Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1476/15.7T8PNF.P1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: LEONOR CRUZ RODRIGUES
Descritores: EXCESSO DE PRONÚNCIA
ERRO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
DECISÃO PENAL CONDENATÓRIA
TRIBUNAL ESTRANGEIRO
MEIOS DE PROVA
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 03/17/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

I – Os erros que eventualmente afectem a decisão em matéria de facto não configuram nenhum dos vícios (formais) integradores de nulidade de sentença, podendo antes, eventualmente, configurar erro de julgamento, estando, por isso, fora do conceito legal de vícios da sentença previstos no artigo 615º do CPC.

II – Não incorre na nulidade de excesso de pronúncia o acórdão que, na sequência de recurso da decisão em matéria de facto, altera essa decisão, apreciando a prova de acordo e ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova.

III - O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa escapa ao âmbito dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça (artigos 674º, nº 3, e 682º, nº 2, do Código de Processo Civil), estando-lhe vedado sindicar a convicção das instâncias pautada pelas regras da experiência e resultante de um processo intelectual e racional sobre as provas submetidas à apreciação do julgador.

IV - São excepções a esta regra a existência de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (prova vinculada ou tarifada).

V – A decisão penal condenatória proferida por tribunal estrangeiro não revista em Portugal consubstancia um meio de prova sujeito à livre apreciação dos tribunais portugueses perante os quais for invocada, no caso do Tribunal do Trabalho (artºs 978º, nº 2, do CPC e 234, nº 3, do CPP).

Decisão Texto Integral:


Proc.º nº 1476/15.7T8PNF.P1.S1

4ª Secção

LCR/PBD/JG

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I

1 - Relatório 

1. No Juízo do Trabalho ... do Tribunal Judicial da Comarca ... AA, viúva do falecido sinistrado BB instaurou acção declarativa com processo especial emergente de acidente de trabalho contra “LUSITÂNIA – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.” e “VARGA – CONSTRUÇÕES, Lda.” pedindo a condenação destas, na medida das respectivas responsabilidades, a pagar-lhe:

a) a pensão anual, vitalícia e actualizável, de €7.560,00;

b) subsídio por morte, no valor de €5.533,70;

c) juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos, sobre todas as prestações e até integral e definitivo pagamento.

Mais pediu que:

d) os valores peticionados deverão ser objecto do agravamento legal estipulado, caso se venha a provar que o acidente se ficou a dever à violação das regras de segurança, higiene e saúde no trabalho, por parte da Ré entidade patronal.

e) na hipótese de se vir a provar violação de regras de segurança, deverá a Ré entidade Patronal, a acrescer às quantias acima peticionadas, ser condenada a pagar à Autora a quantia de €70.000, a título de perda do direito à vida, privação sexual, de danos morais e de danos da própria vítima.

Para tanto alegou, em síntese, que é viúva do sinistrado, que faleceu aos 21.05.2015, vítima de um acidente de trabalho, quando exercia as suas funções de carpinteiro, ocorrido na ... nesse dia ao serviço da 2ª Ré, e que tem informação de que o sinistro ocorreu quando o Sr. BB se encontrava a trabalhar ao nível do solo, a serrar madeira, e foi atingido por umas vigas de ferro que se soltaram de um camião-grua que se encontrava a descarregar, pelo que, a ser assim, o acidente ficou a dever-se à deficiente amarração das vigas e/ou à sua desadequada forma de as movimentar, quando o camião-grua se encontrava a laborar, designadamente a descarregá-las, o que consubstancia violação das normas de segurança.

2. As Rés contestaram, tendo a Ré empregadora “VARGA – CONSTRUÇÕES, Lda.” aceite a ocorrência do acidente e as suas consequências, mas declinando a sua responsabilidade, sustentando que à data do acidente tinha a sua responsabilidade infortunística integralmente transferida para a Ré seguradora, e que nada foi invocado na petição nem resulta dos autos qualquer violação das normas ou regras de segurança, e que o acidente não ocorreu nas circunstâncias descritas pela A.

Por seu turno, na sua contestação a Ré “LUSITÂNIA – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.” aceitou a existência do acidente de trabalho mas concluiu que o mesmo ocorreu por manifesta e grave violação das condições de segurança na prestação do trabalho.

3. Realizada a audiência de discussão e julgamento, em 30.12.2019 foi proferida sentença que finalizou com o seguinte dispositivo:

“Nesta conformidade, julgo a presente ação parcialmente procedente por provada e, em consequência:

“I- Absolvo a Ré “Varga - Construções, Lda.” do pedido.

II- Condeno a Ré “Lusitânia, Cª de Seguros, S.A.” a pagar à Autora AA:
2.1- a quantia de 5.533,70 euros, a título de subsídio por morte, acrescida de juros de mora, à taxa de 4% ao ano, a partir de 22.05.2015 até integral e efetivo pagamento;
2.2- a pensão anual e atualizável de 4.510,00 euros, devida a partir de 22.05.2015, a ser paga mensalmente, até ao 3º dia de cada mês e no seu domicílio, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual, bem como o subsídio de férias e de natal, no valor de 1/14 da pensão anual, a serem pagos nos meses de junho e novembro de cada ano, respetivamente, ordenando que às prestações já vencidas se deduza as prestações já pagas àquela Autora a título de pensão provisória, acrescendo sobre esse diferencial em relação às prestações já vencidas, juros de mora, à taxa de 4% ao ano até integral e efetivo pagamento;

III - Absolvo a Ré “Lusitânia, Cª de Seguros, S.A.” do restante pedido.

