Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
706/05.6TBOER.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
RECTIFICAÇÃO DE ACORDÃO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
REFORMA DE ACÓRDÃO
Data do Acordão: 11/26/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA ( NULIDADES ) / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 249.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 607.º, 614.º, 615.º, 616.º, 617.º, 666.º, 671.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
– DE 23 DE SETEMBRO DE 2008, WWW.DGSI.PT, PROC. Nº 07B2469;
–DE 18 DE DEZEMBRO DE 2008, WWW.DGSI.PT, PROC. Nº 08B2459;
– DE 12 DE FEVEREIRO DE 2009, WWW.DGSI.PT, PROC. Nº 08A2680;
– DE 10 DE DEZEMBRO DE 2009, WWW.DGSI.PT, PROC. Nº 52555/06.OYYLSB-E.L1.S1;
– DE 23 DE NOVEMBRO DE 2011, WWW.DGSI.PT, PROC. Nº 4014/07.1TVLSB.L1.S1;
– DE 7 DE MAIO DE 2015, 18-A/2001.E1.S1.
Sumário :
1. Por aplicação analógica do nº 4 do artigo 617º do Código de Processo Civil, adaptado à situação de ter sido deferido um pedido de rectificação de um acórdão da Relação do qual que não foi interposto recurso, apesar de ser admissível, e que tinha transitado em julgado, cabe recurso de revista do acórdão rectificativo desse acórdão da Relação, desde logo para se averiguar se a alteração introduzida é ou não uma mera rectificação de um lapso material.

2. São diferentes os objectivos e os fundamentos da arguição de nulidade de uma decisão judicial, nomeadamente por oposição entre a fundamentação e a decisão (nº 1, c) do artigo 615º), do pedido de reforma, por exemplo por constarem do processo documentos ou outros meios probatórios com força probatória plena que, por si sós, “impliquem necessariamente decisão diversa da proferida” (nº 2, b), do artigo 616º) e do requerimento de rectificação de erros materiais.

3. Deixando de lado a omissão de custas, ou da indicação da proporção a que se refere o nº 6 do artigo 607º do Código de Processo Civil, que nada têm a ver com o conteúdo da apreciação da pretensão deduzida, verifica-se que a lei inclui no perímetro possível de rectificações que a todo o tempo podem ser efectuadas o suprimento da omissão de indicação do nome das partes e a correcção de erros de escrita ou de cálculo ou de quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto.

4. A admissibilidade de requerer rectificações mesmo depois do trânsito em julgado explica-se por se tratar de alterações materiais que não modificam o que ficou decidido.

5. Como uniformemente tem sido recordado por este Supremo Tribunal, só é admissível a correcção por mera rectificação de lapsos materiais consistentes em omissões e discrepâncias de escrita ou de cálculo que se revelam da mera leitura do texto da decisão, equivalentes aos erros de cálculo ou de escrita revelados no contexto das declarações negociais, a que se refere o artigo 249º do Código Civil.

6. Não pode ser qualificada como rectificação uma alteração da parte decisória do acórdão cuja incorrecção material se não detectava da leitura do respectivo texto.

7. Mantém-se, portanto, o texto do acórdão transitado em julgado, desconsiderando-se a alteração e revogando-se o acórdão que a aprovou.

Decisão Texto Integral:
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:



1. Em 13 de Janeiro de 2005, a Sociedade de Construções AA, Lda., instaurou uma acção contra BB, Lda. na qual, invocando ter celebrado com a ré um contrato-promessa de compra e venda dos imóveis que identifica, pediu, a título principal,

– que o tribunal declarasse “verificada a condição suspensiva” constante da cláusula 4ª do contrato, consistente na desocupação dos imóveis, nestes termos: “No caso de decorrido o prazo de um ano a contar da data do presente contrato algum prédio objecto do presente contrato ainda se encontrar ocupado de pessoas e bens, a data da escritura de compra e venda será prorrogada pelo prazo necessário para a desocupação total de pessoas e bens de todos os prédios objecto do presente contrato”;

– que o tribunal considerasse “a alteração superveniente das circunstâncias determinando que as indemnizações pelas desocupações ficam a cargo da A. com a correspondente redução do valor do contrato para € 722.295,27, que corresponde à diferença entre o valor do contrato e o valor que o A. terá que despender com as indemnizações”,

– que o tribunal declarasse a execução específica do contrato-promessa.

