Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
121/04.0TTSNT.L1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: GONÇALVES ROCHA
Descritores: APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
CONTRATO DE TRABALHO
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO
ÍNDÍCIOS DE SUBORDINAÇÃO JURÍDICA
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 01/31/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário : I - A qualificação de uma relação jurídica que haja vigorado no período compreendido entre Janeiro de 2002 e Fevereiro de 2003 tem que ser equacionada à luz do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, anexo ao Decreto-Lei n.º 49 408, de 24 de Novembro de 1969.

II - O contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga a prestar a outra a sua actividade, intelectual ou manual, sob a autoridade e directa desta e mediante retribuição.

III - O contrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar a outra o resultado da sua actividade, com ou sem retribuição.

IV - A distinção entre contrato de trabalho e contrato de prestação de serviço assenta em dois elementos essenciais: no objecto do contrato (prestação de actividade no primeiro; obtenção de um resultado no segundo); e no tipo de relacionamento entre as partes (subordinação jurídica no primeiro; autonomia no segundo).

V - Todavia, e porque a distinção entre os dois tipos contratuais assume, em certas situações da vida real, grande complexidade, é comum o recurso ao chamado método indiciário ou de aproximação tipológica, constituindo indícios de subordinação a vinculação a um horário de trabalho, a execução da prestação em local pelo empregador, a existência de controlo externo do modo de prestação, a obediência a ordens, a sujeição à disciplina da empresa, a modalidade da retribuição, a propriedade dos instrumentos de trabalho e a observância dos regimes fiscais e de segurança social próprios do trabalho por conta de outrem.

VI - Tomados de per si, estes elementos revestem-se, contudo, de patente relatividade, impondo-se, assim, fazer um juízo de globalidade com vista à caracterização do contrato, não existindo nenhuma fórmula que pré-determine o doseamento necessário dos vários índices, desde logo porque cada um deles pode assumir um valor significante muito diverso de caso para caso.

VII - Incumbe ao trabalhador fazer a prova dos elementos constitutivos do contrato de trabalho, nomeadamente, que desenvolve uma actividade sob autoridade e direcção do beneficiário dessa actividade, demonstrando que se integrou na estrutura organizativa do empregador (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil).

VIII - Resultando provado que o autor, na execução da actividade a que se obrigou por força do vínculo contratual celebrado com a ré, foi sempre livre de visitar os clientes que quisesse, quando e no momento que entendesse, não controlando a ré o tempo por si despendido no seu desempenho, nem os dias de trabalho, nem as horas de entrada e de saída ou os intervalos, utilizando para tal o seu veículo próprio, e que auferiu, em contrapartida da sua actividade, apenas comissões, doze meses no ano, não pode tal vínculo ser caracterizado como laboral.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

1---

AA, residente em Queluz, intentou uma acção com processo comum, emergente de contrato de trabalho, contra

BB SA, com sede no Cacém, pedindo a sua condenação no seguinte:

A) Reconhecer que a relação jurídica que manteve com a R. tinha natureza laboral;

B) Reconhecer que a rescisão que levou a cabo foi com justa causa;

C) No pagamento na indemnização de antiguidade no montante de € 5.611,28;

D) Que a R. seja condenada a pagar-lhe, a título de créditos salariais devidos e não pagos, a quantia de € 10.760,41;

E) Que a R. seja condenada a pagar todas as contribuições devidas para a Segurança Social e apuradas sobre o montante que auferiu a título de retribuição, a liquidar em execução de sentença, apurando-se as demais consequências legais;

F) Que a R. seja condenada a pagar-lhe, a título de indemnização por danos morais, uma quantia nunca inferior a € 8.000,00;

G) E que a R. seja condenada a pagar-lhe os juros de mora sobre todas as quantias vencidas e vincendas peticionadas e objecto de sentença condenatória, desde a data da citação até integral pagamento.

Alegou para tanto que, em Janeiro de 2002, celebrou um contrato de trabalho verbal com a R, para, sob sua autoridade e direcção, exercer as funções correspondentes à categoria profissional de vendedor ou “Técnico de vendas”, conforme designação usada pela própria R, embora esta sempre o tenha tratado como prestador de serviços, sem lhe reconhecer os direitos inerentes à relação laboral que mantinham.

Efectivamente, a R. nunca procedeu ao pagamento de quaisquer subsídios de férias e de Natal, nem efectuou os devidos descontos para a Segurança Social.

Por isso, em 21 de Fevereiro de 2003 enviou à R, através de correio registado, com aviso de recepção, uma carta através da qual rescindiu o contrato de trabalho com invocação de justa causa, com fundamento na falta de cumprimento das referidas obrigações e na falta de pagamento de outras verbas devidas.

A R. recusou proceder a qualquer pagamento, pelo que lhe deve a indemnização de antiguidade prevista no art.36º, nº 2º do DL n.º 64-A/ 89, de 27/02, que ascende a € 5.611,28; subsídio de férias de 2002, no valor de € 680,15 e subsídio de Natal de 2002, no valor de € 680,15; férias e subsídio de férias vencidas a 1 de Janeiro de 2003, no valor de € 1.870,42, e que não gozou; proporcionais de férias, subsídio de férias e de Natal vencidos até 21 de Fevereiro de 2003, no valor de € 467,60, e retribuições de Dezembro de 2002 e Janeiro e Fevereiro de 2003, no valor de € 3.321,25, o que perfaz o montante total de € 10.760,41.

Alegou ainda que o comportamento da R lhe provocou diversos danos de natureza patrimonial e não patrimonial, que lhe conferem direito a uma indemnização no valor de € 8.000.

Realizada audiência de partes e como a mesma não resultou na sua conciliação, veio a R contestar, alegando que entre ambos existiu um contrato de prestação de serviço, conforme proposta do A, concluindo assim pela sua absolvição do pedido.

