Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
475/04.9TBALB-A.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: VENCIMENTO ANTECIPADO
FIADOR
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
PERDA DO BENEFÍCIO DO PRAZO
LIBERDADE CONTRATUAL
CITAÇÃO
DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
EMBARGOS DE EXECUTADO
Data do Acordão: 10/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. O desencadeamento do vencimento antecipado de todas as prestações a que se alude no artº 781º do CC é uma faculdade do credor (é ele quem decide se quer, ou não, continuar sujeito aos prazos de escalonadamente estabelecidos de vencimento das prestações), pelo que só a tornará efectiva, querendo e por via da interpelação do devedor.

II. A perda do benefício do prazo não se estende aos fiadores, salvo se, na relação contratual havida e onde se estipulou a obrigação de fiança, se tiver estipulado (ao abrigo do princípio da liberdade contratual ou da autonomia da vontade ínsito no 405º do CC), de forma expressa e clara, que aquela perda também os vinculava.

III. Assim, não havendo estipulação contratual em contrário, devem os fiadores ser interpelados para lhes poder ser exigido o pagamento da totalidade das prestações e demais em dívida nos termos constantes do contrato de mútuo celebrado com o devedor principal – ou seja, para, querendo, porem termo à mora, a fim de obviarem ao vencimento antecipado das prestações.

IV. A ausência de comunicação/interpelação aos fiadores não afasta, porém, a relevância da posterior citação destes para a execução, considerando-se realizada a necessária interpelação admonitória dos fiadores com essa citação, dessa forma afastando a regra do artigo 782.º e fazendo funcionar o regime do artigo 781.º, com exigibilidade, a partir da citação, de todas as prestações em dívida e devidas até ao final dos prazos dos contratos, contando-se os juros moratórios, apenas, a partir daí.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível



I – RELATÓRIO


AA e BB deduziram os presentes embargos de executado contra Caixa Geral de Depósitos, SA alegando, para tanto e em síntese breve, a nulidade da citação para a execução, a ineptidão do requerimento executivo e a insuficiência dos títulos executivos, porquanto a exequente não preencheu o campo relativo à exposição de factos. Invocam ainda a inexigibilidade do crédito exequendo e a inexistência de título executivo, porquanto sendo fiadores do contrato, não renunciaram ao benefício do prazo, pelo que deveriam ter sido interpelados previamente à instauração da ação executiva, o que não sucedeu.


Admitidos os embargos de executado, a exequente contestou, peticionando a improcedência dos mesmos.

Foi dispensada a realização da audiência prévia, tendo sido proferida sentença a qual se reproduz na parte dispositiva:

“Pelo exposto, julgo procedentes os embargos de executado deduzidos por AA e BB contra Caixa Geral de Depósitos, SA, declarando extinta a execução movida contra estes executados...”


Inconformada com tal decisão, dela interpôs recurso a embargada/exequente, tendo a Relação do Porto, em Acórdão, proferido a seguinte

“V - Decisão

Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação e, revogando a sentença recorrida, decidem:

Relativamente à questão da inexigibilidade do crédito exequendo, julgar os embargos deduzidos apenas procedentes no que toca aos juros moratórios, declarando-se não exigíveis os juros que foram peticionados até à data de citação dos embargantes;

Determinar o prosseguimento dos autos para apreciação das demais questões suscitadas.”.


Agora inconformados os embargantes AA e BB, interpõem recurso de revista, apresentando conclusões que rematam com as seguintes


CONCLUSÕES:

A. O douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto do qual ora se recorre julgou parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pela exequente/Embargada e, revogando a Sentença proferida em 1.ª instância, decidiu que, apesar de a perda do benefício do prazo não ser extensível aos fiadores e de não existir a interpelação admonitória aos Embargantes fiadores, ora Recorrentes, para procederem ao pagamento do valor em dívida, nem a título de mora, nem a título de vencimento antecipado da obrigação, a citação dos fiadores para a execução conduz à imediata exigibilidade de todas as prestações em dívida, acrescidas de juros moratórios a contar dessa data da citação; e ordenar o prosseguimento dos autos para apreciação das demais questões suscitadas nos embargos.

B. Ora, salvo melhor opinião, e com o devido respeito, não podem os ora Recorrentes concordar com o douto Acórdão recorrido na parte em que considera que, apesar de não existir a interpelação admonitória aos Embargantes fiadores, a citação dos fiadores, ora Recorrentes, para a execução conduz à imediata exigibilidade de todas as prestações em dívida e devidas até ao final do prazo dos contratos, assim como dos juros moratórios a partir dessa data, que lhes é desfavorável, delimitando, assim, objetivamente o âmbito do presente recurso a essa parte da decisão.

C. Ora, como nos termos do artigo 674.º, n.º 1, alínea a), do CPC, o fundamento específico da revista é a violação de lei substantiva, que pode consistir tanto no erro de interpretação ou de aplicação, como no erro de determinação da norma aplicável, parece ser inquestionável a competência deste Colendo Tribunal para a apreciação da questão de direito que aqui lhe é colocada e que se resume, no fundo, à da relevância da citação para os presentes autos de execução dos Embargantes fiadores, ora Recorrentes, no domínio da exigibilidade da obrigação exequenda e os seus efeitos.

D. Não tendo havido recurso da decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, tem-se esta por definitivamente fixada e assente, que aqui, por razões de economia processual, se dá como integralmente reproduzida para todos os legais e devidos efeitos.

E. Assim, resulta provado e assente que a Exequente não procedeu à interpelação dos Embargantes, enquanto fiadores, antes de intentar a ação executiva (ponto K) dos factos provados).

F. Igualmente, nas decisões proferidas pelas duas instâncias é entendimento coincidente de que a perda do benefício do prazo não é extensível aos fiadores - que, no caso dos autos, não renunciaram ao benefício do prazo - e que seria necessária a interpelação aos mesmos.

G. Pelo que, temos como divergente nas duas decisões a relevância a atribuir à posterior citação para a presente execução efetuada aos Embargantes, enquanto fiadores, e os seus efeitos e a inexigibilidade da obrigação exequenda.


