Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7095/10.7TBMTS.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: OMISSÃO DE PRONÚNCIA
EXCESSO DE PRONÚNCIA
ERRO DE JULGAMENTO
FACTOS RELEVANTES
MEIOS DE PROVA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA ( NULIDADES ) / RECURSOS.
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS.
Doutrina:
- Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil” Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, 1981, 144-146.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 342.º, N.º 1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 5.º, N.º 1 E 2, 154.º, 607.º, N.º 4, 2.ª PARTE, 608.º, N.º 2, 615.º, N.º 1, ALÍNEAS B), C) E D), 639.º, N.º 1 E 2, E 640.º, N.º 1, ALÍNEAS A) E C), 662.º, N.ºS 1, 2, ALS. C) E D), 3 E 4, 663.º, N.º 2, 666.º, 674.º, N.ºS 1, ALÍNEA B), E 3, 679.º, 682.º, N.ºS 2 E 3.
Sumário :
I. O não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC.

II. Tais situações reconduzem-se antes a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável aos acórdãos dos tribunais superiores por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC.

III. O mesmo se deve entender nos casos em que o tribunal considere meios de prova de que lhe não era lícito socorrer-se ou não atenda a meios de prova apresentados ou produzidos, admissíveis necessários e pertinentes. Qualquer dessas eventualidades não se traduz em excesso ou omissão de pronúncia que impliquem a nulidade da sentença, mas, quando muito, em erro de julgamento a considerar em sede de apreciação de mérito.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:



I – Relatório


1. AA (A.), técnica oficial de contas, intentou ação declarativa, sob a forma de processo sumário, em 10/11/2010, contra a Companhia de Seguros BB, S.A., alegando, no essencial, que:  

. A A., na qualidade de contabilista, desempenha as funções de técnica oficial de contas (TOC), sendo trabalhadora subordinada da sociedade “CC - Consultaria de Gestão (CC), Ld.ª”, beneficiando, como segurada, do seguro de responsabilidade civil profissional celebrado entre a R. e a Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas;

. Por contrato de prestação de serviço celebrado entre a CC e a DD (DD), Transportes Rodoviários de Mercadorias, Ld.ª, a A. desempenhou as funções de TOC da DD;

. Em 16/2/2004, a A., ao enviar à administração fiscal a declaração periódica de IVA da DD, referente ao 4.º trimestre de 2003, cometeu um erro numérico no preenchimento dessa declaração, decorrendo daí que a DD fosse punida com coima de € 30.000,00, acrescida de € 44,50, a título de custas, verbas essas pagas pela DD;

. A DD exigiu então tais verbas à A., tendo esta reclamado à R. o pagamento de tais quantias, mas esta recusou ressarcir o sinistro, alegando, contra a verdade dos factos, que a A. não poderia ser responsabilizada pela verificação do lapso em questão, uma vez que à data do sinistro não era a TOC responsável pela entrega das declarações fiscais da DD;

. Posteriormente, para evitar que a DD rescindisse o contrato de prestação de serviço com a sua entidade patronal, a A. pagou à DD aquela quantia de € 30.044,50;

. O referido contrato de seguro cobre o dever de indemnizar que impende sobre a A. resultante do erro que esta cometeu, conforme previsão “indemnizações legalmente exigíveis ao segurado decorrentes do pagamento de coimas, fianças, taxas administrativas e juros compensatórios ou de mora (de natureza não penal) aplicado aos seus clientes em consequência de erro profissional do segurado”.

Concluiu pedindo que a R. fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 30.000,00, referente ao valor da coima que lhe foi aplicada, acrescida de custas debitadas e de juros de mora.

2. A R. contestou a ação, sustentando a improcedência da ação, ao que a A. replicou.

3. Findos os articulados, foi proferido despacho saneador tabelar e selecionados os factos tidos por relevantes com organização da base instrutória (fls. 213-216).

4. Realizado a audiência final, foi proferida a sentença de fls. 345-363, datada de 02/03/2015, na qual foi inserida a decisão de facto e a respetiva motivação, a julgar a ação improcedente com a consequente absolvição da R. do pedido, tendo também aí sido fixado o valor da causa em € 30.044,50.

5. Inconformada, a A. interpôs recurso daquela decisão para o Tribunal da Relação do Porto que julgou a apelação parcialmente procedente, condenando-se a R. a pagar à A. a quantia de € 27.040,05, acrescida de juros de mora, à taxa anual de 4%, a contar de 16/11/2010, conforme acórdão de fls. 604-627, de 19/05/2016.

6. Desta feita, inconformada a R. vem pedir revista, formulando as seguintes conclusões:  

1.ª - O presente recurso tem por objeto o acórdão recorrido que, julgando a apelação parcialmente procedente, declarou nula a sentença proferida em 1.ª instância e julgou a ação parcialmente procedente, condenando a R. a pagar à recorrente a quantia de € 27.040,05, acrescida dos juros legais;

2.ª - A recorrente entende que não foi cometida nulidade na sentença de 1.ª instância, não concordando com as diversas considerações de apreciação da sentença e do processo (quanto às alegações das partes) e de direito, por não traduzirem as questões efetivamente discutidas em 1.ª instância, e conferindo-lhes uma dimensão que não têm.

3.ª – O Tribunal “a quo” conheceu de facto, alterando a resposta ao quesito 8 (que havia sido desdobrada no facto 18 e no facto não provado a) da sentença de 1.ª instância), dando-o como provado, assim o ressuscitando da sede dos factos não provados, e eliminando o facto 18;

4.ª - Porém, tal operação não só está desacompanhada de toda e qualquer ponderação da prova produzida, e portanto, não se encontrando devidamente fundamentada, como inverte e altera a decisão da 1.ª instância, sem sequer infirmar a evidente correção do seu raciocínio, este sim, baseado na prova produzida, e manifestamente fundado, lógico, coerente, e crítico das provas;

5.ª - Nesta parte a decisão recorrida viola diversas normas processuais, nomeadamente os artigos 154.º e 662.º, n.º 1, e 2, alínea c), do CPC, bem comete as nulidades ínsitas no artigo 615.º, n.º 1, alíneas b), c) e d), do CPC, “ex vi” arte 666.º do CPC;

6.ª - Na verdade, a R. comunga da sentença da 1.ª instância, pelos fundamentos aduzidos na mesma, a qual revela uma análise cuidada dos factos e do direito, analisando criticamente a prova produzida, em raciocínio que não merece qualquer reparo porque coerente, lógico, e baseado nas provas oferecidas, nas regras da experiência e do senso comum, não padecendo dos vícios que lhe vêm assacados.

