Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2357/20.8T8MAI.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: DIREITOS DE PERSONALIDADE
TUTELA DA PERSONALIDADE
VIDEOVIGILÂNCIA
RELAÇÕES DE VIZINHANÇA
DIREITO A RESERVA SOBRE A INTIMIDADE
DIREITO À IMAGEM
AMEAÇA
DANO
ILICITUDE
PRESSUPOSTOS
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CASO JULGADO
LIMITES DA CONDENAÇÃO
DIREITO À IDENTIDADE PESSOAL
Data do Acordão: 02/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Atenta a sua importância, os direitos de personalidade gozam de uma antecipação de tutela, consagrando a lei a protecção contra a simples ameaça de lesão, que corresponde, basicamente, ao perigo real ou verosímil de uma ofensa futura de um determinado direito de personalidade.

II. Assim, tanto a ofensa como a ameaça de ofensa de direitos de personalidade configuram factos ilícitos, independentemente da existência de culpa do agente ou da prova de danos causados às pessoas tuteladas.

III. A protecção a dispensar em caso de ameaça de ofensa futura deve ser, nos termos do n.º 2, do art. 70.º do CC, adequada a repelir a ameaça, apenas o sendo se for capaz de remover de forma efectiva o perigo de ofensa.

IV. Nos autos é retratada situação em que os réus procederam à instalação de câmaras de videovigilância no exterior da sua habitação, com capacidade para registo de voz e de imagem, sendo uma das câmaras rotativa e a outra câmara fixa.

V. Não resultando, contudo, da matéria de facto: (i) qual o alcance da gravação de voz de ambas as câmaras; (ii) se, em concreto, a câmara rotativa tem alcance para filmar a habitação dos autores e, em caso afirmativo, que partes concretas da habitação ficam ao alcance de tal câmara.

VI. Não tendo tais factos sido levados à matéria de facto tida em consideração pelas instâncias, mas tendo sido alegados pelos autores, considera-se necessário determinar a respectiva ampliação, nos termos do disposto no art. 682.º, n.º 3, do CPC.

VII. Caso se venha a fazer prova de que uma ou mais câmaras de vigilância instaladas pelos réus tem/têm alcance para registo de voz no interior e/ou no exterior da casa dos autores e/ou que é possível a rotação de uma das câmaras de forma a registar imagens da habitação dos autores, será de decidir em conformidade com o direito definido no presente acórdão.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




1. AA e mulher, BB, residentes na Rua..., ..., ..., propuseram contra CC e DD, residentes na Rua ... ..., ..., procedimento cautelar não especificado, com pedido de decretamento de inversão de contencioso alegando, em resumo, que:

- São donos de fração autónoma («A») e a requerida é dona de uma outra fração no mesmo prédio, sendo vizinhos entre si (os requerentes no ... e os requeridos no ....º andar);

- No dia 18/06/2020, os requerentes aperceberam-se que o requerido DD se encontrava a montar uma câmara de vigilância;

- Em 19/06/2020 os requerentes constataram que haviam colocado mais três câmaras de vigilância no exterior do imóvel, direcionadas para o interior da fracção dos Requerentes; uma das câmaras abrangia o interior de dois dos quartos dos requerentes;

- Outras câmaras de vigilância foram colocadas direcionadas para o logradouro/pátio dos requerentes;

- Desde que foram colocadas as referidas câmaras, as mesmas sempre se encontraram a funcionar;

- Por causa da colocação das câmaras de vigilância, os requerentes estão limitados na sua casa em todos os seus actos por desconhecerem o alcance de tal vigilância, tendo deixado de abrir as janelas, tendo as persianas sempre corridas, não mais entrando o sol dentro da casa, deixaram de ter conversas importantes dentro de casa e deixaram de utilizar o logradouro;

- A filha dos requerentes, de nove anos, queixa-se que está a ser vigiada e que os requeridos lhe tiram fotografias e a filmam, desconhecendo os requerentes as intenções dos requeridos em relação a essas fotografias;

- O filho dos requerentes também está angustiado;

- A requerente mulher só consegue trabalhar e dormir à base de medicação, tendo vindo emagrecer de forma alarmante;

- Os requeridos querem prejudicar os requerentes no seu património e nas suas pessoas e dos filhos, invadindo a privacidade.

Terminam pedindo que seja ordenada a notificação dos requeridos para retirem todas as câmaras de vigilância ilicitamente colocadas em locais estratégicos de forma a visualizar o exterior e interior do imóvel pertencente aos Requerentes, com a intervenção da Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD), as câmaras de vigilância sejam apreendidas, recolhendo-se todo o material nomeadamente a gravação de imagens e de voz, sendo disponibilizadas aos Serviços do Ministério Público da Comarca ... - DIAP – Secção ..., na queixa crime apresentada pelos Requerentes e que aguarda distribuição (n.º de entrada ...) de forma a prosseguir o inquérito.

O tribunal proferiu então despacho a convidar os requerentes a convolarem o procedimento num processo especial, como previsto nos artigos 878.º e seguintes do Código de Processo Civil, o que os requerentes fizeram, apresentando novo articulado, com o mesmo pedido.