Senão vejamos.

H. A citação é um ato jurídico pelo qual se dá conhecimento a determinada pessoa de que foi proposta contra ela determinada ação, se intima a comparecer em juízo e se adverte de que, no caso da ação executiva, deve pagar ou se opor em determinado prazo e sob determinadas sanções, e, com o devido respeito, não tem os mesmos efeitos que a realização da interpelação admonitória.

I. Diversamente, a interpelação consiste no ato pelo qual o credor comunica ao devedor a sua vontade de receber a prestação e, por via desta comunicação, dele reclama o cumprimento.

J. Conforme resulta da matéria de facto provada nestes autos, os Embargantes fiadores, ora Recorrentes, nunca foram interpelados para pôr fim à mora dos devedores principais, ou para pagar o montante sob execução ou qualquer outro.

K. Assim sendo, como bem se entendeu na sentença proferida pela Meritíssima Senhora Doutora Juiz de Direito do Juízo de Execução ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., com a qual concordamos na íntegra, “Se, como vimos, o vencimento imediato das prestações cujo prazo ainda se não venceu constitui um benefício que a lei concede – mas não impõe – ao credor, não prescindindo consequentemente de interpelação ao devedor, o banco exequente    não      estava  dispensado      da legal comunicação aos fiadores. Dada a ausência da realização da interpelação admonitória dos fiadores, não pode considerar-se a mesma realizada através da citação para a execução, porque não visa pôr termo à mora ou impedir a resolução do contrato”. (negrito e sublinhado nossos).


L. Ademais, não tendo ocorrido a interpelação admonitória dos fiadores, não pode a mesma considerar-se realizada através da citação para a execução, porque esta não se mostra idónea para afastar a regra do artigo 782.º e fazer funcionar o regime do artigo 781.º, ambos do CC, com vencimento da totalidade das prestações, conforme se entendeu - a nosso ver bem - na sentença da 1.ª instância, e tem sido entendimento jurisprudencial de que são exemplos, além dos acórdãos aí referidos, com argumentos que acompanhamos, cfr. também o Acórdão do STJ de 20-09-2007, processo n.º 2228/07, relator Duarte Soares; o Acórdão do STJ de 19-01-2016, processo n.º 1453/12.0TBGDM-B.P1.S1, relator Gabriel Catarino; o Acórdão do STJ de 18-01-2018, processo n.º 2351/12.2TBTVD-A, relatora Fátima Gomes; o Acórdão do STJ de 29-11-2016, processo n.º 100/07.6TCSNT-A.L1.S1, relator Gabriel Catarino, disponíveis em www.dgsi.pt, entre outros.

M. Ora, é certo que nos termos dos acordos dos autos, o pagamento das quantias objeto dos três contratos de mútuo em que os Embargantes/ Recorrentes se constituíram fiadores deveria ser efetuado em prestações e, assim, faseadamente, aplicando-se o disposto no artigo 781.º do CC, mas, deste preceito resulta a mera exigibilidade das prestações e não o vencimento automático, vencendo-se a totalidade da dívida, apenas depois da inerente e necessária interpelação.

N. Pois, o vencimento imediato das prestações cujo prazo ainda não se venceu constitui um benefício que a lei concede ao credor, não prescindindo de interpelação ao devedor, na medida em que constituindo uma mera faculdade que aquele pode ou não exercer, pretendendo fazê-lo, deverá dar disso conhecimento ao devedor.

O. Salvo estipulação contratual em contrário [o que não ocorreu no caso dos autos], conforme é entendimento coincidente nas duas instâncias, a perda do benefício do prazo, instituída no artigo 781.º do CC, não se estende aos coobrigados do devedor, entre os quais se inclui o seu fiador, nos termos do referido artigo 782.º do CC, pelo que, querendo agir contra estes, o credor terá de aguardar o momento em que a obrigação normalmente se venceria. P. Assim, a interpelação do fiador nas obrigações fracionadas desempenha uma finalidade muito específica, permitindo levar ao conhecimento do fiador o valor das prestações vencidas e não pagas pelo principal devedor, bem como comunicar-lhe a possibilidade de as pagar no prazo admonitório fixado pelo credor, de modo a poder-lhe exigir o pagamento das prestações que se fossem vencendo.Q. O momento para a interpelação do fiador deve ser anterior à resolução, no caso de o credor pretender pôr termo ao contrato, ou anterior ao momento em que o credor decida optar pelo vencimento antecipado, nos termos previstos no artigo 781.º do Código Civil, para permitir ao fiador pagar as prestações vencidas e não pagas pelo devedor principal, que serão, naturalmente, de valor muito inferior ao valor das prestações que se venceram em decorrência da perda do benefício do prazo (cfr. J. H. Delgado de Carvalho, Temas de Processo Civil, A prática da teoria, Quid juris?, Lisboa, fevereiro de 2019, p. 166).

R. Pelo que, a citação para a execução dos fiadores, ora Recorrentes, não pode produzir o mesmo efeito da interpelação para efeitos de perda do benefício do prazo, nem colmata a ausência de realização da interpelação admonitória.

S. Ademais, no caso dos presentes autos, a falta de interpelação aos fiadores/ Recorrentes – os quais apenas foram citados, pela primeira vez, em 05-06-2020, sendo a propositura da execução datada do ano de 2004 – fez com que os mesmos ficassem impedidos, pela venda do imóvel hipotecado no âmbito dos presentes autos de execução, adjudicado à Exequente, de se sub-rogarem nos direitos do credor.

T. Pelo que, temos de concluir, conforme decidido - e bem - na sentença de 1.ª instância, pela inexigibilidade, face aos Embargantes fiadores, aqui Recorrentes, da obrigação exequenda.

U. Neste sentido, defende o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25-03-2021, proferido no processo n.º 19587/17.2T8SNT.L1-2, disponível em www.dgsi.pt, que:

“(…) a citação não supre a falta de interpelação admonitória, dado que ocorre numa altura em que o credor já optou pela antecipação do vencimento da totalidade do capital em dívida, não sendo dada oportunidade de pagar as prestações vencidas, evitando a exigibilidade das vincendas (cf. acórdão do TRL de 17.11.2011, p. 1156/09.2TBCLD-D.L1, in www.dgsi.pt).

