Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2920/16.1T8STS.A-P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
CONTRATO DE MÚTUO
ESCRITURA PÚBLICA
HIPOTECA
CONFISSÃO DE DÍVIDA
TRANSFERÊNCIA
PATRIMÓNIO DO DEVEDOR
Data do Acordão: 06/18/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – VERIFICAÇÃO DE CRÉDITOS / RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / FUNDAMENTOS DA REVISTA / JULGAMENTO DO RECURSO.
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / MÚTUO.
Doutrina:
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª edição, p..44.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGO 128.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 674.º, N.ºS 1, ALÍNEAS A) E B) E 3 E 682.º, N.º 2.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1142.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 18-10-2016, RELATORA ANA PAULA BOULAROT, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I. A escritura pública de constituição de uma hipoteca sobre um imóvel do devedor, posteriormente declarado insolvente, na qual as partes declaram que essa hipoteca garante o cumprimento de um crédito de 340.000,00€, respeitante a vários mútuos, ocorridos ao longo de quatro anos, que as partes afirmam terem sido celebrados, não constitui prova suficiente do crédito reclamado nos termos do art.128º do CIRE.

II. Sendo o mútuo um contrato real quanto à constituição, a sua completude normativa e a consequente existência do dever de restituir o valor mutuado dependem da prova de que esse valor foi, efetivamente, entregue ao mutuário.

III. No âmbito da reclamação de créditos em processo de insolvência, a confissão de dívida do devedor insolvente, ainda que constante de escritura pública, não é meio adequado para provar que o credor lhe mutuou o montante agora reclamado. Dado que o art.128º do CIRE exige que o crédito reclamado seja documentado, o credor (mutuante) tem de juntar os contratos de mútuo e os documentos comprovativos da transferência da quantia mutuada para o património do devedor.

Decisão Texto Integral:

I. RELATÓRIO

1. Por apenso aos autos de insolvência de AA, o BB, S.A., nos termos do art.130º do CIRE, impugnou o reconhecimento do crédito reclamado por CC, no valor de €214.230,00, garantido por hipoteca sobre um imóvel situado na .... Alegou, em síntese, que, apesar de juntar uma escritura pública de constituição da hipoteca, da qual consta que garante vários contratos de mútuo, não fez prova da existência desses contratos. Os alegados mútuos teriam sido contratos simulados.

2. O credor reclamante apresentou resposta, nos termos do art.131º do CIRE, pugnando pela manutenção do reconhecimento do crédito (que havia sido reconhecido pelo administrador da insolvência).

3. A primeira instância entendeu que não existia prova de que o reclamante e o insolvente tivessem querido simular a existência do crédito e, consequentemente, manteve o reconhecimento do crédito. Foi proferida sentença de graduação de créditos, que graduou o crédito do credor reclamante – CC –  como crédito hipotecário.

4. Inconformado, o BBB interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto.

            A segunda instância, em 09.08.2018, por decisão singular do desembargador relator (com base no art.656º do CPC), julgou a apelação procedente, por entender que o credor-reclamante não tinha feito prova de ter mutuado a quantia reclamada. Assim, revogou a decisão recorrida, excluindo aquele crédito da graduação.

            O credor/recorrido reclamou para a Conferência, exigindo que fosse proferido acórdão.

Tal acórdão, proferido em 09.10.2018, confirmou a decisão reclamada.

5. Não se conformando com a decisão da segunda instância, o credor-reclamante interpôs o presente recurso de revista, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:

«1. O credor impugnado, aqui recorrente, alegou, fundamentou e comprovou a existência do seu crédito sobre o insolvente, por exibição de uma escritura pública da qual resulta o mútuo de diversos valores ao longo de diversos anos, e num montante ainda superior àquele que lhe foi reconhecido pelo Sr. Administrador de Insolvência.

2. A realidade do mútuo (e completude desse negócio) é declarada e atestada pelos próprios mutuários, naquela escritura.

3. As declarações documentadas na escritura foram confirmadas, de forma coerente e verosímil por mutuante e mutuário insolvente, em sede de audiência de discussão e julgamento.

