sobre cada uma dessas parcelas. Assim, a revista improcede. IV – Julga-se a revista improcedente, mantendo-se, pelo exposto, o acórdão recorrido. Sem custas, uma vez que o M. P. delas está isento. Lisboa, 21.02.2018 Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho (Relatora) Bernardo Domingos João Bernardo _________ [1] Diploma a que respeitam as normas doravante referidas sem menção de diferente proveniência «1 – A justificação para efeitos do n.º 1 do art. 116.º do Código do Registo Predial consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais. |