Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2222/10.7TBGDM-C.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO JOAQUIM PIÇARRA
Descritores: ACÇÃO EXECUTIVA
AÇÃO EXECUTIVA
TÍTULO EXECUTIVO
LETRA DE CÂMBIO
PACTO DE PREENCHIMENTO
PREENCHIMENTO ABUSIVO
PACTO EXTRA-CARTULAR
ASSINATURA
DATA
VENCIMENTO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO
MATÉRIA DE FACTO
PROVA PERICIAL
PROVA TESTEMUNHAL
FORÇA PROBATÓRIA
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 11/24/2016
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO COMERCIAL - TÍTULOS DE CRÉDITO / LETRAS / LETRA DE CÂMBIO.
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA ( NULIDADES ) / RECURSOS / ALTERAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO / RECURSO DE REVISTA / FUNDAMENTOS DA REVISTA / PODERES DE COGNIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA - PROCESSO EXECUTIVO / TÍTULO EXECUTIVO.
Doutrina:
- Abel Pereira Delgado, “L.U.L.L.”, Anotada, 4.ª edição, 1980, 63.
- Antonino Vazquez Bonome, Tratado de Derecho Cambiário, tercera edition, Dykinson, 1997, 167.
- Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 1985, 76.
- Carolina Cunha, Letras e Livranças, Paradigmas actuais, Almedina, 2012, 555, 577.
- Conde Rodrigues, «A Letra em Branco», A.A.F.D.L., 1989, 42, 61.
- Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 6.ª edição, 19.
- Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, 1966, Volume III, 1966, 68/69, 124, 129.
- J.P. Remédio Marques, Curso de Processo Executivo Comum, à face do código revisto, 1.ª edição, 55/56.
- José Lebre de Freitas, A Acção Executiva Depois da Reforma, 4.ª edição, 33.
- Miguel Pupo Correia, Direito Comercial, 10.ª edição, Ediforum, Lisboa, 2007, 479.
- Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, 63/64.
- Oliveira Ascensão, Direito Comercial, Volume III, Títulos de Crédito, 1992, 113.
- Paulo Sendim, Letra de Câmbio - L.U. de Genebra, vol. I, Universidade Católica Portuguesa, Livraria Almedina, Coimbra, n.º 44, 176, e ss..
- Pedro Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, Volume I, 2011, Almedina, 329.
- Pinto Furtado, Títulos de Crédito, Almedina, 2000, 143/144.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 389.º, 396.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 607.º, N.º5, 608.º, N.º 2, 615.º, N.º 1, ALÍNEA D), 662.º, N.ºS 1, 2, E 4, 666.º, 674.º, N.ºS 1 E 3, 682.º, N.ºS 1 E 2, 703.º, N.º1.
LEI DE ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO (LOSJ), LEI N.º 62/2013, DE 26 DE AGOSTO: - ARTIGO 46.º.
LEI UNIFORME SOBRE LETRAS E LIVRANÇAS (LULL): - ARTIGOS 1.º, 10.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 3.5.2005, PROC. N.º05A1086, IN WWW.DGSI.PT .
-DE 14.12.2006, PROC. N.º 06A2589, DE 22.2.2011, PROC. N.º 31/05.4TBVVD-B.G1.S1, ACESSÍVEIS ATRAVÉS DE WWW.DGSI.PT .
-DE 6.3.2007, PROC. N.º 07A205, IN WWW.DGSI.PT .
-DE 23.9.2010, PROC. N.º 4688-B/2000.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Não enferma de excesso de pronúncia o acórdão da Relação que, em face da valoração da prova produzida e indicada pelo apelante, alterou a matéria de facto, no tocante à autoria da assinatura aposta na letra de câmbio dada à execução.

II - O título executivo é um documento escrito constitutivo ou certificativo de obrigações que, mercê da força probatória especial de que está munido, torna dispensável o processo declaratório para certificar a existência do direito do portador e a que é conferida força executiva, por ele se determinando o fim e os limites da acção executiva (art. 703.º, n.º 1, do CPC).