4. O sobredito crédito foi impugnado pelo credor "Banco BBB" - com fundamento na sua inexistência/simulação - e, uma vez realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou a impugnação improcedente, face à ausência de prova do credor BBB quanto aos factos por si invocados.

5. Por decisão singular do Tribunal da Relação do Porto, a sentença do Tribunal de primeira instância foi revogada e substituída por outra que, considerando a ausência de prova do credor impugnado quanto à entrega dos valores mutuados, julgou procedente a impugnação do credor "BBB", não reconhecendo o crédito impugnado.

6. Pese embora possa ser entendido que a escritura pública não constitui instrumento de prova plena da entrega do dinheiro ao devedor/insolvente, é-o, porém, a declaração do último no sentido de já o ter recebido do ora reclamante, o que implica o reconhecimento de um facto que lhe é desfavorável e que a norma legal ínsita no artigo 352° do C. Civil qualifica de confissão.

7. Dispõe o artigo 376° do C. Civil - relativo à força probatória dos documentos  particulares - que  "o documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações nele atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento" (n.1) sendo que "os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante" (n° 2).

8. Ora, o reconhecimento de dívida pode ter lugar através de negócio jurídico unilateral ou, simplesmente, tal reconhecimento pode também verificar-se, como no caso em exame sucedeu, por meio de confissão, que, se feita à parte contrária, tem força probatória plena, conforme já se pôs em evidência através da escritura pública junta aos autos.

9. Isto não significa que, em sede da impugnação do seu crédito, não impende sobre o credor impugnado o ónus de invocar e provar os factos essenciais e constitutivos do seu direito de crédito, contudo, esse ónus preenche-se por aquilo que resulta da escritura, exceto se forem arguidos e demonstrados factos em contrário.

10. Ora, diante do que resulta de documento autêntico (escritura, in casu) é quem quer opor-se ao que do mesmo consta que compete alegar factos modificativos ou impeditivos e correspondente ónus de prova, de forma a ilidir a presunção júris et de jure de que beneficiam os factos/declarações ali atestados.

11. Concluindo, era ao credor impugnante BBB que cabia o ónus de impugnar, nos termos legais, o documento apresentado pelo credor impugnado (escritura pública com hipoteca) e de provar os elementos constitutivos da sua pretensão.

12. Com efeito, a força probatória plena do documento particular não impede que as declarações nele constantes sejam impugnadas com base na falta de vontade ou nos vícios da vontade capazes de a invalidarem, podendo o impugnante - sobre quem impendia o correspondente ónus da prova - recorrer a qualquer meio, incluindo a prova testemunhal (conforme comummente tem sido entendido e aceite) para provar que as declarações não correspondem à vontade real das partes ou que foram afetadas por qualquer vício de consentimento.

13. Não tendo cumprido esse ónus, por nada ter demonstrado em contrário daquilo que consta da escritura (ou seja, por não ter provado que existiu qualquer simulação de negócio ou vício e vontade), a confissão (realizada pelo devedor/insolvente de que existiram vários empréstimos concedidos pelo credor impugnado) plasmada nesse documento autêntico tem força probatória plena.

14. Desta forma, dúvidas não podem existir – porque assim resulta do teor da escritura/confissão de dívida; porque assim foi confirmado pelas declarações em julgamento das partes envolvidas e porquanto nenhuma prova em contrário foi produzida – que o crédito do credor impugnado, aqui recorrente – incluindo, designadamente, o mútuo de diversas quantias e o seu recebimento pelo insolvente – deve ser tido por cabalmente demonstrado/provado.

15. Ao não reconhecer o crédito do ora reclamante, não obstante a prova efetuada e, em consequência, não o tendo graduado, a douta sentença padece de erro de julgamento de direito, por violação do disposto nos artigos 371°, 352°, 374°, 376°, 396° e 458° todos do Código Civil.

16. Pelo que, no caso destes autos, impunha-se considerar cumprido o ónus de prova do crédito do recorrente, por mútuos efetuados e, por conseguinte, face à ausência de prova em contrário pelo impugnante, cabia julgar totalmente improcedente a impugnação deduzida pelo credor impugnante.

