Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2303/12.2YXLSB-B.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: ASSOCIAÇÃO MUTUALISTA
CONTRATO A FAVOR DE TERCEIRO
MORTE
BENEFICIÁRIOS
CUMPRIMENTO
HERANÇA
LIBERALIDADE
Data do Acordão: 01/10/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL.
DIREITO DOS SEGUROS - CONTRATO DE SEGURO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA ( NULIDADES ) / RECURSOS / PODERES DE COGNIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2.ª ed., 303 e 304.
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 10.ª ed., 410, 412, 418, nota 1.
- Carlos Ferreira de Almeida, Contratos III, contratos de liberalidade, de cooperação e de risco, 2.ª ed., 53 e 54.
- Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, 5.ª ed. Revista e atualizada, 77.
- José Vasques, Contrato de Seguro, 88 e 89, 121.
- Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Volume I, 3.ª ed., 416 a 418.
- Menezes Leitão, Direito das Obrigações, I, 12.ª ed., 237.
- Moitinho de Almeida, O Contrato de Seguro, 347, 362, 368 e 361.
- Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª ed. actualizada, 392.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 405.º, N.º 1, 450.º, N.º 1, 451.º, N.º 1, 946.º, N.º1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 615.º, 666.º, N.º 1, 682.º, N.ºS 1 E 2.
REGIME JURÍDICO DO ACESSO EXERCÍCIO DA ATIVIDADE SEGURADORA E RESSEGURADORA, APROVADO PELA LEI N.º 147/2015, 09-09: - ARTIGOS 3.º, 58.º.
REGIME JURÍDICO DO CONTRATO DE SEGURO, APROVADO PELO D.L. N.º 72/2008, DE 16-04: - ARTIGOS 1.º, 2.º, 3.º, 19.º, 31.º, 32.º, 36.º, 183.º, 184.º, N.º 1, AL. A,) E N.º 2, 198.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

-DE 14-12-2005, PROCESSO N.º 3669/05, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .

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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

-DE 13-05-2004, PROCESSO Nº 3329/2004-6, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 14-04-2005, PROCESSO Nº 1851/2005-6, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .

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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 12-11-2013, PROCESSO N.º 530/10.6TJPRT.P1.S1, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 17-06-2014, PROCESSO N.º 930/11.4T2AVR.C1.S1, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I. O contrato celebrado entre uma associação mutualista e um seu associado (nos termos do qual este subscreve a modalidade de capitais de reforma/complemento de rendimento, entregando as respetivas quotas para serem geridas e capitalizadas), em que fica convencionado que em caso de morte do subscritor o capital acumulado é para ser integralmente entregue aos beneficiários designados, vale neste segmento como contrato a favor de terceiro.

II. Falecendo o associado subscritor sem ter usado da faculdade que também lhe assistia contratualmente de resgatar o capital acumulado ou de o transformar em pensão anual vitalícia, está a promitente associação mutualista obrigada a cumprir a promessa contratada, prestando aos beneficiários, pois que adquirentes do direito à prestação, o capital acumulado.

III. Nesta hipótese, o capital é devido diretamente aos beneficiários, não passando pelo património do promissário nem, consequentemente, fazendo parte da respetiva herança.

IV. As relações do associado subscritor com as pessoas estranhas ao benefício não afetam a designação beneficiária, sendo aplicáveis as disposições relativas à colação, à imputação e à redução de liberalidades só no que corresponde às quantias entregues pelo subscritor à associação mutualista.

V. Se uma tal atribuição beneficiária se traduzir numa liberalidade, não se trata de uma doação mortis causa nula, tanto porque não se está aqui perante uma liberalidade mortis causa mas inter vivos, como porque uma tal liberalidade é consentida, em qualquer caso, pelo regime jurídico específico do mutualismo.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I - RELATÓRIO

No âmbito do processo de inventário (corrente pela Comarca de Lisboa, Inst. Local, Secção Cível, J1), instaurado (em 20 de abril de 2012) por morte de AA, e em que são interessados a requerente e cabeça-de-casal BB, CC e DD, todos filhos da inventariada, foi oportunamente apresentada a relação de bens.

Entre outros bens, foi relacionado pela cabeça de casal, como direito de crédito (verba nº 1), o seguinte bem:

«Aplicações financeiras de capitalização, subscritas pela inventariada junto do Montepio Geral-Associação Mutualista (…), na modalidade de “Capitais de Reforma/Complemento de Rendimento”», no valor de €115.644,39.

Os outros dois interessados deduziram reclamações contra a relação de bens, sustentando, além do mais, que não havia lugar ao relacionamento de tal bem, por isso que não fazia parte da herança.

Na sequência, veio a ser proferida decisão que, entre o mais, considerou que as aludidas aplicações financeiras deviam manter-se relacionadas como estavam.

Inconformados com o decidido, apelaram os interessados reclamantes.

Fizeram-no sem êxito, pois que a Relação de Lisboa, por unanimidade e sem fundamentação essencialmente diferente, confirmou o decidido.

Interpôs então a interessada DD revista excecional, à qual o interessado CC veio declarar a sua adesão.

A competente formação de juízes admitiu a revista excecional, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do art. 672º do CPCivil, “quanto à questão de saber se, tendo a inventariada subscrito aplicações financeiras de acordo com o regime previsto no Regulamento de Benefícios do Montepio Geral, com disponibilização do capital acumulado a favor dos seus três filhos, à morte dela o capital integra o acervo hereditário, devendo constar da relação de bens ou não o integra por pertencer, sem ser por via hereditária, a estes.”

Da respetiva alegação extrai a Recorrente as seguintes conclusões (transcrevem-se apenas as conclusões que ainda mantêm interesse para o caso, já que as demais se referem à questão, já ultrapassada, da admissibilidade da revista excecional):

ERRÓNEA QUALIFICAÇÃO DOS DIREITOS EM PAUTA

G. Preenchidos os requisitos previstos no art. 672.°, n.º 1 do C.P.C., cabe invocar a violação da lei substantiva que constitui o primeiro fundamento do recurso, nos termos do art. 674.°, n.º 1 do C.P.C..

H. A Relação de Lisboa sustenta que, nas aplicações em apreço, o capital acumulado à data do óbito da Inventariada integra a herança: “Deve considerar-se que integra a herança deixada pela inventariada o direito de crédito relativo às aplicações financeiras subscritas por aquela junto de instituição financeira, na medida em que a mesma titular podia reembolsar-se do valor capitalizado a todo o momento, e só se não o fizesse esse valor acumulado seria entregue aos beneficiários designados após o seu falecimento, sendo irrelevante, por isso, que a inventariada não tenha solicitado em concreto o reembolso total do capital em apreço.” - cfr. págs. 28 e 29 do acórdão da Relação.

I. Salvo melhor opinião, tal entendimento corresponde a uma errónea aplicação ao caso dos autos do regime previsto nos arts. 31.° a 36.° do Código das Associações Mutualistas, aprovado pelo DL n.º 72/90, de 3 de Março, assim como no Regulamento de Benefícios, aprovado pelo Montepio Geral, ao abrigo do art. 31.° do referido diploma legal, e bem assim do enquadramento geral previsto no art. 444.° do C.C., reportado ao instituto do contrato a favor de terceiro.

