Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
260/11.1JASTB-F.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: HABEAS CORPUS
TRÂNSITO EM JULGADO
PENA DE PRISÃO
PRESCRIÇÃO
NULIDADE
Data do Acordão: 10/21/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA/ NÃO DECRETAMENTO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
Decisão Texto Integral:


Proc. n.º 260/11.1JASTB-F.S1

Habeas Corpus

Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça 

 I- Relatório

1. AA, condenada no proc. n.º 260/11.1JASTB, do Juízo Central Criminal ......, Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca ......, veio requerer ao Ex.mo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, através de Advogado constituído, a providência de habeas corpus, ao abrigo do art.222.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal, nos termos que se transcrevem:

AA, ora Requerente, foi julgada e condenada tendo o Supremo Tribunal de Justiça reduzido a sua pena para 10 anos, de pena efectiva de prisão.

Não obstante, por requerimento datado de 8/11/2019, dirigido a este SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA veio aos autos suscitar a prescrição do procedimento criminal.

Respondeu este Tribunal, por despacho datado de 2/11/2020, indeferindo o referido requerimento por a anterior mandatária ter dado entrada ao mesmo, fora do prazo processual.

Dado tratar-se de prescrição do procedimento criminal e não se conformando com o teor do despacho datado de 2/11/2020, que indeferiu o referido requerimento, a aqui requerente recorreu em 9/12/2020 para o Tribunal da Relação …...

Em 15/12/2020 a arguida foi notificada do despacho de 14/12/2020 que deferiu este recurso de 9/12/2020.

Em 13/1/2021 o Ministério Público respondeu ao recurso.

Não foi ainda proferido Acórdão do Tribunal da Relação  ….. sobre este recurso da aqui requerente em que invoca a prescrição do procedimento criminal.

É consabido que o instituto jurídico de Habeas Corpus, surge como garantia da liberdade física da pessoa, designadamente da liberdade ambulatória.

O Habeas Corpus é uma providência que pode ser trazida a Juízo por qualquer pessoa, a qualquer tempo e em qualquer instância, sempre visando salvaguardar a liberdade de algum cidadão, ou cidadãos.

Inclusivamente, o artigo 31º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, integrante do título II (Direitos, Liberdades e garantias) e capítulo I (Direitos, liberdades e garantias pessoais), determina que haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.

A previsão e, precisão, da providência, como garantia constitucional, não exclui, porém, o seu carácter excecional, vocacionado para casos graves, anómalos, de privação de liberdade, de fundamento constitucionalmente delimitado.

O habeas corpus visa então reagir, de modo imediato e urgente, contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção da prisão manifestamente de forma ilegal, ou fora dos limites legalmente impostos, concretizado em atentado ilegítimo à liberdade individual "grave, grosseiro e rapidamente verificável" integrando uma das hipóteses previstas no artigo 222º nº 2, do Código de Processo Penal.

O artigo 222º do Código de Processo Penal, que se refere ao habeas corpus em virtude de prisão ilegal, estabelece no nº 1 que a qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa, o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência do habeas corpus.

Esta providência, segundo o nº 2 do mesmo normativo, “deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de, nomeadamente: b) ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite;

Ora se a estamos perante uma prescrição do procedimento criminal, há um facto pelo qual a lei não permite prisão e, destarte, há ilegalidade da mesma.

Na dúvida, enquanto o Tribunal da Relação  ….. não decide, militam sempre a favor da arguida e, por isso, já deveria ter sido ordenada a imediata libertação da arguida, em face desta conclusão lógica.

Pressuposto formal de habeas corpus é a decisão que determinou a privação de liberdade do detido e não a notificação dessa decisão.

Assim, é de uma prisão manifestamente ilegal, concretizado em atentado ilegítimo à liberdade individual grave, grosseiro e facilmente verificável de que trata a presente petição.

Assim se não entendendo, desde já se argui a nulidade dependente de arguição, por omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade, de qualquer despacho posterior, nos termos do art.º 120.º, nº 2 alinea d) in fine do CPP, e violação de lei expressa, desde logo o artigo 213.º, n.º do CPP.

Não se diga que se trata de mera irregularidade, com todo o respeito pela jurisprudência dominante, outrossim de norma constitucionalmente aplicada, que traduz uma decorrência atinente aos direitos liberdades e garantias.

Não é responsabilidade da requerente que os autos tenham estado sem qualquer andamento visível.

Até porque não é verdade que a aqui arguida tenha deixado de se apresentar junto da OPC.

A aqui arguida fê-lo durante cerca de 4 anos, como já se requereu cópia dos registos à OPC para ser junto ao presente petitório, nunca tendo faltado a tais apresentações, nem emigrado para Espanha como consta erradamente dos autos.

Até porque a denúncia anónima, por cidadão estrangeiro, que desencadeou a detenção da aqui demonstra que a mesma se encontrava em Portugal e a emissão de MDE (mandato de detenção europeu) não tinha qualquer motivação.

Neste mesmo sentido o Acórdão do STJ procº 182/06.8PTALM-A.S1 de 6/12/2013. http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/3eb26bb54f42c46380257c6 60 04c2a03?OpenDocument

Ademais a manutenção da prisão da aqui requerente revela-se ilegal e manifestamente inconstitucional, designadamente por conduzir a uma situação de indefesa, violando assim os artºs 20º e 31º da Constituição da República Portuguesa.

Deve agora ser proferida informação, pelo Sr Dr Juiz titular do processo, sobre as condições em que foi efectuada a prisão e se mantém a mesma.

Nos termos dos artºs 31º Constituição da República Portuguesa e do artº 222º nº 2 aliena b) do CPP, a Arguida encontra-se ilegalmente presa, mostrando-se violado o disposto nos artºs 27º nº 1-3 alínea b) e 28º nº 2 da CRP e artºs 191º, 192º, 193º, 202º nº 1 alínea a) do CPP, pelo que deve a prisão ser declarada ilegal, a cidadã tem de ser imediatamente libertada porque a detenção é ilegal e deve ser ordenada a imediata restituição da Arguida à liberdade.

Prova: A aqui arguida requer que seja oficiada a OPC de cópia dos registos das apresentações da arguida para prova de que nunca faltou a tais apresentações, durante o prazo legal máximo, nem emigrou para Espanha como consta erradamente dos autos.        