Custas pela Ré seguradora e pela Autora na proporção do respetivo decaimento, que se fixa em 2% para a Autora e em 98% para a Ré “Lusitânia, Cª de Seguros, S.A.,”, fixando a taxa de justiça de acordo com o disposto no art. 6º, n.º 1 do RCP e da tabela I-A a ele anexa.
Nos termos do disposto no artigo 120º, n.º 1 do Cód. Proc. Trab. fixo o valor da ação em €69.408,83 (14.163 x 4.51,00€ + 5.533,70€).”

4. Inconformada com a decisão dela apelou a Ré “LUSITÂNIA – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.”, impugnando a decisão em matéria de facto e de direito, tendo a autora aderido ao recurso.

5. Conhecendo do recurso o Tribunal da Relação, por acórdão de 23.6.2021, tendo procedido à alteração da matéria de facto provada, julgou o recurso procedente, decidindo nos seguintes termos:  

“A. Condenar a Ré Varga Construções, Unipessoal, Ldª, a pagar à A., AA, na residência desta:

a.1. Com efeitos a partir de 22.05.2015, a pensão anual e vitalícia de €15.033,34, actualizável, em duodécimos mensais, correspondendo cada prestação a 1/14, acrescida de subsídios de férias e de Natal, cada um no valor de 1/14 da pensão anual.

A mencionada pensão é actualizada nos seguintes termos: actualização de 0,4% em por força da Portaria nº 162/2016, de 09.06 - € 15.093,47; actualização de 0,5% em 2017 por força da Portaria nº 97/2017, de  07.03  -  € 15.168,94;  actualização de 1,8% em 2018 por  força  da  Portaria  nº  22/2018,  de  18.01  -  €15.441,98;  actualização  de  1,60%  em 2019 por força da Portaria 23/2019- €15.689,05; e actualização de 0,70% em 2020, por força da Portaria 278/2020, de 04.12 - €15.798,87.

Às quantias já vencidas e vincendas devidas a título de pensão e juros de mora, serão descontadas as quantias pagas, a esses mesmos títulos, pela Ré Seguradora à A. no âmbito quer da pensão provisória, quer nos termos do art. 79º, nº 3, da Lei 98/2009, de 04.09, acrescendo sobre o diferencial, juros de mora, à taxa legal, desde a data do vencimento de cada uma das prestações em dívida até efectivo e integral pagamento.

a.2. A quantia de €5.533,70 a título de subsídio por morte, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde 22.05.2015 até efectivo e integral pagamento, sobre o que deverá ser descontado o que, a esse título, venha a ser satisfeito pela Ré Seguradora nos termos do art. 79º Lei 98/2009, de 04.09.

a.3. A quantia global de €60.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais, dos quais €20.000,00 pelo dano decorrente da morte do sinistrado e €40.000,00 pelos danos não patrimoniais sofridos pela A.

B. Condenar a Ré, Lusitânia Companhia de Seguros, SA, nos termos do art. 79º, nº 3, da Lei 98/2009, de 04.09 e sem prejuízo do seu direito de regresso sobre a Ré Varga Construções, Unipessoal, Ldª , a satisfazer à Autora, na sua residência, o pagamento:

b.1. Com efeitos a partir de 22.05.2015, da pensão anual e vitalícia, actualizável, correspondente a 30% da retribuição do sinistrado até perfazer a idade da reforma por velhice e a 40% a partir daquela idade ou da verificação de deficiência ou doença crónica que afecte sensivelmente a sua capacidade de trabalho, pensão essa no montante de €4.510,00 euros, em duodécimos mensais, correspondendo cada prestação a 1/14, acrescida de subsídios de férias e de Natal, cada um no valor de 1/14 da pensão anual, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data do vencimento de cada uma das prestações até efectivo e integral pagamento.

