Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
15385/15.6T8LRS.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA ABREU
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
CULPA DO LESADO
CONCORRÊNCIA DE CULPA E RISCO
Data do Acordão: 10/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE PELO RISCO / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
Doutrina:
- Alessandra Silveira e Sophie Perez Fernandes, Cadernos de Direito Privado, n.º 34, Abril/Junho 2011, p. 3 a 19;
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 9.ª ed., p. 545 e 582 ; Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 102.º, p. 60;
- Hugo Luz dos Santos e Leong Cheng Hang, Revista de Direito Civil, Ano II, n.º 2, p. 507;
- Pires de Lima e Antunes Varela, colaboração de M. Henrique Mesquita, Código Civil Anotado, 4.ª de., Coimbra Editora, Fevereiro de 2011, p. 517 e 518.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 505.º E 570.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 04-10-2007, PROCESSO N.º 07B1710;
- DE 05-06-2012, PROCESSO N.º 100/10.9YFLSB;
- DE 14-12-2017, PROCESSO N.º 511/14.0T8GRD.D1.S1;
- DE 11-01-2018, PROCESSO N.º 5705/12.0TBMTS.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. O acidente de viação não é uma estática mas uma dinâmica, daí que os factos adquiridos devam ser interpretados numa perspectiva critica para se apurar, seleccionar, surpreender aqueles que tiveram a virtualidade de, só por si, desencadearem todo o nexo causal e necessário ao evento.

II. A lei distingue, no campo mais geral da responsabilidade extracontratual, entre responsabilidade civil por factos ilícitos e responsabilidade pelo risco.

III. A responsabilidade por factos ilícitos, com base na culpa, é a regra, pois só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei.

IV. O elemento básico da responsabilidade é o facto do agente - um facto dominável ou controlável pela vontade, um comportamento ou uma forma de conduta humana - pois só quanto a factos dessa índole têm cabimento a ideia da ilicitude, o requisito da culpa e a obrigação de reparar o dano nos termos em que a lei a impõe, mas, fundamental na responsabilidade por factos ilícitos, por culpa, além da ilicitude (elemento objectivo, o autor agiu objectivamente mal), é essencial concluir que a conduta do lesante se pode considerar reprovável, censurável.

V. Quando não se encontra fundamento no instituto da responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana, afastada que está a culpa do condutor do veículo interveninete no acidente ajuizado, cabe aferir se a obrigação de indemnizar se fundamenta em facto danoso gerador de responsabilidade objectiva, porque incluído na zona de riscos a cargo de pessoa diferente do lesado. Nota dominante da responsabilidade pelo risco, temo-la no facto de a lei prescindir daquele elemento subjectivo, da culpa. O fundamento da responsabilidade não reside agora no propósito de um acto culposo, mas sim no controle de um risco, ou talvez, com maior rigor, no controle de potenciais danos, aliado ao princípio da justiça distributiva, segundo a qual quem tiver o lucro ou em todo o caso, o beneficio de uma certa coisa, deve suportar os correspondentes encargos - ubi commodum ibi incommodum –

VI. Tradicionalmente, desvalorizando o elemento literal que decorre do direito substantivo civil, entendia-se que não era legalmente admissível o concurso do risco do lesante com a culpa do lesado, invocando, para o efeito o regime jurídico decorrente do n.º 2 do art.º 570º do Código Civil, sendo que actualmente está firmada no Supremo Tribunal de Justiça uma interpretação não mecânica do art.º 505º do Código Civil no sentido de que não implica “uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre a culpa do lesado (ou, mais amplamente, a imputação do acidente ao lesado) e os riscos do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau de contribuição causal ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura. Porém, tal não implica que, por si só e de forma imediata, se responsabilize o detentor efectivo do veículo (e respectiva seguradora) pelos danos sofridos pelo lesado, implicando sim que, em função da factualidade subjacente a cada caso concreto, se pondere a medida da contribuição do lesado, culposa ou não culposa.

VII. Quando se alude a acidente imputável ao próprio lesado, quer-se dizer, antes de mais nada, acidente devido a facto culposo do lesado, acidente causado pela conduta censurável do lesado, importando saber se os danos verificados no acidente devem ser juridicamente considerados, não como um efeito do risco próprio do veículo, mas sim como uma consequência do facto praticado pelo lesado.

VIII. Quando se apure que o acidente ocorreu devido à actuação da lesada - que o causou - sem que se possa atribuir ao condutor do veículo (à culpa do condutor) ou aos riscos próprios do veículo, qualquer contribuição na respectiva produção, esta circunstância encerra causa excludente da responsabilidade objectiva do condutor ou proprietário do veículo.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




I – RELATÓRIO


AA, BB e CC, intentaram acção declarativa contra, DD - Companhia de Seguros, S.A. peticionando a condenação desta a pagar à 1ª Autora a quantia total de €56.618,86, sendo €31.618,86, a título de indemnização por danos patrimoniais (€29.996,00, por danos patrimoniais futuros; €1.622,86, por danos patrimoniais emergentes) e €25.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, bem como a pagar ao 2º Autor a quantia de €3.184,64, a título de indemnização por danos patrimoniais e a pagar à 3ª Autora a quantia de €196, 00.

Articulam, com utilidade, que a 1ª Autora foi atropelada por veículo semi-reboque/pesado de mercadorias, conduzido por conta e ordem do proprietário do veículo, tendo o seu condutor dado causa ao acidente ao reiniciar a marcha do seu veículo sem se aperceber da presença da lesada na via, provocando-lhe extensos ferimentos, causa da incapacidade de que passou a padecer.

Mais alegaram que o 2º Autor é filho da 1ª Autora, acompanhou-a em consultas e tratamentos e teve de suportar despesas nas deslocações para esse efeito e com a utilização da sua viatura particular, e que a 3ª Autora é igualmente filha da 1ª Autora, exerce a sua actividade profissional no Luxemburgo e, por força do acidente, deslocou-se de urgência a Portugal, a fim de prestar assistência familiar a sua mãe, tendo de suportar a despesa inerente à viagem L...-Portugal-L... .

Regularmente citada, a Ré deduziu contestação, na qual alegou, por excepção, a ilegitimidade dos 2º e 3º AA. e por impugnação que a culpa na produção do acidente se deveu à 1ª A., que atravessou pela frente de um veículo pesado, cuja cabine se situa a mais de 1,75mts do chão, sendo impossível ao condutor do veículo, avistá-la.


Em sede de audiência prévia, foi indeferida a excepção dilatória de ilegitimidade, tendo sido fixado o objecto do litígio e enunciados os temas de prova.


Produzida prova pericial, veio a 1ª A., em requerimento de 1 de Março de 2018, requerer a ampliação do pedido, peticionando a condenação da R. a pagar-lhe a quantia de €632,44, relativos a despesas com consultas, exames médicos, tratamentos e aquisição de produtos de higiene e conforto, e a título de indemnização por danos não patrimoniais a quantia de €75.000,00, ampliando em €50.000,00, o montante inicialmente pedido.


Por despacho proferido em 11 de Maio de 2018, foi admitida a ampliação do pedido, apenas no que se reporta aos danos patrimoniais (€632,44), sendo indeferida, quanto aos danos não patrimoniais.


Calendarizada e realizada a audiência final, foi proferida sentença em cujo dispositivo se consignou:

“Pelo exposto, julgo a acção parcialmente procedente e, em consequência:

- condeno a R. DD - Companhia de Seguros, S.A. a pagar à A. AA, a quantia total de €52.159,80 (cinquenta e dois mil cento cinquenta e nove euros e oitenta cêntimos), sendo €2.159,80, a título de indemnização por danos patrimoniais e €50.000,00, a título de compensação por danos não patrimoniais, incluindo o dano biológico, acrescida de juros legais de mora, de natureza civil, contados desde a data da presente sentença, até integral e efectivo pagamento;

- condeno a R. DD - Companhia de Seguros, S.A. a pagar ao A. BB, a quantia de €1.918,08 (mil novecentos e dezoito euros e oito cêntimos), acrescida de juros legais de mora, de natureza civil, contados desde a data da presente sentença, até integral e efectivo pagamento;

- condeno a R. DD - Companhia de Seguros, S.A. a pagar à A. CC, a quantia de €196,00 (cento e noventa e seis euros), acrescida de juros legais de mora, de natureza civil, contados desde a data da presente sentença, até integral e efectivo pagamento;

- absolvo a ré do demais peticionado.

