Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
390/09.0T2ODM.E1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: ARRENDAMENTO RURAL
BENFEITORIAS ÚTEIS
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
LEI APLICÁVEL
Data do Acordão: 03/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Área Temática:
DIREITO CONSTITUCIONAL – PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS – ORGANIZAÇÃO ECONÓMICA / POLÍTICAS AGRÍCOLA, COMERCIAL E INDUSTRIAL.
DIREITO DAS OBRIGAÇÕES – ARRENDAMENTO RURAL.
Doutrina:
-Jorge Aragão Seia e Manuel Costa Calvão, Arrendamento Rural, Almedina, Coimbra, 2.ª Edição, 1985, p. 114.
Legislação Nacional:
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 2.º E 96.º.
REGIME DO ARRENDAMENTO RURAL (RAR), APROVADO PELO DL N.º 385/88, DE 25-10: - ARTIGO 36.º, N.º 1.
REGIME RELATIVO AO ARRENDAMENTO RURAL, DL N.º 201/75, DE 15-05.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 20-06-2013, PROCESSO N.º 1219/07.9TBPMS.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


- DE 20-12-2012, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:


- DE 04-06-1981, IN CJ, VI, III, P. 145.
Sumário :

I - O direito ao valor de benfeitoria útil – construção de uma casa de habitação em alvenaria – feita pelo rendeiro rural no domínio da vigência do DL n.º 201/75, de 15-05, regula-se por este diploma e não por diplomas posteriores mais restritivos, designadamente, pelo DL n.º 385/88, de 25-10.
II - O art. 36.º, n.º 1, do DL n.º 385/88, ao dispor que “aos contratos existentes à data da entrada em vigor da presente lei aplica-se o regime nela prescrito”, não deve ser interpretado de forma a desrespeitar as fundadas expectativas criadas no arrendatário em face de situações de facto já consumadas – arts. 2.º e 96.º da CRP.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório
1. AA instaurou acção declarativa contra BB, S.A., pedindo a “improcedência” da denúncia do contrato de arrendamento rural que firmara com CC e o reconhecimento judicial de que o despejo da parcela arrendada põe em risco sério a subsistência do seu agregado familiar, bem assim como que lhe seja reconhecido o direito a remir o dito contrato, tornando-se “dono da parcela mediante o depósito do preço que vier a ser fixado”. Também pediu, a título subsidiário, que se lhe reconhecesse o direito a ser indemnizado pela ré pelo valor das benfeitorias que realizou no prédio em causa e que estimava em € 175.000, bem assim como o direito a reter a parcela em seu poder até efectivo e integral pagamento de tal montante.

           A ré, BB, S.A. contestou a acção, impugnando parte da factualidade vertida na petição inicial e invocando que é dona e legítima proprietária da parcela de terreno em questão, que o contrato vigente foi, validamente, denunciado, e, finalmente, não estarem reunidos os pressupostos legais do exercício do direito de remição de que o primitivo autor, AA, se arrogava titular e que, em qualquer caso, entende não assistir ao autor. Também deduziu contra este último pedidos reconvencionais, pugnando no sentido de ser o mesmo condenado a reconhecer e respeitar o seu direito de propriedade sobre a mencionada parcela de terreno, a não realizar quaisquer outras construções/benfeitorias em tal parcela de terreno, cujo valor estima – nas suas palavras, por defeito - em € 36.000, sob pena de suportar os custos da respectiva demolição e remoção e, finalmente, a indemnizá-la pelo prejuízo que lhe vem causando a mera invocação “da pretensa remição”.

2. Por sentença proferida em 4 de Março de 2014 foram habilitados os filhos de AA, o primitivo autor, DD, EE, FF e GG.
O processo seguiu o seu curso normal e veio a ser proferida sentença que decidiu julgar:
a) improcedentes, por não provados, os pedidos formulados pelo autor, AA, a título principal, sob alíneas a) e b) do petitório, absolvendo dos mesmos a ré, BB, S.A.;
b) parcialmente, procedentes, por provados os pedidos subsidiários formulados pelo autor, AA, sob alíneas c) e d) do petitório, condenando a ré, BB, S.A., no pagamento a seus filhos, DD, EE, FF e GG, da quantia total de € 113.778,16 (cento e treze mil, setecentos e setenta e oito euros e dezasseis cêntimos) e reconhecendo a estes últimos o direito a reter a parcela de terreno onde residem e que têm estado a explorar, melhor identificada no levantamento topográfico junto sob documento número 30 com a petição inicial, no relatório pericial de folhas 286 dos autos e, finalmente, na fotografia aérea de fls. 346, até efectivo e integral pagamento da mencionada quantia pecuniária, bem assim como absolvendo a ré, BB do mais que contra si vinha peticionado;
c) parcialmente, procedentes, por provados, os pedidos reconvencionais deduzidos pela ré, BB, S.A., no âmbito dos presentes autos, declarando-a dona e legítima proprietária da parcela de terreno identificada em b), a qual faz parte integrante da denominada herdade das “HH”, prédio misto denominado “HH”, ali descrito sob a ficha número 347/19870109 e inscrito nas matrizes prediais rústica e urbana, respectivamente, sob os artigos 23 da secção EE1 e 223, condenando os reconvindos DD, II, FF e GG, a reconhecerem e respeitarem tal direito, abstendo-se de quaisquer actos ou condutas perturbadoras do mesmo e de o violar, apropriando-se de tal parcela ou onerando-a, directamente ou por interposta pessoa, bem assim como a não realizarem nela outras construções ou benfeitorias, com excepção – até ao final do presente ano agrícola - das que sejam as estritamente necessárias (ou seja, das que tenham por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da aludida parcela), absolvendo-os dos demais pedidos que contra si foram formulados.

3. Inconformada com a decisão dela apelou a R. sociedade.
O Tribunal da Relação de Évora proferiu acórdão a 23 de Novembro de 2017, revogando a sentença recorrida na parte em que condenou a Ré a pagar aos autores a quantia de 113.778,16 euros, condenando a Ré a pagar aos autores o valor da casa de habitação referida no ponto 12. da matéria de facto à data de 22.11.10, a liquidar ulteriormente, mantendo no demais a sentença recorrida.

4. Novamente inconformada dela recorreu de revista a Ré sociedade, invocando violação de normas de direito substantivo, nos termos do art.º 671.º, n.º1 e 674.º, n.º1, al.a) do CPC.
Os AA. não apresentaram recurso do acórdão, mas contra-alegaram.