À cautela, e caso seja outro o entendimento do Tribunal, requer que sejam tidos em conta todos os pagamentos que fez ao A. e, em atenção ao princípio da igualdade, que sejam refeitos os cálculos dos valores que lhe sejam devidos, pois deverão ser calculados tendo em conta os direitos dos demais trabalhadores da empresa naquela data.
          Foi proferido despacho saneador, com selecção da matéria de facto assente e organização da base instrutória, que não foram alvo de reclamações.
          Efectuada audiência de julgamento, foi proferida decisão sobre a matéria de facto, que tendo sido objecto de reclamação apresentada pelo A, foi esta indeferida.
          E proferida sentença foi a acção julgada improcedente, sendo a R absolvida do pedido.

E querendo recorrer desta decisão, veio o A requerer, ainda antes da interposição da apelação, que gozando do apoio judiciário, deveria ser o Tribunal a ordenar a transcrição imediata e urgente dos depoimentos de todas as testemunhas, o que solicitava  

Entretanto, e antes de qualquer decisão sobre este requerimento, veio o A apelar da sentença, recurso que foi admitido.

E como o Tribunal indeferira o requerimento de transcrição dos depoimentos das testemunhas, veio o A agravar deste despacho, recurso que também foi admitido, mas como agravo.

Subidos os autos ao Tribunal da Relação de Lisboa proferiu este acórdão a julgar improcedentes os dois recursos.

Novamente inconformado recorreu o A de agravo interposto na 2ª instância, na parte em que o acórdão manteve o despacho a indeferir a transcrição dos depoimentos das testemunhas, tendo concluído a sua alegação do seguinte modo:

1- O Recorrente tem interesse, legitimidade e beneficia de apoio judiciário na modalidade de isenção do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, encontrando-se o recurso interposto no prazo legal para o efeito;

2- O Acórdão objecto de recurso é recorrível;

3- Vem o presente Recurso interposto do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que julgou totalmente improcedente o Recurso de Agravo apresentado pelo ora Recorrente;

4- O Acórdão recorrido fundamentou a sua decisão de indeferimento total do recurso do ora Recorrente nos artigos 522°-B, 522°- C e 690°- A do Código de Processo Civil, na versão anterior àquela que foi conferida pelo Decreto-Lei n°303/2007, de 24 de Agosto, os quais, salvo melhor e diversa opinião, não são aplicáveis ao caso concreto;

5- Os artigos 522°- e 522.°- C do Código de Processo Civil, na sua versão anterior, não podem fundamentar qualquer decisão de indeferimento do Recurso, uma vez que apenas dizem respeito à forma como são efectuadas as gravações e não à transcrição das mesmas;

6- O artigo 690°-A do Código de Processo Civil, na sua versão anterior, também não pode fundamentar qualquer decisão de indeferimento do Recurso, já que não exclui a competência do Juiz do Tribunal de 1ª Instância para ordenar a transcrição dos depoimentos proferidos em audiência de julgamento, quando requerido por uma parte que goza de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxas de encargos com o processo, direito que o Recorrente, inequivocamente tinha face ao apoio judiciário que goza;

7- Uma vez que o ora Recorrente beneficia de apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento das taxas de justiça e demais encargos com o processo e tendo requerido que fosse ordenada a transcrição dos depoimentos das testemunhas de modo a instruir recurso de apelação no que refere à impugnação da matéria de facto, tem este direito a que a referida transcrição seja efectuada de modo a permitir ao Recorrente usar da prerrogativa assegurada pela lei processual civil para o efeito;

8- Não incumbe ao recorrente, gozando de apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, proceder à transcrição dos depoimentos, tarefa que o mesmo não consegue sequer suportar;

9- A decisão recorrida violou, multiplamente, o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 20°, n°1, 2, 4 e 5 da Constituição da República Portuguesa e artigos 522°-B, 522°- C e 690°- A do Código de Processo Civil.               

            Pede-se assim a revogação do acórdão, com todas as legais consequências daí resultantes.

A R não contra-alegou.

E tendo o A recorrido também de revista, rematou a sua alegação com as seguintes conclusões:

1- A decisão proferida é recorrível, o recorrente tem legitimidade para interpor recurso, mostrando-se o mesmo tempestivo;

2-Vem o presente Recurso interposto do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que julgou totalmente improcedente o recurso de apelação apresentado pelo A, e que incide sobre a parte que decidiu pela improcedência de todos os pedidos formulados pelo A;

3- No entanto, a relação jurídica que vigorava entre A e R constitui um verdadeiro contrato de trabalho, na acepção do artigo 10º do Código do Trabalho de 2003, e conforme resulta da matéria de facto apurada.

Por isso e tendo o acórdão violado o artigo 10º daquele Código do Trabalho, pede-se a sua revogação, devendo concluir-se como na petição inicial.  

A R não contra-alegou.

Subidos os autos a este Supremo Tribunal, proferiu o relator despacho a não admitir o recurso de agravo, admitindo-se apenas a revista.

A Senhora Procuradora Geral Adjunta emitiu proficiente parecer, opinando pela improcedência da revista, o qual não suscitou qualquer reacção das partes.

E mostrando-se corridos os vistos legais, cumpre decidir.

2---

Para tanto, as instâncias tiveram em conta a seguinte matéria de facto:

A) A partir de Janeiro de 2002, o A. exerceu a actividade de promoção e venda dos produtos comercializados pela R., nos distritos de Faro, Évora, Beja e parte do distrito de Portalegre.

B) O A. visitava os clientes da R., procedia ao transporte e entrega junto dos mesmos de material promocional e publicitário daquela e dos seus produtos e informava-os dos novos produtos comercializados pela R e de todas as alterações técnicas neles ocorridas e/ou mudança das condições contratuais de aquisição, se fosse esse o caso.

C) O A. também recebia e encaminhava para a R. os pedidos de aquisição de mercadoria efectuados pelos clientes da R., bem como as reclamações que pudessem existir relativamente aos produtos e modos de aquisição, entrega, pagamento ou reparação dos mesmos.

D) O A. acompanhava as necessidades de fornecimento dos clientes da R., recolhendo junto daqueles e encaminhando para a R. a informação obtida.

E) Bem como dava assistência e informações técnicas, na medida dos seus conhecimentos, aos clientes da R, sempre que para tal fosse solicitado.

F) O A. efectuava cobranças dos produtos vendidos pela R. e elaborava mapas de cobranças, os quais enviava para a R.

G) O A. constatava, anotava e enviava à R. as alterações relacionadas com os clientes.