A mencionada pensão é actualizada nos seguintes termos:  actualização de 0,4% em 2016, por  força  da  Portaria  nº  162/2016,  de  09.06  -  €  4.528,04;  actualização  de  0,5%  em 2017,por força da Portaria nº 97/2017, de 07.03 - € 4.550,68; actualização de 1,8% em 2018, por força da Portaria nº 22/2018, de 18.01 - € 4.632,59, e actualização em 1,60 % em 2019 por força da Portaria 23/2019- €4.706,71, a que acresce a actualização de 0,70% em 2020 por força da Portaria 278/2020, de 04.12 - €4.739,66.
Às pensões já vencidas serão deduzidas as pensões provisórias, e respectivos juros de mora, que a Ré Seguradora já haja pago à Autora nos termos da decisão da 1ª instância de 10.05.2018.
b.2. A quantia de €5.533,70 a título de subsídio por morte, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde 22.05.2015 até efectivo e integral pagamento.
C.    Condenar a Ré, Varga Construções, Unipessoal, Ldª a reembolsar a Ré, Lusitânia Companhia de Seguros, SA, de todas as quantias por esta pagas à A. a título de pensão, subsídio de morte e respectivos juros de mora, quer no âmbito da pensão provisória, quer no âmbito do disposto no art. 79º, nº 3, da Lei 98/2009, de 04.09, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a data do pagamento à A., pela Ré Seguradora, das mesmas, a liquidar em incidente de liquidação nos termos dos arts. 609º, nº 2, e 358º, nº 2, do CPC/2013.
D.  Até ao trânsito em julgado do presente acórdão a pensão provisória cujo pagamento foi determinado por decisão da 1ª instância de 10.05.2018 deverá continuar a ser paga pela Ré Seguradora”.
6. É agora a Ré “VARGA CONSTRUÇÕES, UNIPESSOAL, Lda” que, inconformada, interpõe o presente recurso de revista, cuja alegação remata com as seguintes conclusões:
“1. Vem o presente recurso interposto do douto acórdão, proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, nos autos à margem melhor id., o qual condenou a Ré aqui recorrente –- “Varga Construções, Unipessoal, Lda”, - tendo para o efeito dado como provada a matéria de facto que tinha sido dada como não provada na douta sentença proferida pela 1.ª Instância, sentença onde a Recorrente foi absolvida dos pedidos contra si apresentados.
2. Face à absolvição da Ré, aqui recorrente, “Varga Construções, Unipessoal, Lda” – a Ré “Lusitânia, de Seguros, S.A”, intentou Recurso de Apelação para o Venerando Tribunal da Relação do Porto – recurso que foi acompanhado pela Autora - pedindo a revogação da decisão da 1.ª Instância e a correspetiva condenação da Ré, aqui recorrente.
3. Assim, o presente recurso incinde sobre o teor do douto acórdão, proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, nos autos à margem melhor id., o qual revogou a absolvição da Ré, aqui recorrente, “Varga Construções, Unipessoal, Lda”, tendo, para o efeito, julgado procedente o Recurso de Apelação instaurado pela Autora, AA, dando como provados vários factos que tinham sido dados como não provados pela 1.ª Instância, factos esses que permitiram condenar, a final, a Ré aqui recorrente.
4. Ora, salvo o devido respeito, que é muito, a recorrente não se conforma com aquela douta decisão que considerou procedente o Recurso de Apelação, apresentado pela Autora no Venerando Tribunal da Relação do Porto.
5. E, não se conforma, porquanto do teor da douta fundamentação, constante do douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação ..., resulta que não foi bem analisada, apreciada e decidida a questão seguinte:
se a decisão contraordenacional condenatória, proferida, no dia 17 de Fevereiro de 2018, pelo Tribunal ..., ..., que condenou em coima a Ré, aqui recorrente, faz, ou não, prova plena sobre os factos que foram dados como provados, nos articulados constantes das alíneas N); O) e Q), do douto acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, ora recorrido (factos esses que tinham sido dados como não provados na douta sentença proferida pela 1.ª Instância), uma vez que a fundamentação que permitiu dar tais factos como provados baseou-se apenas numa decisão proferida por um tribunal estrangeiro, decisão essa que não foi revista em Portugal.
6. Da análise da fundamentação do douto Acórdão, ora recorrido, constata-se que o Tribunal ad quem se limitou a declarar que os factos dados como provados nos nºs 19º, 20º, 21º e 22º, e o facto acrescentado e dado como provado no articulado com o n.º 23º, factos que a 1ª instância tinha dado como não provados, basearam-se exclusivamente no teor dos documentos apresentados pela Ré, ali recorrente, “Lusitânia Companhia de Seguros, SA”,
7. ou seja, apesar de resultar do teor das declarações das testemunhas CC e DD, invocados em tal fundamentação, que as mesmas nada sabiam, nem nada viram, nem sequer assistiram à prática dos factos como muito bem se sublinhou na douta sentença da 1.ª Instância - o Tribunal da Relação do Porto considerou e valorou aqueles depoimentos e conjugou-os com os referidos documentos - leia-se cópias da decisão contraordenacional proferida pelo ..., decisão não reconhecida pelos Tribunais portugueses - para poder dar como provados os aludidos factos com os n.ºs 19º; 20º; 21º e 22º, que tinham sido dados como não provados na 1.ª Instância, acrescentando ainda aos factos provados o articulado com o n.º 23º, exclusivamente com base na referida decisão proferida na ....
8. Concluindo, o Tribunal ad quem, ora recorrido, ao tomar conhecimento e ao valorar, para efeitos de prova, cópias de uma condenação contraordenacional, proferida por um ..., sem que tal decisão estivesse devidamente reconhecida por um Tribunal Português, incorreu num claro excesso de pronúncia e consequentemente na nulidade estatuída na alínea d), do n.º 1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil.
9. Sendo, assim, é imperativo concluir que o douto acórdão, ora recorrido, proferido pelo Tribunal ad quem, ao ter valorado e tido em conta, tais elementos de prova (documental e testemunhal), nos termos supra referidos, relativa à existência, ou não, das aludidas medidas de segurança, na obra onde ocorreu o sinistro objeto dos presentes autos, dando como provado a sua inexistência, apenas com base na citada sentença proferida pelo ... (decisão não reconhecida por nenhum tribunal Português), incorreu num claro excesso de pronúncia e consequentemente na nulidade estatuída na alínea d), do n.º 1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil.
