Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
492/07.TBTNV.C2.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: DEPÓSITO BANCÁRIO
TITULARIDADE
PRESUNÇÃO
COMPROPRIEDADE
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
Data do Acordão: 03/15/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL, ARTIGOS 512º, 516º, 1206º, 1142º E 1144º
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, ARTIGO 861º- A DO CÓDIGO CIVIL
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 26 DE OUTUBRO DE 2004, WWW.DGSI.PT, PROC. Nº 04A3101.
Sumário :
1. Com a celebração do contrato de depósito, transfere-se para o banco a propriedade do dinheiro depositado, nascendo da sua parte a obrigação de “restituir outro tanto do mesmo género e qualidade”, eventualmente com juros – cfr. artigos 1206º, 1142º e 1144º do Código Civil).
2. A questão da propriedade do dinheiro depositado – ou, melhor dizendo, do direito à sua restituição – é distinta e independente do regime de movimentação dos depósitos (solidária, conjunta ou mista, consoante for acordado).
3. A presunção de contitularidade em partes iguais do dinheiro depositado, embora se não encontre genericamente afirmada na lei para os casos de depósitos bancários com pluralidade de titulares, aparece expressamente consagrada no nº 2 do artigo 861º-A do Código de Processo Civil a propósito da “penhora de depósitos bancários”: “Sendo vários os titulares do depósito, a penhora incide sobre a quota-parte do executado na conta comum, presumindo-se que as quotas são iguais”.
4. A mesma presunção se pode retirar do regime definido pelos artigos 512º e 516º do Código Civil, relativos às “obrigações solidárias”. Dele resulta que, em caso de pluralidade de credores solidários, “Nas relações entre si, presume-se que os (…) credores solidários comparticipam em parte iguais (…) no crédito”.
5. O afastamento da presunção de igualdade de quota na conta comum implica saber qual a relação existente entre os contitulares das contas e que explica a contitularidade.
6. Para o efeito, não basta averiguar quem procedeu ao depósito do dinheiro; os depósitos podem ser efectuados por terceiros, estranhos às contas nas quais vão ser creditados.
7. A prova de que, quem celebrou o contrato de depósito, pretendeu que uma sobrinha e o marido fossem titulares da conta bancária, podendo assim movimentá-la em conjunto, de acordo com as suas instruções, com base na relação familiar e de confiança, não demonstra qualquer participação da sobrinha e do marido na titularidade do dinheiro depositado; antes aponta para uma relação de mandato ou semelhante. E revela com segurança, tal como entendeu a Relação, que o dinheiro depositado sempre pertenceu a quem celebrou o contrato.
Decisão Texto Integral:

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:


1. AA e BB instauraram uma acção contra o Banco ..., SA, pedindo que se declare que “são os sucessores, devidamente habilitados, de CC” e que o Banco seja condenado “a pagar aos Autores o valor do saldo existente na conta de depósito à ordem, aberta na agência de Torres Novas, em nome da falecida, no montante de 36.025,87 (…)”.

Alegaram ainda (cfr. fls. 64) que o contrato de depósito foi celebrado entre CC e o Banco e que as quantias depositadas eram de sua propriedade, estando o Banco obrigado a entregar-lhes o saldo existente na conta.

O Banco contestou. Por entre o mais, veio dizer que CC era titular, juntamente com DD e EE, de uma conta à ordem aberta no balcão de Torres Novas e de uma conta a prazo, àquela associada; que os respectivos saldos, à data da sua morte, eram, respectivamente, de € 10.852,72 e € 25.314,30 e, na altura, de € 10.852,72 e € 25.613,86, num total de € 36.466,58; que se trata de contas cuja movimentação a débito carecia de assinatura de dois titulares; que nunca os autores o interpelaram para que lhes pagasse as quantias depositadas, nem provaram perante ele serem os únicos herdeiros; que se presume que “os valores depositados nas referidas contas pertencem em parte iguais aos dois titulares sobrevivos das mesmas e aos herdeiros da falecida titular”.

Pela sentença de fls. 291, a acção foi julgada parcialmente procedente, sendo o Banco condenado e pagar aos autores a quantia de € 10.845,56, com juros vencidos desde 28 de Fevereiro de 2006.