H) Ao A. foram distribuídos cartões de apresentação comercial, os quais foram concebidos, elaborados e pagos pela R., que os entregou ao A.

I) Nesses cartões, para além da morada e marca da R. - “BB” - podia-se ler “Departamento Comercial”, o nome do A. e as palavras “S...” ou Técnico de Vendas.

J) A R. forneceu ao A. um telemóvel e respectivo cartão.

K) O A. estava autorizado a apresentar despesas efectuadas em almoços ou jantares comerciais com os clientes da R.

L) Na aludida actividade, o A. utilizava veículo que lhe pertencia, sendo as despesas com seguros e combustível suportadas pela R.

M) As quantias recebidas da R. pelo A. eram acrescidas de IVA e deduzidas de IRS.

N) Os pagamentos ao A. eram feitos por transferência bancária.

O) O A. emitia e entregava à R. “recibos verdes”.

P) Com data de 31 de Dezembro de 2003, o A. emitiu a seguinte declaração: “ Eu, AA, declaro que aceito que a BB Portugal, S.A. proceda ao acerto das minhas comissões à data de 31/12/02”.

Q)Em 05 de Fevereiro de 2003, o A. enviou para a R., que a recebeu, carta enviando certificado de incapacidade para o trabalho por motivo de doença até 28 daquele mês.

R) Em 21 de Fevereiro de 2003 (sexta-feira), o A. enviou para a R., através de correio registado com aviso de recepção, que a R recebeu, carta com o seguinte teor: “(...)

Serve a presente carta para comunicar a V. Exas. a “rescinzão” com justa causa do meu contrato de trabalho, o que faço pelas razões seguintes:

Conforme é do V. conhecimento, desde a data do início do meu contrato que essa Sociedade sempre recusou suportar todos custos encargos decorrentes da relação que mantenho com V. Exas.

Na verdade, todos os descontos para a Segurança Social têm vindo a ser suportados por mim, devido à V/recusa, reiterada e continuada, em proceder a tais pagamentos.

V. Exas. também recusaram proceder ao pagamento do seguro de acidente de trabalho a que estão obrigados, impondo como condição para a continuação da prestaçâo do meu trabalho que eu suporto, directamente, tais despesas.

Por outro lado, constato que, até à presente data V. Exas. não procederam ao pagamento das minhas férias e subsídio de férias a que tenho legítimo direito, tendo recusado o pagamento do subsídio de Natal referente a 2002.

Ainda no que se refere aos meus créditos salariais, constato que não obstante os meus insistentes pedidos e interpelações, essa sociedade recusa proceder ao pagamento do meu salário referente aos meses de Dezembro de 2002, Janeiro de 2003 e Fevereiro de 2003.

Por outro lado, não posso deixar de sublinhar que, no momento da minha contratação, ainda com essa sociedade o pagamento, por “via do saco Azul” não declarado em qualquer recibo, de 897,83 euros por conta da utilização do meu veículo ao serviço dessa sociedade, bem como o Seguro de Acidentes de Trabalho no montante de 500 euros por Ano, aos quais V. Exas. recusaram, ao fim a ao cabo pagar, tendo eu de suportar tal custo.

A falta de pagamento supra-enumerada, colocaram-me numa difícil situação pessoal e familiar, levando-me inclusivamente ao meu internamento hospitalar.

Assim, considerou que não existem condições para que eu continue ao V. serviço, pois V. Exas. não demonstram qualquer respeito e consideração para quem trabalha para essa empresa.”

5) Por carta datada de 03 de Março de 2003 e enviada em 05 de Março de 2003 para a R., por correio registado com aviso de recepção, que a R. recebeu, o mandatário do A. comunicou: “(...)

Apresentando a V. Exas. os meus melhores cumprimentos, é em nome e representação do V. ex-colaborador Sr. AA, que me dirijo a essa sociedade.

Incumbiu-me aquele V. Ex-colaborador de solicitar a V. Exas., na sequência da rescisão com justa causa comunicada no passado dia 21 de Fevereiro a essa sociedade, o pagamento integral de todos os créditos salariais que lhe são devidos por virtude daquela rescisão, bem como o pagamento de todos os descontos legais para a segurança social que, até hoje, essa sociedade sempre recusou efectuar.

Também estão em falta as retribuições dos meses de Dezembro de 2002, Janeiro e Fevereiro de 2003, bem como as férias e subsídio de férias de 2002, férias e subsídio de férias de 2003, subsídio de Natal de 2002 e ainda os proporcionais das férias, subsídio de férias e de Natal devidos pela rescisão do contrato de trabalho em causa.

O montante em dívida dessa sociedade para o meu Cliente ascende, sem entrar em linha de conta com os descontos para a segurança social que estão em falta, a € 23.530,82 (vinte e três mil, quinhentos e trinta euros e oitenta e dois cêntimos) os quais solicito a V. Exas. que sejam pagos imediatamente.

A acrescer ao montante supra mencionado, V. Exa. deverão proceder ao pagamento da indemnização prevista no art. 36º do Decreto-Lei nº 64-A/89 de 27 Fevereiro, no montante de € 8.304,99 (oito mil trezentos e quatro euros e noventa e nove cêntimos), num total de € 31.835,81 (trinta e um mil, oitocentos e trinta e cinco euros e oitenta e um cêntimos).

Caso V. Exas. não procedam ao pagamento do que é devido ao meu Cliente, o mesmo reserva-se o legítimo direito de recorrer a todos os meios legais à sua disposição, incluindo os meios judiciais, a fim de defender os seus interesses e legítimos direitos, imputando a essa sociedade todos os custos decorrentes do recurso aos meios judiciais e a outras diligências que tenha de levar a cabo com vista à defesa dos seus legítimos direitos.”

T) A R. não procedeu a qualquer pagamento ao A., tendo-lhe remetido carta datada de 03 de Março de 2003, onde a dada altura de podia ler o seguinte:

“(....) Acusamos a recepção da sua prezada carta de 21 de Fevereiro último, cujo conteúdo veementemente refutamos. (...)

