Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1563/16.4T8AMT.P1.S2
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
CLÁUSULA CONTRATUAL
CUMPRIMENTO
INCUMPRIMENTO
DIREITO DE ACÇÃO
DIREITO DE AÇÃO
AVALISTA
FIADOR
VALIDADE
TERCEIRO
EFICÁCIA EXTERNA DAS OBRIGAÇÕES
Data do Acordão: 01/29/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / EFICÁCIA DOS CONTRATOS.
DIREITO FALIMENTAR – RECURSOS / PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO / INCIDENTES DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA / EXECUÇÃO DO PLANO DE INSOLVÊNCIA E SEUS EFEITOS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 406.º, N.º 2.
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 14.º, 17.º-A A 17.º-F, N.º 7 E 217.º, N.º 4.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 13-11-2014, RELATOR SALRETA PEREIRA.
Sumário :

I. No concreto Processo Especial de Revitalização considera-se válida a seguinte cláusula:

 “Durante o prazo de execução do Plano, desde que não se verifique a ocorrência de algum incumprimento, os credores obrigam-se a não accionar os avalistas ou fiadores de qualquer uma das dívidas inseridas no Plano de Revitalização”

II. Sendo um princípio indiscutível do direito das garantias pessoais o de que o incumprimento (temporário ou definitivo) é a condição necessária para que o garante possa ser chamado a cumprir em vez do devedor principal, concluiu-se que com a aprovação do plano de revitalização esta condição ainda não se verifica. A aprovação do plano de revitalização tem, precisamente, entre os seus objetivos permitir o cumprimento dos contratos, adequando o programa debitório às concretas possibilidades do devedor.

III. Não existindo nem incumprimento de obrigações nem afetação quantitativa do crédito, a aprovada modificação temporal deverá aproveitar aos terceiros que garantem o cumprimento das obrigações, sobretudo porque a dilação do tempo de execução da obrigação modificada não é irrazoavelmente excessivo ou desequilibrado face à capacidade económico-financeira dos sujeitos envolvidos (credor e garantes).

IV. Sendo o plano de revitalização um contrato plurilateral, dotado de um sui generis procedimento formativo, cuja eficácia depende de homologação judicial, não lhe é, porém, estranha a aplicação das regras dos contratos. Todavia, a eficácia vinculativa do plano de revitalização não tem de se confinar, de forma absoluta, apenas aos sujeitos daquela estrutura negocial (os credores e o devedor “revitalizado”), ignorando completamente aqueles que prestam garantias pessoais ao devedor. O princípio da relatividade dos contratos, consagrado no art.406º, n.2 do CC, não é um princípio absoluto e hermético. Encontram-se na ordem jurídica várias figuras contratuais, em cujo regime legal se identifica uma eficácia de proteção para terceiros (como nos contratos que permitem o gozo ou o aproveitamento de faculdades de um bem de terceiro). Aliás, essa ideia de irradiação externa doo efeitos do plano de revitalização não é estranha ao legislador do CIRE, quando estabelece os limites que estão expressos no art.217º, n.4.

Decisão Texto Integral:

I. RELATÓRIO

           1. AA, Ldª requereu, em 16.12.2016, Processo Especial de Revitalização

           Em 5.09.2017 foi proferida sentença que homologou o plano de revitalização da devedora/requerente AA, Lda.

            O credor BB, SA, não se conformou com tal decisão e interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, por entender ser nula a cláusula constante do Ponto 5, n. 4, do Plano de Recuperação, segundo a qual “Durante o prazo de execução do Plano, desde que não se verifique a ocorrência de algum incumprimento, os credores obrigam-se a não acionar os avalistas ou fiadores de qualquer uma das dívidas inseridas no Plano de Revitalização”. Tal cláusula violaria o art.217.º, n.º 4, do CIRE.

            2. O Tribunal da Relação do Porto entendeu que o objeto do recurso (delimitado pelos recorrentes nas conclusões das suas alegações) se consubstanciava numa única questão: saber se o ponto 4 da cláusula 5.ª do Plano de Recuperação enfermava de nulidade.