Esta sentença foi anulada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de fls. 333, “a fim de, na 1ª instância, ser respondido à matéria dos quesitos 9º, 10º, 11º e 12º da base instrutória, em conformidade com a prova produzida”; e veio a ser proferida a sentença de fls. 461, que condenou o Banco a pagar aos autores a quantia de € 12.281,85, com os juros vencidos desde 28 de Fevereiro de 2006.

Em síntese, o tribunal entendeu que “a falecida só podia dispor de 1/3” da quantia que se encontrava depositada à data da morte (€ 36.025,87), por não ter ilidido a presunção de compropriedade sobre a mesma.

Todavia, o Tribunal da Relação de Coimbra de fls. 501 revogou esta sentença e condenou o Banco a entregar aos autores a quantia de € 36.025,87.

Diferentemente da 1ª Instância, a Relação, considerando que “o que está em discussão nesta acção é a propriedade do dinheiro depositado”, que se não confunde com o poder de movimentação da conta, decidiu:

“Ora, está provado que a CC quis que a sobrinha e marido figurassem como titulares da conta referida no item II.1-C), podendo movimentá-la de acordo com as suas instruções. O facto de serem contitulares da conta à ordem e a prazo, e de a poderem movimentar, não significa que eles se tenham tornado comproprietários do dinheiro em depósito. O que vem provado legitima a conclusão de que o dinheiro era, sim, propriedade da falecida CC. Para além de depositar as quantias em dinheiro que granjeara e amealhara ao longo da sua vida, de efectuar depósitos e levantamentos, a restrição ao movimento da conta imposta aos outros titulares, são factos bastantes que permitem concluir que era ela a titular do direito de propriedade do dinheiro, sendo os outros dois titulares meros movimentadores da conta.

Ainda assim, e como bem assinalam os recorrentes, sendo obrigação do depositário restituir a coisa com os seus frutos civis (art.1187º, c), C.C.), e estabelecendo o art.1192º/1 do mesmo diploma que o depositário não pode recusar essa restituição com o fundamento de que o depositante não é o proprietário da coisa nem tem sobre ela outro direito, sempre teria o réu a obrigação de restituir o saldo existente na dita conta à data do óbito da titular CC, sendo indiferente saber se o dinheiro era sua pertença.

Também por aqui a acção teria de proceder.

Em suma, sendo a falecida a titular do direito de propriedade sobre o saldo da conta bancária reportado a 28.2.06, no montante de 36.025,87 €, este dinheiro considera-se como pertença dos AA., únicos e universais herdeiros, devendo o R. a estes restitui-lo.”

2. O Banco recorreu para o Supremo Tribunal da Justiça; o recurso, ao qual não são aplicáveis as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, foi admitido como revista, com efeito devolutivo.

Nas alegações que apresentou, o recorrente formulou as seguintes conclusões:

 “(…)

3 – Em regra, as chamadas ‘contas conjuntas’ ou ‘contas colectivas’ são tituladoras de depósitos bancários efectuados em nome de duas ou mais pessoas.

4 – A estes depósitos são aplicáveis os princípios da solidariedade activa estatuídos nos artigos 513º e 516º do Código Civil, que estabelecem, em síntese, a presunção de comparticipação em partes iguais no crédito.

5 – CC, juntamente com EE e DD, eram titulares de uma conta à ordem aberta junto do balcão do ora Recorrente;

6 – As contas em crise são contas mistas, que apenas podiam ser movimentadas a débito mediante a assinatura de dois dos indicados titulares das supra mencionadas contas;

7 – O contrato de depósito irregular foi celebrado com os três titulares das contas e não apenas com a falecida CC, pelo que esta por si só não as poderia movimentar;

8 – Razão pela qual, os valores depositados nas contas em discussão pertencem em partes iguais aos dois titulares sobrevivos das mesmas e aos herdeiros da falecida titular (…);

9 – Os Recorridos deveriam ter provado que os saldos das mencionadas contas pertenciam apenas a CC e, por herança, lhes pertencem apenas a si mesmos, nos termos previstos no artigo 342º do Código Civil o que não fizeram;

10 – Na realidade o que se demonstrou foi que até ao dia 17 de Setembro de 2003 foi CC que procedeu ao depósito de quantias numa das supra referidas contas, no entanto o acto de depósito, por si só, não significa propriedade;