Não relevam agora os pedidos deduzidos a título subsidiário.

A ré contestou. Por entre o mais, invocou a nulidade do contrato-promessa e alegou ter vendido os imóveis a terceiro, por se ter tornado impossível o respectivo cumprimento, prontificando-se a devolver o sinal recebido e a indemnizar a autora por certas despesas.

A autora replicou.

A acção foi julgada improcedente pela sentença de fls. 634, por se ter entendido que não se verificava o incumprimento definitivo da ré e que esse incumprimento era condição de procedência, quer dos pedidos principais, quer dos pedidos subsidiários.

Mas a sentença foi revogada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de fls. 830, nestes termos:

«Cumpre apreciar.

A questão fundamental em apreço no presente recurso — e na própria acção – é a de saber se estão verificados os requisitos para a execução específica do contrato, ou se, ao invés, estamos perante uma situação de obrigação de restituição do sinal em dobro, nos termos do art. 442° n° 2 e 3 do Código Civil.

Na sentença recorrida entendeu-se que, quer a restituição do sinal em dobro, quer a execução específica só são aplicáveis no caso de incumprimento definitivo do contrato promessa, excluindo-se a sua aplicação nos casos de simples mora ou incumprimento transitório. Mais se entendeu que no caso em apreço, não existe incumprimento definitivo mas simples mora, sendo exigível interpelação da Autora à Ré fixando um prazo peremptório razoável para o cumprimento da obrigação.

Temos um entendimento diverso do M° juiz a quo relativamente ao mencionado pressuposto da aplicação do regime da execução específica.

(…)

A execução específica pressupõe assim que a prestação ainda é possível e que é desejada pelo credor. O pedido de pagamento do sinal em dobro consiste, pelo contrário, numa forma de indemnização pela ruptura contratual definitiva imputável ao comportamento do devedor (e vendedor, no caso do contrato-promessa).

(…) Compreende-se assim que a execução específica, em que a sentença judicial supre a ausência de vontade do devedor em cumprir, pressuponha a vigência do contrato, a possibilidade das prestações que o integram e a vontade do credor em obter a sua concretização.

Daí que mesmo que do comportamento do devedor se deva concluir que ele se recusa a cumprir o contrato, nem por isso o incumprimento é definitivo já que a consumação do mesmo contrato pode ser alcançada por outras vias, nomeadamente a da execução específica.

No caso dos autos, o pedido principal da Autora consiste exactamente nessa execução específica, pelo que se deve entender estarmos perante um caso de mora. O contrato, ainda não possível, ainda não foi cumprido pelo devedor.

O tribunal a quo aceita que a situação que se nos depara não é de incumprimento definitivo mas, ao mesmo tempo, defende que por estarmos perante simples mora do devedor e a obrigação não ter prazo certo para o cumprimento, teria o credor de interpelar o mesmo devedor fixando-lhe um prazo peremptório para o cumprimento. Não o tendo feito, não é admissível, na óptica do julgador, o pedido de execução específica.

Com efeito, na sentença recorrida entende-se que, embora no contrato promessa se haja estipulado que a escritura de compra e venda se realizaria no prazo de um ano, existe uma condição suspensiva expressa na cláusula com o seguinte teor:

"No caso de decorrido o prazo de um ano a contar da data do presente contrato algum prédio objecto do presente contrato ainda se encontrar ocupado de pessoas e bens, a data da escritura de compra e venda será prorrogada pelo prazo necessário para a desocupação total de pessoas e bens de todos os prédios objecto do presente contrato".

Aceitamos, nesta parte, o raciocínio constante da sentença, já que é manifesta a natureza de condição suspensiva da focada cláusula, nos termos do art. 270° do Código Civil.

Só que existem outros elementos ater em conta, de entre os factos dados como provados:

(…)

Decorre desta factualidade que, apesar das interpelações da Autora, a Ré não obteve a desocupação total dos prédios, tendo mesmo abandonado todas as diligências nesse sentido pelo menos desde 10/01/2005. Pior, efectuou uma venda simulada dos imóveis a uma outra empresa, que tornaria impossível o cumprimento do contrato celebrado com a Autora. Contudo, ao confessar tal simulação, na acção deduzida pela Autora, vindo a compra e venda a ser declarada nula, os bens retornaram ao património da Ré.