2. Pelo Exmo. Juiz titular do processo foi prestada a seguinte informação, nos termos do art.223.º do Código de Processo Penal:

- a arguida AA (ora requerente) foi condenada por acórdão desta 1ª instância, datado de 14/04/2016, numa pena única de 12 anos e 4 meses de prisão (cfr. acórdão de fls. 1428 a 1494);

- de tal decisão, interpôs a arguida recurso para o Tribunal da Relação  …., o qual foi decidido no sentido do indeferimento (cfr. fls. 1806 a 1876);

- não obstante, voltou a interpor recurso, desta feita junto do Supremo Tribunal de Justiça, Tribunal que se pronunciou pela procedência parcial do recurso, mantendo a condenação penal sofrida em 1ª instância, porém reduzindo a pena única para 10 anos de prisão (fls. 2079 a 2093);

- de tal decisão veio ainda a invocar nulidade, a qual se entendeu indeferir (cfr. fls. 2113 a 2116);

- após, formulou recurso para o Tribunal Constitucional, o qual se indeferiu por extemporâneo (fls. 2131);

- a fls. 2141 a 2152 foi invocada prescrição parcial do procedimento criminal relativamente a um dos crimes contemplados no cúmulo;

- descidos os autos a este Tribunal de 1ª instância, foram proferidos os despachos de fls. 2228, 2233 e 2240, lavrando-se trânsito em julgado do acórdão (fls. 2246);

- quando à apreciação da prescrição suscitada, foi a mesma concretizada por despacho de 2/11/2020 (fls. 2252 e 2253), considerando extemporânea a sua invocação, que assim se indeferiu, expedindo mandados para cumprimento da pena única aplicada;

- registando-se após vicissitudes em redor da representação da arguida, por via da renúncia de quem a representava juridicamente, veio a arguida a interpor novo recurso perante o Tribunal da Relação  ….., porém desta feita incidente na decisão desta 1ª instância que julgou extemporânea a invocação da prescrição do procedimento quanto a um dos crimes englobado no cúmulo (fls. 2285 a 2291);

- tal recurso foi admitido por despacho de 14/12/2020 (fls. 2292 e 2292v), organizando-se apenso próprio para a sua subida e decisão junto do Tribunal de recurso, sendo ao mesmo atribuído efeito meramente devolutivo;

- apresentada reclamação do despacho que conferiu efeito devolutivo ao recurso, foi a mesma decidida no apenso D, negando a pretensão da reclamante e mantendo assim o efeito devolutivo conferido por este 1ª instância;

- organizado o apenso próprio para apreciação do último recurso (apenso E), constata-se que este último ainda não obteve, até esta data, decisão;

- sem prejuízo, e mantendo-se válido o efeito conferido ao recurso interposto (e ainda não decidido), diligenciou-se pela tramitação ulterior dos autos, a qual fez contemplar a execução dos mandados de detenção pré-emitidos e a liquidação da pena única aplicada (fls. 2522 a 2537v, 2570 e 2570v e 2572).

Nesta medida, a situação prisional da ora requerente encontra eco e concretização em acórdão condenatório transitado em julgado, sendo a apreciação da questão da prescrição (parcial e não total), salvo melhor opinião, insuscetível de retardar ao cumprimento da pena única de prisão vigente, em prejuízo da sua eventual e futura reformulação (apenas caso venha a ser considerado procedente o recurso pendente).

3. Convocada a Secção Criminal, notificado o Ministério Público e o Defensor da requerente, procedeu-se à audiência, de harmonia com as formalidades legais, após o que o Tribunal reuniu e deliberou como segue (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP):

II Fundamentação

Factos

4. Das peças processuais juntas aos autos e do teor da informação prestada nos termos do art.223.º do Código de Processo Penal, emergem apurados os seguintes factos relevantes para a decisão da providência requerida:

i) A arguida AA, por acórdão da Instância Central da Secção Criminal ...... – Juiz ….., da Comarca ......, de 14 de abril de 2016, foi condenada em cúmulo jurídico, pela prática de oito crimes de burla qualificada (sendo 6 desses crimes p. e p. pelos artigos 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 2, e 202.º, al. b), do C.P.  e 202.º, al. b), e 2 deles p. e p. pelos artigos 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 1, e 202.º, al. a), do C.P.), de um crime de furto simples, p. e p. pelo art.203.º, n.º 1 do C.P. e de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.256.º, n.ºs 1, alíneas c) e e) e 3, do C.P., na pena conjunta de 12 anos e 4 meses de prisão;

ii) Inconformada com o acórdão de 14 de abril de 2016, dele interpôs recurso a arguida, ora requerente, para o Tribunal da Relação  ….., o qual, por acórdão proferido a 12 de março de 2019, negou provimento ao recurso e manteve a decisão recorrida;

iii) Novamente inconformado com o acórdão confirmatório, dele interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que por acórdão de 12 de setembro de 2019, julgou parcialmente procedente o recurso quanto à medida conjunta da pena, reduzindo-a para 10 anos de prisão;

iv) A arguida AA arguiu a nulidade do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, mas a mesma veio a ser indeferida por acórdão, do mesmo Tribunal, de 10 de outubro de 2019;

v) A arguida interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo proferido a 12 de setembro de 2019, mas o mesmo não foi admitido por despacho de 5 de novembro de 2019, do Juiz Conselheiro deste Tribunal Supremo, por extemporâneo;

vi) O Tribunal Constitucional indeferiu a reclamação apresentada desta decisão, por acórdão transitado a 18 de junho de 2020;

vii) Por requerimento de 8 de novembro de 2019, dirigido ao Juízo Central Criminal ......, Juiz .., do Tribunal Judicial da Comarca ......, veio a arguida AA requerer a apreciação da questão da prescrição de procedimento criminal para o momento em que os autos principais eventualmente baixem do Supremo Tribunal de Justiça, em que correm termos, solicitando que que seja declarada a prescrição do procedimento criminal relativo ao crime de burla qualificada praticado contra o ofendido BB, incluindo as questões de constitucionalidade, devendo ser proferida decisão que proceda a novo cúmulo jurídico das diversas penas parcelares remanescentes, requerendo-se, desde já, a elaboração e a junção aos autos de relatório social por se afigurar também este elemento como essencial e imprescindível à boa decisão da causa, designadamente para determinação da espécie e da medida da pena e para ponderar e decidir da eventual suspensão da pena;

viii) Recebidos os autos no Tribunal Judicial de 1.ª instância, o Ex.mo Juiz do processo por despacho proferido a 20 de outubro de 2020, considera que o trânsito do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça se fixou com o trânsito em julgado do acórdão do Tribunal Constitucional, que indeferiu a reclamação ali apresentada.    