10. Consubstanciando-se tal vício, estatuído na al. d), do n.º 1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil, quando o juiz conhecer de questões que não podia conhecer, isto é, o Tribunal da Relação do Porto não podia ter dado como provados os factos constantes dos Pontos com os n.ºs N); O); P) e Q), da aludida sentença ..., sem que tal decisão estrangeira fosse reconhecida pelos Tribunais Portugueses, acrescentando-os aos factos dados como provados na sentença proferida pela 1.ª Instância.
11. Ao fazê-lo, o Tribunal da Relação do Porto conheceu uma questão relativa ao objeto do processo que não podia ter conhecido, tomando assim abusivamente conhecimento de factos que depois serviram para sustentar a decisão de condenação da Ré, aqui recorrente, revogando a sua absolvição em sede de 1.ª Instância, decisão que constitui a referida nulidade, estatuída na al. d), do n.º 1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil – (Cfr., nesta matéria relativa ao excesso de pronúncia, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Proc.n.º 202/08.1TBAC-B, C1- in www.dgsi.pt; e o que defende o Ilustre Prof. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in “Código de Processo Civil Anotado”, volume 2º, 3ª Edição Almedina, a pág 735 a 739).
12. A nulidade da sentença (por omissão ou excesso de pronúncia) há-de, assim, resultar da violação do dever prescrito no n.º 2 do referido artigo 608º, do Código de Processo Civil, do qual resulta que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
13. Face a tais doutos ensinamentos não existem dúvidas de que o Tribunal ad quem incorreu na invocada nulidade de excesso de pronúncia, ao ter usado para fundamentar a sua decisão, ora recorrida, dando como provados factos constantes na citada douta sentença proferida pelo ..., sem que para o efeito tal decisão tivesse sido previamente reconhecida pelos Tribunais Portugueses, assim incorrendo de forma clara num excesso de pronúncia, a qual e invoca para todos os legais efeitos.
14. Por outro lado, cumpre, ainda, invocar a douta fundamentação constante da douta sentença proferida pela 1.ª Instância, quanto à fundamentação referentes aos factos dados como não provados em tal douto aresto, fundamentação com a qual a Ré, aqui recorrente, concorda na íntegra, motivo pelo qual se passa a transcrever o seu teor de seguida:
(…)
2.3. Motivação:
A convicção do Tribunal quanto à determinação da matéria de facto provada atrás descrita, fundou-se na análise e apreciação crítica, à luz das regras da lógica e da experiência comum, da globalidade da prova produzida, analisada, examinada e contraditada em audiência de discussão e julgamento, designadamente do recibo de vencimento de fls.307 v, onde consta o vencimento do sinistrado, contrato de trabalho a fls. 98, declaração de remuneração a fls. 308, registos fotográficos de fls. 515 e s, visita de inspeção de fls. 528 e s; decisão do Tribunal ..., a fls. 1273 e s, de onde resulta que a Ré “Varga” foi condenada a uma multa, por não ter assegurado a prevenção de quedas em altura, acompanhados de equipamentos adequados e protegidos das condições climatéricas, relatório de averiguação a fls. 309 e s. e auto de não conciliação de fls. 250. Ademais, atendeu-se à prova testemunhal.
(…)
Relativamente ao sinistro atendeu-se, sobremaneira, ao acordo entre as partes nos seus articulados
Vejamos, agora, quanto aos factos não provados.
(…..) Quanto à dinâmica do acidente a testemunha CC, que efetuou a peritagem e fez a averiguação do acidente de trabalho e o relatório junto aos autos, de onde resulta que aquando do sinistro o sinistrado não possuía qualquer proteção individual, nomeadamente linha de vida, a qual não era possível aplicar por inexistência de ponto de fixação superior e não existia qualquer plataforma de trabalho ou andaime. Todavia, a testemunha afirmou que não se deslocou ao local apenas à habitação do sinistrado e depois através de email, telefone, documentações ... e operador da grua realizou o relatório, pelo que in loco nada presenciou, o que sabe é apenas de ouvir dizer e de documentos sem que dos mesmos se possa aferir da sua fidedignidade. Assim, não é possível aferir do relatório e do seu depoimento qual o motivo que fez o sinistrado ter caído, apenas se veiculando que teriam sido um desequilíbrio por terem caído umas gruas perto de si, tal como veiculou a testemunha que afirmou que dessas diligências concluiu que a vítima estava em cima duma viga a fazer uma cofragem e deveriam existir andaimes que não existiam, factos que disse ter verificado pelo registo fotográfico e com o relato das testemunhas.
A testemunha EE, que interveio junto dos familiares diretos e da mediação e efetuou a análise de documentação e recolha de elementos na ..., também nada presenciou, mas adiantou que o sinistrado estava em cima de uma viga a fazer uma cofragem sem segurança, mas sem saber a razão, ao fixar-se uma grua estas caíram perto do sinistrado e ele caiu de uma altura de 3,5 metros, tendo sido socorrido e veio a falecer poucas horas depois. Assegurou que apurou que não estava em segurança por parte do dono da obra, porque era uma base instável sem proteção – estava em cima de uma viga, sem andaime e sem escada – com base esteira e sem proteção lateral. Mas a verdade é que este depoimento não tem a sua razão de ciência da presença in loco do que aconteceu.
FF, legal representante da Ré “Varga”, apenas sabia que o falecido BB aquando do falecimento era funcionário da Ré, tudo o mais afirmou que não era por si tratado.
A testemunha GG, funcionário da Ré, assegurou que não viu o acidente porque estava retirado do local. Estava no contentor, mas sabe que na obra existiam todos os meios necessários para evitar as quedas.
Não podemos olvidar o relatório efetuado, porém como se salientou o seu relator não se deslocou ao local do sinistro, limitando-se a relatar o que ouviu de terceiros e de documentos que apreciou.