J. Adaptando a doutrina e jurisprudência convocadas às aplicações mutualistas em causa nos autos - tituladas pelos documentos de fls. 39 e ss. -, a posição da Recorrente é a seguinte:

- o contrato celebrado entre a Inventariada/promissária e o Montepio Geral/promitente tem uma natureza complexa, dele decorrendo obrigações entre a Inventariada e o Montepio Geral, mas dele nascendo também direitos a favor dos beneficiários indicados pela Inventariada, os quais, todavia, só se consolidam e concretizam após o óbito da promissária, nos termos do arts . 444.°, n.º 1 e 451.°, n.º 1 do C.C.;

- tal contrato inscreve-se no âmbito de uma relação mutualista disciplinada pelo Regulamento de Benefícios do Montepio Geral, elaborado ao abrigo do art. 31.° do Código das Associações Mutualistas, que prevê que os beneficiários/filhos da Inventariada adquirem um direito próprio ao capital acumulado à data do óbito desta;

- a Inventariada/promissária tem o direito ao resgate das aplicações efectuadas, nos termos previstos no art. 448.°, n.º 1, in fine do C.C., bem como no Regulamento de Benefícios do Montepio Geral;

- tal direito de resgate funciona assim como uma condição resolutiva do contrato efectuado entre o Montepio e a Inventariada;

- não ocorrendo essa condição resolutiva, permanece o direito dos beneficiários indicados pela Inventariada/promissária no contrato celebrado com o Montepio/promitente, o qual, se bem que nascido à data do contrato (art. 441.°, n.º 1 do C.C.), só se consolida e concretiza com o óbito da promissária (art. 451.° do C.C.), o qual funciona assim como condição suspensiva da atribuição desse direito;

- a modalidade mutualista, sujeita ao regime do Código das Associações Mutualistas e do Regulamento de Benefícios do Montepio Geral, acautela interesses dignos de protecção legal, nos termos do art. 443.° do C.C.;

- a modalidade em apreço não lesa os interesses de herdeiros ou de credores, porque às contribuições do promissário se aplicam as disposições relativas à colação, imputação e impugnação pauliana - cfr. art. 450.°, n.º 1 do C.C.;

- a cabeça de casal opõe-se a reconhecer o direito próprio dos seus irmãos ao capital acumulado pela Inventariada, nos termos por esta estipulados, não porque isso a prejudique no que quer que seja - uma vez que o capital é a dividir pelos irmãos em partes iguais -, mas apenas porque pretende apoderar-se dessas verbas para com elas pagar supostas dívidas (realmente dívidas fictícias) da Inventariada ao Externato “O Lar ......, Lda.” (cfr. verbas n.ºs 8 e 9 do passivo da relação de bens), que a cabeça de casal controla a quase 100%, ou seja, para se pagar a ela própria;

- é por isso inaceitável a pretensão da cabeça de casal de arrolar tais aplicações mutualistas como bens da herança, porque, na verdade, tais valores foram adquiridos pelos filhos da Inventariada, como direito próprio, por força do contrato por ela livremente celebrado com o Montepio Geral, o qual se consolidou e concretizou na data do óbito daquela, nos termos contratualmente previstos.

K. Pelo exposto, deve ser dado provimento ao recurso, determinando-se a eliminação da verba n. o 1 da relação de bens, a qual não integra um bem da herança.

DA NULIDADE DO ACÓRDÃO; CONSEQUÊNCIAS

L. Na apelação, estava ainda em causa uma outra questão relativa a uma liberalidade efectuada pela Inventariada a favor da cabeça de casal, relativamente aos termos em que ocorreu o aumento de capital do Externato “O Lar ......, Lda.”.

M. Nesse âmbito, a Recorrente procedeu à impugnação do segmento de facto identificado na conclusão A, cuja fundamentação foi devidamente sumariada nas conclusões B a J.

N. Porém, apesar do carácter exaustivo da fundamentação apresentada, o acórdão da Relação limita-se a dizer o seguinte: “No que respeita à al. A) dos factos não provados que ambos os apelantes reclamam como provado “Ao não subscrever o aumento do capital social mencionado em 8. E ao permitir que a cabeça de casal o subscrevesse sem pagamento de prémio, a inventariada pretendeu beneficiar patrimonialmente a sua filha BB em detrimento dos demais filhos" - parece evidente a sua sem razão face a tudo o que se acima dissemos e tendo em vista a matéria constante dos pontos 18 e 19 dos factos assentes que, realça-se, não foi impugnada pelos recorrentes. Tal como se justificou em 1. a instância, a resposta ínsita naqueles pontos 18 e 19 implica, forçosamente, a resposta de não provado a esta matéria.” - cfr. pág. 18 do acórdão.

O. Assim sendo, a Relação indeferiu a impugnação da matéria de facto com o único argumento de que os factos assentes sob o n.ºs 18 e 19 implicavam forçosamente a resposta de não provado à matéria em apreço.

P. O facto assente sob o n.º 18 reporta à circunstância da cabeça de casal ter contraído um empréstimo bancário com a finalidade de subscrever o aumento de capital em apreço; o facto assente sob o n.º 19 refere que a cabeça de casal dedicou toda a sua vida profissional ao Externato O Lar ......, Lda., visando a Inventariada, com a aprovação do aumento de capital de Setembro de 2005, garantir que a cabeça de casal continuaria a dirigir a instituição.

Q. Ora, não se vislumbra em que medida é que os factos assentes sob os n.ºs 18 e 19 determinam o indeferimento da impugnação da matéria de facto, já que o propósito prosseguido pela Inventariada, aquando do aumento de capital descrito nos factos assentes sob os n.ºs 8 a 11 - que visou inequivocamente atribuir à filha BB uma posição patrimonial de vantagem no quadro societário em apreço -, é perfeitamente consentâneo com a sua intenção de garantir que seria a cabeça de casal que continuaria a dirigir a instituição após a sua morte.

Não estamos perante factos antagónicos ou sequer divergentes.

R. Neste contexto, a decisão de indeferir a impugnação da matéria de facto não se contém nas premissas da fundamentação, razão pela qual existe uma manifesta oposição entre os fundamentos utilizados e a decisão proferida, o que gera inapelável nulidade do acórdão recorrido, nos termos do art. 615.°, n.º 1, c) do C.P.C.

S. Uma última nota para referir que a liberalidade em causa não é uma doação em sentido próprio, tal como prevista no art. 940.° do C.C., sendo pacífico o entendimento de que as liberalidades sujeitas ao regime de inoficiosidade e colação podem revestir modalidade que não se subsume à doação tradicional (cfr. CARLOS PAMPLONA CORTE REAL, “Da imputação de liberalidades na sucessão legitimária”, 1989, Ministério das Finanças, pág. 1090).

Na verdade, existe um conjunto heterogéneo de situações relevantes para os institutos da colação e da inoficiosidade que não se subsumem à doação técnica, referindo a doutrina, designadamente, a chamada "renúncia abdicativa", bem como outros actos normalmente tratados no quadro das “doações indirectas” (cfr. ABRANCHES FERRÃO, “Das doações”, 1912, Imprensa da Universidade, pág. 221 e ss. e CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, “Contratos III, 2013, Almedina, pág. 53 e ss).

T. Na situação dos autos, em que - à data do aumento de capital que a Inventariada aprovou e não subscreveu, mas permitiu que a filha BB, com o investimento de apenas €17.000,00, subscrevesse sem o pagamento de qualquer prémio, permitindo-lhe passar a ser titular de uma quota de 64,17% - o Externato “O Lar ......, Lda.” tinha capitais próprios de € 48.999,00 (e um valor real superior - cfr. facto provado sob o n.º 14), distribuiu resultados no valor de € 28.000,00 e tinha em depósitos bancários e em caixa cerca de € 70.000,00 (cfr. fls. 98 a 100 e fls, 386), não pode haver qualquer dúvida acerca da vantagem patrimonial que - através do complexo de actos praticados ou consentidos pela Inventariada em Setembro de 2005 - a de cujus quis assegurar a favor da filha BB.

U. Deste modo, o acórdão recorrido aplicou erroneamente à situação dos autos o regime do art. 940.°, n.º 2 do C.C., inaplicável à factualidade apurada, sob pena da ocorrência de grave abuso de direito, que importa sancionar, o que ora também se invoca, a fim de que, suprido o vício de fundamentação (e mesmo sem isso), também seja considerado que a factualidade assente é suficiente para concluir que a liberalidade em apreço releva para os efeitos da redução ou da colação previstas nos arts. 2169.° e 2104.° do C.C ..

