Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
106/13.6TYVNG-B.P1.S1
Nº Convencional: 6ª. SECÇÃO
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: INSOLVÊNCIA
RECURSOS
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
Data do Acordão: 10/18/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR - RECURSOS / APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DAS NORMAS DO PROCESSO CIVIL - EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / EFEITOS SOBRE O DEVEDOR E OUTRAS PESSOAS / TRANSFERÊNCIA DE PODERES PARA O ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- “Código Da Insolvência E Da Recuperação De Empresas” Anotado, Colecção PLMJ, 2012, 128/129.
- Ana Prata, Jorge Morais Carvalho, Rui Simões, “Código Da Insolvência E Da Recuperação De Empresas” Anotado, 2013, 229.
- Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas” Anotado, 2.ª edição, 2013, 303/305.
- Maria do Rosário Epifânio, «Efeitos da Declaração de Insolvência sobre o Insolvente no novo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas», in Direito e Justiça, Vol. XIX, Tomo II, 2005.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 6.º, 14.º, 17.º, 46.º, N.ºS 1 E 2, 81.º, N.º4, 130.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 631.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 13 DE NOVEMBRO DE 2014, IN WWW.DGSI.PT .
-DE 20 DE OUTUBRO DE 2015, IN WWW.DGSI.PT .
Sumário :

I. O artigo 14.º do C.I.R.E., ao admitir a possibilidade de recurso por oposição de acórdãos no âmbito do processo de insolvência, refere-se apenas à sentença de declaração de insolvência e à oposição que for eventualmente deduzida.

II. Quaisquer outros incidentes processados por apenso aos autos de insolvência encontram-se excluídos daquele regime específico, o que significa que as decisões neles produzidas são passíveis de recurso nos termos gerais.

III. Contudo, quer àqueles recursos, quer a estes outros, são aplicáveis as regras gerais de verificação das condições de admissibilidade de recurso ex vi do normativo inserto no artigo 17.º do C.I.R.E., não sendo de todo em todo incompatível com a regulamentação insolvencial, a aplicação do C.P.Civil em sede de requisitos gerais recursivos (vg, legitimidade, valor, sucumbência).

IV. Resulta do artigo 631.º, n.º1 do C.P.Civil que «(…) os recursos só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido.».

V. Carece de legitimidade ad recursum a devedora insolvente, representada pelos seus administradores, da sentença que rectifica uma graduação de créditos, por nela não ter ficado prejudicada, quando, existindo duas categorias de credores privilegiados, se graduou um deles (trabalhadores) à frente de outro (Segurança Social), sendo que esta não deduziu qualquer impugnação, sendo que o Administrador da Insolvência, nas suas vestes de representante daquela para todos os efeitos de carácter patrimonial, como decorre expressamente do disposto no artigo 81.º, n.º4 do C.I.R.E., ter produzido o parecer de fls. 14 no sentido da rectificação da sentença e notificado desta, não ter deduzido qualquer oposição recursiva.

APB

Decisão Texto Integral:

ACORDAM, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I Nos autos de verificação e graduação dos créditos que correm por apenso aos autos de insolvência de “X, LDA”, foi proferida a sentença que consta de fls. 4 do apenso B, após cumpridas as formalidade legais (designadamente, depois de o Senhor Administrador de Insolvência vir juntar aos autos a lista dos créditos reconhecidos, nos termos do artigo 129º do CIRE - lista essa que não foi alvo de qualquer impugnação), aí se tendo consignado que a massa insolvente era constituída por bens móveis e direitos de crédito.

Por requerimento de 31 de Março de 2015, o Senhor Administrador de Insolvência deu conhecimento ao Tribunal da existência de outro bem da massa insolvente - um bem imóvel, constituído por uma fracção autónoma designada pela letra Y …, correspondente a um escritório do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua …, descrito na … Conservatória do Registo Predial de …, tendo solicitado a rectificação da aludida sentença de graduação de créditos, pois a mesma padecia de um lapso quanto aos bens da massa insolvente e, consequentemente, quanto aos créditos verificados a graduar por referência aos bens integrantes da massa insolvente.