Custas da acção a cargo dos 1ª e 2º AA. e pela R., na proporção do decaimento, sendo 5% para a 1ª A., 25% para o 2º A. e 70% para a Ré.”


Inconformada, recorreu a Ré/DD - Companhia de Seguros, S.A. de apelação, tendo o Tribunal a quo conhecido do interposto recurso, proferindo acórdão em cujo dispositivo foi consignado:

“Pelo exposto, acordam os juízes desta relação em julgar procedente o recurso interposto pela seguradora e absolver a R. do pedido formulado.

As custas da acção e recurso, fixam-se pelos apelados (art° 527 do C.P.C.)”


É contra esta decisão que os Autores/AA, BB e CC, se insurgem, interpondo recurso de revista, formulando as seguintes conclusões:

“I. Ao concluir que o acidente verificou-se por culpa exclusiva da lesada o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 503º, 505º e 570º do C.C.

II. Dos factos provados, designadamente o facto em k) e da aplicação dos artigos 503º, 505º e 570º do C.C resulta a responsabilidade pelo risco a assacar à R., tal qual entendeu o Meritíssimo Juiz de primeira instância.

III. Não existe nexo de causalidade entre a conduta da lesada ao efetuar a travessia da faixa fora do local destinado a esse fim e o acidente.

IV. O tribunal a quo fundamenta a decisão com um facto muito importante para a sua conclusão e que não se encontra provado, designadamente quando escreve que era impossível ao condutor do veículo pesado avistar a A.

V. Não está provado que o condutor do veículo pesado estava impossibilitado de ver a A., pelo contrario, matematicamente o pesado estava a 4,80m da A. quando arranca! - vide facto k)

VI. Um veículo pesado semi-reboque em para arranca numa via congestionada com outro pesado à sua frente e atrás, uma passadeira a cerca de 20 metros, ladeada por passeios e com peões a circular, com uma cabine e pára-brisas a 2 metros de altura, que vai colher um peão quando este já atravessou 3,85 metros da faixa de rodagem, constitui um risco próprio e acrescido daquele veículo e que foi fundamental para a verificação deste acidente!

VII. Segundo o raciocínio do tribunal a quo o resultado seria o mesmo ainda que a A. efetuasse a travessia no local destinado para o efeito, já que, o condutor do pesado estaria impossibilitado de a ver.

VIII. Decorre da naturalidade das coisas e das regras da experiência comum que um peão não atravesse a faixa de rodagem a fazer uma tangente a um veículo, ainda para mais um pesado de mercadorias.

IX. Nem deve valer o argumento da altura da A. em pouco mais de 1,50 metros, pois o peão podia ser uma criança ou uma pessoa com a coluna curvada.

X. O acidente ocorreu devido aos riscos próprios do veículo pesado de mercadorias aliado à falta de prudência no reinício da marcha do condutor daquele, já que, quando este arranca está a pelo menos 4,80m da A.

XI. Caso a sinistrada estivesse encostada ao veículo, quando inicia o atravessamento, ela seria colhida no arranque, e não depois de percorrer 3,85 m à frente do pesado - o que, atenta o facto provado (k)) de que colheu o peão a 5/10 km/ hora, é demonstrativo que estaria a, pelo menos, 4,80 do peão quando arrancou.

XII. Quando o pesado arrancou estava a pelo menos 4,80m da A. - Facto Provado em k) 5000 m - 3600 segundos X - 3,46 segundos

XIII.   Matematicamente é impossível dar por provado que o condutor não podia ter visto o peão quando este iniciou a travessia e até o colher.

XIV. As Diretivas Comunitárias (4ª e 5ª) são claras na necessidade de ser transposta para a legislação nacional de todos os países de CE a obrigação de indemnizar os utentes vulneráveis da via, a saber, peões, ciclistas, …independentemente de culpa. A lei Badinter já existe em França há cerca de 30 anos, e a generalidade das legislações europeias já consagra este princípio.

XV. No caso vertente, atento o tipo de veículo, pesado, que circula dentro de uma cidade!!! que em fila impedem e obstruem os atravessamentos das pessoas que lá vivem, que fazem chicanas para serem vistas e contornarem os pesados que obstruem, no trânsito, as passadeiras…- estas conclusões são ainda mais pertinentes.

XVI. Estamos perante uma situação de presunção de culpa, provada, de relação comitente comissário, e as dúvidas colocadas, pelo menos ainda e perante o cod. civil vigente, implicam decisão no sentido da responsabilização pela totalidade dos danos da lesada - arts. 500 do CC, e art. 503 nº 1 do CC

XVII. Ainda que assim não fosse, então seriamos conduzidos para a concorrência da culpa com o risco, já que a conduta da A. nunca consubstanciaria uma culpa exclusiva que afastasse a aplicação do art.º 570 n.º 1 do C.C

XVIII. A esse propósito como se escreveu no douto Ac. STJ de 01-06-2017 “Compete ao Tribunal formular um juízo de adequação e proporcionalidade, perante as circunstâncias de cada caso concreto, pesando, por um lado, a intensidade dos riscos próprios da circulação do veículo e a sua concreta relevância causal para o acidente; e, por outro, valorando a gravidade da culpa imputável ao comportamento, activo ou omissivo, do próprio lesado e determinando a sua concreta contribuição causal para as lesões sofridas, de modo a alcançar um critério de concordância prática que, em determinadas situações, não conduzirá a um automático e necessário apagamento das consequências de um risco relevante da circulação do veículo, apenas pela circunstância de ter ocorrido alguma falta do próprio lesado, inserida na dinâmica do acidente.”

XIX. Num caso como o dos autos não podemos olvidar que os riscos próprios da circulação do pesado de mercadorias semi-reboque, designadamente a tão apontada altura da cabine, aliada a um pára-arranca numa via com outro pesado à sua frente e atrás e uma travessia de peões a 20 metros, e ainda o facto do pesado ter arrancado quando estava a 4,80m da A. foram determinantes para a ocorrência deste acidente e por conseguinte deve operar a responsabilidade objetiva e os AA, ser indemnizados pelos danos sofridos e para se fazer novamente JUSTIÇA!

Nestes termos e nos melhores de Direito que os Colendos Conselheiros mui sabiamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e em consequência deve ser revogado o acórdão proferido, mantendo-se a sentença de primeira instância por significar a tão almejada JUSTIÇA!!!”


A Recorrida/Ré/DD - Companhia de Seguros, S.A. apresentou contra alegações, aduzindo as seguintes conclusões:

“1. O Acórdão recorrido revela-se perfeito e inatacável, tendo os Venerandos Desembargadores feito uma cuidadosa e bem fundamentada análise dos factos atinentes ao sinistro objecto dos autos.

2. Neste acidente, provou-se que a lesada, que, numa via delimitada por passeios, circulava pela berma e atravessou a via pela frente de um pesado.

3. Era impossível ao condutor do pesado avistar o peão de baixa estatura com cerca de 1,50mts e que, efectivamente, o não avistou.

4. Sendo impossível ao condutor do pesado ver a lesada, pelas razões descritas, o que esta não podia ignorar, não sendo exigível ao condutor que contasse com a travessia repentina de um peão pela frente do seu veículo.

5. A lesada atravessou a faixa de rodagem numa ocasião de trânsito intenso, pelo meio de dois pesados, no momento em que estes tinham detido a sua marcha, de forma temporária e condicionada ao trânsito, não podendo a lesada prever, com razoabilidade, o tempo que estes demorariam a reiniciar a marcha e sabendo, ou devendo saber, que não era passível de ser avistada, nem antes, nem durante a travessia, pelo condutor deste pesado.

6. O atravessamento que realizou revelou-se violador das mais elementares regras de cuidado e diligência, demonstrando uma conduta perfeitamente temerária e que foi, sem qualquer dúvida, causa adequada deste acidente.