III - O acordo ou pacto de preenchimento é uma “convenção extracartular, informal e não sujeita a forma, em que as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a data do pagamento, etc.”.

IV - O subsequente preenchimento do título, a ocorrer antes sempre da sua apresentação a pagamento, deve ser feito, naturalmente, de harmonia com o convencionado, sob pena de violação ou desrespeito do pacto, gerador do que se designa por preenchimento abusivo.

V - A aposição da data de vencimento, tal como fora acordado no pacto de preenchimento, não constitui preenchimento abusivo.

VI - Na fixação dos factos, a Relação tem a derradeira palavra, através do exercício dos poderes que lhe são conferidos pelos n.os 1 e 2 do art. 662.º do CPC, acrescendo que da decisão proferida nesse particular pela Relação não cabe sequer recurso para o STJ (art. 662.º, n.º 4, do CPC).

VII - A intervenção deste, nesse campo, é residual, restringindo-se, afinal, a fiscalizar a observância das regras de direito probatório material.

VIII - Socorrendo-se a Relação, para dar como assente a autoria da assinatura na letra de câmbio, à perícia e ao depoimento testemunhal, cuja força probatória é apreciada e fixada livremente pelo tribunal (arts. 389.º e 396.º do CC), não é admissível a sindicância pelo STJ, nesse domínio, por não integrar as excepções previstas na parte final do n.º 3 do art. 674.º do CPC.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


Relatório

I AA, S.A. instaurou execução comum para pagamento de quantia certa contra BB, S.A., CC e DD, tendo por base uma letra de câmbio aceite pela sociedade executada, avalizada pelos dois executados e com data de vencimento a 30 de Abril de 2010.

O executado DD deduziu oposição à execução alegando, em síntese, que:

Não avalizou a letra de câmbio accionada, não sendo sua a assinatura que lhe é atribuída, na qualidade de avalista da executada.

A referida letra de câmbio foi apenas subscrita pela executada, no dia 02 de Outubro de 2003, e entregue à exequente, para garantia do pagamento de bens vendidos àquela, não constando da mesma a respectiva data de vencimento que foi aposta pela exequente, sem o seu consentimento.

Em Setembro de 2004, a executada encerrou o seu estabelecimento comercial e restituiu os bens que lhe haviam sido entregues pela exequente, ficando convencido, em face do subsequente comportamento silente da mesma que a dívida se encontrava extinta.

Concluiu, desse modo, pelo preenchimento abusivo da letra de câmbio dada à execução no que respeita à respectiva data de vencimento e à assinatura que lhe é atribuída e pela extinção da execução.

A exequente contestou, refutando o alegado preenchimento abusivo da letra e concluindo pela improcedência da oposição à execução.

Saneada a instância, procedeu-se à audiência de discussão e julgamento (antecedida da realização de perícia à letra do executado/oponente) e, dirimida sem censura a matéria de facto, foi proferida sentença, com data de 07/12/2015, a julgar procedente a oposição e a extinguir a execução, quanto ao executado/oponente.

A exequente apelou, com êxito, tendo a Relação do Porto, após alteração da matéria de facto, revogado a sentença, julgando a oposição improcedente e determinando o normal prosseguimento da execução.

Agora inconformado, interpôs o executado DD recurso de revista, finalizando a sua alegação, com as seguintes conclusões:

A. Conforme consta do acórdão recorrido a fls. 9, onde se diz “Com efeito, quer a sentença quer o embargante, esquecem o teor da 1." conclusão do relatório pericial (.../”), deveria igualmente constar que também a exequente se esqueceu dessa matéria.

B. Ou seja, essa matéria não foi mencionada por nenhuma das partes, em sede de 1.ª instância, na sentença e muito menos no recurso apresentado.

C. Constituem as balizas dos recursos o teor das conclusões que neles são formulados artigos 615.º, n.º 1, d) do CPC, não devendo o Tribunal de recurso conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha que cuidar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.