Essa convolação foi aceite pelo tribunal, procedendo à alteração da forma de processo.

Citados os RR., os mesmos contestaram mencionando em síntese que:

- O R. DD é parte ilegítima por não ser proprietário da fracção nem casado com a requerida que é a única proprietária do imóvel e das câmaras em questão;

- Impugnam a matéria alegada, referindo que apenas estão colocadas duas câmaras de vigilância, uma vez que outra é uma simulação de câmara;

- As imagens captadas são exclusivamente da moradia da requerida e do acesso à mesma.

Terminam, pedindo que a R. seja absolvido da instância e a acção julgada improcedente.

Os AA. pronunciaram-se sobre a excepção alegando estar em causa uma acção que tem por objecto a casa de morada de família por ser onde o R. vive com a R. e filhos.

Realizou-se audiência de julgamento, com inspecção ao local acompanhada por perito.

Foi proferida sentença com a seguinte decisão:

«Nos termos e pelos fundamentos expostos decide-se julgar a presente acção procedente e, em conformidade, condenar os Réus a adaptar o funcionamento das câmaras de vigilância existentes na sua habitação, para cujo efeito se concede o prazo de 15 dias a contar do trânsito em julgado da presente sentença, por forma que as mesmas obedeçam às regras legais em vigor, designadamente:

- as câmaras não podem proceder à captação de imagens da via pública, das propriedades vizinhas, designadamente da habitação dos Autores e dos locais que não sejam do domínio exclusivo dos Réus;

- as câmaras não podem proceder à captação de som;

- Os Réus só podem conservar, em registo codificado, as imagens captadas até 30 dias após a sua captação e terminado o prazo de 30 dias, as imagens têm de ser destruídas nas 48 horas seguintes.»

Inconformados, os RR. interpuseram recurso para o Tribunal da Relação ... pedindo a alteração da decisão da matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

Foi proferido acórdão que, alterando a matéria de facto, julgou procedente o recurso, revogando a decisão recorrida e absolvendo os RR. do pedido.


2. Vieram os AA. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

«I. Atentos os factos provados – nomeadamente, factos nºs 5, 6, 7, 8, 8-A, 9, e 9.1, (não obstante as alterações e de acordo com as alterações efetuadas pela Relação) deverá ser tomada uma decisão que faça cessar a ameaça e minimizar os danos já provocados, já que impõe a lei e a legislação em vigor que:

II. A aplicação das câmaras, com as características e funcionalidades que possuem, nomeadamente a mobilidade, possibilidade de alteração de posição, a funcionalidade de gravar som, que pode ser ativado a qualquer momento, a possibilidade de a qualquer altura, atendendo que, as câmaras possuem tais características, poderem ser direcionadas para a parte privada dos recorrentes, ser ativada a funcionalidade do som, serem as câmaras ditas “falsas” substituídas por verdadeiras, obriga a que, em curto espaço de tempo, sejam decretadas providências que acautelem os direitos dos recorrentes e de todo o agregado familiar,

III. Por si só a permanente vigilância através de câmaras fere os direitos de personalidade das pessoas atingidas, mais especificamente seu direito à autodeterminação informacional, que engloba o poder do indivíduo de, em princípio, decidir sozinho quando e em quais limites situações de sua vida privada podem ser expostas.

IV. E como resulta dos factos dados como provados violou-se esse dever de cuidado e proibição de invadir a esfera privada alheia, ao serem colocadas as câmaras que, tal como dado por provado, “trata-se de câmaras de vigilância que iam mudando de posição”;

V. Tudo em articulação com os artigos 70.º, 80.º do Código Civil e 878.º Código de Processo Civil.»

Terminam pedindo a revogação do acórdão recorrido e a condenação dos RR. a retirar as câmaras de vigilância.

Os Recorridos apresentaram contra-alegações que, pela sua extensão e inexistência de conclusões aqui não se reproduzem, pugnando pela manutenção da decisão do acórdão recorrido.


3. O recurso foi distribuído à presente relatora em 22.10.2021.


4. O procedimento cautelar requerido foi convolado na forma do processo especial previsto nos artigos 878.º e seguintes do CPC, devendo ter-se presente que, de acordo com o disposto no n.º 1 do art. 549.º do CPC, «[o]s processos especiais regulam-se pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns», sendo que «em tudo o quanto não estiver prevenido numas e noutras, observa-se o que se acha estabelecido para o processo comum».

Não existindo norma especial que, quanto ao processo especial em causa, exclua o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, e encontrando-se verificados os pressupostos gerais de admissibilidade da revista dos arts. 629.º, n.º 1 e 671.º, n.ºs 1 e 3 do CPC - uma vez que está em causa uma acção sobre interesses imateriais (cfr. art. 303.º, n.º 1, do CPC) -, o presente recurso é admissível.


5. Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.

Assim, o presente recurso tem como objecto unicamente a seguinte questão:

- Saber se a instalação de câmaras de videovigilância, com as características dadas como provadas nos autos, corresponde ou não a uma ameaça de direitos de personalidade digna de tutela.