                                                      

A interessada cabeça de casal contra alegou, concluindo pela improcedência do recurso.

O mesmo fez a credora Externato O Lar ......, Lda..

                                   

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

                                                     

II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou fundamentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

São questões a enfrentar:

- A da nulidade do acórdão recorrido;

- A de saber se o bem da verba nº 1 deve ou não deve relacionado, por fazer ou não fazer parte do acervo hereditário da Inventariada.

III - FUNDAMENTAÇÃO

Dos Factos:

Estão provados os factos seguintes, como tal descritos no acórdão recorrido:

1) AA faleceu no estado de viúva de EE em 5 de Outubro de 2011, tendo deixado como herdeiros os seus três filhos DD, CC e BB.

2) A falecida e inventariada neste processo deixou em herança uma sociedade comercial, denominada Externato O Lar ......, Lda., sociedade por quotas, que tem por objeto a exploração de um colégio com externato.

3) A sociedade foi constituída pela inventariada, que fundou o Colégio e que dedicou praticamente toda a sua vida ativa a desenvolvê-lo e a geri-lo, apelidando este projeto, no próprio testamento, como a obra da sua vida.

4) Em 30 de janeiro de 1997, os pais dos herdeiros eram os únicos sócios da sociedade, na qual a mãe era titular de uma quota do valor nominal de Esc. 950.000$00, correspondente a 95% do capital social e o pai era titular de uma quota do valor nominal de Esc. 50.000$00, correspondente a 5% do capital social.

5) Em assembleia geral realizada nessa data, os sócios do Externato O Lar ......, Lda. deliberaram nomear gerente da sociedade a requerente do inventário, BB.

6) A 10 de outubro de 2001, os sócios do Externato O Lar ......, Lda. deliberaram aumentar o capital social para Esc. 2.004.820$00 com um reforço de Esc. 1.004.820$00. Deliberaram ainda alterar para euros a denominação do capital da ré que assim passou a ser de dez mil euros, representado por duas quotas: uma da mãe dos autores de Eur. 9.500,00 e outra do pai dos autores de Eur 500,00.

7) Por escritura de doação e alteração do contrato de sociedade outorgada no dia 16 de dezembro de 2003, a inventariada doou à sua filha BB, por conta da quota disponível e com dispensa de colação, uma quota na sociedade ré do valor nominal de € 200,00. A esta nova quota é atribuído o direito especial de nomeação de um gerente na sociedade, com carácter transmissível com a mesma quota, seja entre vivos, seja por via sucessória.

8) Em Assembleia Geral da sociedade de 2 de setembro de 2005 – ata n.º 23 – foi deliberado, por unanimidade dos votos representativos da totalidade do capital social, aumentar o capital da sociedade de € 10.000,00 para € 27.000,00, aumento esse de € 17.000,00 a efetuar em dinheiro exclusivamente pela herdeira AA.

9) Por escritura de Aumento do Capital e de Alteração do Contrato Social, outorgada no dia 15 de Setembro de 2005, foi formalizado o aumento de capital que havia sido deliberado em 2 de Setembro de 2005 e, em consequência, o capital social da sociedade passou a estar assim dividido:

a) € 9.300,00, correspondente a 34,44% do capital social, da titularidade da mãe dos herdeiros;

b) € 500,00, correspondente a 1,85% do capital social, da titularidade do pai dos herdeiros; e

c) € 17.200,00, correspondente a 63,70% do capital social, da titularidade de AA.

10) No mesmo dia 15 de setembro de 2005, no mesmo cartório notarial, a inventariada outorgou testamento por meio do qual, além do mais, legou a quota de que era titular na sociedade, do valor nominal de € 9.300,00, a favor dos seus três filhos, tendo ainda “declarado”:

a) que a sua filha AA ficava, relativamente à mesma quota, designada como representante comum;

b) que, relativamente a esta sua filha, o legado era feito por conta da quota disponível;

c) relativamente aos restantes filhos, a quota era feita por conta da legítima;

d) que nomeia testamenteira a sua filha BB para os fins previstos nas alíneas a) e c) do artigo 2326.º do Código Civil.

11) No dia 28 de setembro de 2005, foi averbado na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa o Aumento do Capital e de Alteração do Contrato Social já referidos (Matrícula n.º ..........4, fls. 2 e 3, Cota 7, Ap. 26/050928).

12) Na sequência da morte da inventariada, o capital social da sociedade passou a estar assim dividido:

a) € 17.325,00 correspondente a 64,17% do capital social, da titularidade de AA;

b) Eur. 9.300,00 correspondente a 34,44% do capital social, legado em comum e partes iguais pela mãe dos herdeiros aos seus três filhos, ficando a sua filha AA como representante comum da mesma quota;

c) Eur. 125,00 correspondente 0,46% do capital social, que a mãe dos herdeiros recebera de herança do seu marido, em comum e sem determinação de parte ou direito, o que significa que integra a herança administrada por AA, na qualidade de cabeça-de-casal;

d) € 125,00, correspondente a 0,46% do capital social, da titularidade de CC por herança de seu pai; e

e) € 125,00, correspondente a 0,46% do capital social, da titularidade da ora reclamante por herança de seu pai.

13) Os factos aludidos em 7. e 8. apenas foram do conhecimento dos reclamantes, DD e CC, no segundo trimestre de 2007.

14) O valor real da sociedade é superior ao do seu capital social.

15) O aumento de capital aludido em 8. foi utilizado para fazer face a despesas extraordinárias da escola, nomeadamente para a realização de obras nas instalações da escola.

16) Durante o ano de 2005, as obras seguintes foram efetuadas na escola: (i) pintura de portas e de paredes de salas de aula e corredores; (ii) obras na cozinha e sala das máquinas: parte elétrica, canalizações, esgotos, colocação de azulejos, estuques, pinturas de tetos e paredes, janelas e gradeamentos; (iii) reparação e adaptação do mobiliário da cozinha; (iv) reparação de equipamento semi-industrial da cozinha; e (v) reparação da calçada do jardim e recreio.

17) O valor das obras descritas ascendeu a € 23.428,88.

18) A cabeça de casal contraiu um empréstimo bancário sob a forma de concessão de um crédito individual, junto do Montepio Geral – Caixa Económica com a finalidade “aumento capital social Externato Lar ......” (contrato nº 000-0000000 com amortização de capital e juros em 60 (sessenta) prestações mensais), suportando o reembolso do capital e juros.

19) A cabeça de casal dedicou, à semelhança da inventariada, toda a sua vida profissional ao Externato O Lar ......, visando a inventariada com a concretização dos factos descritos em 8. garantir que a cabeça de casal continuava a dirigir a instituição, após a sua morte, designadamente no que respeita à definição do projeto educativo.

20) A inventariada, à data da sua morte, era titular de aplicações financeiras junto do Montepio Geral – Associação Mutualista, na modalidade de “Capitais de Reforma/Complemento de Rendimento”, num total de € 115.644,39, sendo beneficiários os seus três filhos.

21) De acordo com o art.º 1.º, n.º 1 do Regulamento de Benefícios do Montepio Geral, este produto “consiste na entrega de determinadas quotas que serão geridas e capitalizadas pelo Montepio Geral e transformadas numa pensão, quando o subscritor o desejar”. O n.º 2 do mesmo artigo estabelece que “o subscritor tem a possibilidade de, a qualquer momento, se fazer reembolsar, total ou parcialmente, nas condições estabelecidas no presente Regulamento, do capital acumulado”. No nº 3 entende-se por capital acumulado “o somatório das quotas entregues com o rendimento que lhes seja atribuído, deduzido de eventuais reembolsos”.

O artigo 7º do mesmo Regulamento prevê:

“1. O subscritor deve designar os seus beneficiários e a forma de distribuição do capital acumulado, em caso de morte.