7. Com efeito, não é conforme às regras de atravessamento da via, a conduta de um peão que, circulando pela berma do lado direito, atento o sentido de marcha dos veículos, numa estrada com trânsito intenso e circulação em pára-arranca decide, numa das ocasiões em que um veículo pesado se encontra momentaneamente parado, iniciar a travessia da faixa de rodagem do lado direito para o lado esquerdo, próxima do pesado e por baixo do pára-brisa e sem cuidar que não pode ser avistada pelo condutor deste pesado, cuja cabine se situa a cerca de 2 mts do solo, sendo este peão de estatura muito inferior e estando o condutor afastado do pára-brisa, pelo tablier e pelo volante.

8. Sendo exigível ao condutor do pesado que reiniciasse a sua marcha numa fila de trânsito, em segurança, este dever de cuidado e diligência, cumpriu-se quando o veículo da frente reiniciou a sua marcha sem que, sem culpa sua, avistasse, ou pudesse avistar, qualquer obstáculo na via, nem fosse previsível o atravessamento de peões, pela inexistência de passadeira naquele concreto local.

9. Conforme decorre do disposto no artº 103 do Cód. da Estrada, “ao aproximar-se de uma passagem de peões ou velocípedes assinalada, em que a circulação de veículos está regulada por sinalização luminosa, o condutor, mesmo que a sinalização lhe permita avançar, deve deixar passar os peões ou os velocípedes que já tenham iniciado a travessia da faixa de rodagem” e deve moderar especialmente a sua velocidade e permitir a passagem de peões que se encontrem já a atravessar a via, desde que os aviste ou seja possível avistá-los.

10. Ora, in casu, o veículo pesado até estava parado!

11. Não é, pois, irrelevante o local onde a Recorrente atravessou a via, tendo em conta o trânsito intenso que se fazia sentir e que a deveriam ter levado a tomar maiores precauções e não a descurá-las, como fez.

12. Também não é irrelevante que esta tivesse decidido atravessar uma via com trânsito intenso pelo meio de dois veículos pesados, que se encontravam momentaneamente parados e do lado direito para o lado esquerdo, que sempre impossibilitaria ao condutor do pesado de a avistar, tendo em conta a altura da cabine, a altura do peão e o seu ângulo de visão.

13. Travessia essa que nem nunca permitiria à lesada ver o trânsito que circulasse em sentido contrário e que a poderia atropelar assim que ela saísse da barreira causada pelo veículo que antecedia o PQ.

14. Do acima exposto necessariamente decorre ilidida a presunção de culpa a cargo do condutor do pesado e apurada a culpa exclusiva do peão atropelado.

15. A cerca de 20 metros do local do acidente, exista uma passadeira para peões, que a Recorrente bem conhecia e que, ao contrário do que, aleivosamente, afirmou, estava livre e desimpedida.

16. Como bem refere o Douto Acórdão, e a Recorrente, esclarecidamente, não desconhecerá, os recursos destinam-se a reapreciar decisões proferidas, não podendo conhecer questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas.

17. Entra, necessariamente, nesta categoria, a imaginativa versão trazida aos autos SÓ AGORA pela Recorrente, que parece querer tirar um coelho da cartola que seria o significativo facto de que se lembrou agora … que estaria a 4,80mts de distância do PQ quando este iniciou a marcha.

18. Dado de que significativamente não se lembrou nem durante o julgamento em sede da 1ª instância, nem no recurso para o Tribunal da Relação …

19. O facto de se ter dado como provado que o atropelamento se deu assim que o PQ se pôs em marcha à velocidade reduzida entre 5 e 10km/h, e não a quase 5 metros, pelos vistos, não tem qualquer significado para a Recorrente, o que se regista, mas já não se estranha em virtude da sinuosa conduta da lesada ao longo de todo o processo !

20. É profundamente demagógica, risível e inconsequente a afirmação sobre os veículos pesados, que, oh! descobrimos agora! circulam dentro de uma cidade!!! que em fila impedem e obstruem os atravessamentos das pessoas que lá vivem,

21. … e que, pelos vistos, não sabem que existem essas coisas estranhas, chamadas passadeiras.

22. Torna-se assim evidente e indiscutível o nexo de causalidade entre a conduta ilícita da lesada, ao ignorar e desprezar a passadeira de peões onde lhe estava imposto efectuar o atravessamento da via, e o seu atropelamento, tendo a lesada sido a única responsável pela ocorrência do acidente.

23. Ao condutor do veículo pesado não pode ser assacada qualquer responsabilidade pelo acidente, pois não era expectável, para ele ou para qualquer outro condutor minimamente diligente que, existindo uma passadeira para peões a escassos 20 metros do local onde se encontrava parado momentaneamente numa situação de pára-arranca, um peão, de diminuta estatura, se fosse colocar à frente do seu veículo, bem junto deste, num local fora do seu campo de visão.

Nestes termos e nos mais de Direito que os Colendos Conselheiros esclarecidamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado improcedente por não provado e em consequência deve ser confirmado e mantido integral o douto acórdão proferido, com o que FARÃO V. EXAS A HABITUAL JUSTIÇA!!!”


Foram colhidos os vistos.


Cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO


II.1. A questão a resolver, recortada das alegações de revista interposta pelos Recorrentes/Autores/AA, BB e CC, consiste em saber se:


(1) O Tribunal a quo fez errónea interpretação e aplicação do direito, quanto à responsabilidade na eclosão do acidente ajuizado, porquanto há fundamento para concluir que a aludida responsabilidade deverá ser diversa daqueloutra sentenciada?


II. 2. Da Matéria de Facto


Factos Provados.

“a) No dia 14 de Maio de 2014, pelas 11h20, ao km 0.050 da Estrada Nacional n.º 3, Rua …, no …, concelho de …, a 1.a autora foi atropelada pelo veículo semi-reboque pesado de mercadorias de matrícula ...-...-PQ.

b) O veículo PQ é propriedade da sociedade EE, Lda. e, nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, era conduzido por FF, por conta e ordem daquela.

c) O PQ circulava na EN3, no sentido Azambuja-Carregado, na aproximação com a EN1.

d) O tempo estava bom e era de dia.

e) O local referido em a) configura uma faixa de rodagem com 7, 70 m de largura, de pavimento asfaltado, em razoável estado de conservação, com uma via em cada sentido de circulação, sem separador central, em aproximação a cruzamento.

f) No local referido em a), em cada um dos lados, direito e esquerdo, existe passeio destinado aos peões.

g) Na via existe uma passadeira para peões a cerca de 20 metros do local do embate, referido em a).

h) Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em a), o trânsito era intenso, nomeadamente de veículos pesados, e circulava em “pára-arranca”.

i) Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em a), à frente do PQ circulava outro veículo pesado de mercadorias, a distância não apurada.

j) A 1ª autora circulava pela berma do lado direito, atento o sentido de marcha do PQ, quando, apercebendo-se que o trânsito estava intenso e que se fazia em pára-arranca e numa das ocasiões em que o PQ se encontrava parado, iniciou a travessia da faixa de rodagem do lado direito para o lado esquerdo, atento o referido sentido de marcha.

k) Entretanto, como o veículo que se encontrava à frente retomou a sua marcha, o PQ arranca novamente, a cerca de 5/10 km/h e veio a colher a 1.a autora com a frente lateral esquerda, quando esta já tinha percorrido cerca de 3, 85 metros da via.