Ademais, não obstante as multas e contraordenações aplicadas à Ré empregadora pelas entidades ..., bem como sentença proferida pelo Tribunal ... sobre o acidente proferida em 16 de fevereiro de 2018, onde a Ré Varga é condenada por não ter assegurado que os trabalhos em altura fossem acompanhados de equipamentos apropriados e de proteção, revestir a natureza de documento autêntico (art. 363.º, nº 2 CC), o mesmo não tem força probatória plena sobre os factos relativos às circunstâncias concretas em que se verificou o acidente pois não se destina a firmar uma versão definitiva e inatacável acerca do modo e circunstâncias como aquele acidente ocorreu pelo que, quanto a esses factos, o relatório é livremente apreciado pelo julgador de facto.
Ora, inexistindo, in casu, prova presencial do que realmente aconteceu, não pode afirmar-se que os factos ocorreram como os relatou a Ré seguradora” – (Fim de citação – sublinhados e negritos da nossa autoria).
15. Nesta conformidade, entende a Ré, aqui recorrente, salvo o devido respeito por opinião contrária, que é muito, que o Tribunal da Relação do Porto, ao entender dar como provados os factos constantes dos articulados com os n.ºs 19º a 22º, os quais tinham sido dados como não provados, na douta sentença proferida pela 1.ª Instância, e ao acrescentar os factos constantes do articulado com o n.º 23º, pelos motivos e razões invocadas no item anterior, incorreu num excesso de pronúncia, na medida em que não podia fundamentar tal decisão apenas com base nos depoimentos e testemunhos de quem nada viu ou assistiu, concatenando aqueles com os factos constates da sentença proferida pelo ..., factos que não podem ser valorados, sem algum outro suporte probatório, ademais quando tal decisão estrangeira não foi reconhecida pelos Tribunais Portugueses e por tal motivo não pode ser valorada.
16. Nesta conformidade, o douto acórdão, ora recorrido, proferido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, considerou os factos dados como provados na douta sentença contraordenacional proferida pelo ..., de forma indevida, por tal documento apresentado nos autos através de cópias - não poder ser valorado nos termos legais aplicáveis.
17. Pelo exposto, requer-se, para todos os legais efeitos, que esse Supremo Tribunal de Justiça declare a existência do invocado excesso de pronúncia e, consequentemente, que mais declare a nulidade da douta decisão, ora recorrida, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 608º, n.º 2; 615º, n.º 1, al., d) e n.º 2 e 617º, ex vi artigo 666º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil.
Em segundo lugar.
18. Nos termos e pelos fundamentos anteriormente expostos e pelos demais de direito, o douto acórdão ora recorrido, proferido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, padece da nulidade de excesso de pronúncia, nos termos anteriormente invocados e no disposto na alínea d), do n.º 1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil.
19. Na verdade, de acordo com o preceituado no artigo 615º, do Código de Processo Civil, a sentença (ou o despacho) é nula:
“Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento»; tal normativo está em consonância com o comando do n.º 2 do artigo 608º, do Código de Processo Civil”.
20. Ora, como se disse anteriormente, o douto acórdão, ora recorrido, incorreu num excesso de pronúncia, na medida em que não podia fundamentar a sua decisão de dar como provados os factos constantes dos articulados - agora - com os n.ºs 19º; 20º; 21º e 22º, os quais tinham sido dados como não provados na sentença proferida pela 1.ª Instância, bem como também não podia acrescentar os factos dados como provados no articulado com o n.º 23º, apenas e exclusivamente com base nos factos constantes da sentença contraordenacional proferida pelo ..., uma vez que as testemunhas inquiridas, em sede de audiência de julgamento, nada viram ou assistiram, factos que não podiam ter sido valorados, sem algum outro suporte probatório, ademais quando tal decisão estrangeira não foi reconhecida pelos Tribunais Portugueses,
21. ou seja, o Tribunal ad quem não se pronunciou sobre questões que deveriam ter sido objeto de pronúncia, pelo que, dúvidas não restam de que tal douto acórdão, ora recorrido, está ferido de nulidade por se ter pronunciado sobre questões que devia nem podia ter apreciado.
22. Sendo que, as causas de nulidade da sentença vêm taxativamente enunciadas no artigo 615º, n.º 1, do Código de Processo Civil, in casu, e de acordo com tal preceito, como se disse, temos que a sentença e/ou acórdão (ou despacho) é nula:
“Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento», estando, assim, tal normativo em consonância com o comando do n.º 2, do artigo 608º, no qual se prescreve que:
«O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se lei salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
23. Assim sendo, o douto acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, ora recorrido, padece de nulidade por excesso de pronúncia, porque se pronunciou e valorou questões que não deveria, nem podia, ter apreciado, nos termos do previsto na alínea d), do n.º 1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil.
24. Tendo, assim, sido violados, entre outros, o preceituado na alínea d), do artigo 608º, n.º 2 e o disposto no artigo 615º, n.º 1, al. d), ambos do Código de Processo Civil, e, ainda, o disposto no artigo 566º do Código Civil.
Termos em que se deve dar provimento ao recurso, e por via dele deverá o douto acórdão, ora recorrido, ser revogado e proferido, em sua substituição, douta decisão que absolva a Ré, aqui recorrente, “Varga -Construções, Lda.”, do pedido contra ela apresentado pela Autora, revogando-se, para o efeito, os factos dados como provados nos articulados com os n.ºs 19º; 20º; 21º e 22º, do douto acórdão, ora recorrido, e, ainda, o facto acrescentado e dado como provado no articulado com o n.º 23, de tal douto aresto, mantendo-se, assim, a condenação da Ré seguradora “Lusitânia, de Seguros, S.A.” nos exatos termos proferidos na douta sentença proferida pela 1.ª Instância, para todos os legais efeitos e nos termos melhor invocados nas presentes alegações de recurso, assim se fazendo Sá e Inteira Justiça”.