6. Com relevância para a apreciação do presente recurso, resultam provados os seguintes factos:

1 - Os Autores são proprietários de uma fração autónoma, designada pela letra “A”, correspondente a uma habitação do tipo “T– dois”, no ..., com entrada pelo número ..., fazendo parte da fração uma garagem, uns arrumos e uma lavandaria, ao nível do R/Chão com entrada pelo número ..., um jardim exterior a trás do prédio e um pátio de entrada de acesso à garagem e à habitação, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., ..., ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o ... sessenta e seis – de ..., e inscrito na respetiva matriz sob o artigo ....

2 - A Ré por sua vez é proprietária de uma habitação, do tipo “T – dois”, no ....º andar, com entrada pelos números ..., uma garagem ao nível da cave e pátio exterior, com entrada pelo número ..., um jardim exterior ao nível do Rés do Chão, rampa de acesso à garagem na cave e pátio exterior da entrada da habitação, onde reside em união de facto com o Réu DD.

3 – Os Autores e Réus são vizinhos há cerca de 17 anos, no mesmo prédio, composto por duas habitações, comummente designadas por “andar moradia” residindo os 1ºs no ... e os segundos no ....º andar.

4 - Durante muitos anos Autores e Réus conviveram pacificamente, podendo-se dizer, até, que tinham bom relacionamento.

5 - A 19 de junho de 2020 os Autores verificaram que os Réus haviam procedido à colocação de, pelo menos, duas câmaras de vigilância no exterior do imóvel.

6 - Os Autores aperceberam-se que a câmara designada pela letra «B» no relatório pericial surgia em momentos diferentes com orientação diversa. [alterado pela Relação]

7 - Trata-se de câmaras sofisticadas, de vigilância à distância a partir de casa, tanto de dia como de noite com visão noturna até 10m, com infravermelhos, visualização em direto e das gravações à distância a partir do smartphone ou tablet, com alta resolução (1280x720) e amplo ângulo de visão de 110º, etc.

8 - [alterado pela Relação] Existem duas câmaras colocadas na habitação dos requeridos, com as seguintes características:

. colocada na fachada frontal (letra «B» no relatório pericial):

. marca ..., modelo ..., para utilização no interior e exterior;

. equipada com motor que permite rodar a orientação da câmara em ângulos de 350º no eixo horizontal e 85º no eixo vertical;

. permite captação de vídeo e som;

. tecnologia IP, sem fios, com transmissão de vídeo através de rede Wi-Fi;

. permite gravação automática com deteção de movimento ou de som;

. administração da câmara (por exemplo, consulta de gravações, activação de deteção de movimento/som, alteração do ângulo de captação) através de aplicação em dispositivo móvel;

. memória interna de 16GB.

Colocada na fachada traseira (letra «D» do relatório pericial):

. marca ..., modelo ..., para utilização no interior;

. fixa;

. permite captação de vídeo e som;

. tecnologia IP, sem fios, com transmissão de vídeo através de rede Wi-Fi;

. permite gravação automática com deteção de movimento ou de som;

. administração da câmara (por exemplo, consulta de gravações, activação de deteção de

movimento/som, alteração do ângulo de captação) através de aplicação em dispositivo

móvel;

. armazenamento em cartão de memória SD.

8 - A - Os Réus foram alterando a posição das referidas câmaras de vigilância. [numeração alterada pela Relação]

9 - A colocação dos quatro aparelhos, pelos Réus, e seu aparente e possível funcionamento, causou desconforto aos Autores por recearem que os seus atos, praticados no exterior e interior da sua habitação, pudessem ser visionados por aqueles. [alterado pela Relação]

9.1. - As duas câmaras referidas em 8) que se encontram a funcionar, não visualizam nem gravam o exterior ou interior do imóvel pertencente aos Autores. [aditado pela Relação]

Factos dados como não provados pela Relação:

1 - Os Autores, por causa da colocação dos aparelhos referidos em 9), dos factos provados, tenham deixado de abrir as janelas, tendo as persianas sempre corridas, deixado de ter conversas importantes dentro de casa e deixaram de utilizar o logradouro.

2 - A filha dos Autores, por causa da referida colocação, se recuse a permanecer no exterior do imóvel.


7. Recorde-se que o presente recurso tem unicamente como objecto a questão de saber se a instalação de câmaras de videovigilância, com as características dadas como provadas nos autos, corresponde ou não a uma ameaça de direitos de personalidade digna de tutela.

Com especial relevância para a questão em causa, recorde-se que a sentença deu como provada a seguinte factualidade:

9 - Desde que foram colocadas as referidas câmaras de vigilância e até à presente data os Autores verificaram que as mesmas sempre se encontraram a funcionar, tendo-se maior perceção disso no período da noite.

10 - Em virtude da colocação das câmaras de vigilância os Autores perderam a paz, a privacidade, liberdade, vendo-se dentro da própria casa limitados em todos os seus atos por desconhecerem o alcance de tal vigilância.

11 - Deixaram de abrir as janelas, tendo as persianas sempre corridas.

12 - Deixaram de ter conversas importantes dentro de casa e deixaram de utilizar o logradouro.

13 - Nomeadamente a filha dos Autores que costumava andar aí de bicicleta e brincar, recusasse a permanecer no exterior do imóvel.