Não tendo os fiadores renunciado ao benefício do prazo, vigorando o artigo 782.º do Código Civil, e não tendo a Exequente/Embargada demonstrado a interpelação daqueles antes de ter optado pelo mecanismo do artigo 781.º do mesmo Código, que entender que os fiadores apenas são responsáveis pelas prestações vencidas e não pagas de acordo com os planos contratuais estabelecidos e não realizadas pelos principais devedores até ao momento que a credora considerou haver vencimento antecipado (cf. Januário da Costa Gomes, Assunção Fidejussória de Dívida, Coimbra: Almedina, pp. 961-962). Nesse contexto, (…) «à falta de interpelação, o credor teria direito apenas às prestações vencidas e não pagas até à data da instauração da execução, acrescida de juros, sem prejuízo da cumulação sucessiva de execuções (artigo 711.º CPC)».

A inexigibilidade em relação ao fiador também abrange os juros de mora sobre o capital vencido, dado que, não obstante estes juros gozem de autonomia face ao crédito de capital (cf. artigo 561.º do Código Civil), procedem relativamente a eles as mesmas razões de direito que justificam a inoponibilidade da perda do

benefício do prazo ao fiador.

No caso em apreço, não tendo a Exequente procedido à interpelação dos Exequentes/Embargantes, não podia exigir deles o cumprimento da totalidade da dívida”  (negrito e sublinhado nossos).

V. Aliás, este mesmo entendimento é admitido no acórdão do STJ acompanhado e citado pelo acórdão recorrido (cfr. Ac. do STJ de 14-01-2021, processo n.º 1366/18.1T8AGD-A.P1.S1), que refere que: a opção no plano dos princípios é a de que “a citação dos fiadores para a execução para contestar ou pagar a totalidade da dívida resultante da antecipação de vencimento não pode suprir a falta de tal interpelação, pois, através dela, não é dada oportunidade aos fiadores de procederem ao pagamento das prestações vencidas, evitando a exigibilidade das vincendas, e através da interpelação para cumprir a obrigação se pode efectivar tal exigibilidade”.

W. Todavia, “por razões de relevância pragmática”, o Acórdão recorrido admite a relevância da posterior citação dos fiadores para a presente execução, daí decorrendo a imediata exigibilidade de todas as prestações em dívida, exceto no que respeita aos juros de mora que se contariam desde a citação apenas, entendimento com o qual, com o devido respeito, discordamos. Desde logo, salvo melhor opinião, e com o devido respeito, o Acórdão recorrido acompanha o referido Acórdão do STJ de 14-01-2021 - com cuja fundamentação concordamos genericamente -, mas faz tábua rasa de que o caso aí abordado é totalmente distinto do nosso: no caso dos presentes autos, a executada CC foi declarada insolvente por sentença datada de 18-11-2016, ou seja, vários anos após a propositura da ação executiva pelo Exequente (que data do ano de 2004), e inclusive já depois da venda do imóvel hipotecado nos presentes autos de execução - adjudicado à Exequente -, pelo que obviamente não foi esse o fundamento do vencimento antecipado da dívida alegado pela Exequente no seu requerimento executivo, pois à data da entrada em juízo não se verificava (nem se podia prever) tal situação de insolvência da devedora principal.

X. Sendo que, o referido Acórdão do STJ, que serviu de base à decisão ora em crise, faz uma distinção entre os casos em que a causa do vencimento antecipado da totalidade da dívida resulta do não pagamento de uma das prestações [como sucede no caso dos autos] e os casos em que resulta da declaração do devedor como insolvente, defendendo que:

«No primeiro caso, a interpelação do fiador permitiria a este a oportunidade de realizar o pagamento das prestações vencidas, pelo que, não tendo sido feita, frustrar-se-ia esse direito não podendo em nosso entender prosseguir a execução com o argumento de o art. 781.º do CCivil permitir que numa dívida liquidável em prestações a falta de pagamento de uma delas importa o vencimento de todas. Este regime da dívida relativo ao devedor não se replica automaticamente no fiador e por isso é que, por este poder ter uma palavra a dizer sobre o vencimento, é que a sua interpelação para esse efeito se torna incontornável. No segundo caso, quanto o vencimento da totalidade da dívida resulta da declaração de insolvência do credor (art. 780 n.º 1) defende-se que, por esse vencimento ser automático e independente de qualquer interpelação (art. 91 do CIRE), o fiador deixaria de ter a possibilidade de se lhe opor oferecendo o pagamento. (…)

No caso de declaração de insolvência do devedor, a aceitação da relevância da citação não tem o obstáculo legal de o vencimento da dívida poder ser exigível ao fiador em execução depois de ele ter sido interpelado previamente pelo credor, porque o interesse do fiador realizar o pagamento não é, de todo, o de poder condicionar a extensão do capital em dívida opondo-se ao vencimento das prestações (ela vence-se automaticamente com a insolvência), mas impacta noutro domínio que é o de, cumprindo ele a obrigação, ficar sub-rogado nos direitos do credor art. 644.» (negrito e sublinhado nossos)

Y. Porém, e não obstante não ser esse o caso dos presentes autos, mesmo nas situações de “perda do benefício do prazo resultante da insolvência de um dos devedores, quando a dívida seja solidária, não se estende aos outros co-obrigados, desde que não tenha sido estipulada convenção em contrário ou não se verifique, também quanto a eles, causa determinante dessa perda”. (cfr. Acórdão do STJ de 18-01-2018, processo n.º 123/14.9TBSJM-A.P1.S2, relator Henrique Araújo, disponível em www.dgsi.pt).

Z. Ora, no caso concreto dos autos, porque não renunciaram os fiadores/ Recorrentes ao benefício do prazo e a sua perda estabelecida a favor do devedor principal não se estende aos fiadores, é, manifesto que, estando o aludido benefício do prazo inequivocamente relacionado com as prestações vincendas, vedado está à Exequente em sede de execução exigir dos fiadores/Recorrentes o pagamento de quaisquer prestações vincendas.