D. É princípio básico e elementar em matéria de recursos o de que a impugnação de decisão judicial visa a modificação da mesma, por via do reexame da matéria nela apreciada, e não a criação de decisão sobre matéria nova, estando o tribunal de recurso limitado nos seus poderes de cognição às questões que, tendo sido ou devendo ter sido objecto da decisão recorrida, sejam submetidas à sua apreciação, isto é, constituam objecto da impugnação, o qual em processo civil se define e delimita através das conclusões formuladas na motivação de recurso.

E. Ao pronunciar-se sobre questões não suscitadas em sede de 1.ª instância e não suscitadas no recurso apresentado, o acórdão recorrido violou as disposições legais supracitadas.

F. Não obstante, a questão essencial dos autos prende-se com a questão de saber a quem incumbe o ónus da prova quando a assinatura do documento particular apresentado à execução é impugnada;

G. A declaração em causa não foi reconhecida notarialmente.

H. Foi feito um relatório pericial que não concluiu com nenhuma certeza, mas concluiu por uma mera probabilidade (50%-70%) que a assinatura aposta na letra cambiária, apresentada a execução, na parte que respeita ao aval tivesse sido feita pelo executado.

I. Logo, o valor probatório da perícia limita-se a uma mera probabilidade que admite, implicitamente, o seu contrário.

J. O douto acórdão recorrido considera que com base na perícia devia ter sido dado como provado que a assinatura era do executado e que, portanto, ele estava obrigado a fazer uma contra-prova.

K. O executado vem dizer que a prova de um documento particular compete sempre ao apresentante do documento.

L. O valor probatório das perícias é fixado livremente pelo Tribunal, segundo o disposto no artigo 389º, do Código Civil.

M. A primeira instância, tendo conhecimento do relatório pericial, considerou que o exequente não logrou provar que a assinatura aposta na parte que diz respeito ao aval, da letra cambiária, havia sido aposta pelo executado.

N. Mas terá que se considerar provado que, como consta do processo, o executado nunca dá avales pessoais e a exequente tinha conhecimento disso à data da assinatura do contrato.

O. Logo, o documento particular em causa não vale como título executivo.

P. E o facto de a exequente nunca ter contactado o executado, em 7 anos, apesar deste nunca ter mudado de telefones, morada nem e-mail, indicia que a assinatura não constava originalmente no aval. Se constasse, com certeza que a exequente teria executado a letra logo em 2005.

Q. Acresce que a exequente não apresentou nenhuma testemunha que tivesse assistido aos factos. A testemunha presencial da assinatura do contrato, indicada pela exequente, faltou duas vezes ao julgamento, o que também indicia claramente que o aval não constava originalmente no documento.

R. Concluindo, a inexistência de prova da assinatura do aval, pericial ou testemunhal e os indícios apresentados em tribunal, demonstraram claramente que a assinatura aposta no local destinado ao aval não foi realizado pelo executado, tendo a 1.ª instância considerado, e bem, que não havia sido feita prova de que a assinatura na parte da letra que diz respeito ao aval, tivesse sido efectuada pelo punho do executado, sendo que os factos apresentados em tribunal indiciam sim, a falsificação.

S. Deve ser revogado o acórdão recorrido, julgando-se procedente a oposição com a consequente extinção da execução;

T. O douto acórdão recorrido violou o disposto nos artigos art.º 615.º, n.º 1, d) do CPC e os 342.º, 346º, 349º, 362º, 363º, nºs 1 e 2, 374º, nºs 1 e 2, do Código Civil.

A exequente ofereceu contra-alegação a pugnar pelo insucesso da revista.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação de facto

A factualidade dada como provada, nas instâncias, é a seguinte:

1. A exequente é portadora de uma letra no valor de 32.500 €, subscrita pela executada, emitida em 02/10/2003 e com vencimento em 30/04/2010, a qual se mostra junta, por cópia, a fls. 5 da execução e cujo original se encontra junta entre a fls. 140 e a fls. 141 dos presentes autos.