Tendo a mesma sentença fundamentado a decisão de direito nos termos seguintes:

   «Vejamos, antes de mais, se o acto praticado pelos Réus – colocação de câmaras de vigilância constitui um acto ilícito à luz das regras que o regulam.

   Com a entrada em vigor do Regulamento Geral sobre a Protecção de Dados (RGPD) não é necessário pedir autorização à Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) para instalar um sistema de videovigilância.

   Todavia, há que respeitar algumas regras impostas pelo Regulamento. Desde logo, se o objectivo é salvaguardar a segurança das pessoas e bens, o local onde as câmaras são instaladas deve abranger apenas o perímetro de segurança e o controlo dos acessos a partir do exterior do edifício. É proibida captação de imagens da via pública, das propriedades vizinhas e dos locais que não sejam do domínio exclusivo do responsável.

  Por outro lado, as imagens só podem ser conservadas, em registo codificado, até 30 dias após a sua captação. Terminado o prazo de 30 dias, as imagens têm de ser destruídas nas 48 horas seguintes.

   Finalmente a captação de som também é proibida, excepto mediante autorização da CNPD.

    Resulta, assim, que a colocação das câmaras em si mesma não constitui acto ilícito e violador dos direitos de personalidade dos Autores. Todavia, a forma como estão colocadas as câmaras e as funcionalidades das mesmas na medida em que permitem a captação de imagens da habitação dos Autores e bem assim a captação de som, actos esses que são proibidos, são susceptíveis de violar efectivamente os direitos à imagem e à reserva da vida privada dos Autores.

  Assim, impõe-se que sejam tomadas providências que acautelem os diretos dos Autores, sem que contudo proíbam os Réus de exercer, dentro da legalidade, o seu direito à segurança.

    Em conformidade, decide-se que devem os Réus adaptar o funcionamento das câmaras de vigilância existentes na sua habitação, para cujo efeito se concede o prazo de 15 dias a contar do trânsito em julgado da presente sentença, por forma que as mesmas obedeçam às regras legais em vigor, designadamente:

- as câmaras não podem proceder à captação de imagens da via pública, das propriedades vizinhas, designadamente da habitação dos Autores e dos locais que não sejam do domínio exclusivo dos Réus;

- as câmaras não podem proceder à captação de som;

- Os Réus só podem conservar, em registo codificado, as imagens captadas até 30 dias após a sua captação e terminado o prazo de 30 dias, as imagens têm de ser destruídas nas 48 horas seguintes.»

    A Relação alterou a matéria de facto, dando como provado que:

 9 - A colocação dos quatro aparelhos, pelos Réus, e seu aparente e possível funcionamento, causou desconforto aos Autores por recearem que os seus atos, praticados no exterior e interior da sua habitação, pudessem ser visionados por aqueles.

 9.1. - As duas câmaras referidas em 8) que se encontram a funcionar, não visualizam nem gravam o exterior ou interior do imóvel pertencente aos Autores.

  E dando como não provado que:

1 - Os Autores, por causa da colocação dos aparelhos referidos em 9), dos factos provados, tenham deixado de abrir as janelas, tendo as persianas sempre corridas, deixado de ter conversas importantes dentro de casa e deixaram de utilizar o logradouro.

2 - A filha dos Autores, por causa da referida colocação, se recuse a permanecer no exterior do imóvel.

  Em particular no que se refere à alteração do facto 9. e ao aditamento do facto 9.1., considere-se a fundamentação do acórdão recorrido:

 «[O]s recorrentes pedem que o facto 9) tenha a seguinte redação:

 “Desde que foram colocadas as referidas câmaras de vigilância e até à presente data as gravações foram direcionadas sempre e exclusivamente para a propriedade privada dos réus/requeridos e não existiam quaisquer gravações apagadas ou ficheiros eliminados e que ambas as câmaras (B e D) tinham ativa a função de gravação por movimento, assim como exceto em situações pontuais de ajustamento da posição das câmaras pelo requerido, não se identificaram gravações da propriedade de terceiros, nem da via pública.”

    Esta matéria não consta dos factos provados; e em relação aos factos não provados, face ao elenco genérico que consta da sentença (resultam não provados todos os factos alegados nos articulados, naturalmente com exceção dos provados), importa aferir se há matéria alegada que tenha resultado não provada e que os recorrentes pretendem que resulte provada.

    Na contestação, no artigo 17.º, alega-se que só há duas câmaras de vídeo vigilância e no artigo 20.º alega-se que não estão ilicitamente colocadas, nem estão destinadas, nem tal sucede, a visualizar e/ou a gravar o exterior, nem o interior, do imóvel fração autónoma designada pela letra “A”, pertencente aos autores.

   Ou seja, os Réus alegaram que só havia duas câmaras a funcionar e que as mesmas não visualizavam nem gravavam o exterior ou interior do imóvel pertencente aos Autores/recorridos.

  O tribunal recorrido, não dando como provado qualquer facto relativo ao tipo de visualização e gravação obtida por aquelas duas câmaras, acaba então por considerar não provada essa factualidade.

  Integrando-se aqueles dois artigos da contestação em parte da redação pretendida no facto 9 – duas câmaras que não visualizam nem gravavam para o imóvel dos Autores, só para o dos Réus -, há então que analisar se esta parte (e só esta pois a parte restante não é matéria alegada nos autos) pode ser dada como provada.