Em 20 de outubro de 2020, o mesmo Ex.mo Juiz, proferiu novo despacho, em que, admitindo a reclamação apresentada pelo Ministério Público, dá sem efeito o anterior despacho na parte em que fixara o trânsito em julgado e fixa “o trânsito em julgado na data em que houve notificação do acórdão do STJ, que indeferiu a nulidade suscitada quanto ao acórdão proferido por este mesmo Tribunal”, ordenando a retificação em conformidade da nota de trânsito, para passar a certificar-se que o acórdão transitou em julgado em 14-10-2019.  

ix) Por despacho de 2 de novembro de 2020, o Ex.mo Juiz procedeu ao conhecimento, além do mais, do citado requerimento apresentado em 8 de novembro de 2019 pela arguida AA, sobre a questão da prescrição do procedimento criminal de um dos crimes de burla qualificada, nos seguintes termos:

Uma vez que o acórdão proferido nos autos transitou em julgado no dia 14.10.2019, e sem embargo daquele requerimento ter sido apresentado numa ocasião em que havia sido interposto recurso para o Tribunal Constitucional, o trânsito em julgado do Acórdão deste último Tribunal, que declarou a improcedência da questão da inconstitucionalidade suscitada, determinou o trânsito do Acórdão do STJ que foi recorrido, nos termos do artigo 80º/4 da Lei 28/82, de 15.11, porque esgotados os recursos ordinários, fazendo corresponder esse trânsito em julgado à data da notificação desse acórdão do STJ (a 14.10.2019). Assim, e não obstante tal questão ter sido suscitada num momento em que havia sido interposto recurso para o Tribunal Constitucional, a realidade é que por via da decisão deste último Tribunal, que determinou a formação de caso julgado do Acórdão recorrido na mencionada data, tal requerimento, suscitado que foi no dia 8.11.2019, foi-o em momento subsequente ao trânsito em julgado do acórdão condenatório da arguida, ou seja, em momento em que legalmente, já não poderia ser suscitada a questão da prescrição do procedimento criminal. Desse modo, indefere-se por extemporaneidade, o aludido requerimento.

Notifique. Sem embargo; Passe e emita mandados de captura da arguida e de condução da mesma a estabelecimento prisional, para cumprimento da pena de 10 anos de prisão, em que foi condenada.”;

x) A arguida não se conformou com este despacho e dele interpôs recurso, em 9 de dezembro de 2020, para o Tribunal da Relação ….., alegando além do mais e em síntese:  o trânsito em julgado do acórdão proferido pelo STJ não ocorreu no dia 14-10-2019, mas com o trânsito em julgado da decisão sobre a reclamação proferida pelo Tribunal Constitucional; a prescrição do procedimento criminal foi suscitada de forma tempestiva, quer face ao art.80.º, n.º 4 da Lei n.º 28/82[1], quer considerando o prazo do art. 411.º, n.º 4 do C.P.P., pelo que deverá ser revogado o despacho recorrido e ser apreciada a questão da prescrição do procedimento criminal, julgando-se a mesma totalmente procedente. “ Com efeito, consideramos que a consumação do crime se deu até 17 de Junho de 2003, o que, apenas por mera cautela de patrocínio se admite, é forçoso concluir que o prazo prescricional do procedimento criminal apenas esteve suspenso durante 240 dias, não tendo sido esgotado o limite máximo de suspensão de 3 anos, o que leva necessariamente a reiterar que o crime de burla qualificada agravada referente ao ofendido BB está prescrito desde o dia 12 de Fevereiro de 2019 (10 anos de prescrição mais 5 anos desde a primeira causa de interrupção mais 240 dias de suspensão), a qual deverá ser declarada pelo tribunal de 1.ª instância.”

xi) O recurso foi admitido, nesta parte, por despacho de 14 de dezembro de 2020, subindo imediatamente, em separado, e com efeito meramente devolutivo, para o Tribunal da Relação de …... Em 13 de janeiro de 2021 o Ministério Público respondeu ao recurso.

Apresentada reclamação do despacho que conferiu efeito devolutivo ao recurso foi a mesma decidida no apenso D, mantendo-se o efeito conferido pela 1.ª instância.

xii) Organizado o apenso para apreciação do recurso (apenso E), não foi ainda proferido acórdão pelo Tribunal da Relação ….... sobre o recurso interposto pela arguida em 9 de dezembro de 2020;

xiii) Por despacho de 3 de setembro de 2021, foi homologada a liquidação da pena da arguida, detida à ordem destes autos em 6 de agosto de 2021, resultando da contagem da pena que atingirá o meio da mesma no dia 6 de agosto de 2026, os dois terços da pena no dia 6 de abril de 2028, os cinco sextos da pena no dia 6 de dezembro de 2029 e o termo da pena no dia 6 de agosto de 2031.  

5. Não se oficiou ao OPC, solicitando cópia dos registos das apresentações da arguida, para prova de que nunca faltou a tais apresentações, durante o prazo legal máximo, nem emigrou para Espanha, por considerarmos que tais registos são irrelevantes para a decisão do habeas corpus, como adiante esclareceremos.           

Questões

6. - Se a arguida se encontra presa por facto pelo qual a lei não admite a prisão, pelo que nos termos dos artigos 31.º da C.R.P. e 222.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do C.P.P., sendo a prisão ilegal, deve ser restituída imediatamente à liberdade; e,

- Assim não se entendendo, se existe nulidade dependente de arguição, por omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade, de qualquer despacho posterior, nos termos do art.º 120.º, nº 2 alínea d) in fine do CPP, e violação de lei expressa, desde logo o artigo 213.º, n.º do C.P.P., pelo que encontrando-se a arguida ilegalmente presa, por violação do disposto nos artigos 27.º, n.ºs 1 e 3, alínea b) e 28.º, n.º 2 da C.R.P. e artigos 191.º, 192.º, 193.º, 202.º, n.º 1, alínea a) e 213.º, do C.P.P., deve ser imediatamente libertada.