6. A recorrida “LUSITÂNIA – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.” apresentou resposta às alegações sustentando a inadmissibilidade e improcedência do recurso.

7. Por sua vez, a A. aderiu às contra-alegações da R. seguradora, na parte em que o interesse é comum.

8. Cumprido o disposto no artº 87º, nº 3, do C.P.T., o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto emitiu douto parecer no sentido de ser negada a revista, parecer que, tendo sido notificado às partes, não foi objeto de resposta.

II

2 - Delimitação objectiva do recurso

Delimitado o objecto do recurso pelas questões suscitadas pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nº 3, e 639º, nº 1, do CPC), sem prejuízo da apreciação das que são de conhecimento oficioso, (artigo 608º, nº 2, do CPC), está em causa na presente revista a nulidade do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto por excesso de pronúncia.

III

3 - Fundamentação de facto

A matéria de facto provada com as alterações e aditamentos introduzidos pelo Tribunal da Relação é a seguinte:
1.° BB nasceu no dia .../.../1963 e faleceu no dia 21.05.2015, em ..., ..., no estado de casado com a Autora, sendo que foi sepultado no cemitério de ..., concelho ... (Factos assentes- A).
2.° A Autora nasceu no dia .../.../1963 e casou catolicamente com BB no dia 12.09.1987 (Factos assentes- B)
3.° Na fase conciliatória do processo, a tentativa de conciliação, na qual estiveram representadas ambas as R.R., teve lugar no dia 23.11.2016 (Factos assentes- C).
4.° À data de 21.05.2015, a responsabilidade da 2ª R. por acidentes de trabalho em que fosse interveniente o marido da Autora encontrava-se transferida para a 1ª R. mediante o contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho titulado pela apólice nº ...01, pela retribuição anual de €1.000,00 x 14 + € 93,94 x 11(Factos assentes- D).
5.° BB foi vítima de um acidente na ..., no dia 21.05.2015, cerca das 07h15, quando trabalhava sob as ordens, direção e fiscalização da 2ª R. no exercício das suas funções de carpinteiro (Factos assentes- F).
6.° O acidente referido em 5.º ocorreu na obra de construção de um edifício sito em ..., nº 11, ... (art.º 12 da BI).

7.° O acidente referido em 5.º ocorreu quando BB se encontrava a executar uma viga de madeira, se desequilibrou e caiu de uma altura de 4 metros. [Alterado]
8.° Aquando do acidente referido em 5.º, BB encontrava-se na zona central do edifício referido em 6.º a proceder à cofragem, em madeira, de uma viga, sendo que se encontrava em cima de tal viga (art.º 13 da BI).
9.° Do acidente referido em 5.º resultaram para BB lesões na cabeça que foram causa direta da sua morte (Factos assentes- G).

10.° BB não foi autopsiado (Factos assentes- H).

11.° As despesas de trasladação e de funeral foram pagas pela 2ª Ré (Factos assentes- E).
12.° À data de 21.05.2015, BB auferia a retribuição anual de € 1.000,00 x 14 + € 93,94 x 11 (Factos assentes- I).
13.° À data de 21.05.2015, a 2ª R dedicava-se à atividade da construção civil e obras públicas (Factos assentes- D).

14.° À data de 21.05.2015, BB era uma pessoa saudável, tranquila, que vivia com alegria e que era estimada por familiares, amigos e colegas de trabalho (art.º 4.º da BI).

15.° BB devotava à Autora estima, amizade e carinho, pelo que esta sofreu dor quando lhe chegou a notícia de que aquele tinha sofrido o acidente referido em 5.º (art.º 5.º da BI).

16.° A Autora sofreu dor desde a chegada da notícia referida em 15.º até à data do funeral de BB e nos dias seguintes a tal funeral e ainda hoje mantém, e vai continuar a manter, desgosto e pesar pela morte de BB, sendo que o desgosto e o pesar se acentuam nas datas festivas, nomeadamente na Páscoa e no Natal (art.º 6.º da BI).

17.° Com a morte de BB, a Autora ficou privada de vida sexual, uma vez que, pela sua formação cívica e religiosa e pela sua idade, sente-se incapaz de retomar a sua vida sexual (art.º 9 da BI).

18.° A privação a que se alude em 17.º deprime e angustia a Autora (art.º 9 da BI).

19. No local onde BB se encontrava, não haviam sido colocados guarda-corpos nem andaimes nem uma plataforma elevatória [Aditado]

20. Não havia sido instalada uma linha de vida no local onde BB se encontrava e este não usava um arnês de segurança, o que, todavia, não era possível por inexistência de pontos de fixação. [Aditado]

21. O acidente referido em 5.º ficou a dever-se ao facto da 2ª R. não ter procedido à instalação de qualquer do equipamento referido em 19). [Aditado]

22. No momento do acidente, estava em curso, no estaleiro da obra referida em 6º, uma operação de transporte de vigas metálicas com recurso a uma torre-grua. [Aditado]
23. Por virtude do acidente referido em 5º correu termos no Tribunal ... processo no qual foram rés cinco empresas, entre as quais a ora 2ª Ré, Varga Construções, Unipessoal, Ldª, processo esse no âmbito do qual foi, aos 27.09.2019, proferida a sentença cuja cópia traduzida foi junta pela Ré Seguradora aos 27.09.2019, dela constando a condenação, entre outras empresas, da ora 2ª Ré em coima, pela prática das seguintes infracções descritas nas als. N), O), P) e Q) da mesma: “ N. Na qualidade de empreiteiro, não assegurou a prevenção de quedas de altura elevada por meio de aplicação de balaustradas resistentes, suficientemente altas ou, pelo menos, a aplicação de uma placa lateral, corrimão e uma linha intermediária ou outra disposição adequada. O. Na qualidade de empreiteiro, não assegurou que os trabalhos realizados em locais elevados fossem acompanhados de equipamentos adequados e equipamentos de proteção geral, como balaustradas, plataformas e redes de segurança e, caso o uso de tais equipamentos tenha sido excluído devido à natureza do trabalho, não garantiu a disponibilização de meios de acesso adequados e a utilização de um dispositivo de suspensão ou outro dispositivo de segurança com ancoragem. P) (…); Q. Devido à falta de atenção ou precaução, mas sem a intenção de lesar terceiros, causaram inadvertidamente a morte de BB (nacionalidade ..., nascido em .../.../1963)”. [Aditado]

4 - Fundamentação de direito

A recorrente sustenta que o acórdão recorrido enferma de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil, por ter considerados provados os factos 19º, 20º, 21º, 22º e 23º, valorando para efeitos de prova, cópias de uma condenação proferida por um ..., sem que tal decisão estivesse devidamente reconhecida por um Tribunal Português, conjugando-a com depoimentos e testemunhos de quem nada viu ou assistiu.