7.ª - Para o efeito, importa transcrever a parte pertinente da decisão da 1.ª instância, centrando-a no segmento determinante para aferição da razão da absolvição da ré, o qual se extrai da parte em que o tribunal afirma que "... a A., contrariamente ao que lhe competia (cf. artigo 342.º, n.º l, do CC), não logrou provar um dos factos constitutivos, alegado, do seu direito, qual seja o de a mesma ter efetuado o pagamento da quantia peticionada (cf. facto não provado sob a al. a)...”, nem alegou que a "CC - Consultaria de Gestão, Ldª" (CC) repercutiu no seu vencimento a quantia satisfeita a "DD" ou que, de algum modo, lhe exigiu o pagamento do montante em apreço."

8.ª - Portanto, na base desta decisão, encontra-se, apenas e só, o facto que ficou a constar na alínea a) dos factos não provados ou seja, na base da decisão do tribunal não se encontra outra circunstância que não seja o facto da autora não ter logrado a prova de que efetuou o pagamento da quantia que agora vem peticionar à ré, apesar de o ter alegado;

9.ª - Em face desta sentença da 1.ª instância, veio a A. alegar que a mesma continha uma decisão surpresa, sem que lhe fosse dada oportunidade de se pronunciar, por teria sido considerada parte ilegítima no processo, conhecendo o tribunal de factualidade que lhe estava vedada, o que, como se viu, é perfeitamente desenquadrado da verdadeira essência da decisão da 1.ª instância;

10.ª - A verdade é que a procedência da presente ação dependia da prova, entre outros, da existência do danos/prejuízo alegados (a A. afirmou ter sofrido uma diminuição no seu património), porém, conforme resulta expressamente da sentença, a A. não logrou provar o pagamento nem qualquer outra diminuição patrimonial consequente, como apenas a ela competia, razão pela qual, sempre a ação deveria improceder, porquanto, o efetivo pagamento pela A. da quantia correspondente ao alegado prejuízo é facto constitutivo do seu direito (art.º 342.º, n.º 1, do CC);

11.ª - Não se ignora que, na decisão da 1.ª instância, se tecem outras considerações, nomeadamente sobre a circunstância da DD ter sido reembolsada (por via da prestação de serviços) por pessoa distinta da A.;

12.ª - Porém, tais considerações constituem apenas o resultado da prova testemunhal trazida a julgamento pela própria A., não podendo o tribunal ignorar esses depoimentos (isso sim, constituiria nulidade grave), sendo certo que o facto ou argumento fundamental e essencial que conduziu à decisão de absolvição, como já se viu, foi integrado, apenas e só, pela falta de prova de pagamento pela A., em resultado da sua não prova - facto não provado a) da sentença;

13.ª - Tais considerações do tribunal de 1.ª instância, nomeadamente sob um eventual direito de sub-rogação legal de terceiro, não passam disso mesmo, ou seja, traduzem a mera opinião do tribunal acerca do caminho que poderia ser seguido em face da prova que foi produzida, mas não integram os argumentos que conduziram à decisão final e a absolvição da R.;

14.ª - Na verdade, vejam-se os fundamentos do juízo crítico do tribunal, insertos na sentença da 1.ª instância, onde se conclui pela realidade efetivamente valorada por esse tribunal: “Destes depoimentos resulta, pois que o recibo a fls. 64, apesar de emitido a favor da A. em 19/07/2010, apenas prova que "DD" considerou a quantia em causa (€ 30.044,50) paga e não que foi a A. quem efetivamente a pagou, motivo pelo qual se julgou não provado o facto sob a al. a)”.

15.ª - Portanto, como correta interpretação da sentença (apreciação da prova e resposta que constitui o facto 18), apenas se pode entender que passou a constar da decisão, como facto provado, essa mesma consideração de que a DD considerou a quantia liquidada, ou seja, perante a pergunta (A autora liquidou à DD, em 19/07/2010, a quantia em causa?), o tribunal deu apenas por provado que a DD deu esse valor como pago na data indicada.

16.ª – No facto 18, acrescenta-se ainda que esse pagamento que a DD considerou efetuado, se deu por via de uma prestação de serviços da CC, durante cerca de 10 meses;

17.ª - Tal entendimento constitui apenas uma explicação ou concretização do modo como a DD considerou pago o valor em causa (por via de um encontro de contas com a CC), o que, na economia da decisão, constitui um facto meramente instrumental ou acessório, que em nada relevou para o sentido da decisão final e seu fundamento;

18.ª – O ato de pagamento que vem perguntado no art.º 8.º da Base Instrutória é muito naturalmente desdobrável nos dois momentos ou óticas em que o tribunal o desdobrou (a perspetiva do credor e do devedor), sem que se esteja a exorbitar os seus poderes de conhecimento, ou sequer a conhecer factos novos não invocados;

19.ª - Com este comportamento, a 1.ª instância respondeu afirmativamente quanto a uma parte da questão, declarando que o credor considerou liquidado o valor em causa (explicando os termos em que isso resultou da prova, como facto acessório ou instrumental, como permite o art.º 5.º, n.º 2, alíneas a) e b), do CPC, e relegou para os factos não provados a perspetiva oposta que lhe corresponde, ou seja, a de que para essa liquidação não contribuiu a A., não tendo sido esta quem pagou;

20.ª - É esta a dinâmica pura e verdadeira da sentença, a qual não encerra qualquer nulidade;

21.ª - O Tribunal “a quo” como que lançou sobre a R. e as suas peças processuais uma culpa por omissão, por falta de alegação deste facto (por não ter alegado que quem pagou à DD foi a CC, e nunca a A.); foi ainda sugerido que a R. alegou muita coisa mas nada disto, e nesta matéria limitou-se a impugnar por desconhecimento, remetendo-se a um "espesso silêncio e ignorância".