2. Em caso de morte do subscritor, o capital acumulado até à data em que aquele se verificou será integralmente entregue aos beneficiários designados, aplicando-se, na falta destes, o disposto no artigo 20º das Disposições Gerais deste Regulamento.”

22) Das Disposições Gerais do Regulamento de Benefícios do Montepio Geral, pode ler-se:

“Artigo 17º

1. Os valores relativos a direitos constituídos respondem, nos termos dos Estatutos e do Regulamento, pelas dívidas ao Montepio Geral referente a joia, quotas, penalizações e empréstimos a associados.

2. Em caso de falecimento do associado, o pagamento das dívidas referentes a joia, quotas, penalizações e empréstimos é efetuado por compensação nos correspondentes capitais, subsídios ou pensões.”

“Artigo 20º

Na falta de indicação de beneficiários ou no caso de não existir ou não estar nas condições estabelecidas nenhum dos indicados, o benefício defere-se aos familiares sucessíveis e, na falta destes, a favor do Montepio Geral.”

“Artigo 21º

Se à data da morte do subscritor não existir ou não estiver nas condições estabelecidas algum dos beneficiários indicados, a parte deste defere-se aos respetivos familiares sucessíveis e, na falta destes, a favor do Montepio Geral.”

23) A inventariada deu à interessada DD uma escultura com a cabeça de menina que a retrata.

Do Direito:

Quanto à matéria das conclusões L. a U.:

Argui-se nestas conclusões a nulidade do acórdão recorrido, sob invocação do art. 615º, nº 1 alínea c), 1ª parte, do CPCivil: estarem os fundamentos em oposição com a decisão.

A nulidade é arguida com reporte à questão decidenda no acórdão recorrido (decisão sobre a impugnação da matéria de facto) da existência de uma pretensa liberalidade da Inventariada em benefício da cabeça de casal, fundada no aumento de capital do Externato O Lar ......, Lda. (alínea A) dos factos não provados).

O recurso, nesta parte, não será, muito provavelmente, admissível.

Efetivamente, estamos perante uma revista excecional, cujo objeto se mostra devidamente definido pela competente formação de juízes, nos termos acima transcritos. Sucede que tal objeto nada tem a ver com o segmento do acórdão recorrido no âmbito do qual se gerou a pretensa nulidade. Nesse segmento não era o acórdão passível de recurso de revista excecional à partida, de sorte que a suposta nulidade de decisão havia de ter sido arguida perante o tribunal recorrido, e não por via de recurso (v. art.s 615º e 666º nº 1 do CPCivil). Observe-se, a propósito, que quando a decisão recorrida seja integrada por vários segmentos decisórios, como é o caso, a admissibilidade do recurso de revista circunscreve-se apenas àqueles sobre que tenha havido dissensão nas instâncias, não podendo aproveitar-se a admissibilidade do recurso quanto a um determinado segmento decisório para estender a admissibilidade da revista a tudo o mais (v. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª ed., pp. 303 e 304). Isto é inteiramente válido para a arguição de nulidades de decisão, por isso que estas são arguíveis por via de recurso quando o recurso é admissível, e não é por causa da sua arguição que o recurso se torna admissível.

Vamos, porém, dar de barato que o conhecimento da arguição é devido.

E o que há a dizer sobre o assunto é que a referida nulidade não se verifica.

As nulidades de decisão são vícios intrínsecos (quanto à estrutura, limites e inteligibilidade) da peça processual que é a própria decisão (trata-se pois de um error in procedendo), nada tendo a ver com os erros de julgamento (error in iudicando) seja em matéria de facto seja em matéria de direito. Sucede que do que se queixa a Recorrente é ainda, bem vistas as coisas, de um suposto erro de aferição da matéria de facto, por isso que o julgamento do facto sob impugnação teria partido de uma má interpretação de outra demais matéria de facto (a contida nos pontos 18 e 19 dos factos provados). Este uso inadequado da arguição da nulidade sempre implicará, só por si, a improcedência da arguição da nulidade.

Mas, seja como for, dir-se-á que o acórdão recorrido não incorreu em qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão. Pois que resulta claro do acórdão que o tribunal não se limitou a usar, para o seu julgamento do facto impugnado, o que constava dos factos dos pontos 18 e 19. Pelo contrário, usou também outras justificações de caráter probatório e valorativo anteriormente expendidas, nomeadamente a propósito da matéria do ponto 15. E, tudo conjugado, segue-se que não há a mínima discrepância ou incoerência entre os fundamentos a propósito aduzidos e o julgamento que foi feito sobre a alegada intenção da Inventariada em ordem a beneficiar a cabeça de casal em detrimento dos outros filhos.

Improcedem pois as conclusões em destaque.

Quanto à matéria das conclusões H. a K.:

Nestas conclusões a Recorrente sustenta que, diferentemente do que foi decidido no acórdão recorrido, as aplicações financeiras levadas a efeito pela Inventariada (objetivadas na verba nº 1 da relação de bens como direito de crédito) não integram a massa hereditária e, como assim, não devem constar da relação de bens.

Diferente é o entendimento da cabeça de casal.

Diferente foi também o entendimento do acórdão recorrido.

Vejamos:

De acordo com o que está provado, a Inventariada, à data da sua morte, era titular de aplicações financeiras junto do Montepio Geral - Associação Mutualista, na modalidade de “Capitais de Reforma/Complemento de Rendimento”, num total de €115.644,39, tendo sido designados como beneficiários para o caso da sua morte os seus três filhos.

Tratou-se de uma subscrição junto de uma associação mutualista, ao abrigo do regime mutualista. Nos termos do DL nº 72/90, as associações mutualistas são instituições particulares de solidariedade social que se suportam essencialmente na quotização dos seus associados, e que praticam, no interesse destes e de suas famílias, fins de auxílio recíproco (art. 1º). Constituem fins fundamentais das associações mutualistas a concessão de benefícios de segurança social e de saúde destinados a reparar as consequências da verificação de factos contingentes relativos à vida e à saúde dos associados e seus familiares e a prevenir, na medida do possível, a verificação desses factos (art. 2º). Para a concretização dos seus fins de segurança social, as associações mutualistas podem prosseguir, designadamente, a modalidade de “Capitais pagáveis por morte ou no termo de prazos determinados” (art. 3º). A regulamentação dos benefícios prosseguidos pelas associações mutualistas deve constar de instrumento próprio, denominado regulamento de benefícios, que conterá, nomeadamente, as condições de atribuição dos benefícios (art. 19º). Os associados podem subscrever quaisquer modalidades de benefícios nos termos regulamentares, sendo que por cada inscrição numa modalidade de benefícios é devida uma quota cujo montante é definido nos termos regulamentares (art.s 31º e 32º). As prestações pecuniárias devidas pelas associações mutualistas aos associados e a outros beneficiários não podem ser cedidas a terceiros nem penhoradas e prescrevem a favor das mesmas associações (art. 36º).

De acordo com o que vem provado, estatui o Regulamento de Benefícios do Montepio Geral - Associação Mutualista, que a modalidade “Capitais de Reforma ou Complemento de Rendimento”, a modalidade que a Inventariada subscreveu, “consiste na entrega de determinadas quotas que serão geridas e capitalizadas pelo Montepio Geral e transformadas numa pensão, quando o subscritor o desejar”, sendo que o subscritor tem a possibilidade de, a qualquer momento, se fazer reembolsar, total ou parcialmente, nas condições estabelecidas no Regulamento, do capital acumulado (este corresponde ao somatório das quotas entregues com o rendimento que lhes seja atribuído, deduzido de eventuais reembolsos). O Regulamento estatui ainda, em cumprimento da lei, que o subscritor deve designar os beneficiários e a forma de distribuição do capital acumulado, em caso de morte; nesta hipótese de morte do subscritor, o capital acumulado até à data em que a morte se verificou será integralmente entregue pelo Montepio Geral aos beneficiários designados.