2. Entre a exequente e a executada foi celebrado o contrato que se mostra junto a fls. 26 e 27 dos presentes autos do qual consta, entre o mais, o seguinte:

Clª 04 – A título de adiantamento condicional de desconto/bonificação referido em 2, entrega nesta data a 1ª outorgante à representada dos 2ºs outorgantes, a título gratuito, 15.000€ para investimento directo, em mercadorias e bens de equipamento, no seu estabelecimento comercial […].

Clª 05: - Com vista a promover e incrementar a venda dos seus cafés no estabelecimento comercial da representada dos 2ºs outorgantes, a 1º outorgante empresta, nesta data, à representada dos 2ºs outorgantes a título gratuito 17.500€.

[…]

Clª 12: Prevenindo-se a hipótese de virem a ser devidas – por efeito de resolução/anulação do contrato, a restituição das quantias ora adiantada e emprestada – nos termos descritos no número seguinte – entregam nesta data, à exequente, a letra n.º tal, no valor de 32.500€, aceite pela representada dos segundos outorgantes e avalizada pelos segundos outorgantes, autorizando desde já, que esta venha a completar o seu preenchimento e a apor-lhe, para tanto, data de emissão posterior à da resolução/anulação do contrato.

3. Na data do seu vencimento a letra em causa não foi paga, nem posteriormente, embora para tanto tivesse sido apresentada à sua aceitante.

4. A letra dada à execução foi entregue à exequente assinada pela executada para garantir o pagamento das obrigações decorrentes do contrato a que se alude em 2.

5. O embargante apôs a sua assinatura no verso da letra, na vertical, debaixo da frase manuscrita: “Por aval à firma subscritora”. (aditado pela Relação).

III – Fundamentação de direito

A apreciação e decisão do presente recurso de revista, delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente (art.ºs 635º, n.º 4 , e 639º, n.º 1, do Cód. de Proc. Civil[1]), passam pela análise e resolução das seguintes questões jurídicas por ele colocadas a este tribunal:

- nulidade do acórdão recorrido; e

- preenchimento abusivo da letra dada à execução;

Debrucemo-nos, então, separadamente sobre cada uma das enunciadas questões.

1 - Nulidade do acórdão recorrido

O Recorrente assaca ao acórdão recorrido excesso de pronúncia ou pronúncia indevida, causa de nulidade prevista no art.º 615º, n.º 1, alínea d) – segundo segmento - do Cód. Proc. Civil, aplicável ao acórdão da Relação ex vi do art.º 666º do mesmo código. Esse vício inquinador do acórdão sob censura derivaria, segundo o Recorrente, da circunstância de nele, «a fls. 9, se aludir ao teor do relatório pericial, matéria que não fora mencionada pelas partes, na sentença e muito menos no recurso apresentado».

A razão não está claramente do lado do Recorrente.

Com efeito, na apelação que levou à Relação do Porto, a ora Recorrida impugnou a decisão relativa à matéria de facto, visando a sua alteração no tocante à autoria da assinatura aposta no local destinado ao aval da letra de câmbio dada à execução, tendo convocado, para esse efeito, o valor probatório da perícia realizada e a inconsistência do depoimento da testemunha em que a 1ª instância se baseara para não considerar provado que aquela assinatura era do punho do Recorrente. Essa era a questão central da apelação e a Relação tinha o dever (art.º 608º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil) de a resolver, solucionando-a com a modificação da decisão da matéria de facto que considerou justificar-se em face da valoração da prova produzida.

É óbvio que, ao proceder desse modo, a Relação manteve-se bem dentro dos seus limites cognitivos demarcados pelo objecto do recurso e, nessa medida, ao invés do que afirma o Recorrente, não ocorreu excesso de pronúncia, apresentando-se de todo destituída de fundamento a arguição da nulidade do acórdão recorrido.