Por último, cumpre-nos aceitar o seu pedido de rescisão do contrato de prestação de serviços, afastando qualquer invocação de justa causa. Deste modo solicitamos-lhe a imediata entrega do telemóvel e cartão que ainda tem na sua posse. (...)”

U) A R. nunca procedeu a qualquer desconto para a segurança social por virtude dos pagamentos que efectuava ao A.

V) A R. nunca celebrou a favor do A. qualquer seguro de acidente de trabalho.

X) A R. nunca pagou ao A. qualquer quantia a título de subsídios de férias e de Natal.

Z) A R. designava o A. de vendedor ou “Técnico de vendas”.

AA) As áreas geográficas de actividade do A. foram unilateralmente definidas pela R.

BB) O A. devia não proceder à venda dos produtos da R. noutras áreas do país que não aquelas.

CC) O A. devia não vender produtos congéneres comercializados por outras sociedades.

DD) A R. fornecia o material promocional e publicitário nas quantidades solicitadas pelo A., se as não considerasse excessivas.

EE) Ao A. era pedido, e este cumpria, que angariasse o maior número de clientes possíveis para a R., dentro dos parâmetros estabelecidos por aquela, reportando-se esta parte final a condições de venda (preços e prazos e modos de pagamento) estabelecidas em tabela.

FF) E que levasse eventuais comerciantes a celebrar contratos de aquisição dos produtos da R.

GG) O A. estava obrigado a comparecer, em regra, de três em três meses, em reuniões promovidas pelo departamento comercial da R., com toda a sua equipa de vendas.

HH) A R tinha uma equipa de vendas composta por diversos vendedores, com áreas de trabalho geograficamente definidas pela R, na qual o A. se inseria.

II) O A. estava obrigado a elaborar e enviar para a R., com regularidade semanal, relatórios da sua actividade.

JJ) O A. efectuava notas de encomenda dos produtos da R, enviando-as para os escritórios daquela, sitos, à data, em Cabra Figa, Rio de Mouro.

LL) O mencionado em G) visava manter actualizada a base de dados dos clientes da R.

MM) O A. devia estar a par das disponibilidades de material da R em Portugal.

NN) O A. não podia proceder à venda dos produtos da R. pelo preço e condições que entendesse, já que precisava sempre da autorização da R. para tal.

OO - Era a R. quem, a cada momento que entendesse, definia os preços de venda dos seus produtos, bem como os termos e condições de pagamento a conceder aos seus clientes, sempre que tal se justificasse.

PP) Os contactos entre o A. e a R., por fax, telefone ou outro meio, eram estabelecidos principalmente através do Sr. CC, Director Comercial da R.

QQ) Tinha o número 9... e o respectivo cartão está actualmente na posse de outro colaborador da R, depois de o A., a pedido daquela, ter devolvido o mesmo.

RR) As refeições mencionadas em K) eram decididas pelo A.

SS) O A. recebeu mensalmente da R. as quantias ilíquidas de € 2.319,41 em Janeiro de 2002 e de € 2.768,33 entre Fevereiro e Novembro de 2002, que integravam a quantia de € 1.870,42 a título de adiantamento por conta de comissões e a quantia de € 897,84 (apenas metade em Janeiro) para pagamento das despesas com o veículo do A. utilizado na sua actividade, podendo ainda despender até € 74,81 em refeições com os clientes da IR.

TT) Tais pagamentos eram efectuados entre os dias 25 e 30 de cada mês, à semelhança do que sucedia com o universo dos trabalhadores da R.

UU) Ficou acordada a emissão de dois recibos por mês, um deles um “recibo verde” com a quantia correspondente ao adiantamento por conta de comissões e o outro um recibo com a quantia correspondente ao pagamento das despesas com o seu veículo.

VV) Ficou acordado que a retribuição do A. seria a correspondente à percentagem de 2,8 % sobre o valor mensal das vendas efectuadas pelo A. que obtivessem boa cobrança.

XX) A R. solicitou ao A., por intermédio do Sr. CC, que o A. emitisse a declaração mencionada em P).

ZZ) A R. nada pagou ao A. relativamente ao mês de Dezembro de 2002.

AAA) O A. esteve incapacitado para a prestação do trabalho por motivo de doença desde 19 de Dezembro de 2002 até 28 de Fevereiro de 2003.

BBB) O A. foi sujeito a uma intervenção cirúrgica no dia 19 de Dezembro de 2002, no Hospital da Cruz Vermelha, em Lisboa.

CCC) O A. foi internado em 10/02/2003 no Hospital Fernando da Fonseca, também conhecido por Hospital Amadora - Sintra.

DDD) Em meados de Janeiro de 2003, a R. contactou o A. indagando junto do mesmo por quanto tempo se prolongaria o seu período de doença.

EEE) A R. pagava ao A. durante 12 meses do ano, mesmo quando o A. estava de férias.

FFF) O A. sentiu preocupação.

GGG) O A. sentiu incerteza e ansiedade perante o futuro, designadamente o seu sustento e sustento da sua família.

HHH) A circunstância de não poder honrar os seus compromissos financeiros com terceiros, fê-lo sentir sofrimento, preocupação, ansiedade, stress e angústia, o que determinou o seu internamente no serviço de psiquiatria no Hospital Amadora - Sintra no dia 10/02/2003.

III) O A. contactou a R., apresentando-se como trabalhador por conta própria que exercia a actividade de promoção e venda de electrodomésticos, mediante comissões sobre vendas.

JJJ) Foi o know-how do A., o seu alegado conhecimento do mercado, quer geográfico, quer dos produtos, a sua “carteira” de potenciais clientes e a sua experiência pessoal que contribuíram para a formação da vontade da R na celebração do acordo.

LLL) O A. manifestou vontade de contratar com a R. e aliciou-a com o seu profundo conhecimento do mercado, informando-a que trabalhara como comissionista na Grundig, que conhecia profundamente os produtos de linha castanha, que estava habilitado a prestar um serviço de mais valia para a R., promovendo e vendendo os seus produtos.

MMM) O A. tinha conhecimento que o ordenado base de vendedor BB era no valor de Euros 444,50.

NNN) O A. propôs receber uma comissão sobre o valor efectivamente cobrado pela R. relativamente às vendas por ele efectuadas, tendo sido negociada a percentagem, que ficou estabelecida em 2,8%.