Direito       

7. Delimitado, nestes termos, o objeto da providência de habeas corpus, importa tecer breves considerações sobre este instituto jurídico e as normas que a arguida AA invoca como fundamento do seu pedido visando a sua imediata restituição à liberdade.

A liberdade física, liberdade de movimentos, expressão da dignidade da pessoa humana é, desde tempos longínquos, objeto de ilegalidades e violações por abuso de poder.

O habeas corpus é um instituto jurídico com origem historicamente no direito anglo-saxónico, que alguns autores fazem remontar à Magna Carta de 1215.

Na sua feição moderna, remonta ao Habeas Corpus Amendment Act, promulgado em 1679, como reação contra os abusos do absolutismo monárquico, consistindo num mandado imperativo dirigido à pessoa ou autoridade que tivesse detido um cidadão, privando-o da sua liberdade, ordenando-lhe que o apresentasse imediatamente á autoridade judicial.

Este instituto foi recebido no nosso direito através da Constituição de 1911, tendo como fonte a Constituição republicana brasileira de 1891, que foi beber o regime ao direito constitucional americano. Estabelecia no seu art.3.º, n.º 31, de modo muito amplo, que «Dar-se-á o habeas corpus sempre que o individuo sofrer ou se encontrar em iminente perigo de sofrer violência ou  coação, por ilegalidade ou abuso de poder».   

Também a Constituição Política de 1933, estabeleceu, logo na primitiva redação, de 11 de abril de 1933, no seu art. 8.º, § 4.º, in fine, a garantia do habeas corpus: «Poderá contra o abuso de poder usar-se da providência excepcional do habeas corpus, nas condições determinadas em lei especial».

O Decreto-Lei nº 35.043, de 20 de outubro de 1945, que primeiro regulou a providência excepcional do habeas corpus, consignou na exposição de motivos, quanto à natureza e finalidade deste instituto, designadamente: “(…) consiste na intervenção do poder judicial para fazer cessar as ofensas do direito de liberdade pelos abusos da autoridade.

Providência de carácter extraordinário, só encontra oportunidade de aplicação, (…) quando o jogo normal dos meios legais ordinários deixa de poder garantir eficazmente a liberdade dos cidadãos.

O habeas corpus não é um meio de reparação dos direitos individuais ofendidos (…). É antes um remédio excepcional para proteger a liberdade individual nos casos em que não haja qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade. (…) De outro modo tratar-se-ia de simples duplicação dos meios legais de recurso”.

O Decreto-lei nº 35.043, instituiu um regime diferenciado de habeas corpus, por detenção ilegal (artigos 2º e 6º do) e por prisão ilegal (artigo 7º e seguintes do mesmo diploma).

Quanto à situação de prisão ilegal, clarificou no art.7.º, § único, que a providência extraordinária de habeas corpus  só poderia ter lugar «quando se [tratasse] de prisão efectiva e actual, ferida de ilegalidade por qualquer dos seguintes motivos: a) ter sido efectuada ou ordenada por quem para tanto não tenha competência legal; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei não autoriza a prisão; c) Manter-se além dos prazos legais para a apresentação em juízo e para a formação de culpa; d) Prolongar-se além do tempo fixado por decisão judicial para a duração da pena ou medida de segurança ou da sua prorrogação”. 

Na doutrina, ensinava, então, o Prof. Cavaleiro de Ferreira, sobre a natureza e finalidades do habeas corpus:

“O «habeas corpus» é uma providência extraordinária destinada, não a reparar os efeitos da ilegalidade da prisão, mas a pôr termo à situação ilícita que é a prisão ilegal.

Diz-se providência extraordinária, porque os trâmites processuais e o mecanismo normal do funcionamento da administração devem, por si, ser salvaguarda suficiente para evitar a contingência de prisões ilegais. A frequência do «habeas corpus», longe de revelar apenas a sua eficiência, demonstrará sobretudo a insuficiência dos meios normais – da estrutura do processo e da organização da administração – para impedir os abusos de poder. Há-de intervir a providência do «habeas corpus», por isso, como remédio excepcional, pois que também só excepcionalmente necessário, quando falham as demais garantias defensivas do direito de liberdade, expressas pela legislação, e escalonadas na tramitação do processo penal. (…). «o habeas corpus» (...) pretende tutelar, duma maneira genérica, a liberdade pessoal contra as violações oriundas do abuso de poder. O mal a remediar é, portanto, a privação ilegítima da liberdade; a causa contra a qual se reage, o abuso de poder, consoante o texto constitucional (§ 4º do artigo 8º)”.[2]

A remessa para lei especial da determinação das condições do seu uso manteve-se com a nova redação do art.8.º que resultou da revisão constitucional de 1971, realizada pela Lei nº 3/71, de 16 de agosto: “Poderá contra o abuso de poder usar-se da providência de habeas corpus».).

Mais tarde, através do Decreto-Lei nº 185/72, de 31 de maio, o regime do habeas corpus seria integrado no Código de Processo Penal de 1929, nos artigos 315º a 325º, estabelecendo o art.315.º, in fine, que este instituto pode usar-se a favor de qualquer individuo que se encontrar ilegalmente detido, designadamente, por a detenção «…ter sido efetuada e mantida por ordem de autoridade judicial insusceptivel de recurso

Resulta medianamente claro da exposição de motivos do Decreto-lei nº 35.043, de 20 de outubro de 1945 e do art. 315.º do Código de Processo Penal de 1929, corpo, in fine, que o habeas corpus é um remédio excecional para proteger a liberdade nos casos em que não haja outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade, pois de outro modo tratar-se-ia de simples duplicação dos meios legais de recurso. Esse era também, como vimos, o entendimento de Cavaleiro de Ferreira.   

Em termos constitucionais, o habeas corpus, como providência específica para pôr termo à situação de ilegalidade da prisão, não se alterou com a Constituição da República Portuguesa de 1976, e subsequentes revisões desta.