Nestes termos e nos melhores de direito que v.a exas. Doutamente suprirão, requer-se, respeitosamente, que seja o presente recebido e aceite, seguindo-se os ulteriores termos até final que deverão culminar com a prolação de acórdão que, decidindo da questão apresentada, revogue a douta decisão proferido pelo tribunal da Relação do Porto e que, consequentemente, confirme a sentença proferida pelo  tribunal de primeira instância, assim se fazendo a costumada justiça.»

6. O recorrido apresentou contra-alegações, pugnando pela inadmissibilidade do recurso, dado que o recorrente não havia demonstrado a verificação dos pressupostos exigidos pelo art. 14º do CIRE. Quanto aos fundamentos do recurso, pugnou pela sua improcedência.

II. APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS

1. A questão prévia da admissibilidade do recurso

A recorrida invocou, nas contra-alegações a inadmissibilidade do recurso de revista, porquanto o recorrente não havia demonstrado que se encontravam preenchidos os pressupostos exigidos pelo art.14º do CIRE.

Ora, para além de o teor literal do art.14º não permitir sustentar essa interpretação, tem sido jurisprudência reiterada do Supremo Tribunal de Justiça, que as regras do art.14º não se aplicam aos incidentes que correm por apenso, como o de verificação e graduação de créditos.

Neste sentido, veja-se, por exemplo, o Ac. do STJ, de 18.10.2016 (relatora Ana Paula Boularot)[1]:

«I. O artigo 14.º do C.I.R.E., ao admitir a possibilidade de recurso por oposição de acórdãos no âmbito do processo de insolvência, refere-se apenas à sentença de declaração de insolvência e à oposição que for eventualmente deduzida.

II. Quaisquer outros incidentes processados por apenso aos autos de insolvência encontram-se excluídos daquele regime específico, o que significa que as decisões neles produzidas são passíveis de recurso nos termos gerais.».

            Assim, tendo o acórdão recorrido revogado a decisão proferida em primeira instância, o recurso de revista é admissível, nos termos do art.671º do CPC.

2. O objeto do recurso

A questão central a decidir, que emerge das conclusões das alegações do recorrente, é a de saber se o crédito impugnado, e não reconhecido pelo acórdão recorrido, deve considerar-se provado, sendo, consequentemente, reconhecido e graduado.

3. A factualidade relevante:

As instâncias consideraram provada a seguinte matéria de facto:

«1) Por escritura pública de hipoteca, celebrada a 8 de Junho de 2013, a fls. 2 e seguintes do Livro … do Cartório Notarial de DD, no que para aqui mais interessa, CC declarou ter concedido a AA e a EE a quantia global de 340.000€, desde sete de Janeiro de 2002 até 20 de Novembro de 2006 através de diversos contratos de mútuo e no presente mês receberam ainda a quantia de 50.000€, que o empréstimo deve ser pago até 31 de Dezembro de 2018 e que AA e a EE constituem a favor de CC uma hipoteca sobre o prédio urbano sito em ..., na ..., descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º …, tudo conforme termos do documento de fls. 45/47 cujo teor aqui se dá por reproduzido.

2) Mostra-se registada a favor de CC uma hipoteca, com o valor máximo de 340.000€, sobre o prédio urbano sito em ..., na ..., inscrito na matriz sob o artigo … e descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º ... (ap. 1408 de 2013/06/28).

3) A aquisição, por compra, do prédio referido em 2) está registada a favor de AA, casado com EE no regime de comunhão de adquiridos (ap. 14 de 1995/04/24).

4) O Senhor Administrador da insolvência reconheceu a CC um crédito garantido no valor de 214.230€.»

4. O direito aplicável:

4.1.   A questão de saber se o crédito impugnado se deve ou não considerar reconhecido, limita-se, em recurso de revista, ao conhecimento da correta aplicação, pela decisão recorrida, das pertinentes regras de direito substantivo e processual [art.674º, n.1, al. a) e b)]. Como decorre da leitura conjugada dos artigos 682º, n.2 e 674º, n.3 do CPC, ao STJ não cabe, em regra, reapreciar a decisão respeitante à matéria de facto, ressalvando-se o disposto na parte final desta última norma. 

