Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3131/21.0T8LRA.C1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: LUÍS ESPÍRITO SANTO
Descritores: INSOLVÊNCIA
COMPETÊNCIA MATERIAL
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
TRIBUNAL DE COMÉRCIO
TRIBUNAL COMUM
TRIBUNAL DE COMPETÊNCIA GENÉRICA
AÇÃO DECLARATIVA
RESPONSABILIDADE CIVIL
AGÊNCIA DE LEILÕES
Data do Acordão: 05/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :
I- Tendo a A. instaurado acção declarativa comum  de responsabilidade em que o pedido tem a ver unicamente com a conduta pessoal e ilícita da leiloeira nomeada em processo de insolvência ao beneficiar-se ilegitimamente com um montante de comissão superior ao permitido pelo Regulamento do Leilão, não se inserindo portanto o thema decidendi no âmbito da temática própria do processo de insolvência, a cuja matéria é estranha, não se discutindo ainda a validade da venda dos referidos lotes (que se mantém inteiramente intocada), nem qualquer outro procedimento respeitante, por sua natureza, à matéria insolvencial, não existe motivo para considerar, nestas circunstâncias, a competência dos juízos de comércio definida nos termos do artigo 128º, nº 1, alínea a) e nº 3, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto), alterado pelo artigo 2º da Lei nº 40-A/2016, de 22 de Dezembro), competindo a mesma aos juízos locais cíveis de competência genérica e residual.  
Decisão Texto Integral:


Revista nº 3131/21.0T8LRA.C1.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção).

I - RELATÓRIO.
Instaurou F..., LDA., a presente acção declarativa de condenação contra a L... UNIPESSOAL, LDA..
Essencialmente alegou:
Comprou lote de bens no leilão presencial da Insolvência Ó..., Lda., tendo sido a Ré a leiloeira escolhida para no processo de insolvência proceder à venda, em estabelecimento de leilão.
A Ré cobrou 10% de comissão sobre o valor da venda do lote de bens, num total de €17.000,00, constando do regulamento do leilão, apenas 5% sobre o valor da venda, aduzindo, por isso, ter pago à Ré um excesso de €8.500,00.
Pelo que conclui pedindo a condenação da Ré a restituir à Autora a quantia de € 8.500,00 relativo ao valor da comissão pago em excesso a título de enriquecimento sem causa; a condenação da Ré nos juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a data em que a Ré foi interpelada por escrito para pagamento até à presente data (data da entrada da acção em juízo).   
A Ré contestou.
Essencialmente alegou:
A Autora foi informada da alteração da percentagem da comissão de 5% para 10%.
A Autora actuou com abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium.
Conclui pela sua absolvição.
Realizado julgamento, foi proferida sentença que julgou a presente acção procedente, condenando a ré L... UNIPESSOAL, LDA. a pagar à autora F..., LDA. a quantia de €8.500,00 (oito mil e quinhentos euros) acrescida de juros de mora à taxa legal de 7%, vencidos desde 1 de Junho de 2021 até 4 de Setembro de 2021.
Interposto recurso de apelação foi proferido o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 7 de Fevereiro de 2023, que a julgou improcedente. 
Veio a Ré interpor recurso de revista, apresentando as seguintes conclusões:
1. Alega, em síntese a A. no seu pedido: ter comprado um lote de bens no leilão presencial da Insolvência “Ó..., Lda.”, tendo sido a a leiloeira escolhida para no processo de insolvência proceder à venda, em estabelecimento de leilão; ter a cobrado 10% de comissão sobre o valor da venda do lote de bens, num total de €17.000,00, constando do regulamento do leilão, apenas 5% sobre o valor da venda, aduzindo, por isso, ter pago à um excesso de €8.500,00.
2. Nesse sentido, pede a condenação da ré a restituir à autora a quantia de € 8.500,00 relativo ao valor da comissão pago em excesso a título de enriquecimento sem causa; a condenação da ré nos juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a data em que a ré foi interpelada por escrito para pagamento até à presente data.
3. Constatamos, assim, que perante o pedido da A. e o enquadramento jurídico dos factos, o fundamento do pedido de restituição do valor de 50% da comissão paga pela A. é a irregularidade cometida pelo estabelecimento de Leilão, contratado pelo Administrador da Insolvência para sua coadjuvação na liquidação da Massa Insolvente, nos termos previstos no artigo 55º, nº 3 do CIRE, ao ter incumprido o ponto 6 do Regulamento de venda/condições do Leilão.