Improcede, pois, tudo o que, a tal propósito, o Recorrente argumentou e concluiu ex adversu sobre a invocada causa de nulidade do acórdão recorrido.

2 – Preenchimento abusivo da letra dada à execução

O título executivo consiste, como se sabe, num documento que faz prova documental simples de um acto ou de um negócio jurídico constitutivo ou certificativo de uma relação jurídica de natureza real ou obrigacional e que, só por si, permite que o credor desencadeie a actividade jurisdicional visando a realização coactiva da prestação que lhe é devida. Pode dizer-se que «é o meio legal de demonstração da existência do direito do exequente, ou que estabelece, de forma ilidível, a existência daquele direito, cujo lastro corpóreo ou material é um documento que a lei permite que sirva de base à execução»[2].

Trata-se, pois, de um documento escrito constitutivo ou certificativo de obrigações que, mercê da força probatória especial de que está munido, torna dispensável o processo declaratório para certificar a existência do direito do portador[3] e a que é conferida força executiva, por ele se determinando o fim e os limites da acção executiva (art.º 703º, nº 1, do Cód. Proc. Civil).

No caso, o título em que se funda a execução é, como decorre dos factos apurados antes descritos, sob os n.ºs 1 e 2, uma letra de câmbio subscrita, entre outros, pelo Recorrente, na qualidade de avalista, situação muito corrente no tráfico comercial e que corresponde à denominada letra-caução que é entregue ao credor, pelo menos com uma assinatura nela aposta[4], e que fica em poder do mesmo, a quem é atribuída a faculdade de a preencher, em caso de qualquer incumprimento da obrigação caucionada, fixando-lhe a data do vencimento.

Esta modalidade de título cambiário, legalmente reconhecida (art.º 10º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças – LULL) reconduz-se à ideia genérica de garantia[5] de responsabilidades futuras, supondo, normalmente, uma relação fundamental que comporta um direito de crédito ainda não inteiramente definido, porque falta determinar, por exemplo, data de vencimento ou o respectivo montante, e aparece como expediente para fazer face ao espectro do incumprimento de prestações pecuniárias.

Associado a este tipo de título cambiário (letra), de formação sucessiva, ou seja aquele a que falta algum dos requisitos indicados no art.º 1º da LULL, mas que contém, pelo menos, uma assinatura aposta, com o intuito de contrair uma obrigação cambiária, está o chamado acordo ou pacto de preenchimento, que permite distingui-lo do titulo cambiário incompleto, caracterizando-se este por não existir qualquer acordo ou pacto para o respectivo preenchimento[6].

O acordo ou pacto de preenchimento é uma «convenção extracartular, informal e não sujeita a forma[7], em que as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a data do pagamento, etc."[8]. O subsequente preenchimento do título, a ocorrer antes sempre da sua apresentação a pagamento, deve ser feito, naturalmente, de harmonia com o convencionado, sob pena de violação ou desrespeito do pacto, gerador do que se designa por preenchimento abusivo[9].

No caso, como já se disse, foi dada à execução uma letra subscrita, entre outros, pelo Recorrente, na qualidade de avalista, que interveio igualmente no pacto de preenchimento, como se alcança dos pontos 2 a 5, do elenco factual provado, nada obstando a que aquele invoque a sua desconformidade, discrepância ou contrariedade relativamente ao acordo de preenchimento, também designadas por preenchimento abusivo e abuso de preenchimento[10]. É que, como ensina Ferrer Correia[11]«nas relações imediatas…nas quais os sujeitos cambiários o são concomitantemente de convenções extracartulares, tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta. Fica sujeito às excepções que nessas relações pessoais se fundamentem».