Nessa sequência, o Tribunal (cfr. fls. 13) ordenou que o Senhor Administrador de Insolvência esclarecesse se o que alegara (quanto à existência do bem imóvel da massa insolvente) interferia com a ordem de graduação de créditos determinada na sentença – a qual determinava que os créditos laborais fossem graduados antes dos créditos reclamados pelo Instituto da Segurança Social, IP.

Em 7 de Maio de 2015 (fls. 14), veio o Senhor Administrador de Insolvência informar que a graduação anteriormente determinada pelo Tribunal devia manter-se, gozando os créditos privilegiados do privilégio mobiliário e imobiliário, atendendo a que foram apreendidos bens móveis e imóveis para a massa insolvente – nada dizendo quanto à circunstância de nesse bem imóvel ter sido, ou não, prestada actividade pelos trabalhadores cujos créditos laborais foram verificados.

Por despacho de 20 de Maio de 2015 (cfr. fls. 15), o Tribunal ordenou a notificação do Senhor Administrador de Insolvência para vir esclarecer se os trabalhadores exerciam funções no bem imóvel apreendido, tendo o Senhor Administrador de Insolvência respondido a 12 de Junho de 2015 (cfr. fls. 16), que o gerente da Insolvente (notificado para vir comunicar onde os trabalhadores se encontravam a laborar) “veio transmitir que era na Rua …”, esclarecendo o Senhor Administrador que esse “não é o imóvel apreendido para a massa insolvente”, “conforme anexo” que junta a fls.17 (neste, o dito gerente informa “que os trabalhadores em questão não trabalhavam no imóvel referido, mas sim na fracção …W do imóvel situado na Rua …”).

Por despacho de 30 de Junho de 2015 (cfr. fls. 18), o Tribunal a quo ordenou a notificação dos credores para se pronunciarem sobre as aludidas informações trazidas pelo administrador de insolvência ao tribunal (a fls. 14, 16 e 17).

Por requerimento de 30 de Julho de 2015, alegou o Credor J que a supra aludida fracção da Insolvente foi, em tempos, o único escritório onde os trabalhadores laboravam e que, posteriormente, os trabalhadores da Insolvente começaram a utilizar as duas referidas fracções - fracção W e fracção Y propriedade da Insolvente - como local de trabalho, sendo que os escritórios propriamente ditos e respectivos postos de trabalho dos trabalhadores passaram para a fracção W e a fracção Y apreendida passou a ser utilizada como arquivo/armazém, que os trabalhadores utilizavam e acediam habitualmente, no desenvolvimento da actividade da Insolvente.

Mais nenhum Credor respondeu à notificação do Tribunal (para, querendo, se pronunciarem sobre a questão do local onde exerciam as suas funções).

O Tribunal proferiu então o despacho de fls. 21, com o seguinte teor: «Tendo em consideração o que dimana dos autos, mantém-se a ordem de graduação determinada a fls. 8 e 9, por reporte ao bem imóvel apreendido, dado que os créditos laborais gozam, igualmente, de privilégio especial e o crédito por contribuições para a segurança social goza de privilégio imobiliário geral”.

 

Inconformada com este despacho – “o qual constitui um complemento/rectificação da sentença de graduação de créditos proferida em 05.02.2015” –, dele vem recorrer a Insolvente X, LDA, recurso esse que não foi admitido por o Tribunal da Relação do Porto ter entendido que à Recorrente não assistia legitimidade para o efeito.

Descontente com este desfecho vem a Insolvente de novo recorrer, agora de Revista, apresentando as seguintes conclusões:

- Da análise do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto verifica-se que a decisão de ilegitimidade da Insolvente para interpor recurso da sentença de verificação e graduação de créditos se funda na aplicação tout court do regime previsto no Código de Processo Civil, concretamente do artigo 631.º do referido Código.

- Com efeito, é verdade que do artigo 14.º do CIRE, que versa sobre a matéria dos recursos, nada resulta quanto à legitimidade para os recursos interpostos no âmbito dos processos previstos neste Código.

- Já o artigo 17.º do CIRE (e não 15.2 como, certamente por lapso, refere o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto) manda aplicar subsidiariamente o Código de Processo Civil, não apenas no que diz respeito à matéria dos recursos, mas sim a todo o processo de insolvência, referindo expressamente aquela disposição legal que tal aplicação subsidiária apenas tem lugar "em tudo o que não contrarie as disposições do presente Código".