22.ª - Ora, a R. não conhece a DD, nem a CC, nem com estas teve algum relacionamento desta natureza, pelo que, muito naturalmente, o máximo que pode fazer é impugnar por desconhecimento; porém, o mesmo já não acontece com a A., que se relaciona com ambas e afirma factos pessoais, nomeadamente que realizou ela própria, pessoalmente, um pagamento;

23.ª - Por isso, não se compreende as leituras invertidas que o Tribunal faz da posição da R., e muito menos da postura da A., suposta conhecedora dos factos que alega, invocando factos que objetivamente não correspondem à verdade, tendo afirmado em juízo um pagamento que não efetuou, e prevalecendo-se de documentos que (como se verá), não substanciam os factos que alega;

24.ª - Todas as construções jurídicas que trouxe posteriormente aos autos são meras consequências do logro da sua invocação, e visam reparar o erro em que se colocou, desde o primeiro momento, adornando o pagamento que não fez;

25.ª – De qualquer forma, ainda que se aceitasse o teor da decisão do Tribunal “a quo”, haveria sempre que considerar os princípios e regras processuais que impõe solução diferente, limitando as nulidades das decisões às partes que estão afetadas, pelo que temos como certo que mesmo a consideração de nulidade acabada de proferir é perfeitamente limitável ao segmento decisório supostamente afetado, por via, nomeadamente, do disposto no art.º 195.º, n.º 2 e 3, do CPC.

26.ª - Ou seja, sempre haveria que limitar tal nulidade de pronúncia às partes afetadas, ou seja, tal nulidade deverá resumir os seus efeitos à segunda parte do facto provado 18.º (“... através da prestação de serviços por CC, durante cerca de 10 meses." - como resposta ao quesito 8), mantendo-se também o facto não provado da alínea a), pelo que, também aqui discordamos do entendimento de que “A anulação da sentença é a anulação das duas respostas ao quesito 8...”.

27.ª - Assim sendo, a 1.ª parte do facto 18 e o facto não provado a) são perfeitamente cindíveis da restante matéria, e não padecem de qualquer dos vícios de excesso de pronúncia indicados pelo tribunal, constituindo ambos a apreciação de facto essencial alegado por uma das partes, com essa exata conformação;

28.ª - Proceder de modo diferente, declarando nula uma parte da decisão que não padece dessa enfermidade, como fez o tribunal, constitui também ela pronúncia excessiva, que padece do mesmo vício - art.º 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC;

29.ª - Eliminando essas referências no acórdão, como é óbvio, restam sempre o facto não provado a), bem como a consideração de que a R. é absolvida por a A. não ter cumprido o ónus de provar um dos pressupostos da obrigação que invoca em seu benefício, ou seja, sempre se impunha a sua absolvição da instância com esses fundamentos;

30.ª - Por outro lado, procedeu o tribunal “a quo” ao conhecimento da matéria relativa ao quesito 8 e respetiva resposta, declarando-o como provado, e eliminando o facto a) da lista dos factos não provados;

31.ª - A decisão recorrida é nesta parte profundamente desconcertante, quer se entenda que o tribunal de recurso se limitou a intervir na apreciação e juízo crítico das provas efetuado pela 1.ª instância (por ter detetado algum vício de raciocínio), quer se entenda que formulou, ele próprio, uma 2.ª apreciação crítica da prova, ex novo;

32.ª - Neste aspeto, aponta-se à decisão recorrida a violação frontal de regras processuais em sede de reapreciação da matéria de facto - art.º 662.º, n.º 1 e n.º 2, alíneas c) e d), do CPC -, e ainda a pronúncia de forma ambígua sobre as provas, em termos que tornam incompreensível o sentido da sua decisão, e omissão de conhecimento de provas essenciais, evidenciando as nulidades contidas no art.º 615.º, n.º 1, alíneas c) e d), do CPC;

33.ª - Aqui se dá por transcrito o segmento decisório que aborda esta questão, tendo-se resumido a três pontos, que por sua vez se resumem à valoração de apenas dois meios de prova (um recibo e uma nota de débito), nos seguintes termos: a nota de débito e o recibo emitido pela DD “São inteiramente credíveis... os quais são emitidos à própria autora...”; a nota de débito atesta que a DD considerava a autora devedora; e o recibo coordena-se com a nota de débito e atesta o recebimento diretamente pela A.;

34.ª - O Tribunal “a quo” desconsiderou em absoluto todos os demais meios de prova, nomeadamente o testemunhal, tendo inclusive, e entre outros, ignorado que a autenticidade dos mencionados documentos foi impugnada pela R., sem cuidar de verificar, e sequer esclarecer, quais o meios probatórios que permitiram confirmar a autenticidade e credibilidade desses documentos;

35.ª - Nesta discussão não poderemos deixar de convocar novamente a decisão recorrida, no que diz respeito à análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento, na parte que releva para apreciação do facto que agora foi alterado:

   “Quanto ao facto sob o n.º 18, a testemunha EE esclareceu que (...), tendo esse valor sido compensado com os serviços prestados pela "CC - Consultaria de Gestão, Ldª", mediante o não pagamento desses serviços, durante alguns meses. No mesmo sentido, a testemunha FF (...) que, a propósito da coima aplicada a "DD", esta e a "CC - Consultaria de Gestão, Ldª" fizeram um “encontro de contas” (sic), mediante a emissão da nota de débito referida sob o n.º 8 dos factos provados e, após, com a emissão de recibo somente depois de o crédito daquela cliente se encontrar totalmente compensado com a "CC - Consultaria de Gestão, Ldª". (...) Destes depoimentos resulta, pois, que o recibo a fls. 64, apesar de emitido a favor da A. em 19/07/2010, apenas prova que “DD considerou a quantia em causa (€ 30.044,50) paga e não que foi a Autora quem efectivamente a pagou, motivo pelo qual se julgou não provado o facto sob a al. a).”.