            Concluiu este tribunal que aquela cláusula, por contrariar norma imperativa, enfermava de nulidade, embora não contagiando a globalidade do negócio, face ao disposto no artigo 292.º do Código Civil. Acordou-se do seguinte modo:

       “I. Em declarar nulo o ponto 4, da cláusula 5.ª, do Plano de Recuperação, reduzindo-se o acordo aprovado em conformidade com a eliminação do referido ponto;

       II. Em revogar a sentença recorrida, apenas na parte em que homologa o referido ponto 4, da cláusula 5.ª;

       III. Em manter a decisão de homologação quanto ao Plano de Recuperação reduzido nos termos referidos em I”.

3. Inconformado com tal decisão, a devedora/recorrida – AA – interpôs recurso para o STJ, tendo esse recurso sido qualificado como Revista Excecional. Nas alegações deste recurso, formulou a recorrente as seguintes conclusões:

           «1- A interpretação extensiva de uma qualquer norma jurídica tem, de acordo com o método jurídico, de se suster em argumentos que a suportem (v.g., a pari, a fortiori, a contrario, a coherentia, etcaetera);

            2 - Não há qualquer elemento de teor histórico, teológico, sistemático ou literal que fundamente uma interpretação extensiva do art.217.º/4 do CIRE;

            3 - Do mais, essa interpretação extensiva, analisada à lupa, reside numa série de falácias e argumentos de cariz prático duvidosos;

           4 - O âmbito do perímetro normativo do art.217.º/4 do CIRE cinge-se, tão-só, à existência ou montante dos direitos de crédito — não incorporando no seu âmbito, por conseguinte, qualquer outro aspecto relativo ao seu conteúdo (v.g., prazo de exigibilidade);

           5 - Tal entendimento alicerça-se em três razões: a) Teor literal da norma; b) Necessidade de protecção da posição dos garantes — já de si severamente afectada pelas alterações legislativas que ocorreram —, que eventuais interpretações extensivas (abusivas) atingem de forma intolerável (com a especial gravidade de prejudicar uma situação jurídica já por si extremamente débil); c) Absoluta ausência dos cânones da lógica e técnica jurídica que alicercem a interpretação extensiva;

            6 - Uma cláusula inserida num PER que fixe uma moratória sujeita a uma condição resolutiva (consubstanciada no cumprimento daquele) para o accionamento do avalista garante da dívida não viola o teor do art. 217.º/4 do CIRE;

            7 - In casu, não viola o dito comando normativo a cláusula com o seguinte teor: «Durante o prazo de execução do Plano, desde que não se verifique a ocorrência de algum incumprimento, os credores obrigam-se a não accionar os avalistas ou fiadores de qualquer uma das dívidas inseridas no Plano de Revitalização»;

           8 - Consequentemente, a dita cláusula não faz activar a nulidade prevista no art. 294.º do Código Civil;

           9 - O Acórdão recorrido e o Acórdão fundamento versam sobre a mesma questão jurídica, encontrando-se em manifesta contradição quanto à interpretação e aplicação da mesma norma jurídica.

10.º- O Acórdão recorrido, ao decidir como decidiu, violou o art. 217.º/4 do CIRE, por errada interpretação e aplicação, bem como o art. 294.º do Código Civil.

Termos em que, e nos demais de Direito com o douto suprimento de Vossas Exas., deve: a)Ser o presente recurso recebido e julgado procedente; b) Consequentemente, ser o Acórdão recorrido revogado e, consequentemente, manter na íntegra a sentença homologatória do PER proferida em 1ª Instância.»

4. A recorrente juntou como Acórdão Fundamento o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 12.07.2016 (relator Manuel Bragado), publicado na base de dados www.dgsi.pt[1].

5. O recorrido – BB S. A – apresentou contra-alegações nas quais sustentou a inadmissibilidade e a improcedência do recurso.

6. O recurso foi distribuído como Revista Excecional, pelo que os autos foram destinados à Formação a que alude o art.672º, n.3 do CPC, a qual entendeu que não se verificavam os requisitos próprios da revista excecional, por não haver dupla conforme, e pelo facto de se tratar de um recurso ao qual tem aplicação o art.14º do CIRE.

           Consequentemente, foram os autos distribuídos para que se aferisse da admissibilidade do recurso nos termos próprios.

7. Notificada para juntar certidão comprovativa do trânsito em julgado do acórdão fundamento, o recorrente veio juntar esse documento a fls. 326 dos autos.