4. Como tal, considerou o Tribunal ad quem dever aplicar-se ao regulamento da venda em apreço o disposto no processo executivo, designadamente o art. 837.º do CPC e art. 20.º da Portaria n.º 282/2013, de 29 de Agosto.
5. Concordou a Apelante que se aplicava, de facto, o processo executivo, por força do previsto no artigo 1º e 17º, nº 1, do CIRE.
6. Contudo, tratando-se da modalidade prevista no artigo 811º do CPC “venda em estabelecimento de Leilão”, aplica-se ao presente caso o previsto nos artigos 834º e 835ºdo CPC e não o previsto para o leilão eletrónico.
7. Questão suscitada pela Recorrente, mas que nenhuma pronuncia obteve da Apelação, o que., de modo evidente configura uma nulidade prevista no artigo 615º, nº 1, al. d). do CPC.
8. Invocou a Ré, em sua defesa, o cumprimento nesse regulamento do previsto no artigo 812º do CPC (conclusão 28), pois definia as condições de venda da globalidade dos bens móveis da MI e foi desse modo que fora publicitado antes do leilão.
9. Regulamento esse que a A. junta como prova /causa do seu sacrifício económico – injusto-desacompanhado da listagem de venda dos bens da MI e que, por alteração no próprio dia do Leilão- facto provado 14- foi retirado da venda o “Lote B”, particularidade que motivou e justifica a reposição da comissão de 10%, nos termos acordados com o Administrador de insolvência (factos provados de 1 a 14).
10. Resulta, portanto, que as condições de venda antes publicitadas foram alteradas, por questões que só o processo de insolvência e os seus sujeitos processuais conhecem, pois é do regulamento/condições de venda da liquidação da Massa Insolvente que a A. fundamenta o seu pedido.
11. Porque, efetivamente, se trata de uma venda “judicial”, do “processo de insolvência”, aplicável por força do artigo nº 1º e 17º nº 1 do CIRE o previsto no Código do Processo Civil quanto ao processo executivo, invocou a Apelante que nos termos configurados pela A. e resultado provados, se impõe reconhecer a incompetência dos Juízos Locais Cíveis de ... em razão da matéria para decidir questões diretamente relacionadas com a liquidação da Massa Insolvente (conclusão 40).
12. O thema decidendum da presente ação prende-se, de facto, com questões/incidentes concretos e específicos da liquidação da Massa Insolvente e dos intervenientes com ela relacionados- mesmo que “terceiros”, designadamente, relacionadas com as condições de venda aí definidas e acordadas segundo circunstâncias concretas e especificas do processo e segundo as vontades e obrigações constituídas no âmbito da liquidação da Massa Insolvente.
13. O Tribunal Competente para decidir desta questão é o Juízo de Comércio onde corre o processo de insolvência.
14. Com efeito e salvo melhor entendimento, por se discutir o incumprimento do regulamento da liquidação da Massa Insolvente, na modalidade prevista no artigo 811º do CIRE, “venda em estabelecimento de Leilão”, do “processo”, como causa injusta do enriquecimento da R. atuando no mesmo na qualidade de “auxiliar” da liquidação da Massa Insolvente e, como tal, sujeito interveniente no processo com obrigações e direitos decorrentes dessa coadjuvação (artº 55º, nº 3, do CIRE), o Tribunal violou o artigo 128º, nº 1, al. a) e nº 3 da LOTJ ex vi artigo 60º do CPC e os artigos 91º e 96º do CPC.
15. Conclui a Apelante que se impõe considerar e assim decidir- porque de conhecimento oficioso -, nos termos do disposto no artigo 578º do CPC - que o presente juízo é materialmente incompetente para julgar o presente pedido.
16. O objeto do presente recurso é precisamente a necessária reapreciação da questão da incompetência material do Tribunal a quo que confirmou o incumprimento do Regulamento da venda -ponto 6- por parte do estabelecimento de Leilão, “auxiliar” do Sr. Administrador de Insolvência nas suas funções, causa do injustificado enriquecimento da Ré e como tal, confirmou a procedência do pedido da A.