1) Acto contínuo, empurra o corpo da 1.a autora à frente do veículo, arrastando-o, tendo percorrido cerca de 1 ou 2 metros até ser alertado da situação pelos sinais sonoros que lhe foram dirigidos pelo condutor de outro veículo que com ele se cruzava, vindo em sentido contrário.

m) Após esse alerta, o condutor do PQ parou de imediato e, descendo do posto de condução, saiu do veículo e apercebeu-se de que estava um peão caído no asfalto, que era a 1.a autora.

n) O PQ é um semi-reboque pesado em que o pára-brisas e o lugar do condutor se encontram a cerca de 2 metros do solo.

o) Nas circunstâncias imediatamente anteriores ao embate, a 1.a autora, que mede cerca de 1, 50/1, 53 metros de altura, circulava próxima do PQ e por baixo do vidro frontal - pára-brisas.

p) Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em k) e 1), o condutor do PQ não se apercebeu que a 1.a autora procedia à travessia da faixa de rodagem à sua frente, considerando o referido em n) e o).

q) À data do acidente, a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ...-...-PQ encontrava - se transferida para a ré, mediante contrato de seguro titulado pela apólice 3…8.

r) Em consequência do atropelamento, a 1.a autora foi assistida no local e transportada para o Hospital de …, como "politraumatizada vítima de atropelamento".

s) Naquele Hospital, foram-lhe diagnosticadas as seguintes lesões:

a. Fractura de arcos costais: do 4° ao 9 à direita e do 6° ao 11° à esquerda, sem valorizável desalinhamento dos topos ósseos. Está associado significativo pneumotórax bilateral. Mínimo componente de hemotórax sobretudo à esquerda e pequena quantidade de líquido na grande cisura direita.

b. Atelectasias pulmonares subsegmentares em topografia dependente nos lobos inferiores.

c. Focos de densificação à periferia do segmento externo do lobo médio e segmento látero-basal do lobo inferior direito, associados a bronquiolectasias de tração, de provável etiologia atelectásica vs pequenas áreas de contusão.

d. Fracturas cominutivas: na asa esquerda do sacro e nos ramos ísqui e iliopúbicos homolaterais. Líquido livre de densidade hemática na pélvis e pequena quantidade de hemoretroperitoneu em topografia anterior ao músculo psoas esquerdo.

e. bexiga não distendida, com balão de algália intra-vesical.

f. Densificação da gordura subcutânea em topografia lombar e glútea póstero-lateral direita.

g. Foco osteodenso de 1 cm no sacro à direita, de contorno espiculado, compatível com eno sto se.

h. Hiperdensidade focal justacortical de 5 mm no osso ilíaco esquerdo, inespecífica.

i. Diversículo duodenal.



t) No mesmo dia 14-05-2014, a 1.a autora foi transferida do Hospital de … para o Centro Hospitalar de … (Hospital de …), em …, onde ficou internada até ao dia 09-07-2014, data em foi novamente transferida para o hospital da área da sua residência, o Hospital de … .

u) Em consequência dos ferimentos descritos, a 1.a autora foi observada nos serviços de Cirurgia Plástica, onde no dia 15.05.2014, foi submetida a: lavagem; desbridamento extenso do esfacelo da perna esquerda; miorrafias das lesões musculares ao nível dos compartimentos posterior/lateral; drenagem de hematoma do compartimento posterior da perna esquerda; imobilização das fracturas do pé direito com tala gessada.

v) No dia 16.05.2014, efectuou angio-TC tóraco-abdómino-pélvica, sendo-lhe identificado: moderado derrame pleural bilateral de baixa densidade, com processos telectásicos; passivos nos segmentos pulmonares adjacentes; pneumotórax bilateral, com distribuição ápico-basal; discreta condensação no lobo médio direito, subpleural, de aspecto retráctil, admitindo-se natureza atelectásica; hemoretroperitoneu moderado, essencialmente pélvico, mas com extensão posterior aos espaços peri-renais; discreta quantidade de líquido intraperitoneal, eri-hepático, peri-esplénico e ainda nos fundos de saco peritoneais pélvicos; fracturas cominutivas do ramo ilio-púbico, ramo ísquio-púbico, asa esquerda do sacro e de vários arcos costais, bilateralmente (do 4° ao 9° direitos e do 5° ao 9° esquerdos).

w) Nos Serviços de Cirurgia Plástica do Centro Hospitalar de …, no dia 04-06-2014, a 1.a autora foi submetida a nova intervenção cirúrgica sob anestesia geral para osteossíntese de fractura vertical da asa esquerda do sacro, extraforaminal, com 2 parafusos sacroilíacos compressivos introduzidos por via percutânea.

x) Nos serviços de Cirurgia Plástica, Ortopedia e Cirurgia Geral do Hospital de …, foram-lhe diagnosticados os seguintes traumatismos:

- traumatismo torácico com fractura do 4° ao 9° arco arcos costais direitos e do 6° ao 11° arcos esquerdos;

- pneumotórax bilateral com mínimo componente de hemotórax sobretudo à esquerda e pequena quantidade de líquido na grande cisura direita;

- atelectasia pulmonar dos lobos inferiores;

- focos de densificação à periferia do segmento externo do lobo médio e segmento latero basal do lobo inferior direito, associados a bronquiolectasias de tração, de provável etiologia atelectásica vs pequena área de contusão pulmonar;

- traumatismo da bacia com fractura cominutiva na asa esquerda do sacro e nos ramos ísquio e iliopúbicos homolaterais;

- hemoretroperiloneo em topografia lombar e glútea póstera lateral direita;

- traumatismo dos membros inferiores com fractura exposta do maléolo peroneal esquerdo grau IIIA de Gustillo/Anderson (com esfacelo), fractura da 3a. falange do hallux e fractura de metatársicos no pé contralateral;

- necrose cutânea circular de toda a perna esquerda por contusão/hematoma.

y) No decorrer do seu internamento no Centro Hospitalar de …, EPE (Hospital de …), a A. foi submetida a duas intervenções cirúrgicas no Serviço de Cirurgia Plástica Reconstrutiva: no dia 16.06.2014, foi submetida a desbridamento de tecido desvitalizado da perna esquerda (circular, envolvendo toda a perna) e aplicação de enxerto de pele parcial em Mesh 1:3 sobre o defeito (zona dadora face anterior da coxa esquerda); e no dia 27.06.2014 foi sujeita a desbridamento de tecido desvitalizado da face interna e posterior da perna esquerda e aplicação de enxerto de pele parcial em Mesh sobre o defeito (zona dadora face anterior da coxa direita).

z) Como intercorrências durante o internamento no Centro Hospitalar de …, EPE destacam-se múltiplos episódios de hemorragia digestiva, com repercussão na contagem eritrocitária, tendo sido sujeita a colonoscopia e angio — TC, que concluiu pela ulceração estercoral do recto.

aa) Em 09-07-2014, teve alta do Centro Hospitalar de …, EPE e foi reencaminhada para o Hospital de …, com a recomendação de ser reavaliada e encaminhada pelas especialidades de ortopedia e cirurgia geral, mantendo acompanhamento, no mesmo Centro Hospitalar, em consulta externa dos Serviços de Cirurgia Plástica.

bb) Esteve internada no Hospital de … desde o dia 09-07-2014 até ao dia 06-08-2014, data em que foi dada alta clínica, continuando, porém, a ser seguida nas consultas de ortopedia e de cirurgia geral do Hospital de … .

cc) No dia 06-08-2014, foi internada no Hospital Residencial …, na …, para tratamentos de recuperação, sem previsão de alta, a qual veio a verificar-se em 28-10-2014.

dd) Em 02-12-2014, iniciou acompanhamento em Consulta de Psicologia da Reabilitação, no Hospital de …, não se prevendo, em 20-07-2015, alta para breve.

ee) Em consequência do atropelamento, a 1.a autora sofreu:

a. Traumatismo torácico com fractura de arcos costais: do 4.° ao 9.° à direita, do 6.° ao 11.° à esquerda; pneumotórax bilateral; atelectasia pulmonar nos lobos inferiores;

b. Traumatismo da bacia com fractura cominutiva na asa esquerda do sacro e dos ramos ísquio e ílio-púbicos homolaterais;

c. Traumatismo dos membros inferiores com fratura exposta do maléolo peroneal esquerdo, fractura da 3.a falange do halux e fractura de metatársicos no pé direito;

d. Necrose cutânea circular de toda a perna esquerda por contusão/hematoma.

ff) A data da consolidação médico-legal das lesões foi fixada em 10-08-2015.

gg) Em consequência do atropelamento, a 1.a autora sofreu um Défice Funcional Temporário Total durante um período de 167 dias (entre 14-05-2014 e 27-10-2014).

hh) Em consequência do atropelamento, a 1.a autora sofreu um Défice Funcional Temporário Parcial durante um período de 287 dias (entre 28-10-2014 e 10-08-2015).

ii) O quantum doloris foi fixado no grau de 5, numa escala de 7 graus de gravidade crescente.