II.  A QUESTÃO PRÉVIA DA ADMISSIBILIDADE DO RECURSO

 1. Dispõe o art.14º do CIRE:

No processo de insolvência, e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme”.

 2. Esta norma é aplicável ao Processo Especial de Revitalização (PER), como tem sido entendimento constante da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça.

3. Alega a recorrente que o acórdão recorrido e o acórdão fundamento decidiram a mesma questão de direito de modo divergente, estando em causa o problema de saber se o art.217º, n.4 do CIRE tem aplicação ao PER, quando o “Plano de Recuperação” contém cláusulas que estabelecem a suspensão da execução de garantias pessoais (prestadas à entidade em recuperação), durante a vigência do plano, desde que não se verifique o seu incumprimento.

4. Vejamos a similitude das cláusulas a que respeitam os acórdãos em confronto e a diversidade de decisões:

4.1. O teor das cláusulas:

- No Plano a que respeitam os presentes autos foi inserida a cláusula 5ª, n.4 com o seguinte teor: “Durante o prazo de execução do Plano, desde que não se verifique a ocorrência de algum incumprimento, os credores obrigam-se a não accionar os avalistas ou fiadores de qualquer uma das dívidas inseridas no Plano de Revitalização”.

- No Plano a que respeitam os autos do Acórdão Fundamento foi inserida a seguinte cláusula:

Manutenção de garantias, avales e penhoras existentes durante o período de execução do presente plano, salvo indicação em contrário, com o compromisso de não execução dos mesmos pelos credores enquanto se mantiver o respectivo cumprimento. Em particular, os credores encontrar-se-ão impossibilitados de executar os avales prestados à sociedade por parte dos seus sócios, enquanto se verifique o cumprimento integral do presente plano.”

4.2. A diversidade de decisões:

            O acórdão recorrido nos presentes autos aprovou (parcialmente) o Plano, mas dele expurgou aquela cláusula, entendendo que se tratava de uma cláusula nula por ser contrária a uma norma imperativa, com base no art.217º, n.4 do CIRE e 280º do CC[2].  Diversamente, o acórdão fundamento aprovou o Plano, sem considerar a respetiva cláusula inválida ou ineficaz.

           Assim, embora em ambos os acórdãos tenha havido aprovação (total ou parcial) dos Planos de revitalização, no que respeita à validade das cláusulas em equação as decisões foram divergentes.

           Deste modo, encontra-se justificada pelo art.14º do CIRE a admissibilidade do recurso com o subsequente conhecimento do mérito da causa.

III. APRECIAÇÃO DO RECURSO

1. Objeto do recurso:

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente, o único problema a decidir é o de saber se a cláusula 5ª, n.4 do Plano, com o teor supra transcrito, se deve considerar válida ou nula, face ao regime legal aplicável ao Processo Especial de Revitalização e, consequentemente, considera-la abrangida pela homologação do Plano ou dele excluída.

2. Factualidade relevante:

Os factos com relevo para o objeto do presente recurso são os que já se encontram supra enunciados no Relatório deste acórdão.

3. O direito aplicável

3.1. A questão em análise não se reconduz linearmente a uma hipótese que as normas específicas do PER (artigos 17º-A a 17º-J do CIRE) tivessem previsto.

Embora o art. 217º não se encontre entre as normas do Título IX do Capítulo II para as quais o art.17º-F, n.7 remete, tendo em vista disciplinar a homologação do plano de revitalização, tem sido entendimento generalizado (embora não unânime) na doutrina e na jurisprudência que a hipótese prevista no art.217º, n.4 (literalmente destinada ao plano de insolvência) também é potencialmente aplicável ao plano de revitalização. 

Dispõe o art.217º do CIRE, n.4:

 - “As providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afectam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os condevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas poderão agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos”.

Numa interpretação literal do teor desta norma dir-se-á que o legislador comtemplou apenas as hipóteses de afetação da existência ou do montante dos direitos dos credores. Todavia, encontra-se defendida, na doutrina e na jurisprudência, a interpretação extensiva da tal norma, nela incluindo também modificações respeitantes aos prazos de pagamento.

Tal interpretação extensiva (construída a propósito do plano de insolvência) acabou por ser também aplicada (por alguma jurisprudência) ao plano de revitalização. Assim aconteceu no acórdão em revista.