17. E, bem assim, conexa com esta questão a aplicabilidade no processo de insolvência o disposto no Código do Processo Civil quanto ao processo de execução ex vi artigo 1º e 17º, nº 1, do CIRE e como tal, da questão da subsidiariedade do instituto do enriquecimento sem causa.
18. De facto, provando-se no processo esse incumprimento com todos os seus sujeitos e intervenientes e bem assim, todas as circunstâncias/obrigações a que se vincularam esses sujeitos, obteria a A. a reparação do seu sacrifício por força do disposto no artigo 835º, nº 2, do CPC.
19. Salvo melhor entendimento e o devido respeito não pode deixar a recorrente de invocar, antes de mais, a nulidade da presente decisão nos termos do previsto no artigo 615º, nº 1, al. b) e c).
20. Desde logo, pela ambiguidade e contradição dos fundamentos que, de acordo com o previsto na lei substantiva, levariam a uma decisão contrária.
21. Conforme reconhece a Apelação, o enriquecimento sem causa constitui uma fonte de obrigações (obrigação de restituir) caracterizada por uma especificidade que a distingue das demais: a sua subsidiariedade expressamente consagrada no artigo 474º do Código Civil. (sublinhado nosso).
22. Diz a Apelação que não há factos que poderia a A. socorrer-se de outros meios de tutela, contudo, não apresenta qualquer fundamento de facto e de direito para essa conclusão.
23. Se resultou provado que a Ré, sabendo que estava obrigada a apresentar o valor de 5% de comissão conforme regulamento dessa venda e sem que nada tivesse informado a A. apresentou a pagamento o valor correspondente de 10%, é, evidente, ao contrário do entendimento da Apelação não só existem factos, como            deveria a A. ter reclamado a restituição desse valor pago indevidamente, no processo de insolvência, por força do disposto no artigo 835º do CPC ex vi art.º 17º, nº 1, do CIRE.
24. A subsidiariedade do enriquecimento sem causa decorre da especificidade prevista na lei deste instituto em relação a outros meios específicos de tutela das obrigações, não decorre da vontade da. A. e não tem aplicação discricionária.
25. Antes pelo contrário, a sua não consideração e aplicação ao caso concreto constitui uma clara ofensa ao Estado de Direito e uma violação do direito da Ré, constitucionalmente previsto, a um julgamento justo e equitativo.
26. Não constitui, portanto, uma “questão nova” que não pudesse ser apreciada, pois a vinculação do tribunal limita-se à matéria de facto alegada pelas partes não ao seu enquadramento jurídico e aplicação da lei ao caso concreto.
27. A não apreciação e/ou aplicação pela Apelação do previsto no artigo 474º do CC, por ser “questão nova” ou porque assim não o pretendeu a A. constitui, salvo o devido respeito por melhor entendimento, não só uma nulidade prevista no artigo 615º, nº 1, al. c), mas uma ilegalidade!
28. Porventura não confirmou o Tribunal a quo que causa injusta do enriquecimento do A. fora a irregularidade cometida pelo estabelecimento de Leilão ao incumprir o ponto 6 do regulamento/condições de venda da Massa insolvente?
29. De facto, confirmando a Apelação que a Ré não logrou provar que o regulamento foi lido após a alteração superveniente ao publicitado e que só aceitou a redução da comissão anteriormente acordada e utilizada na venda a pedido do credor EMEL no pressuposto que o seu “auxilio” seria para venda da globalidade dos bens, resultou prova bastante do incumprimento do ponto 6 do Regulamento e como tal do “empobrecimento” da A. e enriquecimento da Ré.
30. Considerou e considera a Recorrente que não teria de chamar em sua defesa os sujeitos do processo de Insolvência, para provar de que no âmbito das relações estabelecidas como “auxiliar” na liquidação da Massa Insolvente não “enriqueceu” à conta do “empobrecimento” da A., que como confessa e reconhece a sua gerente aceitou pagar os 10% de comissão porque é o normal cobrado pelas leiloeiras nas vendas judiciais e neste tipo de bens [13: 46 a 13:56 e 12:25 a 13:08].
31. A comissão de venda, nos termos acordados entre o representante da Massa Insolvente e a Ré (factos provados 1 a 3) é um encargo/despesa previsto na adjudicação (vide regulamentos de venda juntos na contestação) e, como tal, condição da celebração do contrato de compra e venda.