AA. Pelo que, conforme dispõe o artigo 782.º CC só ao devedor que dá causa ao vencimento imediato da obrigação pode ser exigido o cumprimento parcial ou total antes de terminar o prazo estabelecido, já que a perda do benefício não se aplica aos fiadores.

BB. Pretende-se, assim, evitar que o fiador seja responsável para além da medida do risco que assumiu e evitar a sua ruína, pela acumulação da dívida, derivada designadamente de quotas de amortização de capital pagável com juros, comissões e outras despesas, ruína que inevitavelmente poderá vir a suceder nos presentes autos, pois os Recorrentes são pessoas com cerca de 60 anos de idade, sérias, honradas, cumpridoras dos seus compromissos e que nunca foram demandados em tribunal por qualquer dívida ou outra razão de natureza civil ou criminal, mas que vivem exclusivamente dos seus salários.

CC.   Portanto, conforme resulta dos autos, a Exequente não interpelou os fiadores/ Recorrentes no sentido de pagarem as prestações vencidas (com a indicação do valor e data de vencimento das prestações vencidas e não pagas até ao momento) e as que se forem vencendo pelo decurso do tempo (porque a perda do benefício do prazo do devedor não se lhe estende), antes intima-os para de pronto liquidarem um eventual valor global e correspondente ao resultante da imediata liquidação total de três créditos decorrentes de contratos de mútuo outorgados com o devedor, valor esse que, salvo melhor opinião, não está sequer liquidado, conforme melhor se alegou em sede de embargos, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais e devidos efeitos, tendo ficado a apreciação desta questão prejudicada pela decisão da Sentença da 1ª instância.

DD. Ora, se o fiador não for informado pelo credor do vencimento da obrigação, isto é, se não for colocado em condições de poder cumprir nos mesmos termos em que o pode fazer o devedor, daí não poderá resultar um aumento do seu risco, ou seja: o fiador, quando for, mais tarde, intimado para cumprir, não estará vinculado a mais do que aquilo que estaria se fosse esse o momento do vencimento da obrigação tornado possível pela interpelação (cfr. Manuel Januário da Costa Gomes, “Assunção Fidejussória de Dívida”, p. 949, citado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16-10-2018, processo n.º 2971/17.9T8CBR-B.C1).

EE. Pelo que, tendo os Embargantes a qualidade de fiadores e não tendo existido perda do benefício do prazo nem efetuada a sua interpelação admonitória, apenas lhe poderiam ser exigíveis as prestações vencidas e não pagas à data da propositura da execução.

FF. Não tendo a Exequente cumprido o ónus de informar os fiadores, ora Recorrentes e sido estes instados apenas para pagar já no decurso do presente processo executivo (volvidos mais de 16 anos desde a entrada em juízo da execução), não lhes é eficaz o agravamento da dívida posterior ao momento em que razoavelmente deveria ter sido informado da quebra de pagamentos (Manuel Januário da Costa Gomes, “Assunção Fidejussória de Dívida, pág. 961 e 962), o que consubstancia a exceção de inexigibilidade da obrigação exequenda.

GG. Assim, e em conclusão, não tendo os fiadores renunciado ao benefício do prazo e dada a ausência da realização da interpelação admonitória dos mesmos, a qual também não poderia considerar-se realizada através da citação para a execução - na medida em que, a citação não seria idónea para obviar às consequências não automáticas da mora do devedor, pois não lhes seria dada oportunidade de pagarem as prestações vencidas, evitando a exigibilidade das vincendas - haveria que concluir-se, tal como o fez a douta Sentença da 1ª instância, pela inexigibilidade, face aos Embargantes fiadores, da obrigação exequenda.

Sem conceder,

HH. Sem a realização da interpelação admonitória dos fiadores aqui Recorrentes, ao contrário do entendimento plasmado no douto Acórdão recorrido, entendem os Recorrentes que não assiste à Exequente o direito a exigir dos mesmos o pagamento da totalidade das prestações “em dívida”, mas apenas, no limite, as prestações vencidas e não pagas até à data da instauração da execução - prestações que se ignora quais hajam sido -, donde se segue que a obrigação exequenda não é exigível face aos fiadores ora Recorrentes.

II. Pelo que, sempre com o devido respeito que é muito, o douto Acórdão recorrido não fez uma correta interpretação da lei, nomeadamente do disposto nos artigos 781.º, 782.º e 805.º, todos do Código Civil.

JJ. Por tudo o exposto, é inexigível a obrigação exequenda, face aos Embargantes fiadores, ora Recorrentes, devendo ser revogado o acórdão recorrido, mantendo-se a sentença da 1ª instância nos seus precisos termos, julgando os embargos de executado totalmente procedentes e, em consequência, declarando extinta a execução movida contra os Embargantes fiadores, ora Recorrentes.

Nestes termos, nos melhores de Direito, e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas. deverá o presente recurso ser julgado procedente, devendo o Acórdão recorrido ser revogado, mantendo-se na íntegra a decisão do Tribunal de 1.ª instância, julgando-se totalmente procedente a oposição à execução, e em conformidade, determinando que seja declarada extinta a execução movida contra os Embargantes fiadores, ora Recorrentes, por se considerar inexigível, face aos mesmos, a obrigação exequenda,       assim se fazendo a costumada

JUSTIÇA!


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Contra-alegou a embargada/exequente, sustentando a confirmação do acórdão da Relação.


Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO


Nada obsta à apreciação do mérito da revista.

Com efeito, a situação tributária mostra-se regularizada, o requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC). Para além de que tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).


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Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), as questões a decidir consistem em saber:
    • Se a exequente tinha de interpelar os fiadores, previamente à instauração da execução, para pagamento do valor em dívida para que a obrigação lhes fosse exigível;
    • Na afirmativa, se deve considerar-se verificada essa interpelação por via da citação para a execução.  