5. Nas alegações de recurso, a Ré formula as seguintes conclusões (por transcrição):

“1.º FUNDAMENTO: Do Essencial das Questões de Direito e das questões do presente Recurso e respetivos princípios e normas violadas:

A) O Acórdão recorrido limitou-se genericamente e de modo minimalista aplicar o regime jurídico do D.L. 201/75, de 15/04, para efeitos da apreciação da questão da benfeitoria, quando, face ao disposto no artigo 36.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 385/88 de 25 de outubro deveria ter aplicado o regime jurídico do Decreto-Lei n.º 385/88;

B) O regime jurídico do arrendamento rural é o de lei especial e também resulta dos elementos históricos e sistemáticos deste regime legal que, quanto à indemnização por benfeitorias o legislador, intencionalmente «deixou de fora a cessão por denúncia no termo do contrato;

C) Não assiste aos Autores o direito à indemnização pela alegada benfeitoria;

D) In casu existe uma res inter alia acta;

E) A benfeitoria em causa foi realizada mais de 32 anos antes da Ré adquirir o prédio em causa. (1976 [data da conclusão das obras] – 2009 [data de compra pela Ré] = 32 anos);

F) A Ré Não é a beneficiada direta ou imediata da benfeitoria e em nada se enriqueceu com a dita benfeitoria;

G) Não há lugar a indemnização pela Ré aos Autores porque esta Não é a beneficiada direta ou imediata da dita benfeitoria;

H) In casu estão em causa princípios fundamentais de direito e não se teve em conta na interpretação e aplicação de Direito, designadamente na aplicação da lei no tempo, o pensamento jurídico adequado e a unidade do sistema jurídico – artigo 9.º do Código Civil;

2.º FUNDAMENTO: Violação do Regime Jurídico do artigo 36.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 385/88 de 25 de outubro:

A) A primeira questão de direito que se sujeita à apreciação é a da existência de res inter alia acta e a violação do disposto no artigo 36.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 385/88 de 25 de outubro, ou Novo Regime de Arrendamento Rural;

B) A Recorrente na Apelação Não afastou a aplicação do Regime Jurídico do Decreto-Lei n.º 385/88;

C) O que a Recorrente na Apelação foi que Não está prevista a indemnização para o caso sub judice porque in casu a cessação contratual decorreu da denúncia no termo do contrato;

D) O DL 385/88 não contempla as benfeitorias nos casos de cessão do por denúncia no termo do contrato;

E) A Apelação recorrida violou os dispositivos legais relativos à aplicação da lei no tempo, em especial e em concreto o disposto no artigo 36.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 385/88 de 25 de outubro, a propósito da questão de direito da indemnização pelas benfeitorias;

F) O artigo 40.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 385/88, expressamente revogou as Leis 76/77, de 29/09, 76/79, de 03/12, que por sua vez revogaram o regime jurídico do D.L. 201/75, de 15/04;

G) O artigo 36.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 385/88, veio estabelecer que o respetivo regime se aplicava de imediato aos contratos existentes à data da sua entrada em vigor;

H) O artigo 36.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 385/88 é uma norma especial de direito transitório, que se aplica a todos os contratos cuja denúncia tenha sido realizada já após o início da vigência deste Decreto-Lei, como sucedeu in casu, uma vez que a denúncia foi feita em 12-11-2009, com efeitos a partir de 22-11-2010;

I) O regime jurídico do Decreto-Lei n.º 385/88 é um regime especial, tem normas de direito transitório, que também são especiais e que prevalecem sobre o regime geral do Art.º 12.º do Código Civil;

J) O direito transitório e o respetivo regime a aplicar, in casu, é o do Decreto-Lei n.º 385/88 e Não o Decreto-Lei n.º 201/75, de 15/04;

K) O que é essencial para efeitos de indemnização, em termos de aplicação da lei no tempo, é a data da denúncia, porque o facto jurídico denúncia é que é determinante para efeitos da eventual indemnização pela dita benfeitoria;

L) In casu, os efeitos jurídicos da denúncia só operaram na vigência do Decreto-Lei n.º 385/88 e, por isso, é esta lei que se deve aplicar, segundo a melhor doutrina e jurisprudência relativa à aplicação da lei no tempo;

M) Também face ao disposto no n.º 2 do artigo 12.º do Código Civil, os efeitos jurídicos da denúncia, terão de ser considerados ao abrigo da lei nova, uma vez que esta é o regime aplicável: o Decreto-Lei n.º 385/88;

N) O novo regime do Decreto-Lei n.º 385/88, é manifestamente uma disposição sobre o conteúdo das relações jurídicas e dos efeitos das mesmas, pelo que, deverá, à luz das referidas normas, aplicar-se, de imediato, aos arrendamentos existentes à data da sua entrada em vigor e que ainda não tenham sido objeto de denúncia, como sucedeu no presente caso;

O) O elemento decisório e definitivo para a questão da aplicação de direito, é o momento ou a data em que operam os efeitos jurídicos da denúncia;

P) A denúncia do contrato é o facto fundamentador que faz desencadear, operar, os efeitos jurídicos dessa mesma denúncia, entre os quais, o eventual ou hipotético direito à indemnização pela benfeitoria;

Q) Com o novo regime do Decreto-Lei n.º 385/88, o legislador manifestou uma vontade inequívoca, atual ou contemporânea com as novas circunstâncias económico-sociais, relativamente ao arrendamento e à questão da indemnização por benfeitorias nos termos do artigo 15.º do citado diploma;

R) O regime do Decreto-Lei n.º 385/88 visou uma atualização à nova realidade social contemporânea e vigente, valores filosóficos ou de políticas sociais dominantes à data da publicação desse diploma: tendo em conta o espírito do sistema jurídico então vigente;

S) A decisão recorrida não teve em linha de conta na interpretação e aplicação das normas, a unidade do sistema jurídico e o pensamento ou ratio subjacente ao regime do Decreto-Lei n.º 385/88;

3.º FUNDAMENTO: Da inexistência de enriquecimento sem causa da Ré e da inexistência de prova por parte dos Autores quanto aos custos da obra e de a mesma não pode ser levantada:

A) In casu, não se verifica enriquecimento sem causa da Ré;

B) Os Autores não provaram o custo da obra nova ou dia benfeitoria em causa, nem provaram que a mesma não possa ser levantada sem detrimento do prédio;

4.º FUNDAMENTO: Das normas violadas:

A) O Acórdão recorrido viola princípios de Direito e de Justiça fundamentais, viola lei substantiva entre outras o artigo 36.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 385/88 de 25 de outubro e ainda o disposto nos artigos 8.º n.º 3, 9.º n.ºs 1 e 3, do Código Civil e por violação do disposto nos artigos 1.º, 2.º 8.º, 16.º, 20.º e 205.º da Constituição da República Portuguesa.

Nestes termos, por qualquer um dos fundamentos e nos melhores de Direito que, suprindo, o Venerando Supremo Tribunal de Justiça queira subscrever, pede-se o provimento desta Revista, que julgada procedente, deve, nos segmentos apontados, ser revogado o Acórdão recorrido, como é de Lei, com o que se fará, como sempre, JUSTIÇA.”