32. Sem o pagamento desta despesa não teriam sido adjudicados e entregues os bens à A. e como tal formalizado a compra e venda dos mesmos com a emissão da fatura pela Ré entregue à A. para pagamento (Doc. ... da PI).
33. Pelo que, ao contrário do entendimento da Apelação a causa sub judice decorre do contrato de compra e venda e das circunstâncias, condições, especificidades do processo de Insolvência e de quem tem poder decisório para definir em que termos o mesmo poderia ser celebrado para melhor prossecução da finalidade deste processo.
34. É certo que a A. não pretende a nulidade da venda, mas invoca a irregularidade cometida pelo           estabelecimento       de         leilão,         como causa do seu pedido, e essa irregularidade/incumprimento do Regulamento – causa justificativa do seu empobrecimento- insere-se numa venda judicial- liquidação da Massa Insolvente- alegadamente praticada por quem legitimamente, porque auxiliar nos termos do disposto no artigo 55º, nº3, do CIRE, intervém nessa liquidação.
35. Concorda a Recorrente com a Apelação que o pedido se reporta a obrigações, contudo essas obrigações decorrem do processo de insolvência e das relações estabelecidas pelos seus sujeitos e intervenientes.
36. Independentemente da relação entre a       leiloeira e o Administrador de insolvência, contratada por este para o auxiliar na liquidação dos bens da MI ser considerada pela jurisprudência como relação de “mandato” ou “comissão”, a verdade é que o Leilão em apreço e as condições definidas e publicitadas inserem-se, como peticionado pela A., na venda judicial, do processo de insolvência que corre termos sob número 460/20...., no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Comércio ..., Juiz ....
37. Como tal, é este o Tribunal materialmente competente para uma “efetiva apreciação do ocorrido, com a intervenção da totalidade dos interessados, garantindo-se o devido contraditório nos termos delineados pelo juiz da insolvência, assim se tutelando os variados interesses presentes e o proferir de uma decisão que se vincula para o universo dos obrigados.” (Acórdão da Relação de Lisboa, proferido em 23.05.2019, processo 1094/11.9TYLSB-R.L1-2).
38. E porque o regulamento dessa venda “judicial” foi o resultado do acordado entre a Ré e o Administrador de Insolvência (factos provados de 1 a 5), designadamente, os valores da comissão- a suportar pelo adquirente - que, nos termos acordados corresponde à remuneração da Ré pela coadjuvação na liquidação da Massa Insolvente, de modo evidente, a decisão proferida nos presentes autos que nada sabem do processo e das suas relações e incidentes poderá ter repercussões no mesmo, designadamente, no aumento das despesas da Massa insolvente.
39. Inserindo-se o Leilão em apreço na liquidação da MI e sendo a Ré auxiliar do administrador de insolvência, nos termos previstos no CIRE, dúvidas inexistem, que o tribunal materialmente competente para dirimir este litígio é o Tribunal onde corre o processo de insolvência.
40. Com efeito, “O legislador, atentos os específicos interesses dos intervenientes processuais, e o fim prosseguido com a venda realizada no âmbito de um processo judicial, estabeleceu um regime especial de invalidades e irregularidades em execução (regime que também se aplica que também se aplica à venda efetuada no processo de insolvência)”; (Acórdão              do   Tribunal da  Relação      de              Guimarães       de 26.11.2020,                              processo 5333/19.0T8BRG.G1).
41. Dúvidas inexistem que “Compete aos Tribunais de Comércio conhecer dos pedidos de anulação ou declaração de nulidade de atos praticados no âmbito da liquidação em processo de insolvência, e da venda efetuada, bem como, daqueles pedidos que deles são mera decorrência.» (ibidem)
42. É com este entendimento que a jurisprudência tem vindo a decidir (vide Acórdão da Relação de Lisboa, proferido em 23.05.2019 no âmbito do processo 1094/11.9TYLSB-R.L1-2, confirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 09.07.2020).
43. Dúvidas inexistem que só no processo de Insolvência com todos os intervenientes se poderá tutelar, com justiça, todos os interesses/obrigações das partes envolvidas no processo de liquidação, mesmo sendo “terceiros” intervenientes.