III – FUNDAMENTAÇÃO


III. 1. FACTOS PROVADOS

É a seguinte a matéria de facto provada (na 1ª instância, sem impugnação em recurso):

A) No âmbito da sua atividade creditícia, a exequente celebrou com os executados um contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca e fiança em 06.06.2001, um contrato de empréstimo em 06.06.2001 e um contrato de mútuo com fiança em 05.06.2001.

B) Nos referidos contratos figura como mutuante a ora exequente, como mutuários DD e CC e como fiadores AA e BB.

C) Através do contrato celerado em 05.06.2001, a exequente entregou aos mutuários o montante de 5.406,97€, pelo prazo de 60 meses a contar da data da realização do mesmo, a liquidar em 60 prestações mensais e sucessivas de capital e juros.

D) Na cláusula 11 do referido contrato, é referido o seguinte: “Garantia: Fiança de AA e cônjuge BB, que se declaram solidariamente responsáveis perante a Caixa Geral de Depósitos, como fiadores e principais pagadores da quantia que os mutuários venham a dever à Caixa, dando já o seu acordo a eventuais alterações da taxa de juro, prazo ou a quaisquer outras modificações que venham a ser fixadas ou convencionadas entre a Caixa e os mutuários.”

E) E a cláusula 18, com o nome de “Rescisão” prevê que: “A Caixa poderá rescindir o contrato no caso de incumprimento de qualquer obrigação assumida pelos mutuários.”

F) No contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca e fiança celebrado em 06.06.2001 por escritura pública no Cartório Notarial de EE, a exequente entregou aos mutuários o valor de DD e CC o montante de 49.879,00€.

G) Para garantia do pagamento de tal quantia, constituíram hipoteca sobre a fracção autónoma designada pela letra “J”, destinada à habitação, correspondente ao terceiro andar esquerdo traseiras e um arrumo na cave, designado pela mesma letra, integrado no prédio urbano situado na Rua ..., freguesia e concelho de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ….

H) Na referida escritura, os ora embargantes declararam o seguinte:

“(...) que se responsabilizam como fiadores e principais pagadores por tudo quanto venha a ser devido à Caixa em consequência do empréstimo aqui titulado dando, desde já, o seu acordo a quaisquer modificações da taxa de juro e bem assim às alterações de prazo ou moratórias que venham a ser convencionadas entre a Caixa e a parte devedora e aceitando que a estipulação relativa ao extrato da conta e aos documentos de débito seja também aplicável à fiança.”

I) Na cláusula 16ª, designada como “Direitos da credora”, vem previsto o seguinte: “À credora fica reconhecido o direito de:

a) (…) b) (…) c) (…)

d) Considerar o empréstimo vencido se o imóvel hipotecado for alienado sem o seu consentimento ou se a parte devedora deixar de cumprir alguma das obrigações resultantes desse contrato.”

J) Através do contrato de empréstimo com promessa de hipoteca e fiança celebrado entre as partes em 06.06.2001, a exequente entregou aos mutuários DD e CC o valor de 11.721,00€.

K) Nos termos da cláusula 11, denominada “Direitos da Credora”, ficou estipulado o seguinte:

“À credora fica reconhecido o direito de:

a) (…)

b) Considerar o empréstimo vencido se a parte devedora deixar de cumprir alguma das obrigações resultantes deste contrato e nomeadamente, se verificar que o empréstimo não foi aplicado na finalidade indicada e se não forem reforçadas as garantias quando tal for solicitado à parte devedora.”

L) E a cláusula 13.ª com a epígrafe “Garantia – Fiança) prevê o seguinte:

“O(s) terceiro(s) outorgante(s) responsabiliza(m)-se solidariamente com os segundos como seus fiador(es) e principal(ais) pagador(es), pelo pagamento de tudo o que vier a ser devido à Caixa em consequência deste contrato e dão desde já o seu acordo a todas e quaisquer modificações de prazo ou moratórias que venham a ser convencionadas entre a Caixa e a parte devedora, e, bem assim, às alterações da taxa de juro permitidas por este contrato.”

K) A exequente não procedeu à interpelação dos ora embargantes, enquanto fiadores, antes de intentar a ação executiva a que os presentes autos correm por apenso.


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III. 2. DO MÉRITO DO RECURSO


Analisemos, então, as questões suscitadas na revista, quais sejam; aferir se a exequente tinha de interpelar os fiadores, previamente à instauração da execução, para pagamento do valor em dívida para que a obrigação lhes fosse exigível; na afirmativa, se essa interpelação pode considerar-se verificada/preenchida com a citação para a execução.  


Adiantando solução, cremos que ambas as questões merecem resposta afirmativa.

E as razões justificativas dessa solução são, no essencial, as que se deixaram vertidas em anterior acórdão deste Supremo Tribunal de 11.03.2021, também relatado pelo ora Relator, ut processo nº 1366/18.1T8AGD-B.P1, disponível em www.dgsi.pt.[1].

Como tal (e até porque a factualidade é de todo idêntica à daqueles autos, no essencial apenas divergindo as partes e os valores em dívida), seguiremos muito de perto o que ali deixámos dito, por considerarmos que corresponde à solução jurídica mais acertada, face aos factos e à justiça do caso.


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Não vamos aqui tecer considerações sobre a posição do fiador ou o âmbito e/ou a natureza da fiança, designadamente sobre as características desta, saber se o fiador é, também ele, devedor, ou se, pelo contrário, é mero objecto de uma relação de responsabilidade. Para tal remete-se, sem mais, para o que naquele aresto deixámos dito.


Da mesma forma, sobre a questão de saber se, para ser exigido ao fiador (no caso sub judice, aos embargantes) o pagamento da totalidade das prestações antecipadamente vencidas por incumprimento do devedor principal, é necessária a sua prévia interpelação, também aqui reiteramos o que ali se escreveu, tendo-se concluído pela necessidade dessa interpelação.


Sobre esta questão escreveu-se, com efeito, no citado processo 1366/18.1T8AGD-B.P1:

“ (…). Ou seja, mesmo em relação ao devedor, o disposto no art. 781 C. Civil[2] não dispensa a sua interpelação: só com esta se pode desencadear o vencimento imediato das prestações vincendas e, subsequentemente, sua exigibilidade (teríamos, então, também em relação a ele, a apontada exigibilidade em sentido fraco).