- Ora, salvo melhor opinião, tendo em consideração a natureza, finalidade e características próprias do processo de insolvência, não devem ser aplicadas automaticamente as normas que regulam o processo civil ao processo de insolvência, designadamente na parte dos recursos, em especial no que diz respeito ao decaimento e ao prejuízo como critérios para aferição do requisito de legitimidade para o recurso.

- É, precisamente, a salvaguarda dos interesses dos credores e da legalidade que a decisão objeto do Recurso de Apelação viola e que se pretendia corrigir com o mesmo.

- Sendo certo que, não se pode descurar que, no processo de insolvência, a pessoa mais habilitada para salvaguardar tais interesses é a própria Insolvente.

- Não se podendo esquecer que, no caso em concreto, o que está em causa é saber qual o local onde os trabalhadores da Insolvente prestaram actividade, de forma a graduar os créditos de acordo com os preceitos legais vigentes.

- A Insolvente é parte principal na causa.

- Pela própria natureza do processo de insolvência, maxime quando o mesmo visa a sua liquidação, que determinará, a final, a extinção da pessoa colectiva Insolvente, não é possível falar em"utilidade", "decaimento", "prejuízo", “decaimento" ou "interesse directo".

- Tal não pode significar, porém, a sua ilegitimidade para a interposição de recursos.

- Com efeito, a insolvente pessoa colectiva que não apresente um plano de recuperação, irá necessariamente ser dissolvida e liquidada, pelo que - dir-se-á - para a insolvente é indiferente pagar 100 ou pagar 1000 aos credores ou pagar a A ou a B ou a C.

- No entanto, indubitável é que, apesar do que ficou dito, o insolvente tem, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 130.º do CIRE, legitimidade para impugnar a lista de créditos reconhecidos, sendo entendimento unânime na nossa doutrina e jurisprudência que "qualquer interessado" para efeitos da supra referida disposição legal são não só os credores, mas também o próprio insolvente.

- Daqui se retira, precisamente, que o CIRE consagra uma norma que necessariamente determina a não aplicação dos critérios previstos no Código de Processo Civil para aferição da legitimidade para efeitos de recurso da sentença de verificação e graduação de créditos.

- Entender como entendeu o Tribunal da Relação do Porto - que o insolvente não tem legitimidade para recorrer da sentença de verificação e graduação de créditos - tal significaria que a nossa lei previu a prática de actos inúteis, pois tal significaria admitir que ao legislador permitiu que o insolvente impugne a lista de créditos reconhecidos para depois lhe vedar a hipótese de recorrer da sentença que recaia sobre tal impugnação, o que não concebe!

- E sublinhe-se que, no caso, a Insolvente não impugnou a lista de créditos reconhecidos porque não existia motivo para tal, na medida em que a referida lista apenas refere que os créditos laborais são privilegiados, o que não se discorda nem está em causa, pois gozam de privilégio mobiliário geral sobre os bens da Insolvente que existiam.

- Na referida lista não se consignava a existência de privilégio imobiliário especial dos trabalhadores, motivo pelo qual a discussão apenas surge em face da sentença de verificação e graduação de créditos.

- O legislador reconheceu, no regime especial do CIRE, existirem interesses relevantes para assegurar a legitimidade ou interesse do insolvente para impugnar a lista de créditos reconhecidos, muito embora a sua posição processual não fique prejudicada ou beneficiada por força da qualificação que seja dada aos créditos dos seus credores.

- Pelo que inútil seria, sim, tal prorrogativa caso depois fosse retirada ao insolvente legitimidade para recorrer da sentença de verificação e graduação de créditos por aplicação automática das normas processuais civis (regime geral).

- Tal entendimento desconsidera, por completo, a especificidade do regime jurídico especial do processo de insolvência em causa.

- Regime especial esse que não se compadece com uma aplicação cega das regras processuais civis gerais, nem o legislador o quis, pois preveniu expressamente no artigo 17.º do CIRE que a aplicação das normas do Código de Processo Civil não deve ter lugar sempre que tal se mostre incompatível com as disposições do CIRE, o que é manifestamente o caso.