44. A Ré continua, de facto, a “auxiliar” na liquidação da Massa Insolvente nos termos do previsto no artigo 55º, nº 3, do CIRE e a A. continua interessada na aquisição dos bens da MI, nas condições acordados entre o Sr. Administrador de insolvência e a Ré, ou seja, com comissão de venda de 10%, percentagem que a gerente da A. Ré reconhece como sendo o valor “normal” cobrado pelos estabelecimentos de Leilão nas vendas judiciais para os bens móveis.
45. É, de facto, o que nos diz o Leilão de 28 de Outubro de 2022, realizado após as alegações da Apelante e que se junta, porque documento objetivamente superveniente, nos termos do previsto no artigo 680º do CPC, como Doc.....
46. Prova contundente que só pode ser o Juízo de Comércio ... e no próprio processo de insolvência que a presente causa deve ser decidida.
Contra-alegou a Ré, apresentando as seguintes conclusões:
A - Alega a Recorrente em síntese em que: “A não apreciação e/ou aplicação pela Apelação do previsto no artigo 474º do CC, por ser “questão nova” ou porque assim não o pretendeu a A. constitui, salvo o devido respeito por melhor entendimento, não uma nulidade prevista no artigo 615º, 1, al. c), mas uma ilegalidade!
B - A Recorrente peticiona também subsidiariamente que seja a Ré absolvida da instância, confirmando-se (?) a incompetência material do Tribunal Cível para conhecer da matéria em crise nos presentes autos.
C - Em nenhum dos casos a Recorrente tem razão.
D - No primeiro caso porque não estamos perante a existência de qualquer nulidade por omissão de pronúncia por parte do Tribunal da Relação de Coimbra, pois o Tribunal só pode pronunciar-se sobre os factos invocados.
E - Motivo pelo qual o presente recurso deve ser desde logo e no que a esta parte diz respeito, improcedente.
F - No segundo caso, consequentemente, terá também que improceder a alegação da Recorrente de que é: “(…) o Juízo de Comércio ... e no próprio processo de insolvência que a presente causa deve ser decidida.”
G - O enriquecimento não deriva da compra e venda dos bens, de vícios ou irregularidades do leilão, da atuação do Administrador da Insolvência, ou de qualquer incumprimento da Massa insolvente no processo de Insolvência de «Ó..., Lda.» que correu termos sob o número de processo: 460/20.... no Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo de Comércio ... – Juiz ....
H - O enriquecimento deriva da falta de entrega à Autora de parte do preço que a Ré recebeu, e que pertence à Autora.
I - Acresce ao acima mencionado, que os Tribunais “a quo” decidiram a matéria de facto, de modo exaustivo e fundamentado, de acordo com, as alegações das partes, os documentos juntos aos autos (documentos abundantes e demonstrativos da verdade dos factos assentes) e de acordo com os depoimentos das testemunhas.
  
II – FACTOS PROVADOS.
Encontra-se provados nos autos que:
1. A Ré foi contratada pelo Sr. Administrador da Insolvência, Dr. AA, para venda dos bens apreendidos a favor da Massa Insolvente da sociedade Ó..., Lda., mediante a aceitação, por este, da proposta apresentada.
2. Pela prestação dos seus serviços a Ré propôs como condições de remuneração, um valor de comissão sobre o valor da venda, a suportar pelos respectivos adquirentes, na percentagem de 5% para o bem imóvel e 10% para os bens móveis.
3. Condições que foram aceites pelo Administrador da Insolvência, pelo que nos termos acordados e contractualizados, as despesas pagas pela ré com a apreensão, promoção, divulgação e venda dos bens seriam suportadas pelo valor da comissão da L..., a pagar pelo adquirente.
4. Negociados os termos do acordo, a ré iniciou de imediato e a pedido do Sr. Administrador da Insolvência as diligências de venda dos bens móveis, contactando potenciais interessados.
5. Atendendo que dessas diligências a maior proposta conseguida, no valor de 200.000,00€, acrescida dos 10% da comissão da Leiloeira, não foi aceite pela Comissão de Credores, a ré sugeriu ao Administrador de Insolvência Leilão Presencial, a realizar no final do mês de Setembro de 2020.
6. Concordando o Administrador da Insolvência ser esta a modalidade de venda mais adequada ao processo, aceitou que o Leilão presencial fosse agendado para o dia 29 de Setembro de 2020 a realizar das 10h00 até às 12h30.