E, na nossa opinião, manifestamente o tem de ser pois resultou claro do relatório pericial que as ditas câmaras não captavam qualquer outra imagem que não fosse pertencente ao imóvel dos Réus salvo situações de ajustamento de posição das mesmas – fls. 4 e 5-.

   Assim, deve resultar provado o que se numera como facto 9.1) com o seguinte teor:

  As duas câmaras referidas em 8) que se encontram a funcionar, não visualizam nem gravam o exterior ou interior do imóvel pertencente aos Autores.

   Note-se que em relação à captação de som, alegando-se que as câmaras permitiam a mesma, não é, desde logo, alegado que tenha ocorrido qualquer gravação sonora e do relatório pericial não resulta que existam gravações de som, acompanhando as imagens visualizadas, por exemplo.

   De qualquer modo, essa matéria de facto relativa ao som não é objeto de recurso». [negritos nossos]

    Insurgem-se os AA., ora Recorrentes, contra esta decisão, invocando essencialmente o seguinte:

  «[C]omo resulta provado, não obstante as alterações levadas a cabo pelo Tribunal de que se recorre,

a. A simples aplicação das câmaras,

b. Atento as características e funcionalidades que possuem,

c. A mobilidade (dada como provada)

d. A possibilidade de alteração de posição – que se deu como provado,

e. A possibilidade de as referidas câmaras terem a funcionalidade de gravarem som,

f. A possibilidade de a qualquer altura, por as câmaras possuírem tais características, serem direcionadas para a parte privada dos recorrentes, ser ativada a funcionalidade do som, serem as câmaras ditas “falsas” substituídas por verdadeiras, por si só consubstanciam um ato ilícito e danoso que põe em causa os direitos dos recorrentes».

  Contra, pronunciam-se os Recorridos alegando, no essencial, que em face da modificação da decisão de facto operada pelo acórdão recorrido, não foi feita prova de qualquer conduta ilícita da sua parte, nem tampouco foi feita prova da existência de danos para os AA..

   Quid iuris?


8. Dispõe o n.º 1 do art. 70.º do Código Civil que «[a] lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física e moral», consagrando, assim, a denominada tutela geral da personalidade. Os direitos de personalidade configuram a concretização dessa tutela e correspondem às múltiplas dimensões da personalidade humana, assumindo-se como direitos absolutos e indisponíveis, sem prejuízo da discussão em torno da limitação voluntária aos direitos de personalidade, que não releva no caso que nos ocupa.

No caso dos autos, as dimensões da personalidade que convocam a nossa análise dizem respeito ao direito à imagem, ao direito à palavra e ao direito à reserva da intimidade da vida privada. No ensinamento de Rui Medeiros/António Cortês (anotação ao artigo 26.º, in Constituição Portuguesa Anotada, Vol. I, 2.ª ed., Universidade Católica Editora, 2017, págs. 451 e segs.):

«[O]s direitos à palavra e à imagem incluem o direito a que não sejam registadas ou divulgadas palavras ou imagens da pessoa sem o seu consentimento, conferindo assim um direito à “reserva” e à “transitoriedade” da palavra falada e da imagem pessoal. Garante-se, pois, a autonomia na disponibilidade da imagem e da palavra independentemente de estar ou não, de forma direta, em causa o bom nome e a reputação das pessoas e independentemente de estar ou não em causa a vida privada ou família. O direito à palavra implica a salvaguarda da “integridade de uma esfera privada” de comunicação verbal, através da garantia da confidencialidade das palavras não publicamente divulgadas (…). O direito à palavra pode, até certo ponto, considerar-se um direito mais amplo à autodeterminação informacional, que inclui o direito a que não sejam registados, divulgados ou, por qualquer forma, utilizados dados pessoais sem o consentimento da pessoa a quem tais dados se referem. (…)». [negritos nossos]

 O direito à imagem, por seu turno, «implica “a protecção contra o registo de imagem seja por fotografia ou filme bem como a respetiva mostragem, difusão ou outras utilizações. Por princípio, e excetuadas as naturais limitações ligadas às figuras e aos espaços públicos, cada pessoa pode autodefinir a possibilidade de utilização, ou não, dos registos, por fotografia ou filme, da sua própria imagem».

Por fim, o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar «para além do direito de cada um “ver protegido o espaço interior ou familiar da pessoa ou do seu lar contra intromissões alheias” (Ac. n.º 128/92), tende hoje a reconhecer-se uma outra dimensão, de cariz positivo, traduzida na faculdade dos cidadãos controlarem as informações que lhe dizem respeito».

A respeito dos meios de tutela dos direitos de personalidade, dispõe o n.º 2 do art. 70.º do Código Civil:

«Independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.»

Em conformidade com este regime, prevê o art. 878.º do CPC:

«Pode ser requerido o decretamento das providências concretamente adequadas a evitar a consumação de qualquer ameaça ilícita e direta à personalidade física ou moral de ser humano ou a atenuar, ou a fazer cessar, os efeitos de ofensa já cometida».