- O regime jurídico do processo de insolvência tem de ser visto como um todo e assim o fazendo é imperativa a conclusão da legitimidade do insolvente para o recurso da sentença de verificação e graduação de créditos independentemente do prejuízo ou decaimento que para ele resulte da solução material protagonizada.

- Aliás, verdade é que a nossa doutrina e jurisprudência admite constantemente o recurso da sentença de verificação e graduação de créditos pelo próprio insolvente.

- E aqui, pela própria natureza do processo de insolvência e da condição que dele decorre necessariamente para o insolvente cujo processo visa a sua liquidação, não pode, salvo melhor opinião, o intérprete dissociar a legitimidade do insolvente para efeitos de recurso do interesse que o legislador lhe conferiu, no CIRE, para a prática de determinados actos processuais.

- Mais se diga que o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto busca apoio na anotação ao artigo 14.º de Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda.

- Contudo, quando os dois Autores referem que da sentença de verificação e graduação de créditos cabe recurso "nos termos gerais" não remetem para o Código de Processo Civil, mas sim para o artigo 14.º do CIRE, pelo que daqui não se retira apoio à solução protagonizada pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto.

- Neste contexto, ao recurso da sentença de verificação e graduação de créditos não é aplicável o requisito do decaimento ou prejuízo previsto no artigo 631.º do Código de Processo Civil, porquanto este vai contra as disposições

legais previstas no CIRE e a sua ratio.

- Dispõe o n.º 3 do artigo 10.º do Código Civil que "na falta de caso análogo, a situação é resolvido segundo a norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema".

- Pelo que dúvidas não restam que deve o Recurso de Apelação interposto pela Insolvente ser admitido, sendo-lhe reconhecida legitimidade para o efeito.

- Sem prescindir, sempre caberia ao intérprete recorrer ao elemento sistemático na aplicação da lei, e tendo em consideração a unidade e a coerência do sistema jurídico, sempre se imporia o mesmo resultado, isto é, a conclusão pela legitimidade do insolvente para o recurso da sentença de verificação e graduação de créditos.

- Noutra ordem de considerações, rejeitam-se, em absoluto, as considerações tecidas no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto sobre os reais interesses subjacentes ao Recurso de Apelação interposto pela Insolvente e que vão na esteira do alegado pelo Recorrido nas suas contra-alegações.

- Por um lado, porque carecem de fundamento de facto e, por outro lado, porque os "desideratos" subjacentes à legitimidade para recorrer pela qual aqui se pugna são exactamente os mesmos que mereceram protecção do legislador para conferir ao insolvente legitimidade para impugnar a lista de créditos reconhecidos, e que, a final, visam a defesa dos interesses dos credores e da legalidade.

- O Tribunal da Relação do Porto considerou aplicável - a nosso ver, mal - o conceito de legitimidade do Código de Processo Civil, conforme supra exposto.

- Pois tendo em consideração o processo insolvencial não se vê, na verdade, como não conceder ao insolvente legitimidade para recorrer da sentença de verificação e graduação de créditos.

- Não pode ainda a Recorrente conformar-se com o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto na parte em que esta refere que apenas tem legitimidade para impugnar a lista de créditos reconhecidos o credor afectado pelo crédito do credor reclamante.

- De facto, as mais das vezes, é o próprio insolvente que impugna a lista de créditos reconhecidos, invocando a inexistência de créditos reconhecidos, pugnando pelo reconhecimento de outros ou reclamando das garantias reconhecidas aos credores.

- Daí que também não colhe a tese de que da sentença de verificação e graduação de créditos apenas pode recorrer os que tenham sido afectados pela verificação e graduação dos créditos em causa.

- Em suma, o disposto no artigo 631.º do Código de Processo Civil não tem aplicação, sem mais, ao processo de insolvência, sendo de concluir pela legitimidade da Insolvente para o Recurso de Apelação da sentença de verificação e graduação de créditos interposto.

Não foram apresentadas contra alegações.

II A única questão a decidir no âmbito desta impugnação recursória é a de saber se a Insolvente, aqui Recorrente, tem ou não legitimidade para recorrer.

Analisemos.