7. A ré promoveu e publicitou, por diferentes meios, incluindo publicidade em jornais nacionais, a referida venda.
8. O Regulamento/condições de venda e listagem dos bens, de consulta no site da Leiloeira, foi dado a conhecer por e-mail aos potenciais interessados e por boletins informativos aos clientes da ré, incluindo a ora autora.
9. Previa esse Regulamento, os termos contratados com o Sr. Administrador da Insolvência, quanto à remuneração da Leiloeira: “Ao valor da venda é acrescido 10% para os bens móveis e veículos referente à comissão da Leiloeira, assim como o IVA à taxa legal em vigor sendo paga com a adjudicação”.
10. Por razões alheias à ré, designadamente novo confinamento, o Leilão acabou por ser adiado.
11. Por indicação do Administrador da Insolvência foi agendado, para o dia 22 de Abril de 2021, novo Leilão Presencial para venda da globalidade dos bens móveis apreendidos a favor da MI, a decorrer nas instalações da sociedade Insolvente, no concelho ....
12. A ré promoveu as diligências necessárias para a realização deste Leilão, publicitando novamente essa venda em jornais nacionais, no site, enviando boletins informativos e e-mails.
13. Na sequência desta venda referida em 11) e a pedido do credor da Insolvente EMEL, SA e Presidente da Comissão de Credores, os bens foram subdivididos em 2 Lotes: Lote A, pelo valor mínimo de 135.000,00€ e Lote B, pelo valor de 175.000,00€.
14. No dia 22 de Abril de 2021, foi comunicado através de e-mail pelo Sr. Administrador da Insolvência que o Lote B não seria adjudicado neste acto, aceitando-se, sem qualquer compromisso, até porque existia a incerteza da possibilidade da alienação deste Lote, registos de oferta.
15. No dia 22 de Abril de 2021 a autora comprou um lote de bens no leilão presencial da Insolvência de “Ó..., Lda.”, que correu termos sob o número de processo 460/20.... no Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo de Comércio ... – Juiz ....
16. A Autora licitou a melhor proposta e acima do valor mínimo definido para o Lote A, pelo que o mesmo foi-lhe adjudicado, no próprio acto.
17. O lote referido em 16) foi comprado pela autora pelo valor total de €170.000,00.
18. A ré, que foi a leiloeira escolhida para o referido processo de insolvência proceder à venda em estabelecimento de leilão, cobrou à autora 10% de comissão sobre o valor da venda do referido lote.
19. O valor total da comissão referida em 18) cifra-se em €17.000,00.
20. A ré apresentou à autora, no final do Leilão, a conta global de 230.010,00€. 21. Pela adjudicação dos bens e de acordo com o Regulamento, a Autora tinha que efectuar de imediato o pagamento.
22. No dia 23 de Abril de 2021 – dia seguinte ao leilão, a autora procedeu ao pagamento à ré de 10%, a título de comissão da ré, no valor total (comissão e compra) de €230.010,00, sem qualquer reclamação.
23. Posteriormente, a ré verificou por consulta ao Regulamento do Leilão, que a comissão a cobrar pela ré, era apenas de 5% sobre o valor da venda, conforme o disposto na cláusula 6 do referido regulamento.
24. A 31 de Maio de 2021, a autora solicitou à ré através de e-mail o reembolso do valor cobrado em excesso, com o seguinte teor: “(…) venho por este meio solicitar o reembolso de 50% da vossa comissão que me foi cobrado por vosso lapso e pago por mim em relação à insolvência da Ó.... Este pedido já o fiz telefonicamente, mas como até agora nada me foi dito ou resolvido (…)”.
25. A 31 de Maio de 2021, a ré respondeu à autora através de e-mail com o seguinte teor: “Boa tarde D. BB, tal como já foi transmitido, o Sr. CC esclarece a situação pessoalmente consigo, tendo transmitido que o fará no próximo dia 3 (feriado) ou no fim-de-semana (…)”.
26. Desde o dia 31 de Maio de 2021, e mesmo após a ré ter sido contactada pelo mandatário da autora, até à presente data, a ré nunca mais contactou a autora, nem procedeu ao pagamento do valor referente à comissão que cobrou em excesso, a qual perfaz a quantia de €8.500,00.