Porque não deixa de ter algum interesse subsidiário como reforço do que adiante se referirá, julgamos ser de entender que do conjunto normativo que integra o DL nº 72/90 e do referido Regulamento resulta que a prestação (quotas) do associado vai integrar um Fundo do próprio Montepio Geral, transitando assim o objeto (pecunia) dessa prestação para o património do mesmo Montepio Geral. Da mesma forma que resulta que o associado (em caso de vida) ou os terceiros por este designados (em caso de morte) têm direito a um benefício, em formação, diferente do que foi entregue pelo beneficiário, fazendo parte desse benefício (acrescendo ao valor entregue) um novo quid consistente num rendimento mínimo anual e num resultado anual.

Conquanto no contexto específico do mutualismo e em vista dos seus fins idiossincráticos de proteção ou segurança social (complementaridade[1]), afigura-se-nos que as operações mutualistas como aquelas de que aqui tratamos se resolvem numa realidade jurídica que, no essencial, se identifica bastante com outras hipóteses negociais que têm subjacentes subscrições ou investimentos de capital a fim de, rentabilizado este, ser entregue um quantum final ao próprio subscritor ou a terceiros por ele indicados (nomeadamente em caso de morte). Referimo-nos, mais concretamente, ao seguro de vida de capitalização ou seguro ligado a fundos de investimento (figura esta não coincidente com o tradicional seguro de vida risco tout court, mas a que se aplica basicamente - como decorre do Regime Jurídico do contrato de Seguro aprovado pelo DL nº 72/2008 [v. o respetivo art. 184º nº 2] - o regime comum do seguro de vida). Entretanto, anote-se que a atividade seguradora pode também ser exercida pelas chamadas mútuas de seguros (v. a propósito os art.s 3º e 58º do regime jurídico do acesso exercício da atividade seguradora e resseguradora, aprovado pela Lei nº 147/2015), e estas de igual forma visam ao mutualismo previdencial.

Nesta medida, e como melhor se referirá adiante, parece fazer sentido que na presente espécie nos possamos deixar influenciar até certo ponto pelas orientações legais e jurisprudenciais subjacentes a tais seguros. E neste particular não estamos a inovar, pois que são as próprias partes ora em confronto as primeiras a significar implicitamente a bondade de um tal ponto de vista, aí onde invocam a favor das suas teses casos análogos extraídos da jurisprudência (obviamente, da que se ajusta aos seus interesses) incidente sobre seguros de vida. Aliás, verifica-se uma clara identidade entre as finalidades subjacentes ao seguro de vida em benefício de terceiro (o “fomento da previdência”, o “espírito de previdência e poupança”, nas palavras de Moitinho de Almeida, O Contrato de Seguro, pp. 368 e 361) e as finalidades mutualistas, tal como acima descritas. Dentro desta ideia, aduz José Vasques (Contrato de Seguro, pp. 88 e 89) que “Regendo-se por princípios diferentes dos da actividade seguradora, os organismos mutualistas acabam por desempenhar um papel em tudo semelhante aos das seguradoras. A própria lei prevê a existência de mútuas de seguros (…). De resto, e como resulta do art. 84º da Lei de Bases da Segurança Social, as modalidades mutualistas são vistas pela lei em paridade com os seguros de vida e de capitalização em termos de complementaridade previdencial.

No que se refere ao seguro de vida, decidiu-se já no acórdão da Relação de Lisboa de 14-04-2005 (processo nº 1851/2005-6, relatora Fátima Galante, disponível em www.dgsi.pt) - em caso em que se estava perante contrato de seguro designado por “Capital Rendimento” (Ramo Vida), cujo beneficiário era o próprio segurado, e, no caso de morte deste, os seus herdeiros - que (reproduzimos o sumário) «1. O contrato de seguro de vida que visa, além do mais, a captação de aforro, por um determinado prazo, com rendimento pago apenas e em regra no termo desse prazo é, no fundo, um produto de poupança de médio/longo prazo, sob a forma de seguro de vida que investe os seus prémios nomeadamente em fundos de investimento, garantindo em regra a total liquidez. 2 - Trata-se da figura do contra-seguro, modalidade de seguro de vida que prevê o reembolso dos prémios pagos pelo ou ao tomador/segurado, com ou sem capitalização. O contra-seguro de prémios é, portanto, uma garantia do reembolso dos prémios de um seguro em caso de vida ou de um seguro dotal, quando se verifica a morte do segurado antes da data de exigibilidade do capital ou da renda. 3 - A característica de contra-seguro, permitindo o resgate, pelo tomador do seguro, leva a concluir que o valor em causa faz parte do património do de cujus e, como tal, faz parte da sua herança.».

Num outro acórdão da Relação de Lisboa, este de 13-05-2004 (processo nº 3329/2004-6, relator Gil Roque, disponível em www.dgsi.pt), sustentou-se que (reproduz-se o sumário) «Num Contrato de Seguro de “Liquidez Rendimento Seguro-Seguro de Vida individual”, em que o segurado entregou à Seguradora o valor do prémio, no montante de 11.000.000$00, pode o tomador em qualquer momento solicitar à seguradora o seu reembolso. Falecido o tomador, o recebimento pelo cônjuge sobrevivo do valor dos prémios pagos, na sua qualidade de beneficiária do seguro designada pelo tomador, equivale a uma doação. Sendo a beneficiária casada com o tomador no regime imperativo da separação de bens, tal doação é nula, atento o art. 1762º do CC, devendo o valor recebido ser relacionado no processo de inventário como património do de cujus.».

Visão diferente pode colher-se em outra jurisprudência. Assim:

- No acórdão da Relação de Coimbra de 14-12-2005 (processo nº 3669/05, relator Helder Roque, disponível em www.dgsi.pt), em que estava em causa a subscrição pelo inventariado de uma modalidade de contrato de seguro (denominada “Top Seguro Poupança”) que contemplava a hipótese de, em caso de sobrevivência o subscritor ser o beneficiário do produto do investimento e, em caso de sua morte, um terceiro como tal designado pelo subscritor, defendeu-se que (reproduz-se parte do sumário) «1. Nascido, de imediato, o direito do terceiro beneficiário, com o acto de celebração do contrato de seguro, embora sujeito à condição potestativa da sua revogação, por parte do estipulante, presume-se, porém, que, só após o falecimento deste, o terceiro adquire esse direito, porquanto a prestação apenas tem que ser efectuada, após a morte do promissário. 2. Dependendo do falecimento do segurado a aquisição do direito do beneficiário, é manifesto que uma pessoa não pode adquirir um direito cuja génese, ainda que presuntiva, depende da sua morte, razão pela qual o valor do capital seguro não transita pelo património do segurado para o património do beneficiário, não é recebido, pelo beneficiário, do «de cujus», mas, directamente, da seguradora.»

- No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-11-2013 (processo nº 530/10.6TJPRT.P1.S1, relator Gregório Jesus, disponível em www.dgsi.pt) defendeu-se que (reproduz-se parte do sumário) «O contrato de seguro pode assumir, particularmente nos dias de hoje, uma multiplicidade de especialidades, de entre elas também uma componente de aforro, sem por isso perder essa mesma qualidade ou natureza. II - Mesmo os seguros de vida ligados a fundos de investimento, designados por unit linked, constituem instrumentos de captação de aforro estruturado que assumem a qualificação jurídica de contrato de seguro de vida. III - O contrato subscrito pelo inventariado não configura um tradicional seguro de vida risco, pois que incorpora uma vertente de rendimento, mas consubstancia em simultâneo um contrato de seguro pelo qual a seguradora, mediante a entrega de prémio único ou prémios adicionais a pagar pelo tomador do seguro, se obrigou, a favor do segurado ou de terceiro, a proceder ao pagamento de um valor pré-definido, correspondente ao valor da respectiva Conta de Investimento, no caso de morte do segurado, evento futuro e incerto. IV - Ou seja, apesar de não consubstanciar um contrato do ramo vida tout court, não deixa o contrato em apreço de cobrir o risco de vida e de morte da pessoa segura, pois que, ocorrendo a sua morte durante a vigência do contrato, a prestação do segurador decorrente desse risco reverte a favor da pessoa singular designada como “Beneficiário”, pelo que é, em rigor e também, um contrato de seguro de vida. V - Constituiu-se estruturalmente um verdadeiro contrato a favor de terceiro definido pelo art. 443.º do CC, e estando a aquisição do direito à prestação do seguro, pelo terceiro beneficiário, dependente da morte do segurado, não integra o património deste o capital segurado.».