Estes actos da Ré – independentemente dos efeitos da declaração de nulidade da compra e venda simulada – ilustram de um modo evidente que a Ré não quer cumprir o contrato e que há mais de nove anos (!) que cessou todas as diligências no sentido de obter a desocupação dos imóveis. Nos termos do art. 275° n° 2 do Código Civil, "se a verificação da condição for impedida, contra as regras da boa fé, por aquele a quem prejudica, tem-se por verificada (...)". (…)

Entendemos que a situação de mora da Ré, que desde há largos anos cessou qualquer diligência para a desocupação dos prédios, tornando inviável a celebração da escritura nos termos prometidos, que a própria venda simulada a um terceiro, revelam uma manifesta e reiterada intenção de não cumprir o contrato.

(…)

Na sentença recorrida dá-se ênfase à confissão do pedido pela Ré, na acção interposta pela ora A com vista a obter a anulação da compra e venda celebrada simuladamente entre a Ré a empresa "CC". Tal confissão, contudo, apenas traduz o reconhecimento que a compra e venda foi simulada, mas de modo algum vontade da Ré em cumprir o contrato-promessa que celebrou com a Autora. Aliás, como vimos, a confissão do pedido ocorreu cerca de 5 anos depois de ter contestado essa acção impugnando o pedido da Autora.

Perante a atitude da Ré promitente-vendedora que os autos documentam, não há que forçar a Autora a qualquer nova interpelação, desta vez admonitória nos termos do art. 808°, mas apenas a constatação que a condição suspensiva está verificada de modo a permitir que finalmente possa a promitente-compradora adquirir os prédios em causa.

De resto, o próprio contrato-promessa celebrado pelas partes prevê que "ao presente contrato-promessa de compra e venda é conferido o direito à execução específica por qualquer dos contraentes".

Assim, verifica-se a procedência do pedido principal, ou seja, a execução específica do contrato.

Entretanto, já na pendência do presente recurso, veio a recorrente declarar no processo que já lhe fora transmitida a propriedade dos imóveis em causa, mediante contrato de compra e venda com a Ré. Na medida em que a Ré não nega tal compra e venda, de resto documentada a fls. 783 e seguintes, verifica-se a inutilidade superveniente da lide no tocante ao aludido pedido de execução específica do contrato promessa.

Pede ainda a Autora a redução do preço, considerando as quantias que irá gastar em indemnizações às pessoas que ainda ocupam os imóveis.

(…) Relembre-se que resultou provado que o presente contrato-promessa de compra e venda foi celebrado com o intuito da Autora de demolir os prédios existentes de forma a permitir a execução de um projecto de construção para aquela. E tal propósito era do conhecimento da Ré que para tal passou a procuração ao gerente da Autora como consta do art. 14° da factualidade assente.

Pela execução específica a Autora adquire a titularidade dos prédios pelo que lhe cumprirá, tendo em atenção o mencionado propósito de demolição, obter a desocupação dos prédios ainda ocupados mediante o pagamento de indemnizações negociadas com os arrendatários.

(…) Descontado o valor estimado para as indemnizações a pagar pela Autora, ficamos com o montante de € 722.295,27.

Pede ainda a Autora a condenação da Ré como litigante de má fé. (…) não se nos afigura merecedor de censurabilidade para os efeitos do mencionado art. 542°. Nessa medida, secundamos a decisão recorrida ao julgar improcedente o pedido de condenação da Ré por litigância de má fé.

Conclui-se assim que:

-  Celebrado em 1998 um contrato promessa de compra e venda de diversos prédios e tendo-se comprometido o promitente vendedor a obter a desocupação dos mesmos para permitir a escritura de compra e venda, provou-se que desde 2004 a mesma promitente vendedora abandonou todas as diligências e negociações visando a aludida desocupação.

- Além disso, em 10/01/2005, a promitente vendedora, aqui Ré, vendeu os mencionados prédios por escritura pública a uma outra empresa.