jj) Em consequência do atropelamento, a 1.a autora ficou com as seguintes sequelas:

a. Pescoço: cicatriz nacarada na face lateral direita, com 0, 5 cm de diâmetro (provavelmente relacionada com cateter venoso central);

b. Tórax: duas cicatrizes nacaradas, lineares, com sinais de pontos de sutura, ao nível do 2.° EIC, com 2 cm de comprimento: uma do lado direito e outra do lado esquerdo (relacionadas com drenagem de pneumotórax bilateral);

c. Membro superior esquerdo: área nacarada no terço superior da face póstero-externa do antebraço, com 6 cm de diâmetro;

d. Membro inferior direito: área nacarada na face ântero-interna da coxa com 11x7 cm (relativa a região dadora de enxerto); área cicatricial nacarada no dorso do pé, com 5 cm de diâmetro; sem aparente limitação da mobilidade do pé;

e. Membro inferior esquerdo: cicatriz nacarada, linear vertical, com sinais de pontos de sutura na face externa da anca, com 5 cm de comprimento (relativa a cirurgia de colocação de osteossíntese na fratura da asa do sacro esquerda); área nacarada da face ântero-interna da coxa com 15x17 cm (relativa a região dadora de enxerto); complexo cicatricial com zonas nacaradas e hiperpigmentadas, com alterações de relevo, em toda a extensão da perna esquerda (traumatismo direto pelo acidente); edema marcado do dorso do pé; limitação da flexão do tronco a 30.° pela dor na região glútea e inguinal esquerdas; limitação da flexão plantar do tornozelo a 15.° (contralateral 20°); sem limitação da flexão dorsal ou dos restantes movimentos do tornozelo em comparação com o contralateral.

f. Ansiedade e humor deprimido, com necessidade de terapêutica (Mirtazapina);

g. Toracalgia pós fractura de arcos costais, com limitação da flexão do tronco;

h. Dor na região inguinal esquerda pós fractura dos ramos ílio e isquiopúblicos tratadas conservadoramente;

i. Dor na região glútea esquerda pós fractura da asa do sacro tratada cirurgicamente;

j. Cicatriz de toda a superfície da perna, com afectação de tecidos moles causadora de insuficiência venosa do membro inferior esquerdo a jusante da perna, com edema e desconforto; necessidade de tratamento com meia elástica e de terapêutica oral com Daflon e tópica com Biafine;

k. Dor no dorso do pé direito pós fraturas do metatarso tratadas conservadoramente;

1. Dor no maléolo externo esquerdo pós fractura exposta do maléolo peronial tratada conservadoramente.

kk) Considerando as referidas sequelas, foi atribuído à 1.a autora um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico- Psíquica de 23 pontos.

ll) A 1.a autora sofreu ainda um dano estético permanente, fixado no grau 4, numa escala de 7 graus de gravidade crescente.

mm) A Repercussão Permanente nas Actividades Desportivas e de Lazer foi fixada no grau 4, numa escala de 7 graus de gravidade crescente.

nn) A Repercussão Permanente na Actividade Sexual foi fixada no grau 2, numa escala de 7 graus de gravidade crescente.

oo) Necessita de ajudas medicamentosas permanentes, com recurso a medicação regular, como analgésico, anti-depressivo, venotrópico e ajudante de cicatrização.

pp) Antes do acidente, a 1a autora era uma pessoa totalmente autónoma na realização dos actos normais da sua vida quotidiana.

qq) Ocupava regularmente o seu tempo nas actividades domésticas da sua residência no … e pequenas tarefas agrícolas a que se dedicava numa outra residência que possui na localidade de …, em … .

rr) Pessoa extremamente activa, visitava com frequência familiares e pessoas amigas, prestando-lhes, sempre que solicitada, todo o apoio que necessitassem.

ss) Fazia parte do Grupo Vida Activa, localizado no …, onde se dedicava à prática de ginástica e de hidroginástica.

tt) Actividades que deixou de praticar devido às dificuldades físicas de que passou a padecer, bem como à vergonha que sente pelas cicatrizes que tem nas pernas e nos pés, que muito a desfeiam e são susceptíveis de causar repulsa, quer a si própria, quer aos outros.

uu) Antes do acidente, a autora participava activamente em diversas excursões e festas organizadas para os reformados do concelho de … .

vv) Actividades que devido ao acidente de que foi vítima deixou de poder realizar, o que lhe causa muito desgosto, deixando-a muito prostrada, triste e profundamente angustiada.

ww) Necessita do apoio de uma 3.a pessoa, sobretudo para auxílio à locomoção, quer na sua residência, quer no exterior.

xx) Em relatório clínico de 20-07-2015, da especialidade de psicologia, lê-se o seguinte: "Desde o acidente refere pesadelos recorrentes, muitos medos, não sai sozinha à rua. Apresenta fácies triste e humor lábil, estado de ânimo empobrecido, desmotivação e descrença no futuro. Refere ataques de ansiedade e irritabilidade, bem como perturbações com a imagem corporal decorrente do acidente (MI esq.). Aparentemente stress pós-traumático."

zz) Em consequência do atropelamento, a 1.a autora teve de suportar as seguintes despesas, no total de € 2 159, 80 (dois mil cento cinquenta euros, oitenta cêntimos):

a. Certidão de Participação de Acidente n.° 3…/14, no valor de € 56, 00 e Relatório Final de Avaliação do Dano Corporal, no valor de € 120, 00 — no total de € 176, 00;

b. Aquisição de peças de vestuário adequadas: € 20, 00, € 116, 60 e € 44, 00, respectivamente - no total de € 180,60;

c. Transportes e deslocações, no total de € 229, 00:

i. pelos Bombeiros de … — Hospital do … (…)/Hospital de … (…)/Hospital do … (…a) - € 103, 00;

ii. em viatura da Cruz Vermelha Portuguesa - Hosp. de … /Hosp. do … (…) - € 48,00;

iii. pela autora e acompanhante, bilhete ida/volta, num total de 48 — …/Hospital … - € 156,00;

d. Consultas médicas, no total de € 89, 00:

i. (4) Externas no Centro Hospitalar de …, EPE, no valor de € 31,00;

ii. (4) Externas no Hospital de …, no valor de € 31,00;

iii. (4) no Centro de Saúde de …, Extensão …/…, no valor total de € 17, 00;

iv. (2) na Clínica Dr. …, no valor total de € 10, 00;

e. Exames e tratamentos, no total de € 221, 30:

i. Exames médicos efectuados no Hospital de …, no valor de € 51,30;

ii. (2) Tratamentos de Fisioterapia na FisioNasce, no valor de € 85,00, cada, no total de € 170,00;

f. Aquisição de medicamentos, no total de € 1107,90 (nomeadamente, Dermisol, Biafine, Fosavance, Calcitab, Sedoxil, Mirtazapina, Dexaval, Sheriproct, Paracetamol, gel dermatológico, Naproxeno, Omeprazol, Zotinar Capilar, Livetan, Daflon, com exclusão de Protefix, Bisoprolol, Sinvastatina, Artovastatina, Locetar (verniz), Imodium Rapid, Gynoflor, Colgate Total Pasta Dentífrica, Fenistil gel).

aaa) Entre os dias 14-05-2014 e 08-07-2014 — período de internamento da 1.a autora no Hospital de S. José -, o 2.° A efectuou diariamente o percurso …/Hospital de …/…, de cerca de 80 quilómetros, com a utilização da sua viatura particular.

bbb) Entre os dias 09-07-2014 e 06-08-2014 — período de internamento da 1.a autora no Hospital de … -, o 2.° A efectuou, duas vezes por semana, o percurso …/Hospital de …/…, de cerca de 16 quilómetros, com a utilização da sua viatura particular.

ccc) Entre os dias 07-08-2014 e 28-10-2014, o 2.° A. efectuou, duas vezes por semana, o percurso …/Hospital do …, …/…, de cerca de 30 quilómetros, com a utilização da sua viatura particular, onde transportava a 1.a autora.

ddd) Após o acidente e a fim de prestar assistência à 1.a autora, em Maio de 2014, a 3.a autora, que trabalha no Luxemburgo, despendeu e 196,00 com a viagem L…/Portugal/L….”