 Assim, o art.31.º, da Constituição da República Portuguesa estabelece:

«1. Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.

 2. A providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.

 3. O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória

O abuso de poder, referido nesta norma constitucional, traduz uma atuação especialmente gravosa no âmbito dessa ilegalidade, referindo o deputado Barbosa de Melo, em sede de Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, no âmbito da IV Revisão Constitucional, que a ideia por trás da fórmula consagrada no art. 31.º, n.º 1, “…é que não basta que a prisão viole um aspeto menor, é necessário a violação de um princípio essencial da lei. Uma ilegalidade que é uma mera irregularidade não justifica o habeas corpus que é uma providência excepcional.”.[3]

Anotando este art. 31.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira:

Na sua versão atual, o habeas corpus consiste essencialmente numa providência expedita contra a prisão ou detenção ilegal, sendo, por isso, uma garantia privilegiada do direito à liberdade, por motivos penais ou outros, garantido nos arts. 27º e 28.º (...).

 A prisão ou detenção é ilegal quando ocorra fora dos casos previstos no art.27º, quando efetuada ou ordenada por autoridade incompetente ou por forma irregular, quando tenham sido ultrapassados os prazos de apresentação ao juiz ou os prazos estabelecidos na lei para a duração da prisão preventiva, ou a duração da pena de prisão a cumprir, quando a detenção ou prisão ocorra fora dos estabelecimentos legalmente previstos, etc..

Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa dos direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade”.

Clarificam ainda, os mesmos autores, que o abuso de poder, referido nesta norma constitucional, “… exterioriza-se, nomeadamente na existência de medidas restritivas ilegais de prisão e detenção decididas em condições especialmente arbitrárias ou gravosas.”, pelo que “Não é qualquer abuso de poder que justifica o habeas corpus; nem toda a prisão preventiva ou detenção ilegal justifica o habeas corpus; nem toda a prisão preventiva ou detenção ilegal significa abuso de poder.”.[4]

Ainda na doutrina constitucional, Jorge Miranda e Rui Medeiros, em anotação ao art.31.º, n.º 1, da Lei Fundamental, defendem, sobre a qualificação de «providência extraordinária», atribuída ao habeas corpus, que esta “…não significa e não equivale á excecionalidade. Juridicamente excecional é a privação da liberdade (pelo menos, fora dos termos e casos de cumprimento de pena ou medida de segurança) e nunca a sua tutela constitucional. A qualificação como providência extraordinária será de assumir no seu descomprometido significado literal de providência para além (e, nesse sentido, fora – extra) da ordem de garantias constituída pela validação judicial das detenções e pelo direito ao recurso de decisões sobre a liberdade pessoal.”. [5]

Na mesma forma, Germano Marques da Silva, sublinha a natureza extraordinária da providência do habeas corpus, com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo a uma situação de ilegal privação de liberdade.[6]

O Código de Processo Penal de 1987, aprovado pelo DL n.º 78/87, de 17 de novembro, que entrou em vigor em 1 de janeiro de 1988, deixou de fazer a exigência expressa que constava do art. 315.º do Código de Processo Penal de 1929, corpo, in fine, mas estabeleceu, por outro lado, no art. 219.º, inserido no capitulo IV , «modos de impugnação», do titulo II, «das medidas de coação»,  Livro IV «das medidas de coação e de garantia patrimonial» que « sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, da decisão que aplicar ou mantiver medidas previstas no presente título há recurso, a julgar no prazo máximo de trinta dias a partir do momento em que o autos forem recebidos.».

Perante esta primitiva redação do art. 219.º do Código de Processo Penal, colocou-se a questão de saber se a providência de habeas corpus era, ou não, incompatível com o recurso. 

A jurisprudência do STJ começou por interpretar a expressão «sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes», do art. 219.º do Código de Processo Penal, como significando “… «além do disposto nos artigos seguintes», como espelha o acórdão de 6-12-89, onde decidiu que “daqui decorre que só pode utilizar-se o habeas corpus quando não possa usar-se o recurso, isto é, quando não esteja em causa uma decisão judicial. Nada na lei permite ao interessado a opção por um ou outro dos meios.».[7]  

Até sensivelmente o ano de 2001, a posição do STJ vai manter-se, uniformemente, no sentido de não admitir o uso da providência extraordinária do habeas corpus se a prisão tivesse sido efetuada por força de decisão judicial recorrível, sendo possível impugnar a ilegalidade da prisão pela via do habeas corpus apenas quando esgotados os recursos ordinários. Ou seja, em princípio e para que não se pervertesse a essência e finalidade do instituto, não haveria lugar ao habeas corpus sempre que houvesse possibilidade de interpor recurso ordinário.[8]

A partir dessa altura, o STJ vai mudando este entendimento, assumindo-se no acórdão de 16 de dezembro de 2003, que a providência do habeas corpus é “um processo que não é um recurso, mas uma providência excecional destinada a pôr fim expedito a situações de ilegalidade grosseira, aparente, ostensiva, indiscutível, fora de toda a dúvida, da prisão e, não, toda e qualquer ilegalidade, essa sim, possível objeto de recurso ordinário e ou extraordinário. Processo excecional de habeas corpus este, que, pelas impostas celeridade e simplicidade que o caraterizam, mais não pode almejar, pois, que a aplicação da lei e circunstâncias de facto já tornadas seguras e indiscutíveis…”.[9]    

No mesmo sentido, o acórdão deste Supremo Tribunal, de 29 de julho de 2004, decidiu  que “A excecionalidade da providência de habeas corpus não se refere à subsidiariedade em relação aos restantes meios de impugnação ordinários das decisões judiciais mas antes e apenas à circunstância de se tratar de uma providência vocacionada a responder a situações de gravidade extrema e excecionais, com uma celeridade incompatível com a exaustão de recursos. Porque visa remediar situações daquela gravidade é que tem fundamentos taxativos elencados no artigo 222º CPP diferentes dos elencados para os restantes recursos ordinários.”[10]

Os recursos ordinário e o habeas corpus são institutos diversos, com processamento e prazos diferentes por virtude de prisão ou detenção que o requerente considere ilegais, cuja diversidade mais se acentuou com a alteração da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, trazida ao art. 219.º do Código de Processo Penal, quando passou a consignar no seu nº 2, a propósito da impugnação das medidas de coação,  que «Não existe relação de litispendência ou de caso julgado entre o recurso previsto no número anterior e a providência de habeas corpus, independentemente dos respetivos fundamentos.».   