O que bem se compreende, até mesmo na perspectiva do interesse do credor, pois o vencimento ope legis até pode nem lhe interessar (v.g., atenta a confiança que mantém no devedor - ou por quaisquer outras razões – , pode não ser do seu interesse desencadear o vencimento antecipado de todas as prestações).


Dito de outra forma: o desencadeamento do vencimento antecipado de todas as prestações é uma faculdade do credor (é ele quem decide se quer, ou não, continuar sujeito aos prazos de escalonadamente estabelecidos de vencimento das prestações), pelo que só a tornará efectiva, querendo e por via da interpelação do devedor.

Este é, ao que supomos, entendimento generalizado[3]”.


Da mesma forma, como ali justificámos e concluímos, é igualmente necessária a prévia interpelação dos fiadores, atento o que ali ficou explanado quanto à natureza da fiança e o que reza o artº 782º.


Justificou-se nesse aresto do STJ:

«Esta solução (a necessidade de interpelação prévia dos fiadores (ou demais previstos no artº 782º CC) para lhes ser exigido a totalidade das prestações e demais previsto nos contratos de mútuo com hipoteca celebrados com a devedora principal), já ressaltava dos ditames da boa fé: só assim não serão surpreendidos e injustamente prejudicados pelas desmandas e/ou desleixos do devedor principal que, eventualmente, deixou agravar a dívida de forma francamente censurável, quiçá até para intencionalmente prejudicar os (“ignorantes”) fiadores (dessa forma dando cabo do património destes numa altura em que, eventualmente, o devedor principal já nada teria de seu e, como tal, até já “nada tinha a perder”).

Não se pode olvidar que a ligação – melhor, vinculação – dos fiadores a tais contratos de mútuo foi resultado de solicitação/imposição do banco credor e pedido da devedora principal. Pelo que, nesta perspectiva, bem se compreenderá que, estando, afinal, os fiadores a fazer um “favor” à devedora e, dessa forma, a permitir seja viabilizada a concretização dos contratos de mútuo, quer a devedora, quer o credor fiquem vinculados para com aqueles a certo tipo de condutas, àquilo a que a doutrina designa de deveres acessórios de conduta[4], como é o caso (no que ora importa) da obrigação do banco credor de informar, tempestivamente, os fiadores sobre o desleixo do devedor principal, da falta de pagamento por este das prestações, com o acumular em catadupa da dívida e…eventual vencimento antecipado de todas as prestações, a repercutir-se no património dos fiadores. Só assim procedendo se pode dizer que agiram em conformidade com os padrões da diligência, da honestidade e da lealdade exigíveis do homem no comércio jurídico.

Era, de facto, exigível à devedora e ao banco credor que tivessem para com os fiadores (que, afinal, se limitaram a satisfazer interesses daqueles), um comportamento honesto, correcto, leal, não defraudando a legítima confiança ou expectativa que neles os fiadores depositaram. Mas assim não procederam, pois defraudaram essa confiança, o que saiu bem caro aos (quiçá “ingénuos”) fiadores!

(...).

Ainda a propósito[5], escreve Januário da Costa Gomes[6] que sendo o credor “parte numa relação contratual com o fiador, está vinculado à adoção de determinados comportamentos, entre os quais se inclui o de informar este, em tempo, das vicissitudes relevantes da relação principal” pois “ainda que se entenda que o regime do art. 782 é imperativo, o fiador acaba por “sofrer” as consequências da progressiva formação de uma “torrente de dívida” (...) cuja “velocidade” de efetivação depende do credor”. Assim, entende o referido autor que “uma vez iniciada a quebra de pagamentos por parte do devedor, desde que, pela sua frequência, seja objetivamente indiciadora da dificuldade ou impossibilidade económica do devedor cumprir - ou do propósito de não cumprir – , o credor tem o ónus de informar o fiador. Se o não fizer, este, quando instado para pagar, já eventualmente em processo executivo, pode opor ao credor a exceção de inexigibilidade (parcial) da obrigação exequenda”[7]».


A transcrição acabada de fazer, do supra citado acórdão deste Supremo Tribunal (repete-se, cujo Relator foi o mesmo dos presentes autos), “encaixa” plenamente nos presentes autos, apenas se observando que, enquanto ali era um o devedor principal (mutuário nos contratos de mútuo celebrados pela (também) aqui exequente), aqui são dois os devedores mutuários. O que, para a solução jurídica a dar ao caso, é absolutamente irrelevante.


Conclui-se, assim, ser necessária a prévia de interpelação dos fiadores, pois que a perda do benefício do prazo com a falta de pagamento de uma das prestações nunca se lhes estende, a não ser que tenha sido convencionado expressamente o afastamento desse regime legal, dada a natureza supletiva do artº 782º CC – e dos autos não consta que tivesse havido esse acordo contratual.

A interpelação aos fiadores é imposta pelo citado artigo 782º tanto mais que o vencimento imediato das prestações cujo prazo ainda se não venceu constitui um benefício que a lei não impõe ao credor e por isso este terá sempre que interpelar aquele a quem pretende exigir a totalidade dos pagamentos.

Ora, tal interpelação prévia não teve lugar, pois que, como consta do facto provado K), “a exequente não procedeu à interpelação dos ora embargantes, enquanto fiadores, antes de intentar a ação executiva a que os presentes autos correm por apenso.”.


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· Resta, então, saber se com a citação dos fiadores para a execução se pode considerar concretizada aquela (faltosa) interpelação. Ou seja, saber a interpelação admonitória dos Fiadores pode considerar-se realizada com a citação para a execução, dessa forma afastando a regra do artigo 782.º e fazendo funcionar o regime do artigo 781.º, com vencimento da totalidade das prestações.


De novo, respondemos pela afirmativa.