Factos não provados:

“1. Que a passadeira para peões existente na via se encontre a cerca de 10 metros do local do embate;

2. Que, nas circunstâncias imediatamente anteriores ao atropelamento, a passadeira existente na via se encontrasse obstruída pelo veículo PQ;

3. Que, nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em i), circulasse à frente do PQ um veículo pesado de mercadorias a cerca de 1-2 metros;

4. Que, nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em j), a 1.a autora pretendia dirigir-se para a passadeira existente no local e verificou que a passadeira se encontrava completamente obstruída pelo PQ e pela fila de trânsito à sua rectaguarda;

5. Que, em consequência do acidente, a 1.a autora tivesse ficado a padecer de uma IPP não inferior a 36 pontos; de um dano estético permanente fixável no grau 3, numa escala de 7 graus de gravidade crescente; e de prejuízo de afirmação pessoal fixável no grau 2, numa escala de 7 graus de gravidade crescente;

6. Que, à data do acidente, a 1.a idade tomava conta de uma neta menor de idade.


7. Que as despesas de € 9, 70 (fls. 402), € 15, 00 (fls. 402 verso), € 14, 99 (€ 129), € 14, 99 (fls. 165) e € 7, 50 (fls. 167) e ainda as respeitantes à aquisição de Protefix, Bisoprolol, Sinvastatina, Artovastatina, Locetar (verniz), Imodium Rapid, Gynoflor, Colgate Total Pasta Dentífrica, Fenistil gel, tenham sido emergentes do atropelamento sofrido pela 1.a autora;

8. Que os 2.° e 3.a autores são filhos da 1.a autora.”


II. 3. Do Direito


O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos Recorrentes não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido no direito adjectivo civil - artºs. 635º, n.º 4, e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código Processo Civil.


II. 3.1. O Tribunal a quo fez errónea interpretação e aplicação do direito quanto à responsabilidade na eclosão do acidente ajuizado, porquanto há fundamento para concluir que a aludida responsabilidade deverá ser diversa daqueloutra sentenciada? (1)

Os Autores/Recorrentes/AA, BB e CC sustentam que dos factos provados resulta a responsabilidade pelo risco a assacar à Ré/DD - Companhia de Seguros, S.A., tal qual entendeu a 1ª Instância, sendo que não existe nexo de causalidade entre a conduta da 1ª Autora, lesada, ao efectuar a travessia da faixa de rodagem, fora do local destinado a esse fim, e o acidente, a par de que mesmo que assim não fosse, sempre se impunha a concorrência da culpa com o risco, já que a conduta da 1ª Autora, lesada, nunca consubstanciaria uma culpa exclusiva que afasta a responsabilidade da Ré/DD - Companhia de Seguros, S.A.

Por sua vez a Ré/Recorrida/DD - Companhia de Seguros, S.A. esgrime a culpa exclusiva da lesada, 1ª Autora, na eclosão do ajuizado acidente, sustentando o nexo de causalidade entre a conduta ilícita da lesada, 1ª Autora, ao ignorar e desprezar a passadeira de peões onde lhe estava imposto efectuar o atravessamento da via, e o seu atropelamento, sublinhando que o atravessamento que realizou e demais materialidade adquirida processualmente, revelou-se violador das mais elementares regras de cuidado e diligência, sendo causa adequada e exclusiva do articulado acidente.

Vejamos.

O acidente de viação não é uma estática mas uma dinâmica, daí que os factos adquiridos processualmente devam ser interpretados numa perspectiva critica para se apurar, seleccionar, surpreender aqueles que tiveram a virtualidade de, só por si, desencadearem todo o nexo causal e necessário ao evento.

Relembremos a facticidade demonstrada que importa à dinâmica do ajuizado acidente:

“a) No dia 14 de Maio de 2014, pelas 11h20, ao km 0.050 da Estrada Nacional n.° 3, Rua …, no …, concelho de …, a 1.ª autora foi atropelada pelo veículo semi-reboque pesado de mercadorias de matrícula ...-...-PQ.

f) No local referido em a) (local do acidente), em cada um dos lados, direito e esquerdo, existe passeio destinado aos peões.

g) Na via existe uma passadeira para peões a cerca de 20 metros do local do embate, referido em a).

h) Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em a), o trânsito era intenso, nomeadamente de veículos pesados, e circulava em “pára-arranca”.

i) Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em a), à frente do PQ (segurado da Recorrida) circulava outro veículo pesado de mercadorias, a distância não apurada.

j) A 1.ª autora circulava pela berma do lado direito, atento o sentido de marcha do PQ, quando, apercebendo-se que o trânsito estava intenso e que se fazia em pára-arranca e numa das ocasiões em que o PQ se encontrava parado, iniciou a travessia da faixa de rodagem do lado direito para o lado esquerdo, atento o referido sentido de marcha.

k) Entretanto, como o veículo que se encontrava à frente retomou a sua marcha, o PQ arranca novamente, a cerca de 5/10 km/h e veio a colher a 1.ª autora com a frente lateral esquerda, quando esta já tinha percorrido cerca de 3, 85 metros da via.

l) Acto contínuo, empurra o corpo da 1.ª autora à frente do veículo, arrastando-o, tendo percorrido cerca de 1 ou 2 metros até ser alertado da situação pelos sinais sonoros que lhe foram dirigidos pelo condutor de outro veículo que com ele se cruzava, vindo em sentido contrário.

m) A M) Após esse alerta, o condutor do PQ parou de imediato e, descendo do posto de condução, saiu do veículo e apercebeu-se de que estava um peão caído no asfalto, que era a 1.ª autora.

n) O PQ é um semi-reboque pesado em que o pára-brisas e o lugar do condutor se encontram a cerca de 2 metros do solo.

o) Nas circunstâncias imediatamente anteriores ao embate, a 1.ª autora, que mede cerca de 1,50/1,53 metros de altura, circulava próxima do PQ e por baixo do vidro frontal – pára-brisas.

p) Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em k) e l), o condutor do PQ não se apercebeu que a 1.ª autora procedia à travessia da faixa de rodagem à sua frente, considerando o referido em n) e o).”

Perante a facticidade demonstrada haverá que proceder à necessária análise sobre a responsabilidade civil.

Estamos no domínio da responsabilidade civil extra-contratual, no campo dos acidentes de viação onde vigora o princípio geral do art.º 483º do Código Civil, com a especialidade de que de acordo com o art.º 487º do citado diploma é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa.

Não sofre dúvidas que a lei distingue, no campo mais geral da responsabilidade extracontratual, entre responsabilidade civil por factos ilícitos - art.º 483 e seguintes do Código Civil - e responsabilidade pelo risco - artºs. 499° a 510° do mesmo diploma - sem prejuízo de, na regulamentação desta, fazer frequentes apelos à culpa, como acontece nos artºs. 500° n.º 3, 503 n.º 3, e 506° todos do Código Civil, e de mandar cumprir, na parte aplicável e na falta de preceitos legais em contrário, as disposições que regulam a responsabilidade por factos ilícitos art.º 499° do Código Civil.

A responsabilidade por factos ilícitos, com base na culpa, é a regra, na medida em que só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei - art.º 483° n.º 2 do Código Civil - .

Aqui, reiteramos, é ao lesado que incumbe provar todos os pressupostos fixados no n.º 1 do art.º 483°do Código Civil, designadamente, a culpa, salvo quando haja presunção legal de culpa - art.º 487° n.º 1 do Código Civil - pois é sabido que quem tem a seu favor presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz - art.º 350° n.º 1 do Código Civil - .

Na falta de outro critério legal, a culpa é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso - art.º 487° n.º 2 do Código Civil - .

O elemento básico da responsabilidade é o facto do agente - um facto dominável ou controlável pela vontade, um comportamento ou uma forma de conduta humana - pois só quanto a factos dessa índole têm cabimento a ideia da ilicitude, o requisito da culpa e a obrigação de reparar o dano nos termos em que a lei a impõe, neste sentido, Antunes Varela, in, Das Obrigações em Geral, I, 9ª edição, página 545, mas, fundamental na responsabilidade por factos ilícitos, por culpa, além da ilicitude (elemento objectivo, o autor agiu objectivamente mal), é essencial concluir que a conduta do lesante se pode considerar reprovável, censurável.

Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo, neste sentido, Antunes Varela, in, Das Obrigações em Geral, I, 9ª edição, página 582.

Culpa efectiva, provada, e culpa presumida são uma e a mesma coisa, designadamente para afastar a indemnização devida pela responsabilidade pelo risco, pois, as presunções, enquanto “ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido” (art.º 349° do Código Civil) - podem resultar tanto da lei (art.º 350º do Código Civil) como das regras da experiência e da vida do julgador (art.º 351º do Código Civil), reconhecendo-se que a prova da inobservância de leis ou regulamentos faz presumir a culpa na produção dos danos dela decorrentes, dispensando a concreta comprovação da falta de diligência.