36.ª - A própria testemunha EE afirma perentoriamente, na sua qualidade de gerente da DD, que os recibos desta entidade são todos assinados (V. gravação áudio da audiência de julgamento do dia 19.12.2014), conforme se ouve nos minutos 27:15 e seguintes, sendo certo que, o recibo dos autos, a que o tribunal dá credibilidade, (v. fls. 64), nem sequer se encontra assinado, contrariando aquilo que é afirmado pela gerente da DD como sendo "o procedimento normal".

37.ª - Por outro lado, contra a prova testemunhal, e sem qualquer sustentação ou justificação probatória que corrobore o teor do recibo, ou que infirme as afirmações das testemunhas indicadas (EE e FF), o tribunal dá como provada uma realidade que a entidade que o emitiu afirma não corresponder à verdade: quem pagou foi a CC - Consultaria de Gestão, Ldª e não a A..

38.ª - Dizem-nos as regras da experiência e do senso comum que a prova de um pagamento apenas será cabalmente demonstrada, principalmente quando a autenticidade do respetivo recibo é impugnada (como a ré o fez), mediante corroboração com outros meios de prova, nomeadamente testemunhal ou documental;

39.ª - Não só a A. não corroborou documentalmente essa diminuição patrimonial que alega ter tido, como a prova testemunhal produzida veio a infirmar a verdadeira natureza do recibo dos autos;

40.ª - Ao dar como provado este facto, nos termos que o fez, o tribunal apenas revela não ter sopesado convenientemente toda a prova produzida, não a analisando criticamente, limitando-se a proclamar a credibilidade de documentos, de forma acrítica, e sem consideração de todas as provas com influência direta na decisão do facto em causa;

41.ª - E nem se defenda a teoria trazida a julgamento pela A. após ter verificado o logro em que incorreu, alegando um cumprimento por conto do devedor... aí sim, estaríamos a introduzir novos sujeitos e relações jurídicas nos autos, alterando a sua causa de pedir, em perfeita inovação, que não poderia deixar de acarretar nulidade;

42.ª - Este novo facto provado 8, constitui, nada mais nada menos que, uma forma de permitir o enriquecimento indevido da autora, que nada despendeu mas vai receber por essa mesma via;

43.ª - Por tudo isto, o acórdão recorrido que enferma de nulidade.

44.ª - Com efeito, não se vê a necessária análise crítica à provas, efetuada autonomamente e ex novo pelo TR do Porto, nomeadamente, em relação às provas produzidas em julgamento, que foram absolutamente ignoradas, bem como, não se encontra na decisão recorrida, qualquer reparo ou indicação de erro na análise crítica e decisão de facto da 1.ª instância, no que diz respeito aos factos agora alterados;

45.ª - Com efeito, como já se disse, a análise efetuada pelo tribunal limitou-se a proclamar acriticamente a credibilidade de dado documento, e a tecer considerações e argumentos, alguns de natureza jurídica, mas sempre desligados das restantes provas, para dar como provado este facto;

46.ª - Na verdade, para o efeito de prova de pagamento, é absolutamente inócuo saber-se o que levou a DD a emitir a Nota de Débito em nome da A.; para efeitos de prova de pagamento é irrelevante saber-se quem a DD considerava sua devedora;

47.ª - E a coordenação do recibo dos autos com a nota de débito não atestam qualquer recebimento com origem na autora, carecendo, de acordo com as mais elementares regras da experiência e do senso comum, de ser corroborados por outra prova (sobre tudo quando o mencionado documento vem impugnado), que a ser verdade, facilmente se juntaria ao processo, sem necessidade de construções ou artificiosismos;

48.ª - Nem analisados isoladamente, nem em conjunto, têm os argumentos utilizados pelo tribunal, a virtualidade de fazer a prova do facto 8, tal como este veio a fazer, sendo certo que, tal só será possível mediante o cometimento das nulidades invocadas, as quais se argúem;

49.ª - Acresce que, assim sendo, imponha-se ao Tribunal da Relação a apreciação e crítica da decisão da 1.ª instância, que alterou, demonstrando, nas provas, os erros dessa decisão;

50.ª - Porém, o que se verifica, mais uma vez, é a total ausência de apreciação crítica, não sendo o tribunal capaz de demonstrar porque razão a decisão da 1.ª instância em matéria de facto se encontrava errada, ao incluir esse facto em sede de factos não provados;

51.ª - O art.º 662.º do CPC sai profundamente violado desta inversão operada pelo Tribunal “ quo”, procedendo-se à alteração da matéria de facto fora dos seus condicionalismos, dado que nada vem alegado e demonstrado que permita concluir que a decisão de facto proferida pela 1.ª instância deve ser alterada;

52.ª - E neste como em outros aspetos desta análise, o que se verifica é mais uma nulidade da decisão recorrida, consistente na omissão de pronúncia, como lhe vem imposta, mas sobretudo na falta de fundamentação, dado que os argumentos utilizados (não só são ambíguos para o efeito daquilo que se está a decidir, tornando incompreensível a decisão proferida), não têm a virtualidade de constituir qualquer apreciação crítica da prova produzida, integrando uma absoluta falta de fundamentação.

53.ª - Nestes termos, deverá ser revertida a decisão proferida pelo Tribunal “a quo”, na parte em que considerou provada a resposta ao quesito 8, e em conformidade, nesta parte, mantida a decisão proferida em 1.ª instância, mantendo o facto a) na sede dos factos não provados, e decidir em conformidade, como se fez na 1.ª instância, absolvendo a ré do pedido.

54.ª – “Tal significa que a A., contrariamente ao que lhe competia (cf. artigo 342.º, n.º 1, do CC), não logrou provar um dos factos constitutivos, alegado, do seu direito, qual seja o de a mesma ter efetuado o pagamento da quantia peticionada - cf. facto não provado sob a al. a); neste sentido, o Ac. da Rel. de Lisboa, de 30.10.2008, proc. n.º 5637/2008-2, in www.dgsi.pt. Por outro lado, não alegou que a "CC - Consultaria de Gestão, Ldª" repercutiu no seu vencimento a quantia satisfeita a "DD" ou que, de algum modo, lhe exigiu o pagamento do montante em apreço.