OOO - Porém, alegou estar com dificuldades económicas e não ter disponibilidade financeira para dar início à prestação prometida.

PPP) Atendendo a que as facturas da R. têm um prazo médio de vencimento na ordem dos 120 dias, e recebendo o A. comissão unicamente sobre os valores cobrados, o A. só teria o retorno em comissão por vendas feitas após quatro meses.

QQQ) Por essa razão ficou acordado o pagamento duma quantia mensal a título de adiantamento sobre comissões.

RRR) Ficou acordado o acerto do pagamento das comissões no final de cada seis meses.

SSS) Ficou acordado o fornecimento de diverso material publicitário, nomeadamente catálogos e tabelas de preços, e a disponibilização de montantes, quer para almoçar com eventuais clientes, promovendo vendas, quer para despesas de telefone.

TTT) Ficou acordado que as despesas com a viatura do A., nomeadamente seguros e combustível, seriam custeadas pela R.

UUU) A área geográfica de actividade do A. resultou de vários factores, a saber: tratar-‑se de uma área de fraca implementação da marca BB, ser o autor alegadamente profundo conhecedor daqueles distritos e daqueles produtos e estar a marca da R. suficientemente implantada nos restantes distritos do país.

VVV) Simultaneamente com a promoção e venda dos produtos da R, o A. vendia outro tipo de produtos.

XXX) O A. consultava a R para obter informações comerciais e financeiras dos eventuais clientes porque a solidez financeira destes se reflectiria nos montantes a receber pelo A.

ZZZ) As visitas regulares, a entrega de material promocional, a informação acerca dos produtos comercializados pela R. eram um imperativo de estratégia comercial adoptada pelo A., em consonância com a R., para melhor alcançar o objectivo de implementação da marca nesta zona do mercado.

AAAA) Era com vista a este exposto objectivo que o A. encaminhava os pedidos de mercadoria, solicitava a resolução de reclamações, prestava informação aos clientes, etc.

BBBB) O A. comparecia em reuniões na R. para saber de inovações e campanhas, porque o comércio de electrodomésticos tem “picos” de venda ao longo do ano, sofre inovações e actualizações constantes e os agentes económicos são obrigados a reciclagens frequentes e a adoptar estratégias de venda distintas ao longo do ano.

CCCC) O tráfego de informação entre o A e a R. era um meio de alcançar, através da cooperação entre as partes, a quota do mercado, a potenciação das vendas e as comissões.

DDDD) A R. não controlava o tempo despendido pelo A. no exercício da sua actividade, nem os dias de trabalho, nem as horas de entrada ou saída ou os intervalos.

EEEE) Os serviços prestados pelo A. desenvolviam-se junto de agentes comerciais que têm um horário fixo de laboração, de segunda a sexta-feira, das 9 horas às 19 horas, com intervalo para almoço.

FFFF) Havia casos em que os clientes liquidavam directamente ao A. e outros em que liquidavam directamente à R, pelo que era necessário que ambos pudessem ter conhecimento da liquidação, para apurarem as comissões a creditar ao A., em função das cobranças.

GGGG) Era do interesse do A. comunicar as alterações relevantes por si constatadas dos agentes económicos, para passarem a constar da base de dados, sob pena de não receber comissão por se mostrar impossível a cobrança das vendas.

HHHH) Quanto ao stock de material da R, o A. só necessitava, e só lhe era permitido saber se havia disponibilidade.

IIII - O A. foi sempre livre para visitar quem quisesse, quando e no momento que entendesse.

JJJJ) O A. tinha necessariamente de se apresentar, perante os potenciais clientes, com a credibilidade de vendedor de produtos da marca BB, daí a existência de um cartão que o definia como um homem de vendas.

LLLL) O telemóvel utilizado pelo A. constituiu um dos custos de promoção acordado entre as partes para aquele desenvolver a sua actividade, com um “plafond” limitado, podendo no entanto utilizá-lo para quaisquer outros fins.

MMMM) Os vendedores dos quadros de pessoal da R., além do salário base, auferiam uma comissão sobre os produtos na ordem de 0,5%.

NNNN) Os referidos vendedores laboravam com carro da propriedade da R, que suportava os respectivos custos.

OOOO - Relativamente ao mês de Janeiro de 2002, foi paga ao A. a quantia de € 2.249,83, quantia líquida sobre a qual o A. cobrou € 394,30 de IVA e a R reteve € 463,88 de IRS.

PPPP) Em 18/02/02, o A recebeu a quantia de 1.814,37 euros, a qual também foi sujeita a IVA e IRS.

QQQQ) Em 20/02/02, o A. recebeu ainda a quantia de Euros 870,90, a qual foi igualmente sujeita a IVA e IRS.

RRRR) Durante o ano de 2002, o A. apresentou despesas de refeições com clientes no valor de 162,44 euros.

SSSS) O pagamento por transferência bancária foi pedido pelo A. à R., para manter os saldos médios e a conta ordenado.

TTTT) A quota de mercado e as vendas na área do A. não aumentaram após a sua contratação pela R.

UUUU) Foi no final do ano de 2002, aquando da doença do A., que o valor efectivo das comissões deste aumentou.

VVVV) Os valores globalmente alcançados pelo A. estavam longe de corresponder aos valores já adiantados pela R. nesse ano.

3---

            E conhecendo:

            Conforme já referimos no relatório, o recurso de agravo não foi admitido pelo relator.

            Por isso, apenas temos de conhecer da revista.

            E sendo pelas conclusões do recorrente que se afere o objecto do recurso, conforme resulta dos artigos 684º/3 e 690º/1 do CPC, na versão anterior à que lhe foi conferida pelo DL nº 303/2007 de 24 de Agosto, constatamos que este suscita unicamente a questão da qualificação do contrato que vigorou entre as partes.

            Assim sendo, discute-se a natureza jurídica do contrato que vigorou no período de Janeiro de 2002 a Fevereiro de 2003, data em que o recorrente o fez cessar invocando justa causa na sua resolução.

            Trata-se portanto, duma relação jurídica que foi constituída e se manteve totalmente antes da entrada em vigor do Código do Trabalho de 2003, pois este só começou a vigorar em 1 de Dezembro de 2003, conforme resulta do artigo 3º, nº 1 da Lei 99/2003.