- Proposta acção pela promitente compradora e aqui Autora, visando a anulação da venda, a aqui Ré acabaria por confessar ter existido simulação nessa compra e venda, do que resultou a declaração de nulidade da mesma.

- Apesar desta confissão, o comportamento da Ré reiterado, e que se vem prolongando por cerca de 16 anos, impedindo que se concretize a condição suspensiva que consiste na desocupação dos prédios, para que possa ser finalmente celebrada a escritura pública de compra e venda, evidencia uma clara vontade de não cumprir o contrato.

- Perante isto, não é exigível ao ora Autor uma interpelação peremptória fixando um prazo de cumprimento à Ré.

- Sendo a efectivação do contrato ainda possível e existindo vincado interesse do promitente comprador na mesma, é de deferir o pedido de execução específica, pelo qual a sentença supra a falta de vontade contratual da outra parte no sentido do cumprimento.

Nestes termos, julga-se a apelação procedente e assim:

- Declara-se verificada a condição suspensiva consistente na desocupação dos prédios, nos termos do disposto no art. 275° n° 2 do Código Civil.

- Condena-se a Autora a pagar à Ré, a título do remanescente do preço, a quantia de 722.295,27.


Improcede o pedido de condenação da Ré como litigante de má fé.

Custas pela ré.


            Lisboa, 27/11/14»

2. Não foi interposto recurso deste acórdão, que transitou em julgado.

Posteriormente, em 30 de Março de 2015, a Sociedade de Construções AA, Lda. veio requerer a rectificação do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa:

«(…)14º. Ora, tal como é cristalino, qualquer que fosse o preço a pagar na compra e venda objecto da peticionada execução específica, tal preço só teria de ser pago pela Autora (isto é, depositado nos autos) se a transmissão do imóvel viesse a ser declarada por via da declaração jurisdicional substitutiva da declaração do promitente faltoso (execução específica), o que de forma patente e inequívoca não aconteceu no caso dos autos.

15º. O douto acórdão em referência expressa o entendimento claro de que nenhuma quantia deve ser paga pela Autora à Ré, porque não se operou a execução específica que justificaria um preço a pagar pela Autora (que seria, aliás, pago através de depósito nos autos e nunca em pronúncia condenatória que não foi sequer peticionada nos autos).

16º. É pois manifesto que ao escrever-se no final do douto acórdão “condena-se a Autora a pagar à Ré, a título de remanescente do preço a quantia de 722.295,25”, ficou averbado na decisão um texto que não corresponde à expressão da vontade real dos Senhores Desembargadores subscritores do douto aresto em referência.

17º. Tal pronúncia condenatória da Autora (“Condena-se a Autora”) deverá, pois, ser substituída por uma pronúncia declarativa – “declara-se reduzido o preço ajustado no contrato promessa para a quantia de 722.295,27”

 – o que respeitosamente se requer…».

A parte contrária opôs-se, observando que não existe qualquer lapso a corrigir e que a apresentação do requerimento apenas vem provar que a autora não pagou o remanescente do preço.

A fls. 951 foi proferido novo acórdão, rectificando o primeiro:


«Veio a Autora Sociedade de Construções AA, Lda. requerer a rectificação de lapso material no acórdão proferido a fls. 830 e seguintes. Alega que tal lapso consiste em se ter condenado a Autora no pagamento à Ré BB, Lda. da quantia de € 722.295,27, quando a execução específica que teria justificado o pagamento de tal remanescente do preço não chegou a ter lugar, por entretanto a Ré ter transmitido à Autora a propriedade dos imóveis em causa nos autos.

Com efeito, no acórdão em apreço, apesar de se reconhecer o direito da Autora a obter a execução específica do contrato promessa de compra e venda desses imóveis e a sua obrigação de efectuar o pagamento do remanescente do preço (deduzida a verba necessária para obter as desocupações do prédio mediante pagamento de indemnizações aos locatários), reconhece-se que, a Ré, ao proceder à venda dos imóveis à Autora, já na pendência do recurso, tendo nesse acto de compra e venda sido pago o preço, tornou inútil a lide relativamente à execução específica do contrato promessa. E, como é evidente, o pagamento do remanescente do preço.