11 – Efectivamente, tratava-se de uma conta plural, visto que nela figuravam três contitulares, que se limitavam, mutuamente, pois para a movimentação de qualquer quantia era necessária a intervenção de duas das três pessoas contitulares da conta;

 12 – Esta limitação, na utilização e movimentação do dinheiro, por parte de CC, ao contrário do pretendido, nada promove no sentido de afirmar que esta era a proprietária do dinheiro, muito pelo contrário;

13 – A ser assim, esta era uma proprietária, que para qualquer movimentação do seu pretenso dinheiro necessitaria da confirmação e aceitação de um terceiro face àquele mesmo dinheiro, o que não se admite;

14 – Atento à necessidade de confirmação de dois dos três contitulares, são este factos bastantes que permitem concluir que era os três contitulares do direito de propriedade do dinheiro, sendo que todos movimentavam aquelas contas de forma controlada;

15 – Em suma, insurge-se o Recorrente pela sustentação de uma decisão que, por ser manifestamente insuficiente, não pode ser considerada, sem antes poder ser devidamente corrigida, o que se requer a esse douto Tribunal.

16 – Pelo que se pugna pela revogação do douto Acórdão recorrido, absolvendo-se parcialmente a aqui Recorrente do montante em que foi condenada”.

Os autores contra-alegaram sustentando a ilegitimidade do Banco para recorrer e, em qualquer caso, a manutenção do decidido.

3. Vem provado o seguinte (transcreve-se do acórdão recorrido):

«A) No dia 28 de Fevereiro de 2006, na freguesia da ..., concelho de Lisboa, faleceu, no estado de viúva de FF, sem deixar ascendentes ou descendentes vivos, CC, natural da freguesia e concelho de ..., com última residência habitual na Rua .................., Lote .., ..dtº, na freguesia de ..........., concelho de Lisboa.

B) No dia 24 de Março de 2004, a falecida CC fez testamento público, outorgado no Cartório Notarial de Torres Novas, no qual institui como seus únicos e universais herdeiros AA e BB.

C) A conta de depósitos à ordem n.º 000000000000000000 foi aberta, no balcão do R. em Torres Novas, em nome da falecida CC.

D) O acordo de depósito referido em C) foi celebrado entre o R. e a CC.

E) Em 10 de Novembro de 2003, a CCl foi confrontada com o saldo da conta aludida em C) em extracto de conta-corrente, no qual constatou que daquela conta foram debitadas três quantias, uma no valor de 20.201,31 €, em 9 de Setembro de 2003, outra na quantia de 4.980,00 €, em 17 de Setembro de 2003, e uma última no montante de 10.845,00 €.

F) As quantias de 20.201,31 € e de 4.980,00 € debitadas da conta referida em C), respectivamente em 9 de Setembro de 2003 e 17 de Setembro de 2003, foram transferidas para EE.

G) A totalidade da quantia existente na conta referida em C) até ao dia 17 de Setembro de 2003 aí foi depositada pela falecida CC (qu.1º).

H) A CC depositou naquela conta as quantias em dinheiro que granjeara e amealhara ao longo da sua vida (qu.2º).

I) A CC movimentava essa conta efectuando depósitos bancários e levantamentos (qu.3º).

J) Devido  à relação familiar e de confiança, a falecida pretendeu que DD e marido fossem contitulares da conta bancária podendo assim movimentá-la, de acordo com as suas instruções (qu.4º e 5º).

L) A DD era sobrinha da CC (qu.6º).

M) A DD é casada com EE (qu.7º).

N) À data da sua morte -28.02.06- encontrava-se depositada na conta referida em C) a quantia de 36.025,87 € (qu.8º).

O) Correspondente à conta identificada em C), a CC juntamente com EE e DD, era titular de uma conta à ordem aberta junto do balcão do R. sito em Torres Novas, com o nº00000000000000 anteriormente com o nº000000000000, com o saldo, à data do óbito da CC de 10.852,72 € (qu.9º);

P) e ainda de uma conta a prazo, associada à acima referida, com o nº00000000000000, que apresentava à data do óbito da CC, o saldo de 25.314,30 € (qu.10º);

Q) Actualmente, as contas referidas em O) e P) apresentam, respectivamente, o saldo de 10.852,72 € e 25.613,86 € (qu.11º);

R) A partir de data não anterior a 8 de Janeiro de 2001, tais contas só podiam ser movimentadas mediante a assinatura de dois dos seus titulares (qu.12º).»