6. Mostram-se provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa (por transcrição):

1. Na Conservatória do Registo Predial de Odemira, pela Ap. 12 de 13 de Março de 2008, encontra-se inscrita a favor da ré, BB, S.A. a aquisição, por motivo de cisão, do prédio misto denominado “HH”, ali descrito sob a ficha número 347/19870109 e inscrito nas matrizes prediais rústica e urbana, respectivamente, sob os artigos 23 da secção EE1 e 223;

2. Anteriormente, a dita herdade das “HH” estivera registada, sucessivamente, a favor de JJ e mulher, LL, que, em 14 de Janeiro de 1983, a adquiriram, por compra, a CC, e, a partir de 28 de Dezembro de 1993, de JJ – ..., S.A., de que o primeiro era sócio;

3. No ano de 1971, por mero ajuste verbal, o primitivo autor, AA, começou a trabalhar como vaqueiro, na dita herdade das “HH” de que era, então, proprietária CC;

4. No dia 29 de Junho de 1972, AA e CC ajustaram, por escrito que denominaram de “Contrato entre o Vaqueiro e a Proprietária” e que ambos subscreveram, um acordo nos termos do qual o primeiro se obrigou “a tratar bem” os animais e a segunda a pagar-lhe, mensalmente, em alqueirado, 50 quilogramas de farinha, 2 litros de azeite e 5 litros de feijão, e em dinheiro, 300$00, acrescidos de 50$ enquanto guardasse os carneiros com as vacas e “uma ajuda” enquanto as vacas dormissem na ramada;

5. Mais deixaram ali previsto que AA teria direito “a possuir duas juntas de vacas a criar, vendendo as crias quando tiverem quatro meses e ainda a ter dois bezerros ou bezerras para negociar” e, finalmente, que, caso o contrato viesse a durar um ano, teria, ainda, direito a quatro sacos de milho, terra para semear uma arroba de batatas, uma carrada de estrume e duas carradas de lenha”, para além de gratificação (que consistiria em dois sacos de trigo, três sacos de centeio e três sacos de milho”, caso os animais fossem bem tratados e não causassem danos;

6. AA manteve-se, na dita herdade das “HH”, a desempenhar funções de vaqueiro na Casa Agrícola de CC até 23 de Novembro de 1975;

7. Já no decurso do ano de 1975, CC aceitou, que AA passasse de vaqueiro ao serviço da sua casa agrícola a rendeiro de uma parcela da dita herdade das “HH”;

8. Assim é que, preencheram, para o efeito, um formulário, contendo transcrição de algumas das disposições do Decreto-Lei n.º 201/75, de 15 de Abril (que aprovara a Lei Geral sobre Arrendamento Rural, então, vigente), que dataram de 23 de Novembro de 1975 e ambos subscreveram, onde, sob a epígrafe “Contrato de Arrendamento ao Cultivador Directo”, CC declarou “dar de arrendamento” a AA “um bocado de terra de cultivo com a área aproximada de 0,3060 hectares que faz parte integrante da propriedade denominada “Herdade das HH”, sita na freguesia de Vila Nova de Milfontes, concelho de Odemira, inscrita na matriz predial rústica sob o artigo n.º 1 da secção E-E1 e descrito na Conservatória do Registo predial sob o n.º 9350, a fls. 69 v do livro B-27” de que era dona e legítima possuidora, pelo prazo de um ano, renovável por idênticos períodos;

9. Mais acordaram, então, que a renda devida por AA seria de 360 (trezentos e sessenta escudos), paga em dinheiro, sem prejuízo de, nos termos previstos no artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 201/75, de 15 de Abril, poder ser paga em géneros da sua produção, na residência do senhorio, no fim de cada ano agrícola, ou seja em 15 de Agosto;

10. A 12 de Novembro de 2009, por meio de notificação judicial avulsa feita pelo solicitador de execução ... , a ré, BB, S.A., fez saber ao autor AA que, na qualidade de proprietária da denominada herdade das “HH”, pretendia pôr fim ao sobredito contrato, denunciando-o com efeitos a partir de 22 de Novembro de 2010, data em que a parcela de terreno arrendada lhe deveria ser por si entregue livre “de ónus e encargos e de pessoas e coisas” e que, em 19 de Outubro de 2009, lhe enviara uma carta registada com aviso de recepção com o mesmo fito;

11. À data da propositura da acção, o autor, AA, vivia, numas casas de rés-do-chão que construíra, na parcela de terreno arrendada, com autorização da então proprietária e senhoria, CC;

12. Já havia inscrito na matriz predial urbana, sob o artigo 1248 da freguesia de Vila Nova de Milfontes, as ditas casas, em 11 de Junho de 1976, quando as mesmas tinham, somente, quatro compartimentos, corredor e a área coberta de 48 m2, e fê-lo na qualidade de seu proprietário;

13. GG, em representação do pai, AA, viera, entretanto, a requerer, em 21 de Abril de 1995, a alteração de tal inscrição matricial, na sequência de “ampliação” das ditas casas, compostas agora de duas divisões com utilização independente e a área coberta global de 137,11 m2, sendo uma delas a primitiva casa de habitação de AA – de quatro compartimentos e corredor - e a outra composta de casas de rés-do-chão, com dois compartimentos para habitação, uma cozinha e uma casa-de-banho;

14. As casas em questão, com o valor de construção aproximado de € 72.722,43, a que acrescem € 1.800, correspondentes ao valor estimado do logradouro em cimento, passaram, então, a estar inscritas na matriz predial urbana sob o artigo 3723 da freguesia de Vila Nova de Milfontes;

15. Juntamente com o autor, AA, viviam, nas ditas casas de habitação, três filhos, de seus nomes EE, nascido em 28 de Setembro de 1954, FF, nascida em 26 de Novembro de 1958, e DD, nascida em 21 de Dezembro de 1970, dois netos, de seus nomes MM, nascida em 26 de Fevereiro de 1987, e NN, nascido em 5 de Novembro de 1995, e uma bisneta, de seu nome OO, nascida em 18 de Julho de 2009;

16. AA, à semelhança dos filhos, beneficiou de apoio judiciário nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo;

17. AA e os referidos elementos do seu agregado familiar (e, após o seu decesso, estes últimos) foram vivendo em economia comum, partilhando entre si os rendimentos que alguns deles recebem da segurança social e de trabalho próprio;

18. Ali, nasceram os netos e a bisneta de AA e é nessa casa que, desde o início da vigência do contrato e até hoje, tomam em conjunto as refeições, dormem e recebem as visitas de amigos e conhecidos;

19. Ao longo dos anos, AA e, ultimamente, os filhos vêm procedendo ao cultivo de terras da herdade das “HH” contíguas às da parcela arrendada (que agricultam), plantando e colhendo quer nestas, quer em terras que integram a parcela arrendada, batatas, batatas-doces, pimentos, cebolas, feijão-verde, alhos, pepinos, tomates, alfaces, ervilhas, favas, hortelã, espinafres, abóboras, melancias, coentros, milho e outros produtos agrícolas e hortícolas;