Sobre este aspecto, escreveu-se no Ac. do STJ de 14.01.2021[8]: «A citação dos fiadores para a execução - para contestar ou pagar a totalidade da dívida resultante da antecipação de vencimento - não pode suprir a falta de tal interpelação, pois, através dela, não é dada oportunidade aos fiadores de procederem ao pagamento das prestações vencidas, evitando a exigibilidade das vincendas, e só através de interpelação para cumprir a obrigação se pode efectivar tal exigibilidade. Aliás, tal exigência foi sugerida por Adriano Vaz Serra, “Fiança e Figuras Análogas”, Sep. BMJ nº 71, onde propôs, no artigo 10/3 do Anteprojeto: “(…) Quando a obrigação principal só se vencer com a interpelação do devedor, o fiador deve ser igualmente interpelado para que a interpelação seja eficaz em relação e ele” justificando-a no facto de o fiador poder querer cumprir logo, evitando o alargamento da responsabilidade decorrente da mora. Embora não tenha sido feita constar expressamente na lei relativamente aos casos de obrigação pura ou a termo incerto, o legislador fê-lo relativamente aos casos de dívida liquidável em prestações, regulando a questão do reflexo, nos obrigados e terceiros garantes, da perda pelo devedor do benefício do prazo ocorrida nos termos dos artigos 780 e 781 (artigo 782º).

Chegados a este ponto, é nele que se coloca a questão final de determinar se a falta de interpelação do fiador, necessária por este não ter renunciado ao benefício do prazo, não podendo ser substituída pelos efeitos da citação na execução, impõe a extinção da execução ou se permite relevar aquela citação, vinculando o fiador ao pagamento do capital das prestações em dívida, vencidas e vincendas, apenas com a salvaguarda de a exigibilidade desse montante, datado na citação, tornar devidos os juros de mora a partir desta. Ou, num outro entendimento já sufragado também pela jurisprudência, apenas as vencidas à data da execução, e acrescida dos juros pedidos desde a data da citação.

No plano da definição dos princípios, afirmámos a necessidade de interpelação do fiador por parte do credor e que com ela não se confunde a citação que lhe haja sido realizada na execução para exigir o pagamento da totalidade da dívida, porque a citação não permitiria ao fiador a oportunidade de pagar as prestações vencidas, evitando a exigibilidade das vincendas. No entanto, por razões de relevância pragmática, várias são as decisões que, sensíveis a que a citação é em qualquer caso uma comunicação, admitem que esta, não tendo o valor nem a natureza da interpelação que era exigível, possa ter a utilidade para através dela o credor exigir ao fiador a totalidade da dívida (prestações vencidas e vincendas) excepto no que diz respeito aos juros de mora que se contariam desde a citação apenas.». Posição esta que ali veio a ser seguida.


Foi seguindo as “razões de relevância pragmática” de que fala aquele aresto do Supremo que a Relação decidiu como decidiu.

Diz da Relação:

«... sendo inequívoca esta ausência de comunicação aos embargantes/fiadores, julgamos não dever escamotear a relevância que deve ser conferida à posterior citação para a presente execução, daí decorrendo a imediata exigibilidade de todas as prestações em dívida, atento o extenso lapso temporal entretanto decorrido e tanto mais que o imóvel dado de garantia terá sido inclusivamente já vendido, conforme aventa a embargada. Além de tudo o mais, constata-se, uma vez compulsados os autos principais executivos, que a executada CC foi, inclusivamente, declarada insolvente.

O pragmatismo desta solução, que busca no caso concreto a sua maior legitimação, corresponde ao que nos parece ser a abordagem mais equilibrada, no âmbito das exigências decorrentes de um comércio jurídico que se pretende fluído e “business friendly”, atentando quer na situação de insolvência de um dos executados, com as decorrentes consequências em termos da dívida exequenda, quer ainda no grau de vinculação assumido por estes concretos fiadores, erigidos, contratualmente, como principais pagadores e não beneficiando da excussão prévia.


Ademais, o vencimento antecipado de toda a dívida em face do incumprimento dos mutuários há muito já terá ocorrido, até por força da insolvência referenciada, inviabilizando, na prática, a possibilidade de pôr fim à mora ou de obstar à resolução dos contratos.”[9].


Esta foi, também, a posição que defendemos no já citado Ac. deste STJ de 11.03.2021[10], onde se escreveu:

« (...). Neste segmento, entende-se que a resposta deve ser positiva, mas com ressalva no que tange aos juros de mora que aos fiadores possam ser exigidos, pois que, dada a ausência da já aludida prévia interpelação por banda da credora, tais juros moratórios contar-se-ão, somente, a partir da citação.

Entendimento, diga-se, sufragado por variados arestos.

(…).

É certo que a citação para a execução não visa pôr termo à mora ou impedir a resolução do contrato. Mas aquela ausência de comunicação/interpelação ao embargante, não afasta a relevância da posterior citação para a execução, conduzindo esta à imediata exigibilidade de todas as prestações em dívida e devidas até ao final dos prazos dos contratos, embora a exigibilidade da totalidade da dívida quanto aos fiadores somente se deva considerar a partir da citação para a execução.

Assim também, no Ac. o Acórdão da Relação do Porto de 14.06.2017[11]: “Não pode negar-se no entanto a relevância que nesse sentido se reveste a citação para a execução, conducente à exigibilidade imediata de todas as prestações em dívida e devidas até final do prazo dos referidos contratos, ainda que entendendo que, contrariamente ao alegado pela Exequente no requerimento inicial, a exigibilidade da totalidade da dívida no que aos fiadores concerne se deva considerar apenas a partir da citação dos Executados e não desde a data apontada no requerimento executivo.

(…). “as consequências do comportamento da Exequente quanto à obrigação exequenda não assumem os contornos de inexigibilidade pretendidos pelos Recorrentes, mas refletem-se no conteúdo da mesma, relativamente ao montante dos respetivos juros moratórios (quanto às prestações ainda não vencidas à data da citação), que serão devidos desde a citação.”.


Ainda a propósito da exigibilidade da obrigação e citação na demanda executiva, pode trazer-se à colação o ensinamento de CASTRO MENDES[12]: “se a obrigação não está vencida, faltando apenas a interpelação, vale como tal a citação para a acção executiva. Trata-se de uma interpelação judicial[13]».