A questão trazida em revista contende com a ilicitude e com o nexo de imputação do facto ao agente, ou seja, da infracção e da culpa.

A ilicitude é sempre algo contrário ao direito, neste sentido, Pessoa Jorge, in, Pressupostos, página 61.

Integram-na, por isso, todos e quaisquer actos ou omissões, que violem disposições da lei, do interesse e ordens públicas, ou normativos destinados a proteger interesses de terceiros.

Ora perante a facticidade demonstrada temos de concluir, aliás, conforme reconhecido pelas Instâncias que o condutor do veículo PQ não infringiu qualquer regra estradal.

Assim, atendendo a que a obrigação de indemnizar que os Autores imputam à Ré não encontra fundamento no instituto da responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana, afastada que está a culpa do condutor do PQ, cabe aferir se a obrigação de indemnizar se fundamenta em facto danoso gerador de responsabilidade objectiva, porque incluído na zona de riscos a cargo de pessoa diferente do lesado.

A responsabilidade civil, no domínio dos acidentes de viação, conforme supra já adiantamos, não se esgota com a verificação do dolo ou culpa dos intervenientes, pois que ela é objectiva no caso de risco.

Estatui o art.º 499º do Código Civil que “são extensivas aos casos de responsabilidade pelo risco, na parte aplicável e na falta de preceitos legais em contrário, as disposições que regulam a responsabilidade por factos ilícitos”.

Nota dominante da responsabilidade pelo risco, temo-la no facto de a lei prescindir daquele elemento subjectivo, da culpa.

O fundamento da responsabilidade não reside agora no propósito de um acto culposo, mas sim no controle de um risco, ou talvez, com maior rigor, no controle de potenciais danos, aliado ao princípio da justiça distributiva, segundo a qual quem tiver o lucro ou em todo o caso, o beneficio de uma certa coisa, deve suportar os correspondentes encargos - ubi commodum ibi incommodum - .

Estabelece o direito substantivo civil que responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário – art.º 503º, n.º 1, do Código Civil - donde cabe ao proprietário a direcção efectiva do veículo, que o vê a circular no seu próprio interesse, gozando de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição do veículo.

Acentuamos, pois, como reconhecido pelas Instâncias, pacificamente aceite pelas partes, não fora a provada ausência de culpa do condutor do PQ, operaria, a par da apontada presunção judicial, a presunção legal de culpa prevista no art.º 503º, n.° 3 do Código Civil, dada a provada relação de comissão entre o condutor do veículo PQ e a proprietária do dito veículo.

A responsabilidade pelo risco, no caso de veículo de circulação terrestre, como se demonstra nos autos, repercutir-se-ia na esfera jurídica da Ré/Seguradora por força do contrato de seguro que cobre os riscos inerentes à circulação do veículo PQ.

Assim, prima facie reconhecer-se-ia a responsabilidade pelo risco.

Importa, todavia, encarar o caso sub iudice (responsabilidade objectiva, nos termos previstos no art.º 503º do Código Civil) com especial enfoque na questão da eventual exclusão dessa responsabilidade.

Estatui o art.º 505º do Código Civil “Sem prejuízo do disposto no artigo 570º, a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.”

Desvalorizando o elemento literal que decorre do preceito consignado, entendia-se que não era legalmente admissível o concurso do risco do lesante com a culpa do lesado, invocando, para o efeito o regime jurídico decorrente do n.º 2 do art.º 570º do Código Civil, neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, in, Código Civil Anotado, 4ª Edição Revista e Actualizada, Reimpressão, Coimbra Editora, Fevereiro de 2011, páginas 517 e 518, anotação 1 ao artigo 505º do Código Civil.

Este entendimento teve apoio jurisprudencial até ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Outubro de 2007 (Processo n.º 07B1710), in, www.dgsi.pt que, por maioria, sustentou que o artigo “505º do Código Civil deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo”.

Entretanto esta questão atinente ao concurso do risco do responsável com a culpa do lesado gerou um reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia pedindo que se pronunciasse sobre a interpretação a dar à 3ª Directiva Automóvel - art.1º-A - e se ela se opõe ao segmento do direito nacional interpretado no sentido de impedir assim que concorresse com a culpa do menor a responsabilidade pelo risco por parte do veículo ligeiro, tendo, a propósito, sido proferido Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 9 de Junho de 2011 (a merecer comentários de Alessandra Silveira e Sophie Perez Fernandes, in, Cadernos de Direito Privado, nº 34, Abril/Junho 2011, páginas 3 a 19, outrossim, como sequela do aludido reenvio foi proferido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Junho de 2012 (Processo n.º 100/10.9YFLSB, in, www.dgsi.pt), em cujo dispositivo se enunciou: “A Directiva 72/166/CEE do Conselho de 24 de Abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, a Segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho de 30 de Dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, e a Terceira Directiva 90/232/CEE do Conselho de 14 de Maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, devem ser interpretadas no sentido que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título de seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano.)”

Assim, está actualmente firmada no Supremo Tribunal de Justiça uma interpretação não mecânica do art.º 505º do Código Civil no sentido de que não implica “uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre a culpa do lesado (ou, mais amplamente, a imputação do acidente ao lesado) e os riscos do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau de contribuição causal ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura. Porém, tal não implica que, por si só e de forma imediata, se responsabilize o detentor efectivo do veículo (e respectiva seguradora) pelos danos sofridos pelo lesado, implicando sim que, em função da factualidade subjacente a cada caso concreto, se pondere a medida da contribuição do lesado, culposa ou não culposa”, neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Janeiro de 2018 (Processo n.º 5705/12.0TBMTS.P1.S1) e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 2017 (Processo n.º 511/14.0T8GRD.D1.S1), in, www.dgsi.pt., além de outros relacionados por, Hugo Luz dos Santos e de Leong Cheng Hang, in, Revista de Direito Civil, Ano II, número 2, página 507, nota 23, O Acórdão de 14/01/14: Concurso entre o risco do veículo e a culpa do lesado? Um passo atrás no padrão de jusfundamentalidade do Direito da União Europeia?.

Revertendo ao caso sub iudice, Impõe-se considerar da invocada exclusão de responsabilidade, para depois e em termos definitivos decidir sobre a reclamada responsabilidade da Ré/DD - Companhia de Seguros, S.A..

Considerando o objecto do interposto recurso, impõe-se saber se a facticidade demonstrada encerra um comportamento da lesada, 1ª Autora, que quebra o nexo de causalidade entre os riscos próprios do veículo e os danos, excluindo a responsabilidade objectiva do detentor do veículo, na medida em que o dano deixe de ser um efeito adequado do risco desse veículo.


Quando se alude a acidente imputável ao próprio lesado, quer-se dizer, antes de mais nada, acidente devido a facto culposo do lesado, acidente causado pela conduta censurável do lesado, importando saber se os danos verificados no acidente devem ser juridicamente considerados, não como um efeito do risco próprio do veículo, mas sim como uma consequência do facto praticado pelo lesado.

Como bem salientam as Instâncias o quadro fáctico adquirido processualmente não permite imputar o acidente à culpa do condutor do PQ, porque nada do que se provou permite censurar-lhe a sua conduta estradal, conquanto o atropelamento tenha ocorrido dentro da faixa de rodagem por onde veículo ajuizado, segurado na Ré seguia e devia circular para cumprir o disposto no art.º 13º n.º 1, do Código da Estrada.