O segmento decisório do aludido acórdão peca por condenar a Autora a pagar o remanescente do preço – quando se reconhece que o preço já foi pago – devendo antes ter uma redacção conforme à conclusão lógica do raciocínio decisório, ou seja, declarar-se simplesmente o montante da redução do preço.

Estamos perante uma situação enquadrável no disposto no art. 614º nº 1 do CPC, pois parece evidente, até pela primeira parte da decisão, que não se escreveu o que se pretendia, dando assim ao teor decisório um significado que pode ser interpretado de modo a iludir a vontade patente dos julgadores.

Recorde-se que a decisão estabelece, na primeira parte, que:

“Declara-se verificada a condição suspensiva consistente na desocupação dos prédios, nos termos do disposto no art. 275º nº 2 do Código Civil.”

Como se vê, não era intenção ordenar o efectivo pagamento de um preço – que já foi pago – mas sim fixar o seu montante após a redução operada.

Foi sem dúvida o teor das conclusões, que abordam a questão de um modo mais amplo e teórico, relativamente à problemática jurídica que se colocava no recurso antes de ser conhecida a compra e venda entretanto consumada, que nos levou ao lapso mencionado.

Assim, e deferindo-se a requerida rectificação, passamos a modificar a redacção da parte decisória do acórdão, nos seguintes termos:

“Nestes termos, julga-se a apelação procedente e assim:

– Declara-se verificada a condição suspensiva consistente na desocupação dos prédios, nos termos do art. 275º nº 2 do Código Civil;

– Declara-se reduzido o preço ajustado no contrato promessa para a quantia de € 722.295,27”.

Lisboa, 09/07/2015»

3. BB, Lda. recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, sustentando que este acórdão deve ser anulado e substituído por outro.

Nas alegações que apresentou, formulou extensas conclusões, relatando o processo, transcrevendo os factos provados e descrevendo o conteúdo da sentença e dos acórdãos, repetindo a alegação. No que à matéria do recurso respeita, e sintetizando o que extensivamente alega, o recorrente colocou as questões seguintes:

– o acórdão recorrido não procedeu a nenhuma rectificação de qualquer possível lapso material do acórdão anterior, que não existe. Antes alterou ilegalmente uma decisão condenatória, já transitada, que deve ser mantida;

– o autor não pagou o remanescente do preço, contrariamente ao que se afirma no acórdão de 9 de Julho de 2015.

E a recorrente apresentou um requerimento de que a autora seja notificada para juntar prova do pagamento: “cópia do cheque/transferência bancária ou qualquer outra forma de pagamento do preço alegadamente pago de 1.230.559,05 euros, que consta sob o texto da escritura junta aos autos de 26 de Fevereiro de 2014”.

Nas contra-alegações, a Sociedade de Construções AA, Lda. veio sustentar:

– que o recurso é inadmissível, por não caber no respectivo âmbito (artigo 671º do Código de Processo Civil), por se tratar de acórdão transitado em julgado e por não ter havido qualquer alteração do primeiro acórdão da Relação, mas simples rectificação de “lapso material evidente”;

– que o recurso deve “ser liminarmente rejeitado”, uma vez que o que a recorrente pretende é que o Supremo Tribunal de Justiça “se pronuncie sobre o juízo que o Tribunal da Relação realizou no acórdão rectificativo sobre os factos por este apurados” – sobre  “o pagamento do preço” –, o que não é admissível;

– que, se assim se não entender, deve ser negado provimento ao recurso, pois o acórdão rectificativo “procedeu à eliminação de um erro material e não de qualquer erro de julgamento”.

4. Os factos que relevam para apreciar o presente recurso – que, convém relembrar, foi interposto de um acórdão que rectificou um anterior acórdão, já transitado em julgado – são apenas os que resultam do relatório que antecede, e no qual se procedeu a extensas transcrições precisamente para facilitar a apreciação da questão essencial que constitui o objecto desta revista: a de saber se a alteração introduzida pelo acórdão de 9 de Julho de 2015 no anterior acórdão, de 27 de Novembro de 2014, pode ou não considerar-se como mera rectificação de um lapso material.

Na verdade, está assente que não foi interposto recurso do primeiro acórdão; nem sequer apenas com o objectivo de arguir a respectiva nulidade, seja com que fundamento fosse, ou de pedir a sua reforma (cfr. artigos 615º, 616º e 666º do Código de Processo Civil).