No que à admissibilidade de recursos em sede de processo de insolvência concerne, dispõe especificamente o artigo 14º, nº1 do CIRE, que «No processo de insolvência, e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo,(…), jurisprudência com ele conforme.».

Tem sido entendimento desta 6ª secção que, o referido ínsito legal, por um lado, se refere apenas à sentença de declaração de insolvência e à oposição que for eventualmente deduzida; por outro lado, quaisquer outros incidentes processados por apenso aos autos de insolvência encontram-se excluídos daquele regime específico, o que significa que as decisões neles produzidas são passíveis de recurso nos termos gerais; quer a uns, quer a outros são aplicáveis as regras gerais de verificação das condições de admissibilidade de recurso, ex vi do normativo inserto no artigo 17º do CIRE, cfr inter alia o Ac deste STJ de 13 de Novembro de 2014 (Relator Pinto de Almeida, aqui 1º Adjunto).

Este primeiro postulado vem resolver a maior parte das perplexidades expostas em sede de conclusões pela Recorrente, a qual pretende afastar a aplicação do regime geral recursivo decorrente do CPCivil aos recursos interpostos no processo de insolvência e seus apensos, fazendo tábua rasa do preceituado naquele apontado artigo 17º do qual é claro, preciso e conciso ao predispor que «O processo de insolvência rege-se pelo Código de Processo Civil, em tudo o que não contrarie as disposições do presente Código», não se vislumbrando em que é que a aplicação do CPCivil em sede de requisitos gerais recursivos, vg, legitimidade, valor, sucumbência, poderia ser incompatível com a regulamentação insolvencial.

 

Resulta do artigo 631º, nº1 do CPCivil que «(…) os recursos só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido.».

O aporema que nos é suscitado a dilucidar é o de saber se a Insolvente ficou vencida na sentença de reclamação de créditos produzida após rectificação da mesma.

Vejamos então.

Consignou-se nessa sentença de verificação e graduação de créditos que a massa insolvente era constituída por bens móveis e direitos de crédito, tendo-se concluído, no que interessa para o conhecimento do objecto do recurso, do seguinte modo:

«(…) 1º- As dividas da massa insolvente saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda de cada bem imóvel;

2º- Do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos laborais;

3º-Do remanescente, dar-se-á pagamento ao crédito por contribuições à segurança social que beneficia de privigélio mobiliário geral; (…)»

Subsequentemente, por via do apuramento do lapso de indicação da existência de um imóvel da Insolvente, foi produzida a seguinte decisão rectificativa:

«Tendo em consideração o que dimana dos autos, mantém-se a ordem de graduação determinada a fls. 8 e 9, por reporte ao bem imóvel apreendido, dado que os créditos laborais gozam, igualmente, de privilégio especial e o crédito por contribuições para a segurança social goza de privilégio imobiliário geral”.

Significa isto que nenhuma alteração foi efectuada à decisão anterior, no que concerne à ordem de pagamentos aos credores, tendo-se mantido o pagamento aos trabalhadores pelo produto da venda do imóvel como prioritário em relação ao crédito da Segurança Social, por se ter considerado existir por banda daqueles um privilégio imobiliário especial, já enunciado em termos gerais na primitiva decisão, que os beneficiaria em relação a estoutra instituição, a qual goza apenas de privilégio imobiliário geral, devendo ser paga pelo remanescente, em segundo lugar, portanto.

Aqui chegados, impõe-se perguntar, de que modo ficou vencida a Insolvente com esta decisão rectificativa?

O processo de Insolvência constitui um procedimento universal e concursal, cujo objectivo é a obtenção da liquidação do património do devedor, por todos os seus credores: concursal (concursus creditorum), uma vez que todos os credores são chamados a nele intervirem, seja qual for a natureza do respectivo crédito e, por outro lado, verificada que seja a insuficiência do património a excutir, serão repartidas de modo proporcional por todos os credores as respectivas perdas (principio da par conditio creditorum); é um processo universal, uma vez que todos os bens do devedor podem ser apreendidos para futura liquidação, de harmonia com o disposto no artigo 46º, nºs1 e 2 do CIRE, supra enunciado, normativo este que define o âmbito e a função da massa insolvente.