De todo o ora exposto, resulta que, atualmente, o uso da providência do habeas corpus não pressupõe a exaustão de recursos ordinários.

Porém, é expressamente assumido também pela jurisprudência deste Supremo que há que ter presente que o mecanismo do habeas corpus deve apenas ser utilizado em casos extremos de abuso de poder ou erro grosseiro na aplicação do direito, não almejando esta providência a reanalise do caso mas sim a constatação da ilegalidade, que por isso mesmo tem de ser patente.[11]

A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem sublinhado que a providência de habeas corpus não constitui um recurso sobre atos de um processo através dos quais é ordenada ou mantida a privação da liberdade do arguido, nem um sucedâneo dos recursos admissíveis, que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais. Esta providência não se destina a apreciar erros de direito e a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes de privação da liberdade.

Não sendo um recurso, - ordinário ou extraordinário - não é uma via procedimental para submeter ao STJ a reapreciação da decisão da instância que determinou a prisão ou à ordem da qual o requerente está privado da liberdade. Não se destina a questionar o mérito do despacho judicial ou da sentença condenatória que impôs a prisão nem a sindicar eventuais nulidades ou irregularidades de que possam enfermar.

Na conformação constitucional e no seu desenho normativo, reafirmamos que o habeas corpos é uma providência judicial urgente. “Visa reagir, de modo imediato e urgente, contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal” decretada ou mantida com violação “patente e grosseira dos seus pressupostos e das condições da sua aplicação”.[12]

A natureza que a providência assume na jurisprudência tradicional do STJ, tem sido perfilhada, no essencial, pelo Tribunal Constitucional.[13] 

Na concretização do art.32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, o legislador manteve, no atual Código de Processo Penal de 1987, o regime diferenciado de habeas corpus, por detenção ilegal (art. 220.º) e, por prisão ilegal (art. 222.º), que advém do Decreto-Lei nº 35.043, de 20 de outubro de 1945. 

Dando expressão a esta norma constitucional, o art. 222.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, que aqui importa considerar, estabelece como pressupostos de habeas corpus em virtude de prisão ilegal:

«a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.».

No seguimento do entendimento do habeas corpus, como uma providência extraordinária, a jurisprudência deste Supremo Tribunal vem considerando que os fundamentos do «habeas corpus» são aqueles que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos suscetíveis de pôr em causa a regularidade ou a legalidade da prisão.[14]

Com interesse para a presente decisão importa aqui recordar o acórdão de 8 de Novembro de 2013, proferido no processo n.º 115/13.5YFLSB.S1-3.ª Secção, em que a propósito do fundamento da alínea b) do n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal - “ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite”, consigna : “Este fundamento abrange uma multiplicidade de situações, nomeadamente: a não punibilidade dos factos imputados ao preso, a prescrição da pena, a amnistiada infração imputada ou o perdão da respetiva pena, a inimputabilidade do preso, a falta de trânsito da decisão condenatória, a inadmissibilidade legal de prisão preventiva. O que importa é que se trate de uma ilegalidade evidente, de um erro diretamente verificável com base nos factos recolhidos no âmbito da providência confrontados com a lei, sem que haja necessidade de proceder à apreciação da pertinência ou correção de decisões judiciais, à análise de eventuais nulidades ou irregularidades do processo, matérias essas que não estão compreendidas no âmbito da providência de habeas corpus, e que só podem ser discutidas em recurso”.[15]

No mesmo sentido, indicando inúmeros casos de preenchimento desta alínea b), n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal, retirados de jurisprudência deste Supremo Tribunal, pronuncia-se o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, na sua obra “Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 4.ª edição, pág. 635.

8. Retomando o caso concreto.

Para a solução da 1.ª questão - saber se a prisão da arguida AA é ilegal, por ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite, nos termos dos artigos 31.º da C.R.P. e 222.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do C.P.P. -, importa perguntar, em primeiro lugar, qual é o facto que motiva a prisão da requerente.

Considerando a factualidade atrás descrita no ponto 4, Factos i) a vi) e xiii), o Supremo Tribunal de Justiça considera que a requerente se encontra presa, desde o dia 6 de agosto de 2021, em cumprimento da pena de 10 anos de prisão, em que foi condenada por acórdão do STJ de 12 de setembro de 2019, já transitado em julgado.       

A própria requerente AA reconhece, no acórdão que interpôs em 9 de dezembro de 2019, para o Tribunal da Relação ….., sobre a questão da prescrição do procedimento criminal de um dos crimes pelos quais foi condenada, que o acórdão do STJ de 12 de setembro de 2019  já transitou em julgado, ao defender que o trânsito não ocorreu, como refere o Tribunal recorrido, em 14-10-2019, mas sim, “com o trânsito em julgado da decisão do Tribunal Constitucional” - que indeferiu a reclamação do despacho do Juiz Conselheiro deste Supremo, que não admitira, por extemporâneo, o recurso daquele acórdão para o Tribunal Constitucional.

Considerando que o Tribunal Constitucional indeferiu a reclamação apresentada daquela decisão do Juiz Conselheiro deste Supremo, por acórdão transitado a 18 de junho de 2020 (  facto vi) do ponto 4) e, por outro lado, que a recorrente invoca para este efeito no recurso para o Tribunal da Relação  ….., o art.80.º, n.º 4 da Lei 28/82, que estabelece que “transitada em julgado a decisão que não admita o recurso ou lhe negue provimento, transita também a decisão recorrida…”, parece implícito, para a requerente, que o acórdão do STJ de 12 de setembro de 2019 transitou em 18 de junho de 2020.