Por outro lado, distinguimos que a 1ª Autora, lesada, deveria ter procedido à travessia na passadeira destinada a peões, existente no local do acidente (item g) dos Factos Provados), tanto mais que nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em a), o trânsito era intenso, nomeadamente de veículos pesados, e circulava em “pára-arranca” (item h) dos Factos Provados), tendo a 1ª Autora, lesada, que circulava pela berma do lado direito, atento o sentido de marcha do PQ, quando se apercebeu que o trânsito estava intenso e que se fazia em pára-arranca e numa das ocasiões em que o PQ se encontrava parado, iniciado a travessia da faixa de rodagem do lado direito para o lado esquerdo, atento o referido sentido de marcha (item j) dos Factos Provados), numa altura em que o veiculo PQ, atendendo a que o veículo que se encontrava à sua frente havia retomado a sua marcha, arrancou novamente, a cerca de 5/10 km/h e veio a colher a 1ª Autora, lesada, com a frente lateral esquerda, quando esta já tinha percorrido cerca de 3, 85 metros da via. (item K) dos Factos Provados), empurrando e arrastando o corpo da 1ª Autora, lesada, por cerca de 1 ou 2 metros até ser alertado da situação (item l) dos Factos Provados), tendo-se também apurado que o veículo PQ é um semi-reboque pesado em que o pára-brisas e o lugar do condutor se encontram a cerca de 2 metros do solo. (item n) dos Factos Provados), outrossim, que nas circunstâncias imediatamente anteriores ao embate, a 1ª Autora, lesada, que mede cerca de 1,50/1,53 metros de altura, circulava próxima do PQ, do seu lado direito atento o respectivo sentido de marcha, e por baixo do vidro frontal – pára-brisas. (item o) dos Factos Provados), de tal sorte que o condutor do PQ não se apercebeu que a 1ª Autora procedia à travessia da faixa de rodagem à sua frente (item p) dos Factos Provados).

Da facticidade adquirida processualmente resulta que o ajuizado acidente se ficou a dever ao atravessamento da via pela lesada, 1ª Autora, levado a cabo fora da passadeira, que se encontrava a cerca de 20 metros do local do acidente, violando o disposto no art.º 101º, n.º 1 e n.º 3 do Código da Estrada, “Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respetiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente.” (n.º 1) “Os peões só podem atravessar a faixa de rodagem nas passagens especialmente sinalizadas para esse efeito ou, quando nenhuma exista a uma distância inferior a 50 m, perpendicularmente ao eixo da faixa de rodagem.” (n.º 3), importando concluir que a lesada, 1ª Autora, violou as citadas disposições e respectivas normas imperativas, preenchendo o requisito da ilicitude.    

Ademais, distinguimos no que tange ao comportamento da 1ª Autora, lesada, que esta decidiu iniciar a travessia da faixa de rodagem sem ter, previamente à travessia da via da direita para a esquerda, atento o sentido de marcha do veículo PQ, certificado que a podia efectuar em segurança, tendo-a levado a efeito quando circulava próxima do PQ, do seu lado direito atento o respectivo sentido de marcha, e por baixo do vidro frontal - pára-brisas - quando é certo que o veículo interveniente no acidente ajuizado, é um semi-reboque pesado em que o pára-brisas e o lugar do condutor se encontram a cerca de 2 metros do solo, donde tendo a 1ª Autora, lesada, cerca de 1,50/1,53 metros de altura, não temos como não sufragar o acórdão recorrido ao consignar a este propósito “Assim se conclui que, circulando o peão (…) do lado direito, atento o sentido de marcha do veículo, circularia próximo do pesado, num local onde o seu condutor, não teria qualquer ângulo de visão, sendo-lhe impossível avistar, nem aperceber-se da presença do peão, previamente à travessia da via.

Se tivermos ainda em conta que a 1.ª autora atravessou esta via pela frente de um pesado, com uma cabine a cerca de 2 mts de altura, próxima do PQ e por baixo do vidro frontal - pára-brisas, conclui-se, como concluiu a decisão recorrida, que era impossível ao condutor do pesado avistar este peão de baixa estatura e que, efectivamente, o não avistou.

Sendo impossível ao condutor do pesado ver a 1a A., pelas razões descritas, o que esta não podia ignorar, não lhe sendo exigível que contasse com a travessia repentina de um peão pela frente do seu veículo, temos ainda que a 1a A. atravessou a faixa de rodagem numa ocasião de trânsito intenso, pelo meio de dois pesados, no momento em que estes tinham detido a sua marcha, de forma temporária e condicionada ao trânsito, não podendo a 1ª A. prever, com razoabilidade, o tempo que estes demorariam a reiniciar a marcha e sabendo, ou devendo saber, que não era passível de ser avistada, nem antes, nem durante a travessia, pelo condutor deste pesado.


Trata-se de uma conduta violadora das mais elementares regras de cuidado e diligência, de uma conduta perfeitamente temerária e que foi, sem qualquer dúvida, causa adequada deste acidente.

Com efeito, não é conforme às regras de atravessamento da via, a conduta de um peão que, circulando pela berma do lado direito, atento o sentido de marcha dos veículos, numa estrada com trânsito intenso e circulação em pára-arranca decide, numa das ocasiões em que um veículo pesado se encontra momentaneamente parado, iniciar a travessia da faixa de rodagem do lado direito para o lado esquerdo, próxima do pesado e por baixo do pára-brisa e sem cuidar que não pode ser avistada pelo condutor deste pesado, cuja cabine se situa a cerca de 2 mts do solo, sendo este peão de estatura muito inferior e estando o condutor afastado do pára-brisa, pelo tablier e pelo volante. Sendo exigível ao condutor do pesado que reinicie a sua marcha numa fila de trânsito, quando em segurança, este dever de cuidado e diligência, cumpre-se quando o veículo da frente reinicia a sua marcha sem que, sem culpa sua, aviste, ou possa avistar, qualquer obstáculo na via, nem seja previsível o atravessamento de peões, pela inexistência de passadeira naquele concreto local. Assim, no que se reporta ao afastamento do nexo de causalidade entre a conduta da A. e o atropelamento, não tem a sentença recorrida razão.”

O ajuizado acidente ocorreu devido à actuação da lesada, 1ª Autora, enquanto peão - que o causou - sem que se possa atribuir ao condutor do veículo (à culpa do condutor) ou aos riscos próprios do veículo, qualquer contribuição na respectiva produção, o que encerra circunstância excludente da responsabilidade objectiva do proprietário do veículo (arts.º 503º n.º 1 e 505º, ambos do Código Civil).

Na verdade, não interessa a diligência que costuma ser usada. Interessa, sim, compará-la com a diligência do homem médio, do ponto de vista deontológico que é um padrão ideal, isento de defeitos de actuação tão frequentes no homem comum, neste sentido, entre outros, Oliveira Matos, in, Acidentes de Viação, página 339. Por outras palavras, é o nexo de imputação ético-jurídico que liga o facto jurídico ilícito à vontade do agente, ou seja, a actuação deficiente, censurável, reprovável, abstraindo da pessoa do destinatário do dever violado, neste sentido, Antunes Varela, in, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 102º/60.

A 1ª Autora, lesada, aquando da travessia da faixa de rodagem, nos termos consignados, ofendeu o princípio de diligência a que estava obrigada, agindo com culpa, donde, no caso de contribuição exclusiva da lesada, 1ª Autora, será de atribuir o acidente exclusivamente à actuação culposa desta, sublinhando-se que não concorre para a respectiva eclosão, em termos de causalidade adequada, o risco inerente à circulação do veículo envolvido no acidente, na medida em que a potencialidade de perigo que envolve a sua circulação foi estranha ao acidente.

Reconhecemos como judiciosas as considerações feitas no acórdão recorrido ao deixar de reconhecer a responsabilidade objectiva da proprietária do veículo PQ, tendo em conta que o comportamento da lesada, 1ª Autora, quebrou o nexo de causalidade entre os riscos próprios do veículo e os danos, excluindo a responsabilidade objectiva daquela e, consequentemente, da Ré/DD - Companhia de Seguros, S.A., enquanto seguradora do veiculo interveniente no sinistro.

Tudo visto, atendendo ao quadro normativo, jurisprudencial e doutrinal que acabamos de enunciar, conjugado com a facticidade demonstrada nos autos, entendemos que não merece qualquer censura a decisão recorrida, pelo que, improcedem as conclusões recursivas, tempestivamente formuladas.


III. DECISÃO


Pelo exposto e decidindo, os Juízes que constituem este Tribunal, acordam em julgar improcedente o recurso interposto pelos Autores/AA, BB e CC, negando-se a revista, mantendo-se o acórdão recorrido.

Custas pelos Recorrentes/Autores/AA, BB e CC.

Notifique.


Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 17 de Outubro de 2019


Oliveira Abreu (Relator)

Ilídio Sacarrão Martins

Nuno Pinto Oliveira