20. Usam alguns desses produtos para satisfazer as suas necessidades alimentares e também na alimentação do gado e animais domésticos que foram criando na dita parcela;

21. Já têm feito venda – para restaurantes e particulares – de excedentes;

22. Mantêm, igualmente, uma horta na parcela em causa, onde plantam, regularmente, produtos hortícolas que usam na sua alimentação, para além de 28 árvores de fruto, como sejam laranjeiras, limoeiros, pessegueiros, macieiras, pereiras, marmeleiros, figueiras e nespereiras, com o valor de € 1.890, 10 parreiras, com o valor de € 450, 1 loureiro e 3 loendros, com o valor global de € 240;

23. AA adquiriu, para agricultar essas terras contíguas à parcela arrendada, um tractor, um reboque, uma charrua e várias alfaias agrícolas;

24. Usou, para o efeito, um burro, nos primeiros anos;

25. Nessas terras da herdade das “HH” contíguas à parcela arrendada, AA fez vedações, valados de canas e plantou 87 árvores de abrigo, como sejam mulatas e acácias, com o valor de € 1.740, para as proteger dos ventos e da salinidade do mar;

26. Na dita parcela de terreno, o autor, AA, construiu um forno em alvenaria, cujo valor de construção ascende a € 1.089,60, onde a família coze pão;

27. Há alguns anos, a família chegou a vender algum desse pão para fora;

28. AA e sua família criaram porcos na parcela arrendada, para além de galinhas, cujos ovos consumiam, pombos e outros animais domésticos;

29. Ao longo dos anos, AA e sua família edificaram, na parcela arrendada, as seguintes construções:

- uma garagem em alvenaria, cujo valor de construção ascende a € 4.662,40;

- uma casa para guardar lenha, em zinco, uma arrecadação, em zinco e com chão de cimento, usada para armazenar produtos agrícolas e hortícolas, e uma garagem usada para guardar o tractor e alfaias agrícolas,  cujo valor de construção ascende a não mais de € 16.639,20;

- chiqueiros, em alvenaria e rede, cujo valor de construção é de € 2.976,75;

- um curral para vacas, em rede, cujo valor ascende a cerca de € 280, e um bebedouro, cujo valor de construção ascende a € 262,08;
- galinheiros em rede e madeira, cujo valor de construção ascende a € 525,70;
- um palheiro;

- dois poços, cujo valor de construção é de € 1.300 e € 1.020;

- uma fossa séptica, com o valor de € 3.000;
- um sistema de rega, cujo valor de construção ascende a cerca de € 2.000; 

30. Já nas terras da mesma herdade das “HH” contíguas à parcela que vêm agricultando, AA e sua família edificaram:


- um poço, cujo valor de construção ascende a € 700;
- um tanque em alvenaria, cujo valor de construção ascende a € 480;

31. Isso fizeram com autorização da primitiva senhoria, CC, e anuência dos que lhe sucederam nessa qualidade;

31-A. AA orientou, até ao seu decesso, os trabalhos agrícolas realizados na parcela arrendada e nas terras contíguas a esta, recebendo, para o efeito, a ajuda dos filhos;

32. EE chegou a trabalhar fora, mas é quem trabalha, presentemente, as terras em causa;

33. FF está reformada e incapaz de trabalhar fora de casa, em virtude de padecer de psicose maníaco-depressiva (bipolar)

34. Juntamente com a irmã, DD, ocupa-se, em todo o caso, das tarefas domésticas e dos animais;

35. DD trabalha, ocasionalmente, a dias, não obstante sofra de problemas de reumatologia que a limitam no seu trabalho e demandam cuidados médicos;

36. Antes de arrendar a parcela de terreno supra identificada a AA, a sua, então, proprietária CC já vinha fazendo uso da mesma como prado para pastagem de animais;

37. Quando a deu de arrendamento, em 1975, já a dita parcela estava desmatada e em condições de ser cultivada;

38. JJ, conhecedor da situação da parcela de terreno em questão, e a actual proprietária, BB, S.A., mantiveram inalterada a renda ajustada (de € 1,80 anuais);

39. Mantiveram sempre com o aqui autor, AA, boas relações, permitindo-lhe que colhessem frutos, madeira, pinha e caruma no pinhal existente na herdade;

40. Apenas o fez notificar nos termos descritos em 10 como afirmação do seu direito de propriedade, por recear que os rendeiros das “HH” invocassem a usucapião ou outros meios de aquisição do direito de propriedade;

41. AA e sua família vêm ocupando uma área de terreno superior à que lhe foi arrendada, de 4751 m2;

42. As terras em causa – sitas nas imediações de Vila Nova de Milfontes e a menos de 100 metros de estrada alcatroada que as serve - têm um valor de mercado não inferior a € 12 por metro quadrado;

43. A ré, BB, S.A., adquiriu a denominada herdade das “HH” com vista à edificação de um empreendimento imobiliário, tendo, para o efeito, desenvolvido estudos e projectos;

44. A parcela de terreno em questão vale mais de € 36.000,00.

7. Matéria de facto não provada (por transcrição):

a) Que AA paga a contribuição predial relativa a essa casa desde 1976;

b) Que o rendimento anual líquido do agregado familiar era de € 13.588,95, à data da propositura da acção;

c) Que alguns dos filhos de AA nasceram nas ditas casas de habitação;

d) Que os rendimentos que AA e o seu agregado familiar foram recebendo, ao longo dos anos, eram e são insuficientes para o respectivo sustento;

e) Que actuam da forma descrita em 19 para poderem viver com um mínimo de dignidade;

f) Que são apenas terras da parcela arrendada que AA e seus filhos agricultam nos moldes descritos em 19;

g) Que com o produto da venda dos excedentes o autor, AA, e seus filhos, compram adubos, sementes e farinhas que utilizam, respectivamente, na fertilização e no cultivo da terra e na alimentação do gado e animais domésticos;

h) Que as aquisições referidas em 22 tiveram em vista agricultar, somente, as terras da parcela arrendada;

i) Que o investimento feito pelo primitivo autor, AA, permitiu ao seu agregado familiar produzir leite e queijos para auto-consumo e fazer venda dos excedentes;

j) Que o pão cozido na parcela arrendada chegou a ser a base da alimentação da família de AA;

k) Que dos porcos que criavam para auto-consumo do agregado faziam torresmos e banhas e, ocasionalmente, quando excedentes também os vendiam a terceiros;

l) Que vendiam para fora ovos, galinhas e pombos que ali criavam;

m) Que usavam para confeccionar a comida e para aquecer a água que usavam para os banhos da família lenha que provinha das acácias plantadas, na parcela em questão, pelo primitivo autor, AA;