            Por isso, tendo o contrato cessado em Fevereiro de 2003, temos de apreciar a questão da sua qualificação à luz do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho (LCT), anexo ao Decreto-Lei n.º 49 408, de 24 de Novembro de 1969.

            Face ao exposto, vejamos então como decidir.

3.1----

Conforme ensina Menezes Cordeiro[1], já no direito romano a prestação de trabalho duma pessoa sob a orientação de outra, que tomava a designação genérica de "locatio conductio", podia assumir três formas contratuais distintas:

a "locatio conductio rei", pela qual uma pessoa entregava uma coisa a outra, por certo tempo, a troco de uma "merces" e que constitui o antecessor da  actual locação;

a "locatio conductio operis" , pela qual uma pessoa se obrigava a realizar para outra uma obra, também a troco duma "merces "  e que hoje corresponde ao contrato de prestação de serviços;

e a "locatio conductio operarum", pela qual uma pessoa se obrigava a prestar a sua actividade sob a orientação doutra, recebendo como contrapartida uma "merces" , e que corresponde ao actual contrato de trabalho[2].

Tendo embora esta característica comum de "locatio conductio", a distinção entre contrato de trabalho e contrato de prestação de serviço está teoricamente bem estabelecida, sendo considerado como contrato de trabalho aquele pelo qual uma pessoa se obriga a prestar a outra a sua actividade, intelectual ou manual, sob a autoridade e direcção desta e mediante retribuição, conforme resultava do artigo 1º da LCT.  

Por outro lado, o contrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar a outra o resultado da sua actividade, com ou sem retribuição, conforme resulta do artigo 1 154º do CC.

Se teoricamente a distinção é nítida, na prática a destrinça entre estas duas figuras contratuais reveste-se, por vezes, de grande dificuldade, dado que em ambas existe uma alienação de trabalho, e ambas visam sempre um resultado, pois conforme reconhece Galvão Teles[3], todo o trabalho conduz a um resultado e este também não existe sem aquele.

De qualquer forma, a distinção entre contrato de trabalho e contrato de prestação de serviço assenta em dois elementos essenciais: no objecto do contrato (prestação de actividade no primeiro; obtenção dum resultado no segundo); e no tipo de relacionamento entre as partes (subordinação jurídica no primeiro; autonomia no segundo)[4]

E assim sendo, se o prestador da actividade estiver sujeito à autoridade e direc- ção da pessoa servida, estaremos perante um contrato de trabalho.

Mas se apenas estiver vinculado ao resultado da sua actividade, exercendo-a sem estar sujeito à autoridade da pessoa servida, estaremos perante um contrato de prestação de serviço, por ao credor apenas interessar o resultado final da actividade do devedor, que goza de total autonomia na forma de o alcançar.

Donde resulta como critério verdadeiramente diferenciador das duas figuras contratuais a existência de subordinação jurídica no contrato de trabalho, enquanto no contrato de prestação de serviço o devedor apenas se responsabiliza perante o credor pelo resultado prometido, sendo inteiramente livre na forma como a ele chega.

Tal subordinação jurídica caracterizadora do contrato de trabalho decorre precisamente do poder de direcção que a lei confere à entidade empregadora (n.º 1 do artigo 39.º da LCT) e a que corresponde um dever de obediência por parte do trabalhador, conforme resulta da alínea c) do n.º 1 do seu artigo 20º.

Por isso, a subordinação jurídica implica uma posição de supremacia do credor da prestação de trabalho e a correlativa posição de sujeição do trabalhador, cuja conduta pessoal, na execução do contrato, está necessariamente dependente das ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, dentro dos limites do contrato e das normas que o regem.

Nesta linha, Abílio Neto define-a como a relação de dependência em que o trabalhador se coloca por força da celebração do contrato, ficando sujeito, na prestação da sua actividade, às ordens, direcção e fiscalização do dador do trabalho, acrescentando este autor que basta que o trabalhador se integre, de algum modo, em maior ou menor escala, no círculo de esfera de domínio ou autoridade de uma entidade patronal, sendo suficiente que esta possa dar-lhe ordens, dirigir ou fiscalizar o seu serviço, não se exigindo que de facto e permanentemente o faça[5].

E também Menezes Cordeiro a caracteriza como uma situação de sujeição em que se encontra o trabalhador de ver concretizada, por simples vontade do empregador, numa ou outra direcção, o dever de prestar em que está incurso[6].

Apesar da linearidade deste critério de distinção entre estes dois contratos, a questão da qualificação contratual assume, em certas situações da vida real, uma grande complexidade, dado que as formas de subordinação jurídica são cada vez mais diversificadas e nem sempre aparecem de forma evidente. E por outro lado, existem diferentes graus de subordinação, pois há formas de trabalho subordinado em que a actividade é prestada com grande autonomia, não existindo ordens concretas e específicas, mas um mero quadro potencial da sua existência.

Por isso, quando não se consegue uma conclusão decisiva pela análise e interpretação da vontade das partes, deverá aferir-se a caracterização do contrato pela interpretação dos elementos disponíveis resultantes do modo como as partes se relacionavam no desenvolvimento e na execução do contrato, com recurso ao chamado método indiciário ou de aproximação tipológica.

No elenco dos indícios de subordinação, é geralmente conferido ênfase particular aos que respeitam ao chamado “momento organizatório” da subordinação: a vinculação a horário de trabalho, a execução da prestação em local definido pelo empregador, a existência de controlo externo do modo de prestação, a obediência a ordens, a sujeição à disciplina da empresa – tudo elementos retirados da situação típica de integração numa organização técnico-laboral predisposta e gerida por outrem.

Acrescem elementos relativos à modalidade de retribuição (em função do tempo, ou fixa), à propriedade dos instrumentos de trabalho e, em geral, à disponibilidade dos meios complementares da prestação.

São ainda referidos indícios de carácter formal e externo, como a observância dos regimes fiscal e de segurança social próprios do trabalho por contra de outrem.