Não será, assim, reapreciada a convicção que as instâncias formaram a partir de prova testemunhal e depoimentos de parte; mas tão só a aplicação das regras (de natureza substantiva e processual) disciplinadoras da prova sobre se o crédito reclamado existe ou não.

            O reclamante (agora recorrente) alegou que o crédito reclamado emergia de múltiplos contratos de mútuo, celebrados ao longo de vários anos, por meio dos quais havia emprestado ao insolvente a quantia reclamada. Todavia, esses alegados contratos de mútuo não foram juntos aos autos. Na tese do recorrente/reclamante a prova de tais contratos resultaria da escritura pública (referida na matéria de facto provada), através da qual foi constituída uma hipoteca sobre um imóvel do mutuário para garantia do pagamento das quantias mutuadas. 

4.2. A decisão recorrida adotou o entendimento (doutrinalmente e jurisprudencialmente reiterado) de que o contrato de mútuo é um contrato “real” quanto à sua constituição, ou seja, só se considera concluído com a efetiva entrega da coisa mutuada, como emerge da definição do art.1142º do CC.

Neste sentido, afirma-se, nessa decisão:

 «(…) para que o contrato de mútuo se tenha por validamente constituído não é suficiente a prova do mero acordo das partes (o consenso contratual), sendo mister, ainda, a prova da tradição ou entrega da coisa ou quantias mutuadas.»

No que respeita à prova de que o credor reclamante entregou efetivamente ao insolvente as alegadas quantias mutuadas, a decisão recorrida entendeu que a escritura pública, celebrada em 28.06.2013, que serviu de base à reclamação do crédito, não contém a prova de tal facto. Nem essa prova é feita por outros meios.

Afirma-se na decisão recorrida: «(…) se a escritura não faz prova plena de que as declarações são verdadeiras, ou seja, não faz prova plena da celebração de um contrato de empréstimo e da consequente entrega pelos mutuantes aos mutuários de uma quantia, ela está sujeita ao sistema da prova livre ou livre convicção do juiz, e, portanto, às regras do ónus da prova.

A regra em direito é a de que quem alega um determinado facto tem a obrigação de prová-lo. O artigo 342.º, nº 1 do Código Civil preceitua a obrigação de prova dos factos que sejam constitutivos do direito que se alega, isto é, daqueles que servem de fundamento e que substancialmente configuram uma determinada posição jurídica

E acrescenta-se:

«(…) não temos dúvidas de que incumbe ao credor (mutuante) o ónus de prova da entrega das quantias ao insolvente, enquanto elemento constitutivo do contrato de mútuo (negócio real quoad constitutionem).»

Afirmando-se ainda: «(…) As regras do ónus da prova servem precisamente para os casos em que depois de toda a instrução, de toda a actividade probatória o juiz continua sem convencimento de como os factos se passaram.

Se a dúvida paira sobre o facto constitutivo, ela deve ser suportada pelo autor, ocorrendo o contrário em relação aos demais factos – artigo 414º do CPC.

(…)

 No caso, o que ressalta é que não foi feita a mínima prova convincente da existência das entregas do dinheiro. Apesar do credor reclamante dizer que foram feitos contratos de mútuo, o certo é que não foi apresentada qualquer prova, por exemplo transferência bancária, cheque ou entrega testemunhada.

(…)

Não foram indicados o número dos empréstimos, as respectivas quantia, datas e demais circunstâncias em que ocorreram. As próprias partes alegam não se lembrarem desses pormenores.

Convenhamos que não é plausível que se vá emprestando quantias que ascendem a 340 mil euros num período de vários anos e não haja qualquer prova das entregas individualizadas. Poderá até questionar-se como se alcançou aquele exacto montante numa ambiência de total informalidade.

Do que se explanou resulta que o credor reclamante não fez prova da existência do seu crédito.

Pelo exposto, delibera-se julgar a apelação procedente e, em consequência revoga-se a decisão recorrida, passando o crédito de CC a ter-se como não provado, não reconhecido e excluído da graduação»

4.3. A decisão, assim sintetizada, no que respeita à aplicação das regras legais sobre ónus da prova dos factos alegados pelo reclamante/recorrente nenhuma censura merece.