n) Que, no início do contrato, parte da parcela arrendada ao autor, AA, estava inculta e parte ematada;

o) Que, no início do contrato, o autor, AA, desbravou a parte da parcela que estava inculta e limpou os matos ali existentes, fertilizou-a e passou a agricultá-las nos moldes referidos em 19 supra;

p) Que foi na parcela arrendada, o autor AA plantou 87 árvores de abrigo, designadamente, acácias e mulatas, e 32 (trinta e uma árvores de fruto, entre outras laranjeiras, pessegueiros, figueiras, limoeiros e nespereiras;

q) Que o valor dos produtos consumidos pelo agregado familiar de AA que provêem da exploração de tal parcela ascende a cerca de € 500 mensais;

r) Que o valor dos excedentes vendidos a restaurantes e particulares ascende a € 150 mensais;

s) Que o despejo da parcela implicaria uma perda mensal de € 650 de rendimentos para este agregado familiar;

t) Que também os netos foram ajudando AA no amanho das sobreditas terras;

u) Que nenhum dos netos trabalha, frequentando a neta MM um curso de formação profissional;

v) Que é da exploração da parcela e dos animais que criam que o agregado familiar de AA retira parte substancial dos seus rendimentos;

w) Que não existem no concelho de Odemira e, nomeadamente, em Vila Nova de Milfontes parcelas com características semelhantes que pudessem arrendar e explorar nos mesmos moldes;

x) Que nenhum dos membros do agregado familiar de AA tem possibilidades de exercer actividade remunerada;

y) Que, caso não tivessem sido feitas algumas das construções, vedações, plantações e melhoramentos supra referidos, a parcela arrendada se teria deteriorado, irremediavelmente, devido à erosão provocada pelos ventos que ali se fazem sentir e à salinidade do mar;

z) Que o seu valor global ascende a cerca de € 175.800, sendo € 32.000 o valor das referidas em y, descriminado nos seguintes moldes:

- as árvores de abrigo e valados de cana com o valor de € 10.000;

- as árvores de fruto com o valor de € 12.000;

- os três poços com o valor de € 7.500;

- o equipamento de rega com o valor de € 2.500;

aa) Que AA chegou a agricultar a sobredita parcela de terreno quando foi trabalhar como vaqueiro na herdade das “HH”;

bb) Que essa terra é, precisamente, a terra em que, então, CC lhe deu o direito de semear batatas;

cc) Que desde 1972 que AA ali semeou batatas, a cavou, lavrou e estrumou;

dd) Que é previsível que a dita parcela de terreno venha a ser urbanizada e, nomeadamente, usada na edificação de empreendimentos turísticos;

ee) Que, ao pugnar pelo reconhecimento, a seu favor, de um direito de remição com referência à parcela de terreno em causa, o autor, AA, causa prejuízo à ré, BB, S.A.;

ff) Que o autor, AA, e a família não mais ocuparam do que a parcela arrendada.

II. Fundamentação
8. As questões jurídicas suscitadas no recurso, considerando que apenas está em causa a determinação do regime aplicável à primitiva casa de habitação construída pelo primitivo autor na parcela de terreno arrendada, prendem-se com a determinação do regime jurídico aplicável à obra “primitiva casa de habitação”: o Decreto-Lei n.º 201/75, de 15 de Abril ou o Decreto-Lei n.º 385/88, de 25 de Outubro.
A qualificação da obra “primitiva casa de habitação” (ponto 12. dos factos provados: Já havia inscrito na matriz predial urbana, sob o artigo 1248 da freguesia de Vila Nova de Milfontes, as ditas casas, em 11 de Junho de 1976, quando as mesmas tinham, somente, quatro compartimentos, corredor e a área coberta de 48 m2, e fê-lo na qualidade de seu proprietário) como benfeitoria ou como obra sujeita ao regime do art.º1340.º é também questionada, mas a prova produzida parece apontar para a qualificação como benfeitoria útil, conforme se dirá adiante (cf. Acórdão).
Em geral o recurso versa sobre o regime da benfeitoria/acessão e o dever de indemnizar pela sua realização.

9. Conforme de escreveu na sentença, “mostra-se provado que o primitivo autor AA e CC, outrora proprietária da denominada herdade das “HH” firmaram um acordo – escrito, a que denominaram ”Contrato de Arrendamento ao Cultivador Directo” – nos termos do qual a mesma se obrigou a “dar de arrendamento” ao primeiro “um bocado de terra de cultivo com a área aproximada de 0,3060 hectares que faz parte integrante” daquele prédio rústico, pelo prazo de 1 (um) ano, renovável por idênticos períodos de tempo, e que este se obrigou a pagar-lhe, em contrapartida, uma renda no valor de 360$00 anuais”, arrendamento que o tribunal julgou sujeito à disciplina prevista no Decreto-Lei n.º 201/75, de 15 de Abril, pelo menos, na data da sua celebração. Aquele diploma tratava do arrendamento de prédios rústicos, no todo ou em parte, para fins de exploração agrícola, referindo-se ao arrendamento ao cultivador directo como aquele que tivesse por objecto um ou mais prédios que o rendeiro devesse explorar “exclusiva ou predominantemente com o seu próprio trabalho executivo ou o das pessoas do seu agregado familiar”.
Este mesmo diploma tratava das benfeitorias realizadas pelo rendeiro no seu artigo 10.º, do qual resultava que o rendeiro cultivador directo poderia realizar benfeitorias necessárias ou úteis sem consentimento do senhorio, designadamente, as que tivessem em vista aumentar a fertilidade das terras, valorizar o seu equilíbrio biológico, melhorar as condições da exploração agrária ou de vida dos trabalhadores, desde que não prejudicassem o destino económico do prédio. Desta norma também resultava que, findo o contrato, o rendeiro teria o direito de exigir o valor das benfeitorias.
Tendo este diploma sido revogado pelo Decreto-Lei n.º 385/88, de 15 de Outubro, veio a nova lei estabelecer, nos artigos 40.º e 36.º, qual a lei aplicável aos contratos anteriormente celebrados e que se mantivessem em vigor[1]. Aí se dizia que o novo regime seria o aplicável “a todos os contratos cuja denúncia não tenha ainda produzido efeito à data do início da sua vigência”.
Sabendo que, no caso dos autos, a denúncia do arrendamento só vem a ser realizada em Outubro de 2009, com os seus efeitos a serem produzidos a partir de 22 de Novembro de 2010, fica claro que o contrato de arrendamento passou a ser abarcado pelo novo regime.
Mas quererá isto dizer que todo o novo regime se aplica ao contrato? Ou haverá normas do anterior diploma que, não obstante a revogação, são de aplicação ao contrato? É esta a questão que cumpre analisar.