Aliás, este entendimento é também acolhido prevalentemente pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça[12], como o ilustra, por exemplo, o acórdão de 23.9.2010 – Proc. 4688-B/2000.L1.S1 – também acessível na referida base de dados, com o seguinte sumário: “1. Em execução fundada em título de crédito….é, porém, lícito ao executado/embargante opor ao exequente/embargado excepções fundadas na relação causal, desde que nos situemos no plano das relações imediatas;2. Sendo a execução instaurada pelo beneficiário de letra subscrita e avalizada em branco, e tendo a avalista intervindo na celebração do pacto de preenchimento, tal como o sacador, é-lhe possível opor ao beneficiário a excepção material de preenchimento abusivo do título, cabendo-lhe, porém, o ónus da prova dos factos constitutivos dessa excepção”.

Definido que ao Recorrente assiste o direito de invocar tal excepção, não valendo, por isso, as regras da abstracção, literalidade e autonomia, vejamos se, como sustenta, ocorreu o suposto preenchimento abusivo da letra. A tal propósito, importa ter presente o teor do pacto de preenchimento (que assumiu forma escrita, como se vê das várias cláusulas do contrato aludido em 2 do elenco factual provado) e que se encontra associado à emissão e à entrega da letra à exequente (e ao posterior preenchimento desta, no tocante à data de vencimento). Referimo-nos, como é óbvio, à “cláusula 05” inserida nesse contrato, na qual é definido o montante do empréstimo adiantado à sociedade executada e de que o Recorrente era representante, e “à cláusula 12” a estabelecer que «prevenindo-se a hipótese de virem a ser devidas – por efeito de resolução/anulação do contrato, a restituição das quantias ora adiantada e emprestada – nos termos descritos no número seguinte – entregam nesta data, à exequente, a letra n.º tal, no valor de 32.500€, aceite pela representada dos segundos outorgantes e avalizada pelos segundos outorgantes, autorizando desde já, que esta venha a completar o seu preenchimento e a apor-lhe, para tanto, data de emissão posterior à da resolução/anulação do contrato».

Perante a clareza do pacto de preenchimento, em conjugação com a restante matéria de facto provada, em especial com o contrato que lhe está associado e o não pagamento da letra de câmbio que lhe subjaz, é difícil descortinar que mais poderá ser dito nesta matéria, para além do que consta do acórdão recorrido, sobre a evidência de o preenchimento ter respeitado o acordo efectivamente realizado entre a exequente e os executados.

Para se eximir à responsabilidade assumida através do aval, o Recorrente traz à liça também o ónus da prova sobre a autoria da assinatura que lhe é atribuída na letra de câmbio que serve de título à execução. Nesse ponto, não há dúvidas que o ónus recai sobre a exequente, pois foi ela que apresentou o documento (art.º 374º, n.º 2, do Cód. Civil). No entanto, esse ónus probatório mostra-se cumprido com total êxito, na medida em que na sequência da impugnação factual feita, no âmbito da apelação, logrou que fosse dado como provado o ponto 5. do elenco factual, cujo teor confirma que foi o Recorrente quem «apôs a sua assinatura no verso da letra, na vertical, debaixo da frase manuscrita: “Por aval à firma subscritora».

O problema suscitado pelo Recorrente não respeita verdadeiramente ao ónus da prova, incidindo antes sobre a valoração probatória conferida pela Relação à perícia realizada, para concluir que a questionada assinatura é do seu punho. Sucede, porém, que esse domínio situa-se fora da órbita de intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, pois, como se sabe, a competência para apurar a matéria de facto relevante para a solução do litígio radica nas instâncias, cabendo ao Supremo Tribunal de Justiça, salvo situações de excepção legalmente previstas, conhecer apenas da matéria de direito, aplicando o regime ou enquadramento jurídico adequado aos factos já anterior e definitivamente fixados (cfr. art.º 46.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário – Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto - e art.ºs 662º, n.º 4, 674º, n.ºs 1 a 3, e 682º, n.ºs 1 e 2, do Cód. de Proc. Civil).