     Pede a Recorrente que se revogue a decisão recorrida e se julgue improcedente a ação com a consequente absolvição da R. do pedido com os fundamentos constantes da sentença da 1.ª instância.

 7. A A. contra-alegou, sustentando a confirmação do julgado.   

 8. O Tribunal a quo pronunciou-se sobre a arguição de nulidade do acórdão recorrido nos termos do acórdão de fls. 709/710, no sentido da sua não verificação.

        

         Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

                          

      II – Delimitação do objeto do recurso


Tendo a ação sido proposta em 10/11/2010 e as decisões impugnadas proferidas em 02/03/2015 (na 1.ª instância) e em 19/05/2016 (na Relação), é aplicável à presente revista o atual regime recursório, nos termos do artigo 5.º, n.º 1, do Lei n.º 41/2013, de 26-06.

Como é sabido, o objeto do recurso é definido em função das conclusões formuladas pelo recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do CPC.

Assim, das conclusões dos Recorrentes colhem-se as seguintes questões:

i) – A invocada nulidade do acórdão recorrido, ao abrigo dos artigos 154.º, 615.º, n.º 1, alíneas b), c) e d), ex vi do artigo 666.º, e do artigo 662.º, n.º 1 e 2, alínea c), do CPC, quanto à alteração da decisão de facto da 1.ª instância na matéria respeitante ao art.º 8.º da base instrutória;  

ii) – O alegado erro na apreciação daquela matéria com violação do disposto no artigo 342.º, n.º 1, do CC.


         III – Fundamentação


1. Factualidade dada como provada pelas Instâncias


Vem dada como provada a seguinte factualidade:

1.1 A autora (A.) desempenha as funções de técnica oficial de contas [TOC], sendo portadora da cédula profissional 4… – alínea A) dos factos assentes;

1.2. Sendo também trabalhadora por conta de outrem de CC - Consultaria de Gestão, Limitada [CC] – alínea B) dos factos assentes;

1.3. Entre a CC e entre a CC e a DD - Transportes Rodoviários de Mercadorias, Limitada [DD], foi celebrado em 17/11/2003 acordo denominado “contrato de prestação de serviços de contabilidade e apoio fiscal”, conforme documento de fls. 28 a 33, cujo teor se dá por reproduzido – alínea C) dos factos assentes;

1.4. Em 29/3/2004 foi comunicado à administração fiscal que a autora passaria a ser a TOC da DD – alínea D) dos factos assentes;

1.5. Em 14/7/2004, foi remetida, via internet, e em nome de DD, a declaração periódica modelo C, conforme documento de fls. 42, cujo teor se dá por integralmente reproduzido – alínea E) dos factos assentes;

1.6. Por decisão do Serviço de Finanças … Um, datada de 17/10/2005, foi aplicada à DD a coima de € 30.000,00, acrescida de € 44,50 a título de custas, respeitante à declaração periódica de Imposto sobre o Valor Acrescentado [IVA] relativa ao quarto trimestre de 2003, considerando-se tal declaração remetida em 14/7/2004 – alínea F) dos factos assentes;

1.7. Esses montantes de € 30.000,00 e € 44,50,00 foram pagos pela DD em 7/11/2005 – alínea G) dos factos assentes

1.8. Em 16/11/2005, a DD enviou, em nome da A., nota de débito no valor de € 30.044,50 – alínea H) dos factos assentes;

1.9. Entre a Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas [CTOC] e a R. foi celebrado acordo de seguro denominado “responsabilidade civil profissional técnico oficial de contas”, titulado pela apólice 8…/…, em vigor entre 1/7/2003 e 27/3/2004, conforme documento de fls. 152 a 168, cujo teor se dá por reproduzido – alínea I) dos factos assentes;

1.10. Após acionamento desse seguro por parte da Autora, a R., em 1/9/2008, respondeu no sentido de os factos relatados não se enquadrarem no âmbito da cobertura do seguro, conforme documento de fls. 66, cujo teor se dá por reproduzido – alínea J) dos factos assentes;

1.11. No âmbito do acordo descrito em 1.3. (alínea C dos factos assentes), a CC indicou a autora como TOC da DD – respeitante à matéria do art.º 1.º da base instrutória;

1.12. Em 16/2/2004, foi remetida à administração fiscal, em nome de DD, a declaração periódica modelo A, relativa a IVA, tendo por referência o último trimestre do ano de 2003 – respeitante à matéria do art.º 2.º da base instrutória;

1.13. Tal declaração foi remetida pela A., no âmbito da actividade descrita em 1 da base instrutória – respeitante à matéria do art.º 3.º da base instrutória;  

1.14. A qual foi aceite pela administração fiscal – respeitante à matéria do art.º 4.º da base instrutória;

1.15. Em tal declaração, a A. colocou, no campo 24, o montante de € 320.099,36, correspondente à base dedutível de IVA – respeitante à matéria do art.º 5.º da base instrutória;

1.16. Quando deveria ter colocado o montante de € 60.244,62, correspondente à base dedutível de IVA – respeitante à matéria do art.º 6.º da base instrutória;

1.17. Razão pela qual foi remetida a declaração descrita em E dos factos assentes – respeitante à matéria do art.º 7.º da base instrutória;

1.18. A A. liquidou à DD, em 19/7/2010, a quantia referida em 1.8 correspondente à alínea H) dos factos assentes – respeitante à matéria do art.º 8.º da base instrutória alterada pela Relação;  

1.19. A coima de € 30.000,00 foi aplicada à DD com base nos fundamentos constantes do documento de fls. 44, cujo teor se dá por reproduzido.

1.20. A A. enviou carta de 24/11/2005 à R., através de GG, Corretores de Seguros, SA, e a mesma recebeu, conforme fls. 59, cujo teor se dá por reproduzido.


2. Do mérito do recurso


O objeto da presente revista circunscreve-se à impugnação do acórdão recorrido na parte em que alterou a decisão de facto da 1.ª instância em sede da matéria constante do artigo 8.º da base instrutória.  