10. Já a 1ª instância havia referido, na sequência do entendimento firmado por este Supremo Tribunal (21 de Janeiro de 2003), que:

“(…) nem todo o conteúdo dos contratos é regulado pela lei vigente à data da sua celebração, antes o seu «estatuto legal» é regulado pela lei nova, imediatamente aplicável a todas as situações pendentes mesmo que estas se encontrem reguladas por cláusulas contratuais, pois, então, tais leis, criando um conjunto de poderes ou faculdades e de deveres susceptíveis de interessar todos os membros da colectividade, são leis reguladoras de situações jurídicas institucionais ou legais que constituem como que a base sobre a qual podem depois ser construídas as situações jurídicas contratuais;

- o mesmo acontece nos contratos ditados ou normativos, como o arrendamento, em que o legislador conserva larga margem de conformação às condições socioeconómicas em cada momento dominantes”.

Mas também é verdade que nem sempre a lei nova se aplica aos factos passados!

E numa mesma situação jurídica podem coexistir duas leis aplicáveis – ainda que a segunda tenha vindo substituir a primeira – e que a cada problema só uma delas se aplique à vez.

Vejamos então a situação relevante quanto à construção da casa de habitação primitiva.

11. A construção de uma casa de habitação envolve a incorporação de material no terreno. Esta incorporação pode ser considerada uma benfeitoria.

Sabendo que as benfeitorias se classificam em necessárias, úteis e voluptuárias, nos termos do CC, a integração da casa numa destas classificações dependerá dos factos provados – pois é com base neles que se pode determinar a verificação ou não dos elementos característicos de cada categoria.

O Tribunal da Relação entendeu que a casa primitiva era uma benfeitoria útil – o que justificou com a alusão à lei e à prova pericial produzida. A 1ª instância também havia qualificado a benfeitoria como útil. Nada nos autos justifica uma mudança na qualificação operada pelo tribunal, pelo que se considera tratar-se de uma benfeitoria útil.

12. No recurso da Ré também se coloca a questão da fronteira entre a benfeitoria e a acessão. Importa esclarecer que, na situação dos autos, a casa primitiva é uma benfeitoria, sujeita ao regime específico do DL n.º 201/75, não sendo aqui de aplicar o regime da acessão – art.º1340.º e ss do CC.

Em apoio deste entendimento pode ser consultada a jurisprudência[2] que sempre tem delimitado a fronteira entre benfeitoria e acessão indicando que no contrato de arrendamento apenas se suscitam problemas de benfeitorias; a acessão, enquanto modo de aquisição da propriedade, não é um instituto aplicável quando exista um vínculo jurídico entre aquele que realiza a obra/despesa e o titular do prédio, onde a obra é incorporada – como sucede no âmbito do contrato de arrendamento.

13. Qualificada a benfeitoria, importa saber qual o regime que se lhe aplica.

 A 1ª instância considerou que a benfeitoria conferia direito a indemnização e retenção – justificou o primeiro com base no regime geral do CC e no art.º 15.º do Decreto-Lei n.º 385/88, de 25 de Outubro – indicando que a indemnização deveria ser calculada de acordo com as regras do enriquecimento sem causa (parece ter aplicado o n.º3 do art.º15.º do referido DL, onde se diz: “Se houver resolução do contrato invocada pelo senhorio, ou quando o arrendatário ficar impossibilitado de prosseguir a exploração por razões de força maior, tem o arrendatário direito a exigir do senhorio indemnização pelas benfeitorias necessárias e pelas úteis consentidas pelo senhorio, calculadas estas segundo as regras do enriquecimento sem causa.”).

 O Tribunal da Relação revogou a sentença, parcialmente, por entender que havia de distinguir as benfeitorias realizadas em função da data da sua finalização: aquelas que tivessem sido realizadas antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 385/88 ficariam abrangidas pelo regime anterior – mormente o DL 201/75 – sendo indemnizáveis de acordo com as regras aí indicadas; as que fossem realizadas posteriormente seriam indemnizáveis, ou não, consoante o regime jurídico aplicável à data da sua conclusão; e porque nos autos não figuravam factos provados sobre a data da conclusão de várias “benfeitorias” realizadas – considerando que a prova desse facto incumbiria ao autor, tal como as consequências da “não” realização da prova – sabendo-se apenas a data da conclusão da primitiva casa, considerou que só sobre esta se poderia discutir o direito à indemnização.

Tal indemnização, no dizer do Tribunal da Relação, ter-se-ia de apurar nos termos do DL  n.º201/75, por ser o diploma vigente na data da conclusão da benfeitoria (art.º10.º), sendo de indemnizar pelo valor “à data da extinção do arrendamento” (n.º6).

A recorrente contesta este entendimento, insistindo na manutenção do seu posicionamento já avançado aquando do recurso de apelação: as obras não constituem  benfeitorias, nem representam nenhuma vantagem para a Ré; as obras não enriquecem a recorrente mas antes a empobrecem; as obras não lhe são oponíveis – res inter alios acta; as obras constituem uma alteração de substância do prédio; as obras são clandestinas; a serem benfeitorias não está provado que não possam ser levantadas sem detrimento do prédio; a haver indemnização deve a mesma ser apurada segundo a lei vigente na data da denúncia e não na lei antiga.

Analisemos os argumentos.

14. Quanto ao argumento de que “não existe uma relação imediata entre o arrendatário e a Ré”, trata-se de argumento que parte da consideração de que a casa para habitação foi efetuada, em data anterior à aquisição onerosa, pela Ré, e que entre o período da conclusão (1976) e a compra, 13-03-2008, se verificaram três transmissões onerosas do prédio, sendo que a aquisição pela Ré foi a última, pretendendo-se daqui concluir: i) a haver direito a indemnização quem a devia pagar não era a Ré; ii) a Ré não tem qualquer benefício com a obra; iii) a obra é até prejudicial para o fim a que o prédio vai ser destinado; iv) a obra é clandestina; v) prescreveu o eventual direito à indemnização pelos AA.

Em resposta a este argumento – que apenas inova ao invocar agora a prescrição (em sede de alegações e  sem a incluir o ponto nas conclusões do recurso) – podem dar-se aqui por reproduzidas as considerações do acórdão recorrido, que afastaram, ponto por ponto, os argumentos do recorrente.  No presente recurso não há elementos adicionais a considerar (nada foi dito de novo), pelo que à justificação outrora dada pelo tribunal nada há a acrescentar. E no que concerne à alegada prescrição do direito à indemnização – não pode esta questão ser introduzida no recurso, estando precludido o direito à sua invocação nesta fase do processo judicial – o que determina o seu não conhecimento pelo tribunal.