É preciso notar, no entanto, que cada um destes elementos, tomado de per si, se reveste de patente relatividade[7], impondo-se fazer um juízo de globalidade com vista à caracterização do contrato, não existindo nenhuma fórmula que pré-determine o doseamento necessário dos vários índices, desde logo porque cada um deles pode assumir um valor significante muito diverso de caso para caso.

Também a jurisprudência deste Supremo Tribunal[8], aponta neste sentido ao decidir que a subordinação jurídica se pode determinar através de um conjunto de indícios – assumindo cada um deles um valor relativo, pelo que o juízo a fazer deve ser de globalidade face à situação concreta apurada - como sejam a vinculação a horário de trabalho, a prestação da actividade em local definido pelo empregador, a actividade exercida sob as ordens deste, a sujeição do trabalhador à disciplina da empresa, a modalidade de retribuição, a propriedade dos instrumentos de trabalho e a observância dos regimes fiscal e de segurança social próprios dos trabalhadores por conta de outrem.

Por último, sublinhe-se que sempre incumbirá ao trabalhador, conforme resulta do artigo 342º, nº 1 do Código Civil, fazer a prova dos elementos constitutivos do contrato de trabalho, nomeadamente, que desenvolve uma actividade sob a autoridade e direcção do beneficiário da actividade, demonstrando que se integrou na estrutura organizativa do empregador[9].

            Postas estas considerações genéricas, vejamos então como qualificar o contrato.

3.1---           

Já dissemos que quando o recurso à análise e interpretação da vontade das partes não nos fornece uma conclusão decisiva, deverá aferir-se a caracterização do contrato pela interpretação dos elementos disponíveis resultantes do modo como as partes se relacionavam no desenvolvimento e na execução do contrato.

No caso presente as partes não reduziram o contrato a escrito.

Por isso, temos de nos socorrer da matéria apurada em sede de execução do contrato para o qualificarmos. 

Ora, o A. exerceu a actividade de promoção e venda dos produtos comercializados pela R, nos distritos de Faro, Évora, Beja e parte do distrito de Portalegre, área geográfica que lhe foi fixada unilateralmente pela R, fixação que resultou de vários factores, nomeadamente, por se tratar de uma área de fraca implementação da marca BB, ser o autor alegadamente profundo conhecedor daqueles distritos e daqueles produtos e estar a marca da R suficientemente implantada nos restantes distritos do país.

Para tanto, o A visitava os clientes da R, procedia ao transporte e entrega junto dos mesmos de material promocional e publicitário dos seus produtos e informava-os dos novos produtos que estavam a ser comercializados e de todas as alterações técnicas neles ocorridas e/ou mudança das condições contratuais de aquisição, se fosse caso disso.

Recebia e encaminhava para a R. os pedidos de aquisição de mercadoria efectuados pelos clientes, bem como as reclamações que pudessem existir relativamente aos produtos e modos de aquisição, entrega, pagamento ou reparação dos mesmos.

Acompanhava as necessidades de fornecimento dos clientes da R, recolhendo junto daqueles e encaminhando para a R. a informação obtida e dava assistência e informações técnicas, na medida dos seus conhecimentos, aos clientes da recorrida sempre que para tal fosse solicitado.

Efectuava cobranças dos produtos vendidos pela R. e elaborava os respectivos mapas de cobranças, os quais enviava para a empresa e constatava, anotava e enviava à R. as alterações relacionadas com os clientes.

Por outro lado, o A. devia estar a par das disponibilidades de material da R. em Portugal, sendo esta quem, a cada momento, definia os preços de venda dos seus produtos, bem como os termos e condições de pagamento a conceder aos seus clientes.

Era designado pela R como vendedor ou “Técnico de vendas”.

No entanto, não devia proceder à venda dos produtos da R. noutras áreas do país que não as já referidas e não estava autorizado a vender produtos congéneres comercializados por outras sociedades, sendo a R. que lhe fornecia o material promocional e publicitário nas quantidades solicitadas pelo A., se as não considerasse excessivas.

Era-lhe assim, pedido que angariasse o maior número possível de clientes para a R, dentro dos parâmetros estabelecidos por esta no que respeita às condições de venda (preços e prazos e modos de pagamento), que estavam estabelecidas em tabela.

E era-lhe pedido que levasse eventuais comerciantes a celebrar contratos de aquisição dos produtos da R.

Para o exercício desta actividade foram-lhe distribuídos cartões de apresentação comercial, os quais foram concebidos, elaborados e pagos pela R, constando destes, para além da morada e marca da R. - “BB” – a referência ao “Departamento Comercial”, o nome do A. e as palavras “S...” ou Técnico de Vendas.

Este cartão visava proporcionar ao A que se apresentasse perante os potenciais clientes com a credibilidade de vendedor de produtos da marca BB.

Além disso, a R. forneceu-lhe um telemóvel e respectivo cartão, que está actualmente na posse de outro colaborador da empresa, depois de o A, a pedido daquela, o ter devolvido.

 O telemóvel utilizado pelo A. constituiu um dos custos de promoção acordado entre as partes para aquele desenvolver a sua actividade, com um “plafond” limitado, podendo no entanto, utilizá-lo para quaisquer outros fins.

Foi o A. quem contactou a R, apresentando-se como trabalhador por conta própria que exercia a actividade de promoção e venda de electrodomésticos, mediante comissões sobre vendas, e manifestando vontade de contratar com a R, aliciou-a com o seu profundo conhecimento do mercado, informando-a que trabalhara como comissionista na Grundig, e que conhecia profundamente os produtos de linha castanha, que estava habilitado a prestar um serviço de mais valia para a R, promovendo e vendendo os seus produtos.

Foi este “know-how” e alegado conhecimento do mercado, quer geográfico, quer dos produtos, a sua “carteira” de potenciais clientes e a sua experiência pessoal que contribuíram para a formação da vontade da R e para a sua contratação.

            Como contrapartida da sua actividade, o A. propôs receber uma comissão sobre o valor efectivamente cobrado pela R. relativamente às vendas por si efectuadas, tendo sido negociada uma percentagem que ficou estabelecida em 2,8%, quando tinha conhecimento que o ordenado base dos vendedores do quadro de pessoal da R era no valor de 444,50 euros, auferindo além disso, uma comissão sobre os produtos na ordem de 0,5%.