A escritura que o reclamante junta para justificar o crédito reclamado não é uma escritura de mútuo. É uma escritura de constituição de hipoteca destinada a garantir o montante que o reclamante declara, nessa escritura, ter anteriormente emprestado ao insolvente.

Como estabelece o art.1143º do CC, o contrato de mútuo de valor superior a €25.000,00 só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado. A inobservância desta forma determina a nulidade do contrato de mútuo.

Ora, da factualidade provada não é, sequer, possível saber se os alegados contratos de mútuo seriam válidos, pois não se sabe qual o concreto montante que lhes corresponderia.

4.4. Por outro lado, ainda que os contratos de mútuo tivessem sido validamente celebrados, para que exista a obrigação de restituir a cargo do mutuário, não basta essa celebração. Tem de existir efetiva entrega da quantia mutuada.

Ora, não existe nos autos prova de que os valores reclamados tivessem efetivamente sido transferidos do património do reclamante para o do insolvente (art.1144º do CC).

O ónus de provar essa deslocação patrimonial, que vai gerar a obrigação de restituir e o correspondente direito de crédito, cabe a quem alega esse facto, como estabelece o art.342º, n.1 do CC. Cabia, assim, ao reclamante/recorrente a prova de que entregou efetivamente as quantias alegadamente mutuadas, pois é dessa concretização do contrato de mútuo que resulta o direito de exigir a restituição.

A entrega da quantia mutuada, sendo simultaneamente um ato que completa a formação do contrato de mútuo (por ser um contrato real quanto à constituição) e um ato de execução da obrigação do mutuante, é, segundo as normais regras da experiência contratual, um ato fácil de documentar, que pode verificar-se, por exemplo, através da cópia de cheques, de ordens de transferência, extratos bancários. No caso concreto, nenhum desses meios de demonstração da entrega da quantia reclamada foi apresentado; e em relação a nenhum dos alegados múltiplos contratos de mútuo.   

4.5. Quanto à alegação de que aquela escritura encerra uma confissão ou reconhecimento de dívida do mutuário insolvente, para concluir que a dívida se presume, e que, consequentemente, teria de ser o recorrido a provar o contrário, tal argumento não colhe.

 Como resulta do art.458º do Código Civil o reconhecimento de dívida é uma declaração unilateral, que deve constar de documento escrito com a declaração de expresso reconhecimento de uma dívida “sem indicação da respetiva causa”. Ora, como facilmente se concluiu da matéria de facto provada, a escritura supra referida não apresenta essa configuração, tratando-se, antes, de um instrumento de natureza contratual.

Como afirma Antunes Varela[2], o reconhecimento de dívida, previsto no art.458º do CC, não constitui fonte autónoma de obrigações. Cria apenas a presunção da existência de uma relação negocial ou extra negocial, que será a verdadeira fonte da obrigação. Ora, no caso concreto, mais do que saber se a relação fundamental (o contrato de mútuo) existiu, o que importa é saber se o crédito (alegadamente emergente dessa relação) existe ou não. E a tal facto já não se estende a presunção consagrada no art.458º. Aliás, o art.128º do CIRE é bem claro quando estabelece a regra de que o crédito reclamado deve ser documentado. Tal exigência de prova documental não seria compatível com a tese defendida pela recorrente, nos termos da qual o reconhecimento da dívida pelo insolvente conduziria a que a existência do crédito se presumisse.

Conclui-se, assim, que a decisão em revista não fez errada aplicação nem da lei substantiva nem da lei de processo, pelo que nenhuma censura merece.

III. DECISÃO: Pelo exposto, decide-se negar a revista, mantendo a decisão recorrida.

Custas: pelo recorrente.

Lisboa, 18 de junho de 2019

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Raimundo Queirós

Ricardo Costa

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[1] http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/3c2ac16cbc251da4802580510040662d?OpenDocument
[2] Das Obrigações em Geral, Vol. I (10ª ed.), pág.442