Adicionalmente deve ainda contrapor-se as seguintes objecções:

1) Como dizem os recorridos nas suas contra-alegações, “5º - existe uma relação imediata entre a recorrente (senhoria) e os autores (arrendatários) ao contrário do que aquela alega, aliás se assim não fosse, onde ia aquela buscar legitimidade para denunciar o contrato de arrendamento rural em vigor.”
2) O actual proprietário ao adquirir o imóvel teve oportunidade de analisar a situação jurídica do mesmo, sendo fácil a percepção de que existia um arrendamento rural; ao adquirir o prédio, substituiu a posição do alienante, na sua totalidade – incluindo direitos e deveres, direitos que exerceu – fazendo terminar o contrato de arrendamento; deveres a que não se pode frustrar – o de indemnizar o arrendatário pelas benfeitorias a que a lei confere tutela indemnizatória; o valor pago devia reflectir exactamente o valor considerado adequado pelas partes atendendo à especificidade da situação jurídica do bem adquirido, nomeadamente, na linha da argumentação do recorrente, é de supor que este terá pago menos pelo prédio do que o valor pedido já que para ele as benfeitorias existentes permitiam evidenciar “despesas acrescidas” (porque não lhe interessavam, ou até prejudicavam e tinha que as demolir; porque corria o risco de ter de suportar a indemnização).

15. Quanto ao argumento do recorrente no sentido de que foi violado o disposto no art.º36.º do Decreto-Lei n.º 385/88 – diploma que seria o aplicável (e não o DL  n.º 201/75) –  não tendo sido respeitado o adequado regime de aplicação da lei no tempo, importa aludir ao regime do arrendamento rural e suas sucessivas modificações, a fim de determinar qual o diploma que se aplica à primitiva casa enquanto benfeitoria útil.

Ao longo dos anos o regime do arrendamento rural foi sendo modificado, e o contrato dos autos foi subsistindo para além dessas mudanças.

No domínio do DL n.º201/75 o arrendatário podia fazer benfeitorias úteis sem consentimento do senhorio, desde que não prejudicasse a substância do prédio. Ora, foi ao abrigo deste diploma que o arrendamento rural dos autos foi celebrado, uma vez que teve início a 23 de Novembro de 1975 – cf. doc. 2 dos autos, a fl. 22. Pela sua importância reproduz-se o texto legal, chamando a atenção para o facto de o arrendamento dos autos sem arrendamento ao cultivador directo.
O art.º 10.º dizia:
1. O rendeiro pode fazer benfeitorias necessárias ou úteis sem consentimento do senhorio, designadamente as que visem aumentar a fertilidade, valorizar o equilíbrio biológico, melhorar as condições de exploração agrária ou as condições sociais de vida dos trabalhadores, desde que não prejudiquem a substância ou o destino económico do prédio.
2. Se houver consentimento por escrito do senhorio, ou se este tiver sido suprido pela comissão arbitral, o rendeiro, findo o contrato, tem o direito de exigir o valor das benfeitorias consentidas.
(3. e 4)
5. No arrendamento ao cultivador directo o direito conferido no n.° 2 deste artigo não depende do consentimento do senhorio.

Em 1977, com a aprovação da Lei n.º 76/77, de 29 de Setembro, que revogou o DL n.º 201/75 – só se veio a permitir ao arrendatário que realizasse benfeitorias necessárias sem o consentimento do senhorio; as benfeitorias úteis tinham de ser consentidas pelo senhorio e as mesmas confeririam ao arrendatário o direito de, na data da cessação do contrato, exigir a sua indemnização, pelo valor que as benfeitorias ou melhoramentos tiverem no momento da cessação (art.º25.º). Daqui resultava que, diferentemente da solução estabelecida no art.º1273.º do CC, as benfeitorias úteis permitidas pelo senhorio davam sempre direito a indemnização, mesmo que pudessem ser levantadas sem detrimento da coisa, se o arrendatário as não levantasse voluntariamente. Quanto a saber se as benfeitorias úteis poderiam ou não ser levantadas sem detrimento da coisa, firmou-se entendimento no sentido de caber ao senhorio indicar se as benfeitorias poderiam ser levantadas – informação que deveria ser depois objecto de controlo pelos tribunais, segundo critérios objectivos, na falta de acordo dos interessados[3].

Também neste diploma se continha um art.º49.º relativo ao âmbito de aplicação da lei – onde se dizia que “aos contratos existentes à data da entrada em vigor da presente lei aplica-se o regime nela prescrito”, consagrando uma regime de aplicação retroactiva (retrospectiva) da lei aos arrendamento anteriores.

Em 1979, através da Lei  n.º 76/79, de 3 de Dezembro, o art.º49.º da Lei n.º76/77 foi revogado. Contudo com esta revogação não se pretendeu que se aplicasse aos contratos anteriores o regime do DL n.º 201/75, pois a eliminação foi justificava pela desnecessidade dessa regulação, face ao regime do art.º44º da Lei n.º 76/79 e do art.º12º, n.º 2 do CC[4].

Posteriormente o DL n.º 385/88, de 25 de Outubro, veio revogar a Lei de 1977 e a de 1979, criando um novo regime de arrendamento rural. Neste se inseriu o art.º36.º  –  âmbito de aplicação da presente lei – indicando-se (n.º1) que “aos contratos existentes à data da entrada em vigor da presente lei aplica-se o regime nela prescrito”, embora esta legislação tenha introduzido modificações substanciais em matérias de benfeitorias e direito à sua indemnização (art.º15.º, para os casos aí referidos e regime geral do possuidor benfeitorizante para as situações não indicadas).

O sentido do art.º36.º tem sido questionado, assim como qualquer disposição legal que implique aplicação retroactiva (retrospectiva) de leis.

A principal dúvida é a que se enuncia: quer o art.º36.º do DL n.º385/85 dizer que a nova regulamentação, sendo mais restritiva, se pode aplicar, sem sombra de dúvidas, a benfeitorias que tenham sido realizadas no domínio de lei anterior que conferisse ao benfeitorizante uma protecção jurídica superior àquela que decorre do novo regime?

Estamos em crer que a resposta só pode ser negativa.

A correcta interpretação do art.º36.º do DL n.º385/88 não pode ser levada ao extremo de dizer que não devem ser respeitadas as fundadas expectativas criadas ao arrendatário em face de situações de facto já consumadas, que poderiam ser goradas pela alteração legal superveniente.

Há que realizar um balanceamento justo entre as expectativas criadas aos cidadãos e a liberdade de revisão legal do regime jurídicos aplicáveis, por estarmos num Estado de Direito democrático, em que deve merecer atenção especial o princípio da protecção da confiança (art.º2º CRP).

Se a opção de aplicar retroactivamente uma lei não é, em si, inconstitucional, a inconstitucionalidade da aplicação retroactiva pode resultar da correspondente violação, com essa dita aplicação, de normas ou preceitos constitucionais. E porque o legislador não teria consagrado uma solução inconstitucional se a tivesse previsto, deve o intérprete procurar no texto legal uma solução que, tendo um mínimo de correspondência literal, não se venha a traduzir numa solução interpretativa que possa ser julgada inconstitucional.