Assim se concluital como decidido naqueles arestos deste Supremo Tribunal – , que a citação para a execução constitui interpelação bastante para pagamento, assistindo à Exequente o direito a exigir (solidariamente com a devedora principal) dos fiadores o pagamento da totalidade das prestações que, por força do estatuído no artº 781º, se venceram (e não apenas as já vencidas e não pagas até à data da instauração da execução), com a contabilização dos juros moratórios a partir daquela citação, despesas e comissões devidas.


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Uma última nota

A solução em nada se altera pelo facto de a executada/mutuária CC ter sido declarada insolvente.

Não olvidamos o estatuído no artigo 780.º, n.º 1, 1.ª parte, CC (ver o Ac STJ de 06.12.2018, relatado por Tomé Gomes), ao prescrever a perda do benefício do prazo estabelecido a favor do devedor quando este se torne insolvente, ainda que a insolvência não tenha sido judicialmente declarada – situação que, para ANTUNES VARELA, determina “o vencimento imediato da obrigação, por caducidade do prazo estabelecido”[14].

Ou seja, para além dos casos de exigibilidade antecipada previstos nos arts. 780º e 781º, ambos do CC, prevê o art. 91º, nº 1, do CIRE, que, com a declaração judicial de insolvência, a dívida a prazo se vence antecipadamente, sem necessidade de interpelação do credor ao devedor: dá-se o vencimento automático antecipado (sendo, porém, que Almeida Costa já diferencia duas situações: a declaração judicial de insolvência, em que, por via do art.º 91.º, n.ºs 1 e 3, do CIRE, ocorre “uma automática antecipação do vencimento”; a insolvência não judicialmente declarada, caso em que se verificará “uma simples antecipação da exigibilidade, cujo exercício fica ao arbítrio do credor e, consequentemente, vencendo-se a prestação no respectivo prazo, se ele deixa de reclamá-la[15]).

Porém, como acima ficou dito, relativamente aos fiadores (devedores solidários), a perda do benefício do prazo não se lhes estende, apesar da perda do benefício do prazo resultante da insolvência de um só dos devedores. Só assim não será caso tenha sido estipulada convenção em contrário ou se verifique, também quanto a eles fiadores, causa determinante dessa perda – como cremos ser entendimento jurisprudencial dominante, exemplificando-se com o Acórdão do STJ de 8.1.2018[16]. No mesmo entendimento lavrando Manuel Januário da Costa Gomes[17], sustentando a subsistência do art. 782º mesmo no caso de insolvência declarada.


Sem embargo da justeza do referido, certo é, também, que, como acima concluímos, em relação aos fiadores (e é destes que aqui tratamos e não dos devedores) a situação (obrigacional) se não altera, de modo que, não obstante a inexistência de interpelação nos sobreditos moldes, tornou-se relevante a sua citação para a execução para efeitos da exigibilidade, a partir daí, das prestações em dívida e devidas até ao final dos prazos dos contratos.


Consequentemente, há-de ser julgado improcedente o recurso de revista interposto pelos embargantes.


IV. DECISÃO

 

Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, negar a revista, mantendo-se o decidido no Acórdão da Relação.


Custas da revista a cargo dos Recorrentes.


Lisboa, 14-10-2021


Fernando Baptista de Oliveira (Juiz Conselheiro Relator)

Vieira e Cunha (Juiz Conselheiro 1º Adjunto)

Abrantes Geraldes (Juiz Conselheiro 2º Adjunto)

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[1] Tal como este, vindo do Tribunal Judicial da Comarca de ... – Juízo de Execução de ....

[2] “Se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importará o vencimento de todas”.

[3] Cfr. Antunes Varela, Direito das Obrigações, 6.ª ed., vol. II, pg. 52 e ss.; Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 11.º ed., pg. 892 e ss.; Vasco da Gama Lobo Xavier, RDES, ano XXI, n.ºs. 1 a 4, pg. 201, nota 4; Pessoa Jorge, Direito das Obrigações, vol. I, pg. 317, apud Almeida Costa, op. Cit.; Galvão Teles, Direito das Obrigações, 7.ª ed., pg. 270 e ss.- este último a sustentar que, não obstante tal solução não se encontrar expressamente consagrada na lei vigente, deve ser a consagrada de jure condendo.

[4] Sobre a existência de deveres acessórios de conduta enquanto sinal da pós-eficácia das obrigações, CARLOS MOTA PINTO, Cessão da Posição Contratual, Almedina, 1982, págs. 354-356, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Da Pós-Eficácia das Obrigações, em “Estudos de Direito Civil”, vol. I, Almedina, 1987, pág. 143 e seg., Da Boa Fé no Direito Civil, vol. I, Almedina, 1984, pág. 625 e seg., e Tratado de Direito Civil, IX vol., 3.ª ed., Almedina, 2019, pág. 198-200, e NUNO PINTO OLIVEIRA, Direito das Obrigações, vol. I, Almedina, 2005, pág. 95-96.

[5] A propósito das situações em que “os bancos exigem fianças para garantia de cumprimento das obrigações assumidas pelo devedor principal”.

[6]Assunção Fidejussória de Dívida, Almedina, 2000, págs. 961/962.
[7] Os destaques são nossos.
[8] Proc. 1366/18.1T8AGD-A.P1.S1 (MANUEL CAPELO).
[9] Destaque nosso.
[10] Processo nº 1366/18.1T8AGD-B.P1.
[11] Processo nº 11257/15.2T8PRT-A.P1, in www.dgsi.pt.
[12] Acção executiva, 1980-14.
[13] Destaque nosso.
[14]Das Obrigações em Geral, Vol. II, Almedina, 7.ª Edição, 1997, p. 47.
[15] Direito das Obrigações, Almedina, 11.ª Edição, 2008, p. 1016.
[16] P. 123/14.9TBSJM-A.P1.S2, Relator Henrique Araújo.
[17] "Sobre os Poderes dos Credores contra os Fiadores no Âmbito da Aplicação do CIRE. Breves Notas", no III Congresso do Direito da Insolvência, Coord. por Catarina Serra, Almedina, 2015, págs. 329/330.