Na fixação dos factos, a Relação tem a derradeira palavra, através do exercício dos poderes que lhe são conferidos pelos n.ºs 1 e 2 do art.º 662.º do Cód. de Proc. Civil, acrescendo que da decisão proferida nesse particular pela Relação não cabe sequer recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (art.º 662º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil). A intervenção deste, nesse campo, é residual, restringindo-se, afinal, a fiscalizar a observância das regras de direito probatório material, a determinar a ampliação da matéria de facto ou o suprimento de contradições sobre a mesma existentes.

Aliás, o art.º 674º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil, é bem claro, quando a tal respeito, estabelece que «o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova».

No caso, os meios probatórios utilizados pela Relação, para dar como assente a autoria da assinatura, confinaram-se à perícia e ao depoimento testemunhal, cuja força probatória é apreciada e fixada livremente pelo tribunal (art.ºs 389º e 396º do Cód. Civil), não integrando, assim, as excepções previstas na parte final n.º 3 do art.º 674º do Cód. Proc. Civil, relativamente às quais é admissível a sindicância do Supremo Tribunal de Justiça.

Acentue-se que o Recorrente não invocou qualquer inobservância dessas regras probatórias e, focando-nos na alteração da matéria de facto realizada pela Relação, não vemos que tal tenha sucedido. Pelo contrário, como se alcança do teor do acórdão recorrido, mais propriamente de folhas 282 a 286 verso, as provas foram examinadas pela Relação, que motivou a sua decisão de forma coerente e transparente, de acordo com o princípio da convicção racional, consagrado pelo art.º 607º, n.º 5, do Cód. Proc. Civil, que combina o sistema da livre apreciação ou do íntimo convencimento com o sistema da prova positiva, sendo certo que nesse domínio (da livre convicção do julgador) está vedado ao Supremo exercer censura e sindicar a respectiva substância (art.º 662º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil).

Deste modo, por não ocorrer motivo para interferir no juízo emitido pela Relação e não se verificar qualquer violação das regras de direito probatório, soçobra também, quanto a este ponto, o que em contrário o Recorrente alegou e concluiu.

Nesta conformidade, improcede toda a retórica argumentativa arquitectada pelo Recorrente, a quem não assiste razão para se insurgir contra o decidido pela Relação, que não merece os reparos que lhe aponta, nem viola as disposições legais que indica.


*


3 - Pode, assim, concluir-se, em síntese, que:

1 – Não enferma de excesso de pronúncia o acórdão da Relação que, em face da valoração da prova produzida e indicada pela apelante, alterou a matéria de facto, no tocante à autoria da assinatura aposta na letra de câmbio dada à execução.

2 – O título executivo é um documento escrito constitutivo ou certificativo de obrigações que, mercê da força probatória especial de que está munido, torna dispensável o processo declaratório para certificar a existência do direito do portador e a que é conferida força executiva, por ele se determinando o fim e os limites da acção executiva (art.º 703º, nº 1, do Cód. Proc. Civil).

3 - O acordo ou pacto de preenchimento é uma «convenção extracartular, informal e não sujeita a forma, em que as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a data do pagamento, etc.».

4 - O subsequente preenchimento do título, a ocorrer antes sempre da sua apresentação a pagamento, deve ser feito, naturalmente, de harmonia com o convencionado, sob pena de violação ou desrespeito do pacto, gerador do que se designa por preenchimento abusivo.

5 – A aposição da data de vencimento, tal como fora acordado no pacto de preenchimento, não constitui preenchimento abusivo.

6 - Na fixação dos factos, a Relação tem a derradeira palavra, através do exercício dos poderes que lhe são conferidos pelos n.ºs 1 e 2 do art.º 662.º do Cód. de Proc. Civil, acrescendo que da decisão proferida nesse particular pela Relação não cabe sequer recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (art.º 662º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil).

7 - A intervenção deste, nesse campo, é residual, restringindo-se, afinal, a fiscalizar a observância das regras de direito probatório material.