9. Com o procedimento requerido, convolado no processo especial previsto no referido art. 878.º do CPC, pretenderam os AA. fazer cessar uma ofensa já cometida aos seus direitos de personalidade e/ou evitar a consumação dessa ofensa.

Perante a alteração da matéria de facto levada a cabo pela Relação – concretamente perante o teor do aditado facto 9.1., do qual resulta não ter sido cometida uma ofensa aos direitos dos AA. – pretendem estes últimos que, diversamente do que ajuizou a Relação, se reconheça, a partir da demais factualidade dada como provada, que existe a possibilidade de essa ofensa vir a ocorrer, o que integra a previsão normativa de «ameaça de ofensa».

Vejamos.

Tenhamos presentes, no seu conjunto, os seguintes factos provados:

5 - A 19 de junho de 2020 os Autores verificaram que os Réus haviam procedido à colocação de, pelo menos, duas câmaras de vigilância no exterior do imóvel.

6 - Os Autores aperceberam-se que a câmara designada pela letra «B» no relatório pericial surgia em momentos diferentes com orientação diversa.

7 - Trata-se de câmaras sofisticadas, de vigilância à distância a partir de casa, tanto de dia como de noite com visão noturna até 10m, com infra vermelhos, visualização em direto e das gravações à distância a partir do smartphone ou tablet, com alta resolução (1280x720) e amplo ângulo de visão de 110º, etc.

8 - Existem duas câmaras colocadas na habitação dos requeridos, com as seguintes características:

. colocada na fachada frontal (letra «B» no relatório pericial):

. marca ..., modelo ..., para utilização no interior e exterior;

. equipada com motor que permite rodar a orientação da câmara em ângulos de 350º no eixo horizontal e 85º no eixo vertical;

. permite captação de vídeo e som;

. tecnologia IP, sem fios, com transmissão de vídeo através de rede Wi-Fi;

. permite gravação automática com deteção de movimento ou de som;

. administração da câmara (por exemplo, consulta de gravações, activação de deteção de movimento/som, alteração do ângulo de captação) através de aplicação em dispositivo móvel;

. memória interna de 16GB.

Colocada na fachada traseira (letra «D» do relatório pericial):

. marca ..., modelo ..., para utilização no interior;

. fixa;

. permite captação de vídeo e som;

. tecnologia IP, sem fios, com transmissão de vídeo através de rede Wi-Fi;

. permite gravação automática com deteção de movimento ou de som;

. administração da câmara (por exemplo, consulta de gravações, activação de deteção de

movimento/som, alteração do ângulo de captação) através de aplicação em dispositivo

móvel;

. armazenamento em cartão de memória SD.

8-A - Os Réus foram alterando a posição das referidas câmaras de vigilância.

9 - A colocação dos quatro aparelhos, pelos Réus, e seu aparente e possível funcionamento, causou desconforto aos Autores por recearem que os seus atos, praticados no exterior e interior da sua habitação, pudessem ser visionados por aqueles.

9.1. - As duas câmaras referidas em 8) que se encontram a funcionar, não visualizam nem gravam o exterior ou interior do imóvel pertencente aos Autores.

              Nos autos é retratada situação em que os RR. procederam à instalação de câmaras de videovigilância no exterior da sua habitação, com capacidade para registo de voz e de imagem, sendo uma das câmaras (designada pela letra B no relatório pericial) rotativa e a outra câmara (designada pela letra D no mesmo relatório) fixa.

Não resultando, contudo, da matéria de facto (provada e não provada):

(i) Qual o alcance da gravação de voz de ambas as câmaras;

(ii) Se, em concreto, a câmara rotativa (designada pela letra B) tem alcance para filmar a habitação dos AA. (como parece resultar do relatório pericial e, até certo ponto, ser admitido pela Relação ao referir-se, a págs. 32 do acórdão recorrido a «situações de ajustamento») e, em caso afirmativo, que partes concretas da habitação ficam ao alcance de tal câmara.

Afigura-se ser este o ponto essencial da análise que nos ocupa. Com efeito, não tendo tais factos sido levados à matéria de facto tida em consideração pelas instâncias, mas tendo sido alegados pelos AA. (cfr. artigos 19, 24, 25 e 27 da petição inicial), considera-se necessário determinar a respectiva ampliação, nos termos do disposto no art. 682.º, n.º 3, do CPC.

   Na verdade, se se demonstrar que, pelo menos, uma das câmaras pode captar imagens da habitação dos AA. e que ambas as câmaras, ou apenas uma delas, têm/tem capacidade para captar conversações dos AA. dentro da sua habitação, ou fora desta, mas dentro dos limites da sua propriedade, será de decidir em conformidade com o direito em seguida definido.

10. Não se ignora que os direitos de personalidade podem e devem ceder em situação de conflito com outros direitos igualmente dignos de tutela. Sucede que, lida a contestação, não se descortina a invocação por parte dos RR. de um qualquer contra-direito que seja suficiente para justificar uma restrição do direito à imagem, à palavra e à intimidade da vida privada, razão pela qual este não pode sofrer qualquer compressão.