- No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-06-2014 (processo nº 930/11.4T2AVR.C1.S1, relator Fernandes do Vale, disponível em www.dgsi.pt) defendeu-se (em caso em que se estava perante seguro do tipo unit linked, representado por unidades de participação com cotação em função dos rendimentos que fossem sendo produzidos pelos ativos associados ao respetivo Fundo e da evolução das condições do mercado de capitais), que (reproduz-se o sumário) «I - No contrato de seguro de vida em caso de morte previsto nos arts. 183.º e segs. do DL n.º 72/2008, de 16-04, o valor da prestação a que a promitente/seguradora está vinculada ingressa, directa e automaticamente, na esfera jurídico-patrimonial do terceiro/beneficiário designado, não podendo ficcionar-se o respectivo “trânsito” pela esfera jurídico-patrimonial do promissário/tomador do seguro. II - Tal valor não se encontra abarcado pelas disposições relativas à colação, à imputação, redução de liberalidades e impugnação pauliana, cuja aplicabilidade, no caso, se mostra limitada às quantias prestadas pelo tomador do seguro ao segurador.»

Julgamos que o posicionamento deste último conjunto jurisprudencial é de subscrever e que mutatis mutandis deve iluminar um caso como o vertente, na certeza de que em nada se lhe opõe o regime jurídico do mutualismo. Aliás, até se afigura não excessivo dizer que neste particular se regista alguma incompletude desse regime (regime, digamos, que lacunoso), de sorte que se justifica o recurso à solução legal análoga do seguro de vida. No limite, a unidade e coerência do sistema jurídico assim o impõem.

Olhando para o domínio do caso paralelo dos seguros de vida em que o capital pode reverter a favor de terceiros, cremos não poder haver dúvidas que aí estamos perante um contrato a favor de terceiro. Diz-nos, a propósito, Moitinho de Almeida (ob. cit., p. 347) que “a prestação prometida pelo segurador não se destina ao contraente, mas a terceiro por este indicado. Forma-se assim um contrato a favor de terceiro em que o segurador (promitente) se obriga perante o tomador do seguro (promissário) a, realizado um evento quer se prende com a vida humana, efectuar uma prestação a terceiro estranho à conclusão do contrato (beneficiário)”. No mesmo sentido aponta José Vasques (ob. cit., p. 121), ao observar que “Porventura o seguro de vida, em que o beneficiário nomeado receberá determinada quantia em função da morte do segurado, será, então, o exemplo indiscutível do contrato a favor de terceiro”.

Ora, na presente espécie estamos perante um negócio jurídico estabelecido entre a Inventariada e o Montepio Geral, nos termos do qual e ao abrigo do pertinente Regulamento (juridicamente, um verdadeiro conjunto de cláusulas contratuais gerais), a primeira fez entrega ao segundo de certos recursos pecuniários (quotas) e ficou investida no direito de, conforme os casos, receber deste certo rendimento mínimo anual, ser reembolsada das entregas feitas e seu acúmulo de rendimento, e obter a conversão do capital acumulado numa pensão. Porém, para o caso de morte, ficou estabelecido, de novo em decorrência do previsto no Regulamento, que o capital acumulado era para ser entregue a certas pessoas, os filhos da Inventariada.

Nesta última parte, que caracteriza uma relação de atribuição beneficiária ou de valuta, estamos perante uma contratação a favor de terceiros (temática regulada no art. 443º e seguintes do CCivil), no figurino da promessa a cumprir depois da morte do promissário (v. art. 451º nº 1 do CCivil). Contratação essa integrada pois na (mais complexa) relação (a chamada, doutrinariamente, relação de cobertura ou de provisão) entre promissária (Inventariada) e promitente (Montepio Geral - Associação Mutualista). Como nos diz Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, II, 10ª ed., p. 410), “O contrato a favor de terceiro é o contrato em que um dos contraentes (promitente) atribui, por conta e à ordem do outro (promissário), uma vantagem a um terceiro (beneficiário, estranho à relação contratual. Essencial (…) é que os contraentes procedam com a intenção de atribuir, através dele, um direito (…) a terceiro ou que dele resulte, pelo menos, uma atribuição patrimonial imediata para o beneficiário. Assim se distingue o verdadeiro contrato a favor de terceiro daqueles contratos (obrigacionais) cuja prestação principal se destina a terceiro, mas sem que este adquira previamente, segundo a intenção dos contraentes e o próprio conteúdo do contrato, qualquer direito (de crédito à prestação)”, sendo que “o benefício do terceiro nasce diretamente  do contrato (…), e não de qualquer ato posterior. Isso não significa que o seu nascimento não possa ser diferido para momento posterior à celebração do contrato, se a lei (art. 451º, nº 1 ou os contraentes (mediante condição ou fixação de prazo) assim o determinarem”. Acrescente-se, a propósito, que, dentro dos princípios da liberdade contratual (v. art. 405º nº 1 do CCivil), a estipulação a favor de terceiro pode traduzir-se, em relação às partes contratantes (promitente e promissário), numa cláusula acessória (v. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, I, 12ª ed., p. 237) e a aquisição do direito pode estar subordinada a certas condições ou sujeita a termo (v. Antunes Varela, ob. cit., p. 421). Nesta medida, e nomeadamente, a existência ou a exercitabilidade de certos efeitos do negócio podem ser sujeitos à condição potestativa da sua revogação, como podem ser postos na dependência de um acontecimento futuro mas certo, como é o caso da morte, de tal modo que os efeitos só começam ou se tornam exercitáveis a partir desse momento (termo suspensivo ou inicial).

Ora, julgamos que tudo isto se identifica com a situação vertente, sendo que do contrato estabelecido entre a ora Inventariada e o Montepio Geral sempre resulta, pelo menos, uma atribuição patrimonial para os beneficiários, conquanto dependente de uma circunstância implícita e negativa (o não resgate prévio pela promissária) e de uma circunstância explícita e positiva (a morte da promissária). O promitente Montepio Geral ficou obrigado a prestar quer à promissária quer aos beneficiários designados, ocorrendo apenas que em relação a estes a prestação ficou dependente da eventualidade dessas circunstâncias.

E dizer isto é o mesmo que dizer que não concordamos com o entendimento da Recorrida, que é todo ele no sentido de não se estar perante um contrato a favor de terceiro, mas sim perante um contrato cuja prestação se destinou simplesmente a terceiro, sem qualquer direito à prestação. Não vemos como seja isso compatível com os termos do Regulamento (que integra para todos os efeitos o contrato, valendo, repete-se, como um conjunto de cláusulas contratuais gerais, sendo de reafirmar que, nos termos do art. 19º do DL nº 72/90, o regulamento deve estabelecer as condições de atribuição dos benefícios), nomeadamente quando este se reporta quer ao dever de o subscritor designar beneficiários quer ao dever de indicar a forma de distribuir por eles o capital acumulado. Nada disto faria sentido se acaso as pessoas em causa não passassem senão de simples (e para usarmos palavras da própria Recorrida) “substitutos da promissária na perceção da prestação”, e não de beneficiários da prestação, de titulares de um direito próprio à prestação da promitente.