No referido artigo perguntava-se o seguinte:

A A. liquidou à “DD”, em 19 de julho de 2010, a quantia referida na alínea H)?

   A 1.ª instância julgou provado, conforme ponto 18 dos factos enunciados na sentença, apenas que:

“DD” considerou liquidada, em 19 de julho de 2010, a quantia referida em 8, através da prestação de serviços por “CC - Consultaria de Gestão, Ldª”, durante cerca de 10 meses.    

    A par disso, julgou não provado que:

   A A. pagou a “DD” a quantia referida em 8.

Tais juízos probatórios foram fundamentados nos seguintes termos:

«Quanto ao facto sob o n.° 18, a testemunha EE esclareceu que, em consequência do erro cometido pela Autora, que esta reconheceu, "DD" debitou-lhe (e não à "CC - Consultaria de Gestão, Ldª") o valor da coima que pagou à Administração Tributária, tendo esse valor sido compensado com os serviços prestados pela "CC - Consultaria de Gestão, Ldª", mediante o não pagamento desses serviços, durante alguns meses. No mesmo sentido, a testemunha FF evidenciou ter conhecimento pessoal de que, a propósito da coima aplicada a "DD", esta e a "CC - Consultaria de Gestão, Ldª" fizeram um "encontro de contas" (sic), mediante a emissão da nota de débito referida sob o n.° 8 dos factos provados e, após, com a emissão de recibo somente depois de o crédito daquela cliente se encontrar totalmente compensado com a "CC - Consultaria de Gestão, Ldª". Esta testemunha ainda referiu que essa compensação se traduziu na prestação de serviços durante, pelo menos, 10 meses, sem que "DD" os pagasse, em face da "avença" existente, cujo valor mensal ascendia a cerca de 3.000 €. Destes depoimentos resulta, pois, que o recibo a fls. 64, apesar de emitido a favor da Autora em 19.07.2010, apenas prova que "DD" considerou a quantia em causa (30.044,50 €) paga e não que foi a Autora quem efectivamente a pagou, motivo pelo qual se julgou não provado o facto sob a al. a).»

      

       No recurso de apelação interposto pela A., a apelante arguiu, além do mais, a nulidade da sentença da 1.ª instância por entender que o tribunal da 1.ª instância decidiu tal matéria com base em fundamento não considerado previamente pelas partes e, não obstante isso, pediu ainda, conforme conclusões XLVI e XLVII (fls. 455-456), a alteração da resposta dada, no sentido de se julgar provado que:

A A. pagou a “DD” a quantia referida em 8), que a “DD” considerou liquidada em 19 de Julho de 2010, através da prestação de serviços por “CC - Consultaria de Gestão, Ldª”, durante cerca de 10 meses, por conta da Autora.

      Na apreciação dessa questão, no que aqui releva, o Tribunal da Relação considerou o seguinte:

«A sentença é nula por se ter entendido como provado que a DD considerou liquidada, em 19/7/2010, a quantia de 30.044,50€, através da prestação de serviços por CC durante cerca de 10 meses.

Estes factos não foram alegados por nenhuma das partes e nunca teriam mero valor instrumental na economia do litígio, nem seriam factos que pudessem ser aproveitados só porque resultaram da discussão da causa, além de escaparem ao poder oficioso conferido ao juiz no apuramento da verdade.

Tendo-se tornado centrais no resultado de absolvição da ré, são factos que escapam ao núcleo de factos essenciais invocados pelas partes quanto à causa de pedir e quanto à defesa, pelo que a sua consagração corresponde a conhecimento pelo juiz de matéria de que não poderia ter conhecido, tudo acarretando a nulidade da sentença prevista no art. 615 nº 1 al. d), segunda parte, do CPC.

É uma nulidade da sentença que, em parte, tem de ser moldada pela perspectiva adjectiva que as partes tinham sobre a relevância das alegação que produziram – e omitiram – à data da formulação dos três articulados, ou seja pelo CPC de 1961, mas reitera-se que também o art. 5 nº 1 do novo CPC impede o juiz de conhecer factos essenciais que não tivessem sido alegados pelas partes.

Em todo o caso, a nulidade da sentença tem eficácia limitada, pelos seguintes motivos:

- a ré não ampliou o âmbito do recurso (veja-se que a resposta da autora às contra-alegações não foi entendida no acórdão em conferência como se encontrando ao abrigo do art. 638 nº 8 do CPC, embora por lapso se tenha escrito art. 638 nº “7” do CPC), pelo que se a autora pode ver a sua apelação julgada improcedente, o que não pode é ver-se prejudicada com base na precisa circunstância de ter apelado, isto por a apelação improceder apenas por via de argumentos que a ré ficou em condições de aduzir por ter podido contra-alegar;

- o art. 635 nº 5 do CPC estabelece que os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso, nem pela anulação do processo.

A propósito desse art. 635 nº 5, verifica-se que a sentença tem fundamentação independente das duas respostas dadas ao quesito 8 na parte em que concluiu que a autora teria direito a receber da ré a quantia de 30.044,50€ menos os 10% da franquia, ou seja 27.040,05€.

Essa conclusão intermédia da sentença não é abalada pela ré e só não está totalmente consolidada na presente fase porque a autora apela para receber o capital de 30.044,50€ – embora, verdadeiramente, não questione a redução inerente à franquia.

Assim, a um tempo, o tribunal de apelação está vinculado a só poder discutir na conclusão intermédia da sentença se a ré tem de pagar à autora ou o capital de 30.044,50€ ou o capital de 27.040,05€ – reitera-se que essa conclusão intermédia é independente das duas respostas dadas ao quesito 8.

Mas, a outro tempo, o tribunal de apelação não pode deixar de dar resposta ao quesito 8 quando aduz que essencial seria apurar se a autora pagou 30.044,50€ à DD, ou se estava obrigada, ela própria, a pagar à DD.

A anulação da sentença é a anulação das duas resposta ao quesito 8, mas não dar resposta alguma a esse quesito neste acórdão seria emendar a nulidade da sentença com a nulidade do acórdão, agora ao abrigo da primeira parte do mencionado art. 615 nº 1 al. d) e do art. 666 nº 1 do CPC.