8 – Socorrendo-se a Relação, para dar como assente a autoria da assinatura na letra de câmbio, à perícia e ao depoimento testemunhal, cuja força probatória é apreciada e fixada livremente pelo tribunal (art.ºs 389º e 396º do Cód. Civil), não é admissível a sindicância do Supremo Tribunal de Justiça, nesse domínio, por não integrar as excepções previstas na parte final n.º 3 do art.º 674º do Cód. Proc. Civil.

IV – Decisão

Nos termos expostos, decide-se negar a revista e confirmar consequentemente o acórdão recorrido.

Custas pelo Recorrente.


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Lisboa, 24 de Novembro de 2016


António Piçarra (relator)

Fernanda Isabel Pereira

Olindo Geraldes

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[1] Na versão aprovada pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, uma vez que o recurso tem por objecto decisão proferida já depois de 01 de Setembro de 2013 e o processo é posterior a 01 de Janeiro de 2008 (cfr. os seus art.ºs 5º, n.º 1, 7º, n.º 1, e 8º).
[2] Cfr., a este propósito, J.P. Remédio Marques, in Curso de Processo Executivo Comum, à face do código revisto, 1ª edição, págs. 55/56, e José Lebre de Freitas, A Acção Executiva Depois da Reforma, 4ª edição, pág. 33, com referência à anterior versão do Cód. Proc. Civil, mas ainda plenamente actualizados.
[3] Cfr. Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 6ª edição, pág. 19, Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 1985, pág. 76, e Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, págs. 63/64.
[4] Ferrer Correia, “Lições de Direito Comercial”, vol. III, 1966, pág. 124, Paulo Sendim, “Letra de Câmbio” - L.U. de Genebra, vol. I, Universidade Católica Portuguesa, Livraria Almedina, Coimbra, n.º 44, pág. 176,  e ss.
[5] No sentido amplo de reforço ou segurança da posição creditória, como esclarece Carolina Cunha, in Letras e Livranças, Paradigmas actuais, Almedina, 2012, pág. 555.
[6] Cfr, a propósito desta distinção, Antonino Vazquez Bonome, Tratado de Derecho Cambiário, tercera edition, Dykinson, 1997, pág. 167, Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, 1966, Volume III, pág. 124, Pinto Furtado, Títulos de Crédito, Almedina, 2000, págs. 143/144, Oliveira Ascensão, Direito Comercial, Volume III, Títulos de Crédito, 1992, pág. 113, e Conde Rodrigues, A Letra em Branco, AAFDL, 1989, pág. 42.
[7] Mas em que a sua redução a escrito é bastante aconselhável, por facilitar a sua prova.
[8] Cfr, neste sentido, Pedro Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, Volume I, 2011, Almedina, pág. 329, Miguel JA Pupo Correia, Direito Comercial, 10ª edição, Ediforum, Lisboa, 2007, pág. 479, Abel Pereira Delgado, LULL, Anotada, 4ª edição, 1980, pág. 63, e acórdão do STJ, de 3 de Maio de 2005 – 05A1086, in www.dgsi.pt.
[9] Cfr, neste sentido, Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, 1966, Volume III, pág. 129, Pedro Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, Volume I, 2011, Almedina, pág. 329, Miguel JA Pupo Correia, Direito Comercial, 10ª edição, Ediforum, Lisboa, 2007, pág. 479, Conde Rodrigues, A Letra em Branco, AAFDL, 1989, pág. 61.
[10]Cfr., sobre a propriedade do uso destas expressões, Carolina Cunha, Letras e Livranças, Paradigmas actuais, Almedina, 2012, pág. 577.
[11]In Lições de Direito Comercial, 1966, Volume III, págs. 68/69.
[12]Cfr., “inter alia”, os acórdãos do STJ de 6 de Março de 2007 – 07 A205 – de 14 de Dezembro de 2006 – 06 A2589, e de 22.2.2011, Proc. 31/05-4TBVVD-B.G1.S1, acessíveis através de www.dgsi.pt.