O Tribunal da Relação apreciou a referida nulidade nos seguintes termos:

“1. Na presente acção declarativa de condenação, com processo especial emergente de acidente de trabalho, veio a Ré, “Varga - Construções, Lda.”, interpor recurso de revista do acórdão de 23.06.2021, arguindo, no que ora importa, a nulidade do mesmo por alegado excesso de pronúncia invocando o disposto nos arts. 615º, nº 1, al. d) e 608º, nº 2, do CPC/2013, excesso consubstanciado na matéria de facto dada como provada nos nºs 19, 20, 21, 22 e 23 do mencionado acórdão, por este aditados que, segundo diz, não poderiam ter sido dados como provados, argumentando em síntese que a sua prova não poderia assentar na sentença proferida pelo Tribunal ....

A Recorrida/Seguradora contra-alegou considerando, em síntese, não padecer o acórdão de qualquer nulidade de sentença.

Cumpre, previamente à oportuna prolação de decisão relativa à interposição do recurso de revista, pronunciarmo-nos sobre a arguida nulidade do acórdão.

Cumpriram-se os vistos legais.

2. Dispõe o citado art. 615°, n° 1 ai. d), que é nula a sentença quando “d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”, preceito este que se prende com o disposto no art. 608°, n° 2, do mesmo, nos termos do qual “2. O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação,  excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.

Como é sabido, as nulidades podem ser processuais, se derivam de actos ou omissões que foram praticados antes da prolação da sentença; podem também ser da sentença, se derivam de actos ou omissões praticados pelo Juiz na sentença. E com nulidades de sentença não se cofundem eventuais erros de julgamento, sejam eles da decisão da matéria de facto ou de direito, que se prendem com a própria decisão de mérito (seja em sede do julgamento da matéria de facto, seja do julgamento em matéria de direito).

No caso, a Ré Seguradora, no recurso de apelação que havia interposto, impugnou a decisão da matéria de facto, mormente quanto aos pontos que vieram a ser alterados acima mencionados, tendo esta Relação, no acórdão ora sobre censura, avaliado a prova, designadamente a que decorre da sentença proferida pelo Tribunal ..., nos termos que dele constam, apreciação essa de que a Ré “Vargas” discorda no recurso de revista, discordância essa que se prende com o mérito da reapreciação feita, designadamente quanto à avaliação que se fez com base na dita decisão, o que, eventualmente, poderia constituir erro de julgamento, mas não nulidade sentença por excesso de pronúncia, sendo que o acórdão se pronunciou sobre questão que havia sido submetida à sua apreciação.
3. Assim, e sendo manifesto que não ocorre o vício de nulidade de sentença/acórdão por alegado excesso de pronuncia e sem necessidade de considerações mais extensas, consideramos não ocorrer tal nulidade de sentença/acórdão, nada havendo, em conformidade, a alterar”.
Subscrevem-se inteiramente as considerações transcritas e o juízo decisório, no sentido da inexistência da nulidade invocada, enunciado. Na verdade,

A nulidade da sentença por excesso de pronúncia resulta da violação do disposto no n.º 2 do art.º 608.º do CPC, nos termos do qual «(…) o juiz não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».

É a violação daquele dever que torna nula a sentença e tal consequência justifica-se plenamente, uma vez que o excesso de pronúncia na violação do princípio dispositivo que contende com a liberdade e autonomia das partes.

Postula tal vício e nulidade, tal como a nulidade anterior e as demais elencadas, taxativamente, na disposição do artigo 615º do Código de Processo Civil, a existência de uma sentença, isto é, uma decisão de mérito, o que se não compagina com a decisão relativa à matéria de facto proferida pelo Tribunal da Relação, que em si não é uma sentença mas a decisão, prévia à sentença em cuja fundamentação se integra, que fixa o acervo factual que constitui a base necessária à decisão de mérito, ou seja, os erros que eventualmente afectem a decisão em matéria de facto não configuram nenhum dos vícios (formais) integradores de nulidade da sentença, podendo antes, eventualmente, configurar erro de julgamento, estando, por isso, fora do conceito legal de vícios da sentença previstos no artigo 615º do CPC.

Como se afirmou no acórdão deste Supremo Tribunal de 23.3.2017, Procº nº 7095/10.7TBMTS.P1.S1.:

“I. O não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC.

II. Tais situações reconduzem-se antes a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável aos acórdãos dos tribunais superiores por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC.
III. O mesmo se deve entender nos casos em que o tribunal considere meios de prova de que lhe não era lícito socorrer-se ou não atenda a meios de prova apresentados ou produzidos, admissíveis necessários e pertinentes. Qualquer dessas eventualidades não se traduz em excesso ou omissão de pronúncia que impliquem a nulidade da sentença, mas, quando muito, em erro de julgamento a considerar em sede de apreciação de mérito”.

No caso vertente o Tribunal da Relação reapreciou a decisão em matéria de facto, por a decisão de 1ª instância ter sido impugnada na apelação, e pronunciou-se sobre o recurso nessa matéria, julgando-o procedente, dando como provados os factos, anteriormente dados como não provados pela 1ª instância, e aditando um novo facto, no exercício do poder/dever que os artigos 640º e 662º do Código de Processo lhe cometem, não tendo incorrido em qualquer excesso de pronúncia.