De facto, a mera invocação de que a instalação de câmaras visou a segurança dos RR. não pode servir para fundar uma decisão de restrição dos direitos de personalidade em causa, já que não se extrai de tal alegação qualquer circunstancialismo fáctico que permita a realização de uma ponderação casuística, como se imporia.

Em todo o caso, um eventual receio – que, reitera-se, não foi alegado e, por isso, não resultou demonstrado – nunca justificaria a possibilidade de registo de voz e de imagem da habitação dos AA. e das zonas de reserva, nomeadamente dos quartos, já que não se vê em que medida tal serviria a segurança dos RR.. Bastaria, para o efeito, a utilização de câmaras sem capacidade para registar som e unidirecionais para gravação de imagem da habitação dos mesmos RR. e de zonas de acesso à mesma, ainda que comuns.

De facto, a habitação de cada um corresponde ao reduto inalienável da intimidade da vida privada, não podendo, salvo situações excepcionais, de que é exemplo a devassa justificada por motivos de investigação criminal, ser admitida. Nas palavras de Heinrich Hörster e Eva Moreira da Silva (A Parte Geral do Código Civil Português, 2.ª ed., Almedina, 2019, pág. 286):

«[P]arecido com o direito de imagem e muitas vezes interligado com ele é o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, regulado no artigo 80.º. Segundo o n.º 1 do artigo 80.º, todos devem guardar reserva quanto à intimidade da vida privada de outrem. Esta imposição actua em dois sentidos: por um lado, proíbe que alguém invada por qualquer meio. inclusive os meios áudio-visuais – o espaço da privacidade alheia (“my home is my castle”); por outro lado, proíbe que alguém divulgue factos ocorridos na intimidade da vida privada dos outros».

Assim, temos como certo que, se se vier a comprovar que, pelo menos, uma das câmaras de videovigilância instaladas tem capacidade de registo de imagem da habitação dos AA. e que ambas, ou apenas uma, das ditas câmaras têm/tem capacidade para registar conversações ocorridas no interior e/ou no exterior da propriedade dos AA., não poderá deixar de se considerar existir uma ameaça de ofensa aos direitos de personalidade dos AA., não podendo, atentos os contornos do caso concreto, ser negada a tutela por eles requerida.

Dir-se-á, como afirma a Relação, que não resultou demonstrada a efectiva captação de voz e de imagem da habitação dos AA.. Sucede que a mera susceptibilidade de tal vir a ocorrer é o suficiente para que se conceda tutela aos AA.. Dizer o contrário equivaleria a negar uma tutela preventiva que a lei concede aos titulares de direitos de personalidade nos já referidos termos do n.º 2, do art. 70.º do CC («Independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.»).

Quanto aos argumentos dos RR. em torno da ausência de intenção lesiva da sua parte, assim como de inexistência de prova de danos efectivos para os AA., importa assinalar que – como resulta claramente da letra da norma do transcrito n.º 2 do art. 70.º do CC – o recurso aos meios de tutela dos direitos de personalidade não se confunde com o recurso à acção fundada em responsabilidade civil, não se encontrando, pois, tais meios dependentes da verificação dos pressupostos do direito de indemnização.

   Na verdade, atenta a sua importância, os direitos de personalidade gozam de uma antecipação de tutela, consagrando a lei a protecção contra a simples ameaça de lesão, que corresponde, basicamente, ao perigo real ou verosímil de uma ofensa futura de um determinado direito de personalidade. Assim, tanto a ofensa como a ameaça de ofensa de direitos de personalidade configuram factos ilícitos, independentemente da existência de culpa do agente ou da prova de danos já causados às pessoas tuteladas.

    A protecção a dispensar em caso de ameaça de ofensa futura deve ser, nos termos do n.º 2, do art. 70.º do CC, adequada a repelir a ameaça, apenas o sendo se for capaz de remover de forma efectiva o perigo de ofensa.

    Temos, pois, que, caso se venha a fazer prova de que uma ou mais câmaras têm alcance para registo de voz no interior e/ou no exterior da casa dos AA. e/ou que é possível a rotação da câmara B de forma a registar imagens da habitação dos AA., será de decidir em conformidade com o direito definido no presente acórdão.

11. Esclareça-se que o que ficou dito não depende nem se confunde com o cumprimento de normas administrativas aplicáveis à situação fáctica dos autos, já que a discussão em curso é prévia em relação a tal cumprimento. O mesmo é dizer: o cumprimento de normas administrativas não torna lícito o registo de imagem e voz dos AA. contra a sua vontade.

Em todo o caso, o que dispõe o art. 19.º da Lei de Proteção de Dados serve para reforçar o (eventual) juízo de ilicitude que, repete-se, se encontra dependente dos resultados da ampliação da matéria de facto. Nele se dispõe que:

«2. As câmaras não podem incidir sobre:

a) Vias públicas, propriedades limítrofes ou outros locais que não sejam do domínio exclusivo do responsável, exceto no que seja estritamente necessário para cobrir os acessos ao imóvel;

(…)

4 - Nos casos em que é admitida a videovigilância, é proibida a captação de som, exceto no período em que as instalações vigiadas estejam encerradas ou mediante autorização prévia da CNPD.»