 

3.2. Entendeu-se no acórdão recorrido manter a homologação do plano de revitalização, suprimindo-se apenas a cláusula do Ponto 5. n.4, a qual seria nula por violação de uma norma imperativa. Para chegar a tal decisão, o acórdão recorrido sustentou-se no seguinte:

- Baseou-se no art.17º-F, n.7 para convocar as normas previstas para o plano de insolvência, em particular o art.215º do CIRE, enquanto norma que confere ao juiz o poder de não homologação do plano quando se verifique “violação não negligenciável” de determinadas normas imperativas;

- Baseou-se num argumento de evolução histórica do regime dos direitos dos credores contra os terceiros garantes da obrigação. A este propósito afirmou-se na decisão recorrida o seguinte:

«Do confronto da norma revogada (art.º 63.º do CPEREF) com a que lhe sucedeu (n.º 4 do art.º 217.º do CIRE), conclui-se que o legislador, deliberadamente, visou que o credor, independentemente da posição assumida no processo, após a homologação do plano de recuperação mantivesse incólume os direitos de que dispunha contra os condevedores e garantes. Aqui chegados, concluímos que a cláusula em apreço (…) é claramente contrária à nova orientação legal consagrada no n.º 4 do art.º 217.º do CIRE».

- E concluiu-se que:

«Face ao critério enunciado no art.º 215.º do CIRE (…) haverá que concluir que estamos perante “violação não negligenciável” de norma imperativa. A cláusula em causa, por contrariar norma imperativa, enferma de nulidade, (artigo 280.º n.º 1 do Código Civil), não contagiando, no entanto, a globalidade do negócio, face ao disposto no artigo 292.º do Código Civil. Com efeito, suscitada a questão da nulidade, nem a devedora, nem os credores vieram alegar que o negócio não teria sido concluído sem a parte viciada, acrescendo o facto de a exclusão da cláusula nula não afetar o equilíbrio do negócio, na medida em que a sua vigência apenas beneficiaria terceiros não intervenientes no negócio (na qualidade de garantes e condevedores)».

- Convocou-se ainda, para sustentar tal entendimento, o decidido no Acórdão do STJ, de 13.11.2014 (relator Salreta Pereira).

Todavia, deve já adiantar-se, que tal acórdão não pode constituir um apoio para a decisão em revista, dado limitar-se à hipótese específica dos créditos tributários. Como se lê no sumário desse acórdão: “A inclusão, no acordo de recuperação de empresa, da redução dos créditos tributários e do seu pagamento em prestações, com um período de carência, conduz à nulidade dessas cláusulas, mas não à nulidade de todo o plano de recuperação (…)”. Afirma-se ainda nessa decisão que: “(…) a LGT consagra a indisponibilidade dos créditos tributários e a prevalência do seu regime sobre qualquer legislação especial, designadamente no âmbito dos processos de insolvência – cf. arts. 30.º, n.ºs 2 e 3, e 125.º da LGT”.

3.3. Vejamos se o acórdão em revista fez a correta aplicação do direito, ao aplicar o art.217º, n.4 do CIRE interpretando-o extensivamente, para considerar nula a supra referida cláusula, quando o plano de revitalização aprovado pelos credores não afetou a existência nem o montante dos direitos de crédito garantidos por terceiros.

3.3.1. Sendo um princípio indiscutível do direito das garantias pessoais o de que o incumprimento (temporário ou definitivo) é a condição necessária para que o garante possa ser chamado a cumprir em vez do devedor principal, facilmente se concluiu que com a aprovação do plano de revitalização esta condição ainda não se verifica.

            A aprovação do plano de revitalização tem, precisamente, entre os seus objetivos, permitir o cumprimento dos contratos, adequando o programa debitório às concretas possibilidades do devedor.

Este plano de modelação dos débitos pode, em concreto, comportar uma variante quantitativa (de perdão ou redução do capital ou juros), expressamente prevista no art.217º, n.4, (que não aproveita aos garantes do devedor) ou apenas uma variante quanto ao modo de cumprimento das obrigações, como se verifica no caso concreto, no qual foi modificado o tempo do cumprimento.