Por outro lado, na apreciação e valoração da sentença proferido pelo ..., que condenou a recorrente em coima por violação de normas sobre a segurança no trabalho, de que resultou o acidente de trabalho dos autos e a morte do sinistrado, que a recorrente tem por indevida e contra a qual se insurge, mas que não foi o único meio de prova em que se fundou a convicção do tribunal, que igualmente, e conjugadamente com este, apreciou a prova testemunhal produzida, não infringiu qualquer regra de direito probatório material, que a recorrente, de resto não identifica, limitando-se a valorar um documento, que, não fazendo prova plena como o Tribunal da Relação teve o cuidado de mencionar, é, sem necessidade de revisão, de conformidade com o disposto nos artigos 978º, nº 2, do Código de Processo Civil, e 234º, nº 3, do Código de Processo Penal, um meio de prova, sujeito à livre apreciação do tribunal, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 607º, nº 5, do Código de Processo Civil. Na verdade,

Tal como a recorrente a equaciona, dizendo que “o Tribunal ad quem incorreu na invocada nulidade de excesso de pronúncia ao ter usado para fundamentar a sua decisão, ora recorrida, dando como provados factos constantes da citada douta sentença proferida pelo ..., sem que para o efeito tivesse sido previamente reconhecida pelos Tribunais Portugueses, assim incorrendo de forma clara num excesso de pronúncia (…)”, o excesso de pronúncia decorreria da apreciação e valoração, para efeitos e em sede de reapreciação da decisão em matéria de facto, objecto de impugnação pela seguradora apelante, da sentença proferida pelo ... sem que a mesma estivesse reconhecida pelos Tribunais Portugueses.

Tal alegação não tem fundamento ou suporte legal uma vez que não estava em causa a exequibilidade, rectius a eficácia, em Portugal daquela decisão e que o artigo 978º, nº 2, do Código de Processo Civil dispõe que não é necessária a revisão de sentença estrangeira quando a decisão seja invocada em processo pendente nos tribunais portugueses como simples meio de prova sujeito à apreciação de quem haja de julgar a causa, no mesmo sentido dispondo o artigo 234º nº 3 do Código de Processo Penal, nos termos do qual a sentença penal estrangeira não depende de prévia revisão e confirmação quando a sentença penal estrangeira for invocada nos tribunais portugueses como meio de prova, como foi o caso.

In casu a arguição da nulidade e a alegação atinente à apreciação e valoração da sentença proferida pelo ... pela recorrente não é mais do que a manifestação da discordância e inconformismo da recorrente no tocante à decisão em matéria de facto, quanto à apreciação e valoração da prova, que, contudo, é insindicável por este Supremo tribunal. Com efeito,

Como constitui jurisprudência pacífica o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 46º da Lei 62/2013, de 26 de Agosto (Lei de Organização do Sistema Judiciário) e 682º do Código de Processo Civil, é um tribunal de revista que, salvo nos casos excepcionais contemplados no nº 3 do artigo 674º do CPC, aplica definitivamente o regime jurídico aos factos materiais fixados pelo Tribunal recorrido, podendo ainda, o que aqui não está em causa, mandar ampliar a decisão sobre a matéria de facto  (nº 3 do artigo 682º do CPC).

As excepções referidas consistem “na ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova”, como dispõe o nº 2 do artigo 674º do C.P.C. (prova vinculada).

Daqui se segue que o sindicar o modo como a Relação fixou os factos materiais só pode ocorrer no âmbito do recurso de revista se aquele Tribunal deu por provado um facto sem produção do tipo de prova que a lei exige como indispensável para demonstrar a sua existência ou se tiver incumprido os preceitos reguladores da força probatória de certos meios de prova.

Significa isto, como tem sido reiteradamente afirmado na jurisprudência deste Tribunal[1], e citando o acórdão de 2.1.2017, Procº nº 3071/13.6TJVNF.G1.S1, que:

1 Como princípio – regra, a fixação dos factos materiais da causa, baseados na prova livremente apreciada pelo julgador nas instâncias não cabe no âmbito do recurso de revista.

2- O S.T.J. limita-se a aplicar aos factos definitivamente fixados pelo Tribunal recorrido o regime jurídico adequado.

3- São excepções a esta regra a existência de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
4- Em suma, o S.T.J. só pode conhecer do juízo de prova fixado pela Relação quando tenha sido dado por provado um facto sem que tivesse sido produzida a prova que a lei declare indispensável para a demonstração da sua existência ou tiverem sido violadas as normas reguladoras da força de alguns meios de prova”.
A discordância da recorrente relativamente aos factos que foram aditados pela Relação não se inscreve nestes apertados parâmetros em que é possível ao STJ sindicar o modo como a Relação fixou os factos materiais da causa.
Na linha da jurisprudência citada não procede a pretensão da recorrente ao pretender a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça com vista a reapreciar a alteração de decisão relativa à matéria de facto efectuada pelo Tribunal da Relação.

IV - Decisão

Termos em que se acorda em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 17 de Março de 2022

Leonor Cruz Rodrigues (Relatora)

Pedro Branquinho Dias

Júlio Manuel Vieira Gomes

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[1] Cf., entre outros, acórdãos. STJ de 15.9.2021, Procº nº 559/18.6T8VIS.C1.S1, 25.11.2020, Procº nº 288/16.5T8OAZ.P1.S1, 26.9.2017, Procº nº 2545/11.8TVLSB.L1.S3, 18.5.2017, Procº nº 5164/07.0TTLSB-B.L1.S1, 29.10.2013, Procº nº 298/07.3TTPRT.P3.S1, 25.3.2009, Procº nº 09A530.