Ora, não tendo a Inventariada exercido em seu benefício pessoal a faculdade que lhe assistia nos termos contratados (não se verificou assim a inerente condição potestativa, que de outro modo neutralizaria a cláusula beneficiária), segue-se que, falecida ela, passou automaticamente a prestação do promitente Montepio Geral a ter como sujeitos ativos os beneficiários designados, que a ela adquiriram então direito. Donde, podia e devia o Montepio Geral transferir em propriedade para a esfera jurídica dos terceiros beneficiários, os filhos da Inventariada, o capital acumulado em questão, pois que foi precisamente isto que lhe foi cometido contratualmente pela promissária para o caso da sua morte.

Tal prestação a que o promitente Montepio Geral estava vinculado ingressou assim direta e automaticamente na esfera jurídico-patrimonial dos terceiros beneficiários designados, sendo a nosso ver inadequado ficcionar-se aqui o respetivo trânsito pela esfera jurídico-patrimonial da promissária. Isto é assim porque, justamente, a promissária nunca chegou a pôr em funcionamento em seu benefício pessoal a cláusula contratual atinente ao resgate ou à atribuição de uma pensão anual vitalícia (ou seja, e atalhando caminho, não optou por fazer reverter para o seu património o objeto da prestação a que o Montepio Geral se obrigara perante ela em caso de vida). Pelo contrário, manteve sempre o benefício pendente ou atuante quer a seu favor quer a favor da pessoa dos filhos, e assim se finou. Sem dúvida que estes terceiros beneficiários adquiriram o direito contra o Montepio em virtude do negócio jurídico celebrado pela Inventariada e do que com base nele esta despendeu; porém, nada receberam diretamente do património da contraente promissária, na medida em que, face à existência e aos termos da contratação a favor de terceiros para o caso da morte, a prestação do Montepio Geral passou automaticamente a ter como sujeitos credores os beneficiários designados.

Esta conclusão afigura-se-nos lógica, posto que se veja o negócio celebrado entre a Inventariada e o Montepio Geral como deve ser visto, ou seja, na globalidade dos seus possíveis efeitos. Claro que se (erraticamente) virmos o contrato de forma segmentada, de modo a ignorar por um momento a cláusula beneficiária tal como se mostra fixada concomitantemente em favor também dos terceiros beneficiários, a conclusão será sempre a de que a prestação do Montepio Geral só podia pertencer à Inventariada, não possuindo nunca os terceiros qualquer direito próprio.

O que significa que o que a interessada cabeça de casal defende em contrário do que vem de ser dito não é de subscrever.

O que significa também que não faz sentido relacionar aquilo que consta da verba nº 1 (o produto das aplicações financeiras), e muito menos como direito de crédito (obviamente que sobre o Montepio Geral, como pretende implicitamente a cabeça de casal, nomeadamente ao significar algures no processo que este pagou mal a dois dos beneficiários).

Diz a cabeça de casal, porém, que, a ser do modo que vem sendo dito, estaria então em causa uma liberalidade, uma doação por morte, que seria nula e inatendível, visto o disposto no art. 946º do CCivil.

Mas não é assim.

Sem dúvida (v. a propósito Antunes Varela, ob. cit., p. 418, nota 1) que a prestação a favor de terceiro a que o promitente fica vinculado perante o promissário pode ter como causa (relação de valuta, a relação entre o promissário e o terceiro que justifica a outorga do direito a esse terceiro), para além de outras (como uma causa solvendi ou credendi), uma liberalidade (causa donandi). E, reportando-se especificamente ao seguro de vida em benefício de terceiro, observa Moitinho de Almeida (ob. cit., p. 362) que “Nas relações entre o tomador do seguro e o terceiro beneficiário, a designação deste pode configurar-se como uma liberalidade (donandi causa) ou como um acto oneroso (solvendi, credendi causa, etc.) (…). A estipulação beneficiária donandi causa tem a natureza de uma liberalidade, embora indirecta. Se o terceiro não recebe directamente do património do contraente a quantia segura, todavia só em virtude do negócio jurídico por este celebrado e do que com base nele despendeu se efectivou o direito contra o segurador” e que (p. 363) “Constituindo a estipulação beneficiária uma liberalidade, fica esta sujeita às regras das doações, só sendo válida se o beneficiário for capaz de receber, e pode ser revogada (…)”

Não duvidamos que, no fundo, se está in casu perante uma liberalidade. Embora a matéria de facto provada não seja particularmente informativa acerca da causa subjacente à referida relação de valuta, das diversas peças processuais apresentadas pelas partes resulta ser consensual que só poderá tratar-se de uma afetação em termos de liberalidade da Inventariada, distribuída pelos seus três filhos. Mais propriamente, visto que é uma liberalidade consequente a um contrato a favor de terceiros (havendo assim uma espécie de intermediação do promitente), trata-se daquilo que pode designar-se como doação indireta (v. Carlos Ferreira de Almeida, Contratos III, contratos de liberalidade, de cooperação e de risco, 2ª ed., pp. 53 e 54).

Não nos parece, contudo, que se possa falar aqui numa liberalidade que seja nula.

Para sustentar a nulidade, a cabeça de casal parte do princípio de que estamos perante um ato (liberalidade) mortis causa e não inter vivos, mas tal conclusão não é de subscrever.

Embora normalmente se definam os negócios entre vivos como os destinados a produzir efeitos em vida das partes, e negócios mortis causa como os destinados a só produzir efeitos depois da morte da respetiva parte ou de alguma delas (assim, Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed. actualizada, p. 392), interessa ter presente, como nos diz Carvalho Fernandes (Teoria Geral do Direito Civil, II, 5ª ed. Revista e atualizada, p. 77), que o verdadeiro critério de distinção é o da causa dos efeitos jurídicos produzidos pelo negócio. Assim, acrescenta o autor, o negócio é inter vivos se constituir a causa dos seus efeitos e, por isso mesmo, estes se produzirem (ou poderem produzir), em regra, de imediato, na vida do seu autor, enquanto o negócio mortis causa ocorre quando a causa jurídica dos efeitos a que se dirige o negócio é a morte do declarante. Porém, aduz ainda o mesmo autor, reproduzindo o entendimento de I. Galvão Telles, «devem (…) distinguir-se os casos em que a morte está na origem da transmissão e os casos em que é mera circunstância extrínseca. Aqueles em que é facto principal e aqueles em que é facto secundário de natureza permissiva. Respectivamente causa e termo suspensivo. Só na primeira categoria de hipóteses se pode falar de transmissão mortis causa. Na segunda a transmissão é inter vivos, conquanto subordinada a um termo suspensivo que por coincidência será a morte do transmitente». E continua o autor: «Sem dúvida, o normal – id quod plerumque fit - , nos negócios inter vivos, é os seus efeitos produzirem-se também em vida do seu autor. Contudo, é perfeitamente possível ficar a produção dos efeitos diferida para o momento da morte do declarante, como acontece nos negócios inter vivos a termo, sendo o evento previsto a morte do declarante. Em tal caso, sem deixar o negócio de ser em si mesmo válido, os seus efeitos estão dependentes da morte de uma das partes».

Concordantemente com esta visão das coisas, Moitinho de Almeida (ob. cit., p. 362), referindo-se à estipulação beneficiária como liberalidade no domínio paralelo do seguro de vida em caso de morte, contesta a ideia de que se trata de um ato mortis causa, observando que “A morte do contraente não é a causa da aquisição do direito do beneficiário, mas o momento em que este direito se concretiza”, acrescentando que uma distinção entre disposições mortis causa e inter vivos acabaria por negar a autonomia da prestação do segurador relativamente ao património do contraente, pois só são transmissíveis mortis causa os bens que fazem parte do património do de cujus.