4. Antes de mais, cumpre observar que a circunstância de ter ficado vencido confere ao Banco legitimidade para interpor o presente recurso (nº 1 do artigo 680º do Código de Processo Civil).

5. O Banco recorrente assenta a sua alegação no pressuposto de que os autores não conseguiram ilidir a presunção de compropriedade das quantias existentes na conta à data da morte de CC; e que os factos apontam para que os três titulares dessa conta fossem também comproprietários de tais quantias.

Está fora de dúvida de que a conta à ordem referida em C) dos factos provados foi aberta no âmbito de um contrato de depósito celebrado entre CC e o Banco recorrente (cfr. ponto D)), que a essa conta se encontrava associada uma conta a prazo (ponto P)), que CC, EE e DD eram contitulares de ambas as contas (ponto O)) e que, pelos menos desde 8 de Janeiro de 2001, era necessária a assinatura de dois titulares para a respectiva movimentação (ponto R)).

Ora, para o que está em causa neste recurso, em nada releva a necessidade de duas assinaturas para a movimentação da conta. Como se sabe, a questão da propriedade do dinheiro depositado (aliás transferida para o banco com a celebração do contrato de depósito, nascendo então da parte do banco a obrigação de “restituir outro tanto do mesmo género e qualidade”, eventualmente com juros – cfr. artigos 1206º, 1142º e 1144º do Código Civil), é distinta e independente do regime de movimentação dos depósitos (solidária, conjunta ou mista, consoante for acordado) – cfr. por todos os acórdão deste Supremo Tribunal de 26 de Outubro de 2004, disponível em www.dgsi.pt, proc. nº 04A3101.

Releva, sim, a presunção de contitularidade em partes iguais do dinheiro depositado, presunção essa que, embora se não encontre genericamente afirmada na lei para os casos de depósitos bancários com pluralidade de titulares, aparece expressamente consagrada no nº 2 do artigo 861º-A a propósito da “penhora de depósitos bancários”: “Sendo vários os titulares do depósito, a penhora incide sobre a quota-parte do executado na conta comum, presumindo-se que as quotas são iguais”.

E a mesma presunção se pode retirar do regime definido pelos artigos 512º e 516º do Código Civil, relativos às “obrigações solidárias”; em particular, pelo último preceito. Dele resulta que, em caso de pluralidade de credores solidários, “Nas relações entre si, presume-se que os (…) credores solidários comparticipam em parte iguais (…) no crédito”.

Repita-se que não interessa, no caso presente, que sejam necessárias duas assinaturas (entre três co-titulares) para a movimentação das contas. O que agora está em causa é saber se a presunção de igualdade de quota na conta comum foi ou não afastada, o que implica saber qual a relação existente entre os contitulares das contas e que explicava a contitularidade.

6. Torna-se pois necessário determinar que relação era essa.

Não basta averiguar se o dinheiro foi todo depositado por CC (está provado que o foi, até 17 de Setembro de 2003, e ainda que nela depositou o que juntou ao longo da sua vida), como é manifesto; aliás, os depósitos podem ser efectuados por terceiros, estranhos às contas nas quais vão ser creditados.

Mas sabe-se CC, que celebrara o contrato de depósito, pretendeu que a sobrinha DD e o marido, EE, “fossem titulares da conta bancária, podendo assim movimentá-la, de acordo com as suas instruções”, baseada na “relação familiar e de confiança” (ponto J)). A regra de que a movimentação carecia de duas assinaturas explica-se facilmente pelo contexto.

Estes factos não demonstram qualquer participação de DD e EE na titularidade do dinheiro depositado; antes apontam para uma relação de mandato ou semelhante. E revelam com segurança, tal como entendeu a Relação, que o dinheiro depositado sempre pertenceu a CC.

7. Aqui chegados, resta concluir que a titularidade do dinheiro depositado se transmitiu aos autores, uma vez que está assente que são os “ únicos e universais herdeiros” de CC (ponto B)); o Banco tem, pois, de lhes entregar o saldo existente na conta, nos termos determinados pela Relação.

Nestes termos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 15 de Março de 2012

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)

Lopes do Rego

Orlando Afonso