Neste sentido, veja-se o acórdão deste Supremo Tribunal, de 01.06.2017 (proc. n.º 7712/16.5T8PRT-A.P1.S1)[1], disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se pode ler:

«I - No âmbito da tutela cível da personalidade genericamente definida no art. 70.º do CC, com fundamento em ameaça de ofensa ou em ofensa consumada dos direitos ao repouso, ao descanso e ao sono, a violação de prescrições administrativas, nomeadamente de proteção ambiental, de prevenção do ruído e poluição sonora ou de licenciamento da atividade comercial tida por ofensiva, traduz-se, de algum modo, num reforço da ilicitude civil, na medida em que tais prescrições contenham também níveis de proteção, ainda que indireta ou reflexa, dos interesses individuais, nomeadamente dos direitos de personalidade. 

II - A convocação de tais prescrições não retira a natureza cível da pretensão, quando centrada, em sede de causa de pedir, na ameaça de ofensa ou violação dos direitos de personalidade, visando obter medidas adequadas à sua prevenção, atenuação ou cessação, para o que são materialmente competentes os tribunais judiciais.»

12. A terminar, e como supra assinalado, importa ainda esclarecer quais as concretas consequências decisórias da procedência da presente acção, caso, repita-se, a ampliação da decisão de facto vier a dar como provado que uma das câmaras de videovigilância instaladas tem capacidade de registo de imagem da habitação dos AA. e que ambas, ou apenas uma, das ditas câmaras têm/tem capacidade para registar conversações ocorridas no interior e/ou no exterior da propriedade dos AA..

  Em sede de petição inicial, formularam os AA. o pedido de condenação dos RR. a retirar todas as câmaras de vigilância.

   Embora do dispositivo da sentença da 1.ª instância pareça resultar uma decisão de procedência total, a verdade é que o confronto do concreto conteúdo dessa decisão (ao condenar «os Réus a adaptar o funcionamento das câmaras de vigilância») com a pretensão dos AA. impõe a conclusão de que se trata, na verdade, de uma decisão de procedência parcial (retirar câmaras ‘versus’ adaptar câmaras).

   Ora, os AA. não recorreram da decisão proferida pela 1.ª instância, tendo, antes, pugnado pela sua manutenção em sede de contra-alegações de recurso de apelação.

  Assim, não tendo os AA. reagido contra a decisão da sentença, mediante a interposição de recurso de apelação autónomo, não pode este Supremo Tribunal ir além do decidido em 1.ª instância, pois que tal configuraria uma situação de reformatio in pejus. De facto, condenar os RR. a retirar as câmaras afigura-se mais desfavorável aos RR. do que condená-los a proceder a mera adaptação das mesmas.

  Conforme se afirma no sumário do acórdão deste Supremo Tribunal de 03.03.2021 (proc. n.º 1310/11.7TBALQ.L2.S1),  disponível em www.dgsi.pt:

  «Se uma sentença proferiu condenação dos réus e se só estes interpuseram recurso, tendo a apelação determinado a anulação do julgamento para ampliação da matéria de facto, não pode a sentença que venha a ser proferida posteriormente, agravar a condenação anterior uma vez que se encontram salvaguardados, em definitivo, os efeitos da decisão, na parte que não tiver sido objecto de recurso.»

  A mesma restrição vale em relação às duas câmaras (designadas pelas letras A e C no relatório pericial) que, em sede de julgamento, se apurou não serem câmaras reais, mas antes câmaras fictícias. Na medida em que a decisão da 1.ª instância condenou os RR. a «a adaptar o funcionamento das câmaras de vigilância», tal decisão não abrange as ditas câmaras fictícias (as quais, por definição, não funcionam).

 Assim, e independentemente de quaisquer outras considerações, a conformação dos AA. com o decidido pela 1.ª instância impede a reapreciação de tal decisão, nesta parte.

13. Pelo exposto, decide-se:

1. Anular o acórdão recorrido, determinando-se, ao abrigo do art. 682.º, n.º 3, do CPC, a remessa dos autos ao Tribunal da Relação para, se possível pelos mesmos Senhores Juízes Desembargadores, ser ampliada a matéria de facto de modo a apurar:

(i) Qual o alcance da gravação de voz das câmaras de vigilância instaladas (designadas pelas letras B e D no relatório pericial);

(ii) Se, em concreto, a câmara rotativa (designada pela letra B no relatório pericial) tem alcance para filmar a habitação dos autores e, em caso afirmativo, que partes concretas da habitação ficam ao alcance de tal câmara.

2. Determinar, ao abrigo do previsto no art. 683.º, n.º 1, do CPC, que, se se demonstrar que, pelo menos, uma das câmaras pode captar imagens da habitação dos autores e que ambas as câmaras, ou apenas uma delas, têm/tem capacidade para captar conversações dos autores dentro da sua habitação, ou fora desta, mas dentro dos limites da sua propriedade, seja proferida decisão em conformidade com o direito definido nos pontos 9., 10. e 12. do presente acórdão.

Custas a final.

Lisboa, 10 de Fevereiro de 2022

Maria da Graça Trigo (relatora)

Maria Rosa Tching

Catarina Serra

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[1] Relatado pelo Conselheiro Tomé Gomes e votado pela aqui relatora como 1.ª Adjunta.