Assente que a requerente AA se encontra presa, em cumprimento de pena de 10 anos de prisão, desde o dia 6 de agosto de 2021, por ordem do Juiz do processo em que a arguida foi condenada, impõe-se agora decidir se a prisão desta é manifestamente ilegal, porquanto tendo o Juiz de 1.ª instância indeferido o requerimento em que a arguida invocou a prescrição de procedimento criminal de um dos crimes de burla qualificada, o Tribunal da Relação de ….. ainda não decidiu o recurso e, na dúvida, sendo a prescrição um facto pela qual a lei não permite a prisão, enquanto este Tribunal não decide, ela milita sempre a seu favor.    

Vejamos.

Como já se consignou, atualmente, o uso da providência do habeas corpus não pressupõe a exaustão de recursos ordinários.

Mas também ficou claro que não sendo esta providência um recurso, - ordinário ou extraordinário – o que é determinante para o preenchimento da alínea b), n.º 2, do art. 222.º, do Código de Processo Penal, é que se trate de uma ilegalidade da prisão evidente, um erro grosseiro na aplicação da lei aos factos apurados sem que haja necessidade de se proceder à apreciação da pertinência ou correção de decisões judiciais, pois estas matérias não estão compreendidas no âmbito da providência de habeas corpus.

No caso em apreciação, a arguida AA está em cumprimento de uma pena de 10 anos de prisão pela prática de oito crimes de burla qualificada , um crime de furto simples, e de um crime de falsificação de documento, e no recurso interposto pela arguida para o Tribunal da Relação de ….., que corre por apenso, está em causa apenas decidir se deverá, ou não,  ser revogado o despacho recorrido e, em caso de procedência do recurso, ser apreciada pelo Tribunal a quo a questão da prescrição do procedimento criminal , que a arguida considera ter-se verificado em 12 de fevereiro de 2019.

A falta de decisão pelo Tribunal da Relação, no prazo legal, de recurso de indeferimento de conhecimento de uma questão de prescrição de procedimento criminal, de um dos muitos crimes que entram num cúmulo jurídico pelo qual a arguida se encontra a cumprir pena de prisão, não torna esta manifestamente ilegal, fundada em facto pelo qual a lei a não permite.

A não decisão do objeto do recurso pelo Tribunal da Relação  ….., no prazo legal, pode ser causa de pedido de aceleração processual, designadamente por parte da arguida, nos termos do art.108.º do Código de Processo Penal, que em qualquer momento pode lançar mão deste instrumento legal.

Importa também referir que não existe qualquer norma legal no sentido de que, na dúvida, quando o Tribunal da Relação não decide, no prazo legalmente concedido para proferir o acórdão, sobre o indeferimento do conhecimento da prescrição de procedimento criminal de um crime, a dúvida milita sempre a favor da arguida e a prisão fixada na pena conjunta que esta cumpre no processo é manifestamente ilegal.

Estando ainda arredados do objeto do habeas corpus os juízos, verdadeiramente de julgamento de direito e de facto, quanto à interpretação e decisão do despacho recorrido sobre o indeferimento do conhecimento da prescrição do procedimento criminal, por extemporaneidade, de um dos crimes pelo qual a ora requerente está em cumprimento de pena de prisão, este Supremo Tribunal não reconhece a  existência de abuso de poder por virtude de prisão ilegal, nos termos dos invocados artigos 31.º da C.R.P. e 222, n.º 2, al. b), do C.P.P..

Cabe agora decidir, como 2.ª questão, se existe uma nulidade dependente de arguição, por omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade, de qualquer despacho posterior, nos termos do art.º 120.º, nº 2 alínea d) in fine do CPP, e violação de lei expressa, desde logo o artigo 213.º, n.º do C.P.P., pelo que encontrando-se a arguida ilegalmente presa, por violação do disposto nos artigos 20.º, 27.º, n.ºs 1 e 3, alínea b), 28.º, n.º 2 e 31.º da C.R.P. e artigos 191.º, 192.º, 193.º, 202.º, n.º 1, alínea a) e 213.º, do C.P.P., deve ser imediatamente libertada. Alega a requerente AA, a este respeito, no essencial, o seguinte: (i) não é da responsabilidade da requerente que os autos tenham estado sem andamento visível; (ii) a requerente apresentou-se durante cerca de 4 anos, nunca tendo faltado às apresentações, nem emigrado para a Espanha como consta erradamente dos autos, não tendo a emissão de MDE qualquer motivação, encontrando-se em Portugal aquando da sua detenção; (iii) a manutenção da prisão revela-se ilegal e manifestamente inconstitucional, designadamente por conduzir a uma situação de indefesa.     

Antes de mais, vejamos os dispositivos legais convocados pela requerente neste pedido subsidiário.

O art. 20.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, ao estabelecer que «a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.», reconhece, por um lado, o direito de acesso ao direito e, por outro, o direito de acesso aos tribunais.

O direito de acesso ao direito é concretizado no direito à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e ao acompanhamento por advogado perante qualquer autoridade (n.º 2 do art. 20.º da Constituição).

O direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional, é uma das dimensões de acesso ao direito, e ambos os direitos são concretizados nos termos estabelecidos na lei ordinária.

Os artigos 27.º, 28.º e 31.º da Constituição da República Portuguesa constituem o núcleo da tutela constitucional do direito à liberdade tout court.

Para além do já examinado art.31.º da Constituição da República Portuguesa, importa anotar que o art. 27.º, da Lei fundamental, consagra o direito à liberdade física das pessoas (n.º 1), formulando o princípio de que «ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança.» (n.º 2).

Excetua-se deste princípio, a privação da liberdade pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nomeadamente, no caso de «prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos.» (art.27.º, n.º 3, al. b) da C.R.P.).

Em reforço do mesmo princípio, o n.º 2 do art. 28.º da C.R.P. estatui que «A prisão preventiva tem natureza excecional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei.».
O Código de Processo Penal, no seu Livro IV, dá tradução àqueles ditames constitucionais, estabelecendo, no seu Título I, as disposições gerais relativas à aplicação das medidas de coação e de garantia patrimonial e, no seu Título II, nomeadamente, as concretas medidas de coação admissíveis, as condições da sua aplicação, de revogação, alteração e extinção.

O art. 191.º, n.º 1 do C.P.P. consagra o princípio da legalidade e da tipicidade das medidas de coação, do mesmo passo que afirma implicitamente o principio da necessidade, ao estipular que só exigências processuais de natureza cautelar podem limitar, total ou parcialmente, a liberdade das pessoas.