O tribunal de apelação dispõe dos elementos necessários para conferir resposta ao quesito 8, estando esse conhecimento legitimado pela norma do art. 665 nº 1 do CPC – “ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objecto da apelação” – e pela circunstância de a autora pugnar pela alteração da matéria de facto quanto ao quesito 8, como se depreende das suas alegações 42 a 47 e das conclusões VIII e XLVI.

Vejamos.

São inteiramente credíveis a nota de débito e o recibo emitidos pela BP, os quais são emitidos à própria autora e estão insertos a fls. 48 e 67.

A nota de débito – de 16/11/2005 – atesta que a DD considerava a própria autora devedora dos 30.044,50€, pelas seguintes razões:

- a DD teve de pagar a coima de 30.000€ e as custas de 44,50€ porque a autora se enganou numa menção numérica da declaração de 16/2/2004, quando se a tivesse preenchido correctamente a DD teria pago o IVA, liquidado nessa declaração correcta, dentro do prazo legal, o qual findava em 18/2/2004, obviando-se, por essa via, àquele que veio a ser o acontecimento determinante da coima: o facto de a DD só ter pago o IVA efectivamente devido para o quarto trimestre de 2003 na sequência da declaração, correcta mas ordinariamente intempestiva, de 14/7/2004 – é um caso de responsabilidade por relevância da causa virtual negativa;

 - a DD reclama a verba directamente à autora porque conhece premissa de direito especial que responsabiliza a autora directamente perante ela pelo erro cometido na declaração de 16/2/2004, ou seja o art. 7 nº 2 do Estatuto da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas (aprovado pelo art. 2 do Decreto-Lei 452/99, de 5/11), o qual determina que “os técnicos oficiais de contas que exerçam as respectivas funções em empresas de prestação de serviços ou em sociedades de profissionais devem assumir, pessoal e directamente, as correspondentes responsabilidades”.

Esta última asserção, podendo parecer de índole jurídica, é uma asserção de facto, prendendo-se com o próprio conhecimento da DD que a motivou a reclamar directamente à autora: os factos podem ser o conhecimento que se tem do direito. A norma do transcrito art. 7 nº 2 relaciona-se com a circunstância de o título legal de técnico oficial de contas não só ser um título profissional, como ser um título profissional reservado a pessoas físicas, não podendo uma sociedade ser, ela própria e legalmente, um técnico oficial de contas.

O recibo – de 19/7/2010 e passada à própria autora – coordena-se totalmente com a nota de débito e atesta o recebimento pela DD directamente da autora.

Dentro das alegações que podem ser consideradas pelo tribunal, a nota de débito e o recibo emitidos pela DD provam que a autora liquidou à DD, em 19/7/2010, a quantia de 30.044,50€.

   Assim, o quesito 8 passa a ter a resposta “provado”, ao mesmo tempo que se suprime o único facto considerado na sentença como não provado.»


Significa isto que o Tribunal quo julgou nula a sentença da 1.ª instância, na parte em que deu como provado que a DD considerou liquidada, em 19/7/2010, a quantia de € 30.044,50€, através da prestação de serviços por CC durante cerca de 10 meses, por se tratar de factos não alegados por nenhuma das partes e não terem mero valor instrumental na economia do litígio nem serem factos que pudessem ser aproveitados só por terem resultado da discussão da causa, além de escaparem ao poder oficioso conferido ao juiz no apuramento da verdade.

Não obstante isso, o mesmo Tribunal apreciou o invocado erro de julgamento sobre a matéria vertida no artigo 8.º da base instrutória, considerando essa matéria provada, em substituição do facto dado como provado no ponto 18 da sentença com a eliminação do facto dado como não provado em a).

É contra tal decisão que a Recorrente se insurge pelas razões acima transcritas.


Vejamos.

Em primeiro lugar, importa ter presente que, nos termos do n.º 4 do artigo 662.º do CPC, das decisões da Relação previstas nos números 1 e 2 do mesmo artigo não cabe recurso para o STJ.

Em sintonia com isso, a revista não pode ter por objeto o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais, salvo quando se suscite ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, não sendo lícito ao STJ alterar a decisão de facto das instâncias a não ser nestas hipóteses, como decorre do preceituado nos artigos 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 2, do CPC.

Todavia, ainda assim compete ao tribunal de revista sindicar o exercício dos poderes da Relação na reapreciação da decisão de facto em função da respetiva disciplina processual, nos termos do art.º 674.º, n.º 1, alínea b), do CPC, como também lhe compete determinar a ampliação dessa decisão em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito ou quando nela ocorra contradição que inviabilize a solução jurídica do pleito, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 682.º do mesmo Código. E, no âmbito das presunções judiciais, tem vindo a ser entendido que cabe no âmbito da revista a sindicância do uso dessas presunções em caso ofensa a qualquer norma legal ou evidente ilogicidade do raciocínio presuntivo.


Ora a Recorrente começa por arguir a nulidade do acórdão recorrido, em sede da sobredita alteração da decisão de facto, com fundamento nos artigos 154.º, 615.º, n.º 1, alíneas b), c) e d), ex vi do artigo 666.º do CPC, ou seja, por considerar, respetivamente, que não foram especificados os fundamentos de facto que justifiquem aquela alteração, por ambiguidade ou obscuridade dos mesmos e por, ao que supomos, excesso de pronúncia.

Como é sabido, tais nulidades típicas da sentença reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal e que se mostrem obstativos de qualquer pronunciamento de mérito.

Assim, o vício da falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito só ocorrerá nos casos em que haja falta absoluta de fundamentação e já não quando a fundamentação exposta seja medíocre ou insuficiente, podendo, neste caso, quando muito, ocorrer erro de julgamento a apreciar em sede de mérito. De igual modo, a ambiguidade ou obscuridade só relevam quando tornem ininteligível a própria decisão, inviabilizando desse modo um juízo de mérito.

Por sua vez, os vícios de omissão ou de excesso de pronúncia incidem sobre as “questões” a resolver, nos termos e para os efeitos dos artigos 608.º e 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, com as quais se não devem confundir os “argumentos” expendidos no seu âmbito.