  
III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.
1 – Inadmissibilidade da presente revista quanto aos fundamentos substantivos constantes das alegações/conclusões.
2 – Excepção de incompetência do tribunal (juízo local cível ...) em razão da matéria que foi suscitada pela recorrente, que indicou como competentes os juízos de comércio (sendo o recurso admissível, neste tocante, desde que circunscrito à matéria respectiva, nos termos do artigo 629º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil).
Passemos à sua análise:
1 – Inadmissibilidade da presente revista quanto aos fundamentos substantivos constantes das alegações/conclusões.
A admissibilidade do presente recurso de revista pressupõe naturalmente a prévia verificação dos seus requisitos gerais de recorribilidade (legitimidade para a interposição; tempestividade desta; impugnabilidade da decisão recorrida).
Dispõe, a este propósito, o artigo 629º, nº 1, do Código de Processo Civil:
“O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa”.
Ora, o valor que foi fixado à presente causa é apenas de € 8.634,34 (oito mil, seiscentos e trinta e quatro euros e trinta e quatro cêntimos) – vide audiência prévia que teve lugar em 29 de Março de 2022, onde se procedeu à respectiva fixação, que não foi impugnada nem alterada nos autos.
Daqui resulta, inequívoca e incontornavelmente, que nem o valor da causa - € 8.634,34 (oito mil, seiscentos e trinta e quatro euros e trinta e quatro cêntimos) – admite a interposição do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, por falta de alçada, nem, se necessário fosse, o valor a alcançar com a eventual procedência do recurso seria superior em mais de € 15.000,00 em relação ao decidido na sentença de 1ª instância (o que significa logicamente que o prejuízo com a perda da demanda ascendeu unicamente aos referidos € 8.500,00, acrescidos de juros).
Pelo que cumpre concluir que, perante as circunstâncias enunciadas, não só a alçada do Tribunal da Relação não permite a interposição da revista, como igualmente e em qualquer circunstância, sempre a recorrente careceria da necessária sucumbência (superior a metade da alçada do Tribunal de que recorre) para a sua interposição quanto aos fundamentos substantivos constantes das suas alegações/conclusões de recurso.
O argumentário desenvolvido pela recorrente, aquando da sua notificação nos termos e para os efeitos do artigo 655º, nº 1, do Código de Processo Civil, não merece qualquer acolhimento.
A circunstância do Supremo Tribunal do país ter a função de administrar a Justiça e aplicar o Direito ao caso concreto não impede obviamente o legislador nacional de estabelecer, dentro seu perímetro de responsabilidade legiferante, os critérios gerais de admissibilidade dos recursos que entende necessários e adequados, visando tornar o sistema judiciário racional e funcional, desde logo em termos práticos e logísticos.
Outrossim não é pelo facto de o sistema recursório português consagrar um critério de fixação (limitativa) em torno da figura da alçada (enquanto valor até ao qual determinado tribunal julga sem recurso) que será possível afirmar que ficam por garantir a apreciação dos direitos constitucionalmente garantidos e a tutela jurisdicional efectiva, como é evidente e insofismável.
Não há assim lugar, relativamente aos seus fundamentos de ordem substantiva, ao conhecimento do objecto do recurso de revista, por ausência de alçada (e de sucumbência), nos termos supra expostos, o qual, nessa medida, se julga findo, nos termos gerais do artigo 652º, nº 1, alínea b), e artigo 679º do Código de Processo Civil.
No mesmo sentido, a arguição de nulidade do acórdão recorrido, nos termos do artigo 615º, nº 1, alíneas b) e c), do Código de Processo Civil, respeitante aos fundamentos do recurso, compete unicamente ao Tribunal da Relação de Coimbra que proferiu o acórdão recorrido, conforme resulta do disposto no artigo 617º, nº 5, 2ª parte, do mesmo diploma legal.
Apenas no que concerne unicamente à matéria da excepção de incompetência do tribunal em razão da matéria – julgada improcedente no acórdão recorrido – a revista é admissível nos precisos termos do artigo 629º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Civil, sendo a sua análise rigorosamente circunscrita à apreciação desta mesma questão jurídica (não abrangendo qualquer outra).