A solução aventada pelo Tribunal da Relação de Évora parece-nos ter conseguido atingir esta pretensão: ao considerar que as benfeitorias realizadas e autorizadas no domínio da lei de 1975 devem ser analisadas segundo os seus termos, ainda que em data muito distante (2017), e não por leis posteriores que introduziram regimes menos protectores, foi encontrada uma solução que salvaguarda a expectativa e confiança depositada pelos cidadãos no sistema democrático, reconhecendo o direito à indemnização – tal como ele estava consagrado no momento em que o sujeito efectuou as despesas correspondentes.

A isto acresce que as partes do contrato estiveram de acordo com a realização das benfeitorias em causa – relativas à primitiva casa – não fazendo sentido que, hoje, se questione a concretização da autorização e a “disponibilidade” do direito oportunamente exercido pelos seus titulares (no contrato de 1975 poder-se-ia ter indicado que as benfeitorias úteis não confeririam direito a indemnização, assim como poderia o senhorio não as ter autorizado, quando questionado sobre o tema, mas não!).

Em apoio do exposto pode indicar-se ainda o princípio estabelecido no art.º 96.º, n.º1 da CRP, princípio que desde longa data tem consagração constitucional (antigo art.º101.ºCRP): “Os regimes de arrendamento e de outras formas de exploração de terra alheia serão regulados por lei de modo a garantir a estabilidade e os legítimos interesses do cultivador.”

16. Quanto ao argumento da falta de invocação da impossibilidade de levantamento da obra sem detrimento do prédio – e o problema de saber a quem incumbe a sua prova – pode dizer-se que com esta questão pretende o recorrente contestar o direito à indemnização por benfeitorias úteis, por entender que o arrendatário pode ver reconhecido o direito ao levantamento da benfeitoria, mas já não à indemnização. Na sua lógica argumentativa considera que, não estando provado que as benfeitorias não podiam ser levantadas sem detrimento da coisa – o que considera ser ónus de invocação e prova pelos AA –, haverá um impedimento a que os autores possam invocar qualquer direito a indemnização, até porque o levantamento – afirma – poderia ser feito sem detrimento para o prédio (critério que indica como sendo o juridicamente aplicável para aferir da possibilidade de levantamento).

Não tem razão.

Em primeiro lugar é evidente que uma casa de alvenaria ou construção tradicional como benfeitoria útil não pode subsistir desligada do solo, muito embora o solo possa ter utilidade sem a casa. Pretender que numa situação como esta em que a benfeitoria não é apenas uma despesa mas constitui uma coisa não autonomizável materialmente fique sujeita ao mesmo regime de uma qualquer benfeitoria que pode ser destacada (levantada) é defender uma solução injusta – no mínimo – o que não se pode presumir corresponder à vontade do legislador. O conceito de benfeitoria útil e o sentido de levantamento não se aplica à casa dos autos, por esta não comportar possibilidade de levantamento.

Em segundo lugar, mesmo que se entendesse que uma casa como benfeitoria útil comporta possibilidade de levantamento, porque o que releva é o prejuízo para o solo, e esse não existe, sempre seria de considerar que o regime legal vigente na data da celebração do contrato dos autos (DL n.º201/75), ao reconhecer ao arrendatário o direito à indemnização por benfeitorias, não condicionava este direito à impossibilidade do seu levantamento, como sucede no regime geral das benfeitorias úteis na posse civil; antes, deixava ao critério do arrendatário a opção entre pedir o levantamento da benfeitoria ou a sua indemnização. Sendo uma escolha do arrendatário, estaria justificada a opção feita no processo no sentido de preferir a indemnização, nos termos do pedido formulado pelo autor.

17. No que concerne à defesa subsidiária apresentada pelo recorrente de “repescar” o argumento do enriquecimento sem causa invocado na apelação: com esta argumentação pretende o recorrente que, se o tribunal entender que deve haver lugar a indemnização por benfeitorias, devem ser analisadas as questões jurídicas por si colocadas contra essa pretensão fundadas na inexistência dos pressupostos do enriquecimento sem causa e oportunamente invocadas como 1º, 4º e 5º fundamentos da apelação. Ao invocar em sua defesa – por remissão – os argumentos que expendera no recurso de apelação, pretende o recorrente que o tribunal faça a adaptação da sua defesa invocada no recurso de apelação ao actual recurso de revista.

Não havendo qualquer indicação legal no sentido de poderem ser conhecidas questões jurídicas por remissão, não directamente formuladas pelos interessados, não incumbe ao tribunal tal tarefa sem disposição legal expressa que assim o determine; a mera indicação de tal pretensão num ponto das conclusões do recurso não é suficiente para que se considere haver formulação de questão jurídica a tratar, pelo que tais problemáticas não serão abordadas pelo tribunal.

Ainda assim, sempre se dirá que o regime de indemnização a aplicar às benfeitorias em discussão não é, na sua essência, equivalente à aplicação do regime do enriquecimento sem causa, porquanto o legislador apenas diz que a benfeitoria será indemnizável pelo valor que apresentar na data da cessação do contrato. O apuramento desse valor será, em consequência, independente dos eventuais enriquecimento e empobrecimento, por se encontrar aqui uma norma legal que determina existir direito à indemnização, com indicação do critério a usar no apuramento do seu montante.

18. Finalmente, no seu recurso, diz o recorrente que o acórdão recorrido aplicou lei que viola a CRP, nos seus artigos 1º, 2º, 8, 16, 20 e 205.º.

Não se explicitando porque ocorreu a referida violação constitucional não pode este tribunal emitir juízo em branco sobre a pretensão formulada, pois não se alcança a invocada inconstitucionalidade. Houve até oportunidade de esclarecer que este tribunal entende que a solução aplicada é aquela que melhor corresponde ao respeito pelo regime constitucional português.


III. Decisão

Pelas razões apontadas, indefere-se a revista, confirmando-se o Acórdão do Tribunal da Relação.

                                                                                                                     

Custas pela recorrente.

Lisboa, 13 de Março de 2018

Fátima Gomes

Garcia Calejo

Roque Nogueira

                                                                                                                         

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[1] Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20 de Dezembro de 2012, disponível em www.dgsi.pt, no qual se faz uma resenha do regime do arrendamento rural ao longo do tempo.

[2]A título de exemplo, cf. Ac. STJ de 20-06-2013, proc. 1219/07.9TBPMS.C1.S1 (GRANJA DA FONSECA), in www.dgsi.pt.

[3] Sobre o ponto cf. Jorge Aragão Seia/Manuel Costa Calvão, Arrendamento rural, Almedina, Coimbra, 2ª ed, 1985, p. 114, com nota bibliográfica.
[4] Conforme orientação defendida na jurisprudência – Ac. TRP 4/6/1981, Col. Jur., VI, 3, p. 145.