O art. 192.º, do C.P.P. dispõe sobre as condições de aplicação gerais de aplicação das medidas de coação e o artigo seguinte, art. 193.º, estabelece, no seu n.º 1, os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade na aplicação das medidas de coação e, no seu n.º 2, consagra o carácter subsidiário da prisão preventiva ao mencionar que “A prisão preventiva só pode ser aplicada quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coação.”.

Reafirmando o carácter excecional e subsidiário da prisão, o art. 202.º do C.P.P. estabelece, nomeadamente: «1. Se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos  anteriores , o juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva quando :

a) Houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a cinco anos;».

As medidas de coação são necessariamente precárias, substituíveis ou revogáveis, única forma de em cada momento se ajustarem à finalidade que visam e as justifica no caso concreto.

Em consequência, o art. 213.º do Código de Processo Penal, estabelece, nomeadamente: «1- O juiz procede oficiosamente ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, decidindo se elas são de manter ou devem ser substituídas ou revogadas:

a) No prazo máximo de três meses, a contar da data da sua aplicação ou do último reexame; e

b) Quando no processo forem proferidos despacho de acusação ou de pronúncia ou decisão que conheça, a final, do objeto do processo e não determine a extinção da medida aplicada.

Todas estas normas constitucionais e processuais penais respeitam essencialmente à aplicação e ao reexame da medida coativa da prisão preventiva.

Se lermos a petição de habeas corpus não encontramos nela especificada a data, o conteúdo e o autor do despacho que decretou a prisão preventiva da requerente ao abrigo do disposto nos art.27.º, n.º 3, al. b) e 28.º, n.º 2 da C.R.P. e artigos 191.º, 192.º, 193.º, 202.º, n.º 1, alínea a), do C.P.P.

A requerente AA não indica esse despacho de aplicação daquela medida coativa porque bem sabe que não está atualmente sujeita à medida coativa de prisão preventiva, mas sim em cumprimento da pena de 10 anos de prisão em que foi condenada por acórdão transitado em julgado.   

Em face do exposto, é evidente não ter sentido a afirmação da requerente de que foi violado o art. 213.º do C.P.P., por omissão de reexame dos pressupostos da prisão preventiva.

Como também, pelas mesmas razões, se mostra prejudicado e sem racionalidade a arguição de nulidade, por parte da requerente, por omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade, de qualquer despacho posterior, nos termos do art.º 120.º, nº 2 alínea d) in fine do C.P.P., que assim não reconhecemos.

Para efeitos de deferimento do habeas corpus, nesta fase da execução da pena de prisão, não tem qualquer relevância fazer prova de que a arguida, antes de iniciar o cumprimento da atual pena de prisão, apresentou-se durante cerca de 4 anos nos OPC, sem nunca ter faltado às apresentações, não emigrou para a Espanha como constará erradamente dos autos,  e que assim  a emissão de MDE não tinha fundamento, encontrando-se em Portugal aquando da sua detenção.

Também não vislumbra o Supremo Tribunal de Justiça, na manutenção da execução da pena de prisão em que foi condenada a requerida, uma situação de indefesa, considerando todo o percurso processual descrito no ponto 4 dos Factos e dispor de outros meios processuais aptos a reagir ao alegado atraso na prolação do acórdão por parte do Tribunal da Relação …...

Em suma, a prisão da requerida AA mostra-se ordenada por entidade competente; é motivada por facto pelo qual a lei o permite; e não se mantém para além dos prazos fixados na lei para concessão da liberdade condicional, pelo que não se verificam os pressupostos para deferir o habeas corpus fixados nos artigos 31.º da C.R.P e 222.º do C.P.P.

Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decide-se:

a) - Indeferir o pedido de habeas corpus peticionado pela arguida AA, nos termos do art. 223.º, n.º 4, alínea a), do C.P.P., por falta de fundamento bastante; e

b)- Condenar a requerente nas custas do processo, fixando em 2 (duas) Ucs a taxa de justiça.
c) - Comunique-se, com cópia certificada, esta decisão, pelo meio mais expedito, ao processo de recurso pendente no TR..

Lisboa, 21 de outubro de 2021


Orlando Gonçalves (Relator)
         
Adelaide Sequeira (Adjunta)

António Clemente Lima (Presidente da Secção)

_____________________________________________________


[1] Por lapso refere Lei 80/82.
[2] Cf. “Curso de Processo Penal, vol. II, reimpressão, Lisboa, 1981, págs. 477/478].
[3] Assim, Diário da Assembleia da República, de 12-9-1996, II série –RC, n.º 20, pág. 523 e Cons. Maia Costa, in “Julgar”, n.º29, “ Habeas corpus: passado, presente, futuro, pág.238.  
[4] Cf. “Constituição da República Portuguesa, anotada”, Coimbra ed., 4.ª edição revista, pág. 508.
[5] Cf. “Constituição Portuguesa anotada”, Coimbra ed., 2005, tomo I, pág.s 342/343. 
[6] Cf. "Curso de Processo Penal", Vol. II,  
[7] Cf. AJ, n.º 4, proc. n.º 34/89 e “Código de Processo Penal anotado, de Leal-Henrique e Soma Santos, Rei dos Livros, 2.ª edição, pág. 053.
[8] Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 11 de março de 1998, de 8 de abril de 1999 e de 14 de outubro de 1999, proferidos, respetivamente, nos processos n.ºs 349/98, 449/99 e 1084/99. 

[9] Cf. proc. n.º 03A2658.
[10] Cf. proc. n.º 3120/04- 3ª, in www.dgsi.pt.
[11] Cf., neste sentido, acórdão do STJ   de 30 abril de 2008, proc. n.º 08P1504.
[12] Cf. acórdão do  STJ de 9/08/2017 , in www.dgsi.pt.
[13] Cf. acórdão n.º 423/2003, Pº nº 571/2003, de 24.09.03, in www.tribunalconstitucional.pt
[14] Cf. acórdãos do STJ de 19-05-2010, CJ (STJ), 2010, T2, pág.196, e de 03-03-2021, proc. n.º 744/17.8PAESP-A.S1, in www.dgsi.pt.
[15] in www.dgsi.pt.