No respeitante aos recursos, as questões a resolver definem-se à luz do perfil do respetivo objeto genericamente traçado nos artigos 639.º, n.º 1 e 2, e 640.º, n.º 1, alíneas a) e c), do CPC:

a) - quanto ao erro de direito, por delimitação do erro de interpretação e/ou de aplicação da normas tidas por violadas, ou do erro na determinação da norma que devia ser aplicada – artigo 639.º, n.º 2, alíneas a) a c);     

b) – quanto ao erro de facto, por especificação dos pontos de facto tidos por incorretamente julgados e da decisão que se entende dever ser proferida – artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) e c).

Mais precisamente no que se refere à decisão de facto, importa ter presente que esta se integra na fundamentação da sentença e que os juízos probatórios parcelares que a consubstanciam podem, quando muito, padecer dos vícios de deficiência, obscuridade ou de contradição nos termos especificamente previstos na alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC. Por sua vez, a falta ou insuficiência da fundamentação da decisão sobre algum facto essencial constitui irregularidade suprível, mesmo oficiosamente, nos termos do citado artigo 662.º, nº 2, alínea d), e 3, alínea b). Nessa medida, em sede de decisão de facto, não se afigura, em princípio, aplicável o regi-me das nulidades da sentença previsto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas b) e c), do CPC.

Por outro lado, o não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC. Reconduzem-se antes a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável aos acórdãos dos tribunais superiores por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC.

Segundo o ensinamento de Alberto dos Reis[1]:

«(…) quando o juiz tome conhecimento de factos de que não pode servir-se, por não terem sido, por exemplo, articulados ou alegados pelas partes (art. 664.º), não comete necessariamente a nulidade da 2.ª parte do art. 668.º. Uma coisa é tomar em consideração determinado facto, outra conhecer de questão de facto de que não podia tomar conhecimento; o facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão.

            ----------------------------------------------------------------------

(…) uma coisa é o erro de julgamento, por a sentença se ter socorrido de elementos de que não podia socorrer-se, outra a nulidade de conhecer questão de que o tribunal não podia tomar conhecimento. Por a sentença tomar em consideração factos não articulados, contra o disposto no art. 664.º, não se segue, como já foi observado, que tenha conhecido de questão de facto de que lhe era vedado conhecer.» 

E, por argumento de maioria de razão, o mesmo se deve entender nos casos em que o tribunal considere meios de prova de que lhe não era lícito socorrer-se ou não atenda a meios de prova apresentados ou produzidos, admissíveis necessários e pertinentes. Qualquer dessas eventualidades não se traduz em excesso ou omissão de pronúncia que impliquem a nulidade da sentença, mas, quando muito, em erro de julgamento a considerar em sede de apreciação de mérito.   


É certo que, no caso vertente, contra tal entendimento, o tribunal a quo julgou parcialmente nula a sentença da 1.ª instância, na parte em que tomara em consideração «factos [que] não foram alegados por nenhuma das partes e nunca teriam mero valor instrumental na economia do litígio, nem seriam factos que pudessem ser aproveitados só porque resultaram da discussão da causa, além de escaparem ao poder oficioso conferido ao juiz no apuramento da verdade.»

Não obstante isso, o resultado prático foi não tomar em consideração tais factos, solução que equivale à que seria de adotar na qualificação mais correta de erro de julgamento, nos termos do preceituado no artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC. Todavia, o tribunal a quo foi mais além, entrando na apreciação do invocado erro de julgamento sobre o juízo probatório respeitante à matéria vertida no artigo 8.º da base instrutória mediante a valoração da prova produzida que teve por pertinente.  

Sucede que o facto dado como provado pela Relação sobre tal matéria não padece de qualquer vício de deficiência, obscuridade ou contradição. Nem tão pouco, em relação a ele, se poderá colocar o vício de excesso de pronúncia, nos termos acima definidos.    

Assim sendo, restará ajuizar se aquela alteração foi feita com inobservância da disciplina processual que parametriza os poderes da Relação na reapreciação da decisão de facto, mormente ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do CPC.

Ora, como decorre do já exposto, a apelante impugnou a decisão de facto quanto à matéria do artigo 8.º da base instrutória pugnando pela sua alteração.

E foi nessa base que o Tribunal da Relação reapreciou essa matéria, considerando que o teor do recibo de 19/7/2010, passada à própria A., tido como em total coordenação com a nota de débito, atestava o recebimento da quantia em causa pela DD diretamente da A..

Mais precisamente, enquanto que a 1.ª instância, na análise conjugada do recibo de fls. 67 com os depoimentos de EE e FF (conforme fls. 354), deu um alcance probatório indiciário restritivo ao teor daquele documento, o Tribunal da Relação, apesar disso, deu maior peso indiciário àquele documento ao conjugá-lo com a nota de débito de 16/11/2005 junta a fls. 48. Dessa análise decorre, pelo menos implicitamente, o desmerecimento da prova testemunhal tida em conta pela 1.ª instância para restringir o valor indiciário do recibo de fls. 67.

Deste modo, o Tribunal da Relação situou-se ainda nos limites da esfera dos poderes que lhe estão conferidos pelo n.º 1 do artigo 662.º do CPC para reapreciar a decisão de facto impugnada.

Saber se, nessa valoração da prova, segundo a sua livre e prudente convicção, incorreu em erro de apreciação é matéria que está vedada ao tribunal de revista, nos termos do n.º 3 do artigo 674.º do CPC, não se divisando sequer qualquer ofensa legal ou ilogicidade manifesta em sede de juízo presuntivo.

Acresce que não se verifica qualquer violação da regra do ónus da prova prescrita no artigo 342.º, n.º 1, do CC, porquanto o facto em referência foi dado como provado em função da sua natureza constitutiva do direito invocado pela A..  


IV - Decisão

Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se a decisão recorrida.

As custas ficam a cargo da Recorrente.

Lisboa, 23 de março de 2017

Manuel Tomé Soares Gomes (Relator)

Maria da Graça Trigo

                             

Carlos Alberto Andrade Bettencourt de Faria 

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[1] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, 1981, pp. 144-146.