Não estando esta última variante expressamente contemplada na letra da lei, tem-se entendido que por interpretação extensiva do art.217º, n.4, esta norma também abarcaria tal hipótese. Porém, se essa interpretação pode, em algumas hipóteses, encontrar justificação quando se trate de plano de insolvência (e assim tem sido defendido em alguma jurisprudência e doutrina) ela já se afigura, em princípio, teleologicamente inadequada quando se trata do plano de revitalização.

Efetivamente, os diferentes contextos financeiros dos devedores e os diferentes objetivos destes dois tipos de planos não são, em regra, valorativamente equiparáveis. Se o plano de insolvência se desenvolve, muitas vezes, num quadro de “liquidação” de uma atividade e/ou de um património, e tem entre os seus objetivos a ordenação dessa “liquidação”, o plano de revitalização tem um propósito distinto, sendo tipicamente um instrumento transitório destinado à superação de uma fase de crise económico-financeira do devedor, tendo em vista evitar a sua insolvência. Deste modo, a moratória ou o novo prazo de pagamento que os credores concedem ao devedor com a aprovação do plano de revitalização deverá aproveitar aos terceiros que pessoalmente garantem o crédito, enquanto o devedor continuar a cumprir o plano acordado.

Não existindo, no caso concreto, nem incumprimento de obrigações nem afetação quantitativa do crédito, deverá entender-se que a aprovada modificação temporal aproveita aos terceiros que garantem o cumprimento das obrigações, sobretudo porque a dilação do tempo de execução da obrigação modificada não é irrazoavelmente excessivo ou desequilibrado face à capacidade económico-financeira dos sujeitos envolvidos (credor e garantes).

3.3.2. Sendo o plano de revitalização um contrato plurilateral, dotado de um sui generis procedimento formativo, cuja eficácia depende de homologação judicial, não lhe é, porém, estranha a aplicação das regras dos contratos. Nesta medida, tem sido afirmado que o princípio da relatividade dos contratos, consagrado no art.406º, n.2 do CC, teria como consequência que a eficácia vinculativa do plano de revitalização se confinaria aos sujeitos que nele tomam parte (os credores e o devedor “revitalizado”). Aqueles que prestam garantias pessoais ao devedor, não sendo membros daquela estrutura negocial, não poderiam beneficiar das medidas aprovadas no plano.

A relatividade dos contratos não é, porém, um princípio absoluto e hermético. Encontram-se na ordem jurídica várias figuras contratuais, em cujo regime legal se identifica uma eficácia de proteção para terceiros (como nos contratos que permitem o gozo ou o aproveitamento de faculdades de um bem de terceiro). Aliás, essa ideia de irradiação externa do plano de revitalização não é estranha ao legislador do CIRE, quando estabelece os limites que estão expressos no art.217º, n.4.

3.3.3. Por outro lado, a constatação da realidade sociológica permite concluir que, em regra, os terceiros que prestam garantias pessoais para financiamento das empresas (geralmente, micro ou pequenas empresas) são os seus sócios ou gerentes ou familiares destes.

Assim, do ponto de vista da avaliação geral da solução, pode afirmar-se que ela se justifica por evitar uma excessiva onerosidade ou penalização daqueles que prestam garantias pessoais às empresas (e, por isso, expõem o seu património pessoal e familiar), quando a dívida garantida se encontra a ser paga.

4. Conclui-se, pelo exposto, que a decisão em revista não fez a correta aplicação do direito e, em particular, do art.217º, n.4 do CIRE ao caso concreto, quando considerou nula a cláusula do Plano de Revitalização.

Não sendo a cláusula nula, ela deve, portanto, considerar-se parte integrante do Plano de Revitalização aprovado pelos credores.

DECISÃO: Pelo exposto, acorda-se em conceder a revista, revogando o acórdão recorrido apenas na parte em que considerou nula a supra referida cláusula, ficando, nessa parte, a prevalecer a decisão da primeira instância.

Custas pelo recorrido

Lisboa, 29 de janeiro de 2019

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Catarina Serra

Fonseca Ramos

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[1] http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/7f8b113bee647bb38025802c005e80d8?OpenDocument

[2] Em rigor, o fundamento legal invocável para sustentar a nulidade de uma cláusula contrária a uma norma imperativa será o art.294º do CC (e não o art.280º, que se refere ao objeto do negócio).