            Ficou acordada a emissão de dois recibos por mês, um deles um “recibo verde” com a quantia correspondente ao adiantamento por conta de comissões e o outro, um recibo com a quantia correspondente ao pagamento das despesas com o seu veículo, pois o A, para exercer a sua actividade, utilizava o seu veículo próprio, sendo as despesas com seguros e combustível suportadas pela R.

            Para receber os valores resultantes das suas comissões, o A. emitia e entregava à R. “recibos verdes”, sendo as quantias recebidas da R acrescidas de IVA e deduzidas de IRS, e pagas por transferência bancária.

A R. pagava ao A. durante 12 meses do ano, mesmo quando este estava de férias, sendo tais pagamentos efectuados entre os dias 25 e 30 de cada mês, à semelhança do que sucedia com o universo dos trabalhadores da R.

            No desempenho da sua actividade, o A. foi sempre livre de visitar quem quisesse, quando e no momento que entendesse, não controlando a R o tempo por si dispendido no exercício da sua actividade, nem os dias de trabalho, nem as horas de entrada ou saída ou os intervalos, apesar dos seus serviços serem prestados junto de agentes comerciais que têm um horário fixo de laboração, de segunda a sexta-feira, das 9 horas às 19 horas e com intervalo para almoço.

.

            Ora, perante este quadro fáctico, globalmente considerado, temos de concluir, tal como concluíram as instâncias, que o mesmo não se mostra suficiente para qualificar a relação existente entre as partes como um contrato de trabalho subordinado.

            Efectivamente, não se pode concluir que o A integrasse a estrutura organizativa da R, pois tinha total liberdade de movimentos, visitando quem queria, com a periodicidade que entendesse e no momento que achasse mais oportuno, não controlando a R o tempo por si despendido no exercício da sua actividade, nem os dias de trabalho, nem as horas de entrada ou saída.

            Por outro lado, a retribuição era constituída exclusivamente por comissões, quando os vendedores do quadro de pessoal da R auferiam um ordenado base e uma comissão, muito inferior à do A, facto que este conhecia.

Além disso, foi este quem se apresentou perante a R como trabalhador por conta própria, que exercia a actividade de promoção e venda de electrodomésticos mediante comissões sobre vendas, o que indicia que era sua vontade ficar vinculado apenas ao resultado da sua actividade, recebendo como contrapartida uma comissão mais de cinco vezes superior à dos trabalhadores do quadro da R.

Por isso se compreende também que se tenha acordado que utilizasse a sua viatura pessoal, ficando a R com o encargo do combustível e seguros, quando numa relação laboral típica os instrumentos de trabalho são fornecidos pelo empregador.

Também a retribuição paga em doze meses, sem os acréscimos dos 13º e 14º meses, e com cobrança do IVA correspondente, indicia que se tratava dum trabalho autonomamente desenvolvido.

É certo que o A. estava obrigado a comparecer, em regra, de três em três meses, em reuniões promovidas pelo departamento comercial da R., com toda a sua equipa de vendas.

            No entanto, daqui não se pode concluir pela existência duma subordinação jurídica, pois não interferiam com a liberdade de actuação do A, conforme assinala a Ex.mª Procuradora Geral Adjunta no seu parecer.

Além do mais apurou-se que este comparecia nestas reuniões para tomar conhecimento de inovações e campanhas, pois o comércio de electrodomésticos tem “picos” de venda ao longo do ano, sofrendo inovações e actualizações constantes. Por isso, os agentes económicos são obrigados a reciclagens frequentes e a adoptar estratégias de venda distintas ao longo do ano.

E assim, este tráfego de informações entre o A e a R. constituía um meio de alcançar, através da cooperação entre as partes, uma maior quota de mercado e a potenciação das vendas e de comissões.

            Da mesma forma, da obrigatoriedade que o A tinha de elaborar e enviar para a R, com regularidade semanal, relatórios da sua actividade, também não se pode concluir por tal subordinação jurídica, face à total e absoluta liberdade de movimentos que o A tinha no exercício da sua actividade.

            Por outro lado, o reporte que fazia à R e informações que lhe prestava sobre os clientes tinham por objectivo uma actualização constante dos seus perfis, stocks e quotas de mercado, com vista a proporcionar-lhe uma melhor gestão do seu negócio, não representando qualquer tipo de intervenção na actividade que o A desenvolvia.

            Por tudo o exposto, temos de confirmar a decisão recorrida.

4---

            Termos em que se acorda em negar a revista.

            Custas a cargo do recorrente.

          

  Lisboa, 31 de Janeiro de 2012.

            Gonçalves Rocha (relator)

            Sampaio Gomes

            Pereira Rodrigues

_________________
[1] Manual de Direito de Trabalho, pgª 37, Almedina, 1991
[2] Alguma doutrina questiona se o direito romano já havia autonomizado a "locatio conductio operarum" relativamente ao quadro geral da "locatio conductio", argumentando que a tradição romanista equiparava a prestação de trabalho por conta doutrem ao aluguer de coisas (locatio conductio rei), sendo a coisa alugada, neste caso, a própria força de trabalho (neste sentido Motta Veiga, Lições de Direito de Trabalho, 58/59). Nesta linha e conforme argumenta ainda este autor, é que se compreende que até ao Código Civil de 1867, a prestação de trabalho por conta doutrem se integrava no direito civil comum dos contratos, equiparada ao aluguer de coisas ou serviços (Lições, pgª 352).                 
[3]  BMJ, 83/165
[4] Neste sentido o acórdão deste Supremo Tribunal de 15/9/2010, recurso nº 4119/04.OTTLSB.S1-4ª secção, disponível em www,dgsi.pt.
[5] Contrato de Trabalho, Suplemento do BMJ, 1979, pag. 170.
[6] Manual do Direito de Trabalho, pag. 535.
[7] Neste sentido Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 12ª edição, Almedina, 2004, pgª 145.
[8] Acórdão de 13-9-06, disponível em www.dgsi.pt, documento SJ200609130057554.
[9] Neste sentido também o acórdão deste Supremo Tribunal de 10/11/2010, recurso nº 74/07.0TTLSB.L1.S1