Não interessando agora nenhuma eventualidade de recurso extraordinário, o acórdão de 27 de Novembro de 2014, do qual não foi interposto recurso e que transitou em julgado, apenas podia ser modificado através da correcção de erros materiais, nos termos do nº 3 do artigo 614º (conjugado com o citado artigo 666º).

5. Cumpre começar por determinar se é admissível o presente recurso de revista, tendo em conta o trânsito em julgado do acórdão de 27 de Novembro de 2014 e a ausência de norma expressa sobre a recorribilidade de decisões que rectifiquem decisões anteriores, antes ou depois do respectivo trânsito.

A recorrida, como se viu, sustenta a respectiva inadmissibilidade.

No artigo 617º do Código de Processo Civil prevê-se que, sendo deferida uma arguição de nulidade ou acolhido um pedido de reforma – casos nos quais o despacho que os decidiu passa a integrar a decisão recorrida (nº 2) –, o recurso passa a ter como objecto a nova decisão e, se o recorrente desistir, o recorrido pode obter a subida do recurso “para [se] decidir da admissibilidade da alteração introduzida (…), assumindo a partir desse momento a posição de recorrente ” (nº 4).

Poder-se-á aplicar um regime semelhante, por analogia? Será impeditivo dessa aplicação a circunstância de o acórdão de 27 de Novembro de 2014 se encontrar transitado em julgado, quando a rectificação foi aprovada?

Antes de mais, cumpre dizer que é irrelevante que o artigo 671º do Código de Processo Civil, ao desenhar o âmbito possível do recurso de revista, não refira acórdãos rectificativos de acórdãos anteriores. Não se duvidará de que o acórdão de 27 de Novembro de 2014 foi “proferido sobre decisão da 1ª Instância” e conheceu “do mérito da causa”; e, no limite, poder-se-á sustentar que é este o ponto de referência que releva para aferir da recorribilidade do acórdão de 9 de Julho deste ano, raciocinando como se de um suprimento de nulidade ou de um deferimento de pedido de reforma se tratasse, e considerando a rectificação deferida como integrativa do anterior acórdão. Na verdade, uma verdadeira e própria rectificação destina-se, por natureza, a integrar a decisão rectificada, não tendo qualquer interesse autónomo.

Releva sim saber se, da conjugação entre:

– a possibilidade de se proceder a rectificações após o trânsito em julgado, caso não tenha havido recurso da decisão a rectificar (nº 3 do artigo 614º),

– com as regras de que o poder jurisdicional se extingue com a decisão, apenas sendo possível ao tribunal que a proferiu “rectificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença” (nºs 1 e 2 do artigo 615º) e de  que

“havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar” (nº 1 do artigo 623º do Código de Processo Civil),

– com o princípio que se extrai do citado nº 4 do artigo 617º, adaptado à eventualidade de rectificação,

não resultará necessariamente a admissibilidade do presente recurso, apenas para, num primeiro momento, se averiguar se a alteração introduzida é ou não uma mera rectificação de um lapso material do acórdão de 27 de Novembro de 2014, nos termos admitidos pelo artigo 614º do Código de Processo Civil e, se vier a concluir-se que sim, para, num segundo momento, se apreciar a impugnação do acórdão corrigido.

E a resposta não pode deixar de ser afirmativa, por aplicação analógica do nº 4 do artigo 617º, naturalmente adaptado à situação de ter sido deferido um pedido de rectificação de um acórdão de que não foi interposto recurso de revista e que tinha transitado em julgado. Solução contrária poderia conduzir à violação da regra da prevalência da decisão que primeiro transitou um julgado, em caso de rectificações inadmissíveis.

Admite-se assim o presente recurso de revista, cumprindo começar por determinar se a alteração introduzida pode ou não considerar-se mera rectificação.

6. São de todos conhecidas as diferenças entre arguir a nulidadede uma sentença ou de um acórdão, nomeadamente por oposição entre a fundamentação e a decisão (nº 1, c) do artigo 615º), pedir a respectiva reforma, por exemplo por constarem do processo documentos ou outros meios probatórios com força probatória plena que, por si sós, “impliquem necessariamente decisão diversa da proferida” (nº 2, b), do artigo 616º) ou, apenas, requerer a rectificação de erros materiais que a mesma apresente.