2 – Excepção de incompetência do tribunal (juízo local cível ...) em razão da matéria que foi suscitada pela recorrente, que indicou como competentes os juízos de comércio (sendo o recurso admissível, neste tocante, desde que circunscrito à matéria respectiva, nos termos do artigo 629º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil).
A A. estruturou a sua causa de pedir nos seguintes termos:
No dia 22 de Abril de 2021, no âmbito do leilão presencial na Insolvência Ó..., Lda., em que a Ré a foi a leiloeira escolhida, a A. comprou determinado lote de bens pelo valor total de € 170.000,00 (cento e setenta mil euros),
Acontece que a Ré cobrou 10% de comissão sobre o valor da venda do lote de bens, num total de €17.000,00, constando do regulamento do leilão, apenas 5% sobre o valor da venda, procedendo por isso a A. ao pagamento do valor total de € 230.000,00 (duzentos e trinta mil euros)..
Logo, pagou à Ré um excesso de € 8.500,00, correspondente ao valor correcto da comissão que a mesma deveria, cumprindo o Regulamento da Venda, ter observado.
Não obstante notificada pela A., a Ré nunca mais a contactou nem procedeu à restituição do valor que cobrou indevidamente a título da sua comissão na venda.
Pede, por conseguinte, a condenação da Ré a restituir à Autora a quantia de € 8.500,00 relativo ao valor da comissão pago em excesso a título de enriquecimento sem causa; a condenação da Ré nos juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a data em que a Ré foi interpelada por escrito para pagamento até à presente data (data da entrada da acção em juízo).
Apreciando:
Perante esta factualidade essencial em que assenta, em termos de causa de pedir, a pretensão da A., cumpre concluir que está unicamente em causa o descrito comportamento da leiloeira nomeada em processo de insolvência, alegadamente ilícito, que consistiu na indevida retenção em seu poder e benefício de determinada importância pecuniária, através da ilegal comissão por si cobrada e que foi superior à que constava do Regulamento do Leilão.
Esta questão jurídica muito particular e que constitui o único thema decidendi da presente acção, tal como se encontra estruturada a causa de pedir nos autos, não se insere no âmbito da temática própria do processo de insolvência, a cuja matéria é estranha, dado não estar em causa a validade da venda dos referidos lotes, que se mantém inteiramente intocada, nem qualquer outro procedimento respeitante, por sua natureza, à matéria insolvencial.
Trata-se, ao invés, da instauração de uma acção declarativa comum (autónoma) de responsabilidade em que o pedido formulado pela A. tem a ver unicamente com a actuação pessoal e ilícita da identificada leiloeira ao beneficiar-se ilegitimamente com um montante de comissão superior ao que o Regulamento do Leilão concretamente lhe permita, pagando dessa forma o adquirente/adjudicante mais do que devia haver pago.
Não existe assim motivo para considerar, nestas circunstâncias, a competência específica dos juízos de comércio definida nos termos do artigo 128º, nº 1, alínea a) e nº 3, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto), alterado pelo artigo 2º da Lei nº 40-A/2016, de 22 de Dezembro), sendo ao invés competente em razão da matéria para o conhecimento da causa o juízo local cível (com o que a própria recorrente aliás implicitamente concordou aquando da apresentação da sua contestação e durante a audiência prévia, só se lembrando (tardiamente) de invocar a excepção de incompetência em razão da matéria no âmbito das alegações de apelação, após ter sido confrontada com a decisão que lhe foi desfavorável em 1ª instância).
Acrescenta-se ainda que a presente situação nada tem a ver com o decidido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Julho de 2020 (relator José Rainho), proferido no processo nº 1049/11.9TYLSB-R.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt, invocado nas alegações/conclusões da revista.
Nesse aresto, estava em causa a prática pelo administrador de insolvência de alegadas irregularidades que interferiam directa e materialmente com o resultado da venda e liquidação no processo de insolvência, tendo aliás o administrador, nesse caso, dado sem efeito a venda já realizada por negociação particular, promovendo de seguida nova venda agora através de leilão público com o consequente prejuízo para os interesses do credor adjudicante que interpôs o recurso de revista (o que manifestamente não sucede in casu).  
Nega-se, por conseguinte, a revista.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) em negar a revista.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 16 de Maio de 2023.

Luís Espírito Santo (Relator)

Ana Resende

Maria José Mouro




V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.