A massa abrange, desta feita, a totalidade do património do devedor insolvente, susceptível de penhora, que não esteja excluído por qualquer disposição especial em contrário, bem como aqueles bens que sejam relativamente impenhoráveis, mas que sejam por aqueles apresentados voluntariamente (exceptuam-se apenas os bens que sejam absolutamente impenhoráveis), e que existam no momento da declaração da insolvência ou que venham a ser adquiridos subsequentemente pelo devedor na pendência do processo, cfr Código Da Insolvência E Da Recuperação De Empresas Anotado, Colecção PLMJ, 2012, 128/129; Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª edição, 2013, 303/305; a propósito desta problemática veja-se o Acórdão deste mesmo colectivo de 20 de Outubro de 2015, in www.dgsi.pt.

Daqui deflui que a massa insolvente tem como objectivo primordial a satisfação dos credores, o que decidido ficou na sentença de verificação e graduação de créditos, dela não decorrendo que a este respeito a Insolvente tivesse ficado prejudicada, nem em nenhum passo da sua motivação recursiva, incluindo as conclusões, aquela nos arrima um qualquer argumento no sentido de dele se poder extrair que lhe tivesse sido feito algum agravo com aquela rectificação.

Se eventualmente houve alguma entidade que ficou prejudicada, teria sido a credora Segurança Social que vê o seu crédito ser pago após o pagamento dos créditos reclamados pelos trabalhadores e pelo produto da venda do imóvel apreendido para a massa, sendo esta interessada a única que teria verdadeiro interesse em impugnar a decisão proferida, nunca a Insolvente.

Por último cumpre referir que a legitimidade ad recursum resultante do artigo 631º, nº1 do CPCivil, é uma coisa, e, coisa outra, é o direito à impugnação da lista de credores reconhecidos, a que alude o normativo inserto no artigo 130º do CIRE, direito esse que aliás a Insolvente não usou no momento próprio, o qual se destina a assegurar a tutela dos interesses do contestante, sendo legitimo concluir que a passividade da Insolvente se deveu à inexistência de qualquer conflito com os créditos reclamados, o que sempre redundaria numa ausência de interesse em contradizê-los.

E, tal ausência de interesse na contradita da existência dos créditos reclamados, não se reconduz, ipso facto, à ausência de legitimidade para recorrer, advindo esta do facto de a Insolvente não ter sido em nada prejudicada pela decisão proferida e impugnada para o Tribunal da Relação do Porto, o que aliás decorre, inequivocamente, da circunstância de o respectivo AI, nas suas vestes de representante daquela para todos os efeitos de carácter patrimonial, como decorre expressamente do disposto no artigo 81º, nº4 do CIRE, ter produzido o parecer de fls 14 no sentido da rectificação da sentença e notificado desta, não ter deduzido qualquer oposição recursiva, cfr a este respeito Maria do rosário Epifânio, Efeitos da Declaração de Insolvência sobre o Insolvente no novo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, in Direito e Justiça, Vol. XIX, Tomo II, 2005; Ana Prata, Jorge Morais Carvalho, Rui Simões, CIRE Anotado, 2013, 229.

Não podemos esquecer que a declaração de insolvência priva o devedor de poderes de administração e de disposição dos bens compreendidos na massa, sendo que tais poderes deixam de poder ser exercidos quer directamente, quer através dos respectivos administradores e/ou responsáveis legais, tal como os mesmos nos vêm configurados no artigo 6º do CIRE, os quais são deferidos ao AI, apenas competindo ao devedor a prática de actos pessoais que não sejam susceptíveis de afectar os credores, bem como outros mesmo de natureza patrimonial mas irrelevantes, cfr ibidem CIRE Anotado, 229.

A não se entender assim cairíamos, quiçá, numa situação de confusão entre a actividade do AI e do devedor insolvente, que continuasse a intervir no processo representado pelos seus administradores, o que poderia levar, in extremis, ao caos processual.

Soçobram, pois, as conclusões de recurso.

III Destarte, nega-se a Revista, mantendo-se a decisão plasmada no Acórdão recorrido.

Custas pela massa insolvente, artigo 303º do CIRE.

Lisboa, 18 de Outubro de 2016

Ana Paula Boularot - (Relatora)

Pinto de Almeida

Júlio Gomes