Deixando de lado a omissão de custas, ou da indicação da proporção a que se refere o nº 6 do artigo 607º do Código de Processo Civil, hipóteses que nada têm a ver com o conteúdo da apreciação da pretensão deduzida e com a força de caso julgado que venha a adquirir, verifica-se que a lei inclui no perímetro possível de rectificações que a todo o tempo podem ser efectuadas, mesmo depois do trânsito – o que por si só nos transmite a ideia de que se trata de alterações materiais que não alteram o que ficou decidido, e que transitou em julgado (cfr. acórdão de 12 de Fevereiro de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 08A2680: o erro material “nunca interfere, decisivamente, com o mérito da decisão, tanto mais que terá de ser evidenciado pelo seu contexto cuja leitura atenta o torna perceptível face às premissas do silogismo judiciário”) – as seguintes hipóteses:

– o suprimento da omissão de indicação do nome das partes,

correcção de erros de escrita ou de cálculo ou

– de quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto.

Não estão abrangidos nem erros de julgamento, de facto ou de direito, nomeadamente erros manifestos, susceptíveis de correcção por meio de um pedido de reforma, nem tão pouco vícios que sejam qualificados como nulidades. Como se escreveu, por ex., no acórdão de 7 de Maio de 2015, 18-A/2001.E1.S1, «Não se confunde o erro de julgamento, cuja correcção só por via de recurso pode ser obtida (ou, nos termos fortemente restritivos em que a lei admite a reforma de uma decisão judicial, através de um pedido de reforma  – artigo 616º do Código de Processo Civil), com o erro material cuja rectificação pode ser conseguida nos termos previstos no artigo 614º do Código de Processo Civil, e que abrange, por exemplo, “erros de escrita ou de cálculo” detectáveis no contexto da decisão».

Se da análise da fundamentação de uma decisão judicial se conclui que ela não poderia conduzir à decisão que dela formalmente consta, haverá nulidade, susceptível de correcção nos limites estritos da incongruência entre uma e outra; se do confronto entre a decisão e elementos com prova plena, constantes do processo, ressaltar um erro de julgamento ostensivo, poderá o mesmo ser corrigido requerendo a reforma da decisão.

Em qualquer destes casos, o trânsito em julgado é um limite intransponível à correcção; e a respectiva apreciação decorre segundo regras de controlo da parte contrária, nomeadamente em recurso, se o recurso for admissível.

Restam assim para a admissibilidade de correcção por mera rectificação os lapsos materiais consistentes em omissões e discrepâncias de escrita ou de cálculo que se revelam da mera leitura do texto da decisão, equivalentes aos erros de cálculo ou de escrita revelados no contexto das declarações negociais, a que se refere o artigo 249º do Código Civil, como uniformemente tem sido recordado por este Supremo Tribunal – cfr., a título de exemplo, os acórdãos de 23 de Setembro de 2008, www.dgsi.pt, proc. nº 07B2469, de 18 de Dezembro de 2008, www.dgsi.pt, proc. nº  08B2459, de 12 de Fevereiro de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 08A2680, de 10 de Dezembro de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 52555/06.OYYLSB-E.L1.S1, ou de 23 de Novembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. nº 4014/07.1TVLSB.L1.S1.


8. Ora, no caso concreto, é seguro que se não pode tratar a alteração introduzida em 9 de Julho de 2015 como mera rectificação do acórdão de 27 de Novembro de 2014; as longas transcrições efectuadas destinam-se justamente a fazer a demonstração do excesso em que incorreu o acórdão agora sob recurso.

É certo, desde logo, que se dá conta no primeiro acórdão de que, na pendência do recurso, os imóveis a que o contrato-promessa respeitava, e cuja execução específica a autora pediu, lhe foram vendidos pela ré; e que se se afirmou que dessa venda resultava a inutilidade superveniente da lide, relativamente à execução específica.

A verdade, todavia, é que o acórdão de 27 de Novembro de 2014 não julgou a lide supervenientemente inútil, no que respeita ao pedido de execução específica; muito pelo contrário, após ter afirmado essa inutilidade, prosseguiu discorrendo sobre os efeitos e os fundamentos da execução específica, procedeu ao cálculo do remanescente do preço (pág. 17 do acórdão) e, a fls. 18, à síntese conclusiva que se transcreveu, da qual se salientam a conclusão de que a atitude da ré, “impedindo que se concretize a condição suspensiva (…) evidencia uma clara vontade de não cumprir o contrato”, não sendo portanto exigível à autora “uma interpelação admonitória fixando um prazo de cumprimento (…)”, de que a efectivação do contrato ainda é possível” e de que a autora ainda tem interesse nessa efectivação. Nenhuma destas afirmações é compatível com a extinção da lide, no que respeita à questão da execução específica, por ter sido celebrado o contrato de compra e venda.

Diga-se, aliás, que, na perspectiva de inutilidade superveniente do pedido de execução específica, não se compreenderia facilmente a preocupação do acórdão de 27 de Novembro de 2014 em dar como verificada a condição suspensiva.

Mas o que é decisivo é que em parte alguma do acórdão de 27 de Novembro de 2014 se refere sequer que o preço tenha sido pago; ou se expõe algum raciocínio que o revele ou indicie, e que sempre teria que ser compatibilizado com o discurso sobre a redução do preço; a diferença entre os dois acórdãos reside, como se sabe, na condenação no pagamento do preço reduzido, constante do primeiro acórdão e eliminada no segundo.

Ora, o texto do acórdão de Novembro de 2014 haveria de ser absolutamente claro no sentido de ter sido já pago o preço, para se poder sequer estranhar uma condenação no respectivo pagamento, como então se decidiu; e a verdade É que da respectiva leitura não resulta a existência de um lapso material, consistente em se dizer que se “condena a Autora a pagar á Ré, a título do remanescente do preço, a quantia de (…)”, quando era patente que o que se quis escrever não incluía nenhuma condenação, apenas a declaração de qual era o preço reduzido, uma vez que o preço já fora pago.

Da afirmação de que “na pendência do presente recurso, veio a recorrente declarar no processo que já lhe fora transmitida a propriedade dos imóveis em causa, mediante contrato de compra e venda com a Ré. Na medida em que a Ré não nega tal compra e venda, de resto documentada a fls. 783 e seguintes, verifica-se a inutilidade superveniente da lide no tocante ao pedido de execução específica do contrato promessa” (acórdão de Novembro de 2014), interpretada no contexto do acórdão a que pertence, não se detecta nenhum lapso que revele que também se quis dizer que “nessa acto de compra e venda [tinha] sido pago o preço” (acórdão rectificativo), e, portanto, que a lide também se tinha tornado inútil quanto ao “pagamento do remanescente do preço” (acórdão rectificativo); nem que, onde se escreveu “condena-se a Autora a pagar à Ré, a título de remanescente do preço, a quantia de € 722,295,27” (acórdão de Novembro de 2014), se quis escrever “Declara-se reduzido o preço ajustado no contrato promessa para a quantia de € 722,295,27”.

Na verdade, o acórdão de Novembro de 2014 nada diz quanto a ter sido ou não efectuado o pagamento do preço, nem directa, nem indirecta ou implicitamente.

9. Daqui decorre que não pode ser considerada a alteração introduzida pelo acórdão de 9 de Julho de 2015, por não se traduzir numa rectificação de um erro material, mas antes numa alteração inadmissível.

Donde decorre necessariamente que o texto do acórdão de 27 de Novembro de 2014 se mantém, tal como foi aprovado e transitou em julgado.

Assim sendo, não há que apreciar as demais questões suscitadas pelas partes, maxime quanto a saber se está ou não provado o pagamento do preço.

10. Por esta mesma razão, indefere-se o requerimento apresentado pela recorrente a fls. 997, no sentido de ser notificada a recorrida para juntar prova do pagamento.

11. Não se aprecia o pedido de condenação como litigante de má fé que a Sociedade de Construções AA, Lda. formulou a fls. 1035, pois vem dirigido ao Tribunal da Relação de Lisboa.

12. Nestes termos, concede-se provimento ao recurso e revoga-se o acórdão de 9 de Julho de 2015.

Custas pela recorrida.

Lisboa, 26 de Novembro de 2015

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)

Salazar Casanova

Lopes do Rego