Ora, pelo que veio anteriormente de ser dito quanto ao modo de encarar o contrato celebrado entre a Inventariada e o Montepio Geral - este ficou obrigado a vir a prestar quer perante a promissária quer perante os beneficiários designados, ocorrendo apenas que em relação a estes últimos os efeitos ficaram dependentes da morte da promissária (termo inicial ou suspensivo) -, segue-se que a morte não é a causa do negócio jurídico mas o facto produtor dos seus efeitos.

A Recorrida cabeça de casal poderia ter razão no que sustenta, se estivéssemos a discutir um típico contrato de doação, mas não é o caso. Estamos é bem perante uma liberalidade indireta (nada contratou diretamente a Inventariada com os filhos), sendo essa liberalidade apenas um efeito da verdadeira e vinculativa relação em discussão, a estabelecida entre a Inventariada e o Montepio Geral.

Mas mesmo que assim não fosse, uma outra razão sempre levaria a afastar a pretensa nulidade da liberalidade.

É que estamos aqui perante uma hipótese em que a lei permite, sem quaisquer restrições ou condicionamentos, a liberalidade por morte. E se assim é, nunca a liberalidade em causa poderia ser havida como ilícita e nula.

Efetivamente, a proibição da doação por morte, estabelecida no art. 946º do CCivil, admite exceções (v. parte final do seu nº 1), e estas não têm que ser apenas as previstas no CCivil (e que são as das alíneas a) e b) do nº 1 do art. 1700º), mas também as previstas em outras leis. Ora, in casu estamos perante uma situação específica, que se move em enquadramento jurídico (o do DL nº 72/90) em que a liberalidade por morte é sempre lícita e válida. Pois que, vistas as finalidades protetivas ou de segurança social subjacentes ao mutualismo, admite a lei (rectius pretende) que terceiros familiares possam ser chamados ao benefício em qualquer caso (no sentido de em vida ou por morte do subscritor), e independentemente de formalidades especiais, nomeadamente das formalidades previstas para os testamentos. Do supra citado regime jurídico do mutualismo resulta que, para além dos do associado, são visados diretamente os interesses dos seus familiares, bem como resulta, concordantemente, que os benefícios podem consistir em capitais pagáveis por morte. Ou seja, o terceiro familiar designado para o caso de morte do subscritor pode ser sempre de per se um destinatário precípuo e legítimo do benefício (liberalidade), recebendo-o diretamente do promitente (associação mutualista). O que, convir-se-á, em nada se ajusta ao regime e aos fins da proibição da doação por morte e da conversão do negócio jurídico a que se refere o nº 2 do art. 946º do CCivil.

Acresce dizer que, como acima se apontou, a subscrição a que procedeu a Inventariada resolve-se basicamente numa colocação de recursos pecuniários a rentabilizar em seu benefício, ou, em caso de morte, em benefício dos terceiros familiares designados. Colocação essa que reverte a favor de um Fundo, gerido e capitalizado pelo Montepio Geral, e que (independentemente da modalidade) tem sempre subjacente finalidades legais previdenciais ou de segurança social. E isto, repete-se, é semelhante ao que sucede no caso de certos seguros de vida (seguros de vida capitalização ou ligados a fundos de capitalização) que levam também em conta a eventualidade da morte do tomador e a designação de terceiros beneficiários, de modo que interessa atender aqui ao regime jurídico destes seguros. E, quanto a tais seguros, o Regime Jurídico do Contrato de Seguro (aprovado pelo DL nº 72/2008) estabelece que o tomador do seguro deve indicar o beneficiário, a quem, em caso de morte, o capital seguro é prestado (v. art.s 183º, 184º nº 1 a) e nº 2 e 198º). Admite-se assim claramente a tal natureza precípua e legítima do benefício, de sorte que o terceiro terá sempre direito a beneficiar da liberalidade subjacente (ou seja, a receber diretamente do segurador o objeto da liberalidade, a prestação devida), tudo independentemente de outras condicionantes ou estatuições legais. Donde, aplicando por identidade de razão esta solução legal ao caso das operações mutualistas, resulta claro que não há que falar in casu em qualquer doação nula.

Isto posto, interessa então saber o que é que poderá ou deverá ser relacionado em decorrência das aplicações financeiras contratadas pela Inventariada. Claramente, pelo que vem de ser dito, que não poderá ser o objeto da promessa em si mesmo (o montante a entregar aos terceiros beneficiários) e a cujo cumprimento estava o promitente Montepio Geral vinculado.

Sobre a matéria, julgamos que vale mutatis mutandis para o caso vertente o que se expende no supra citado acórdão deste Supremo Tribunal de 17 de junho de 2012, reproduzindo, por sua vez, aresto anterior do mesmo Tribunal, e passamos a citar: «Por exemplo, o Prof. Oliveira Ascensão ensinava ainda ao tempo da vigência do art. 460º do CCom: “Há certas formas de aquisição por morte que nada têm a ver com a sucessão. Processam-se longe desta, obedecendo a princípios próprios (…) É típico o caso dos seguros de vida, estabelecidos pelo de cujus. Ele paga prémios mas o beneficiário é um terceiro por ele determinado. Morto o segurado, esse beneficiário recebe o valor do seguro: mas não o recebe do de cujus, recebe-o directamente da entidade seguradora como é lógico e resulta da disposição, muito complexa embora, do art. 460º do CCom. (…) Como essa atribuição se faz fora do fenómeno do mecanismo da sucessão, não se rege pelos princípios desta. Portanto, não entra para o cálculo do valor total (da herança), não está sujeita a redução por violação da legítima, etc. Mas no que respeita aos prémios o problema é diverso: o pagamento destes pode efectivamente ser considerado doação indirecta e o beneficiário do seguro que concorrer à sucessão está sujeito à colação pelo seu valor” (“Direito das Sucessões”, AAFDL, 1980, pags. 91/92) (…) E Capelo de Sousa (“Lições de Direito das Sucessões”, I, 4ª Ed., 2000, pags. 34/35), referindo-se aos “seguros de vida em caso de morte durante a vida inteira do segurado”: Neste caso, o segurado tem a obrigação de pagar os prémios até ao fim da sua vida ou de terceiro. Por sua vez, a seguradora aquando da morte do segurado é obrigada a pagar o capital seguro à pessoa designada pelo segurado ou aos seus herdeiros. (…) A este respeito, o art. 460º do CCom. estabelece (…) Não nos parece, pois, que estejamos aqui perante uma doação mortis causa, uma vez que na origem de tal seguro estão os prémios pagos pelos segurados e que o capital segurado não entra no património sucessório do segurado ou de terceiro, transfere-se directamente da seguradora para o beneficiário, pelo que não há lugar aqui ao pagamento do imposto sobre sucessões. Estamos aqui perante uma doação em vida (…) Por isso mesmo, o benefício (o autor quereria dizer “os prémios” ou o “prémio”) está sujeito às regras da colação, da inoficiosidade das liberalidades e da rescisão dos actos praticados em prejuízo dos credores (…). Também Manuel Gomes da Silva (“Lições de Direito das Sucessões”, Vol. I, pags. 62: A lei considera, portanto, as quantias recebidas pelo segurador como doadas, como tal contando para o efeito de inoficiosidade, colação e acção pauliana. Mas já o mesmo não sucede com a quantia que o segurador é obrigado a pagar por morte do segurado (…) No mesmo sentido, a R. L. J. 50º, pags. 391:…o capital segurado (…) não transita pelo património do segurado para passar para o património do beneficiário. Nem poderia passar, não só porque o capital nasce quando o segurado morre (…), mas também porque da morte do segurado depende a aquisição do direito e é evidente que uma pessoa não pode adquirir um direito cuja realização depende da sua morte».

Actualmente e face à mencionada revogação do art. 460º do CCom., não pode deixar de atentar-se no preceituado no art. 200º do aludido DL nº 72/2008, onde, sob a epígrafe “Pessoas estranhas ao benefício”, se dispõe que “As relações do tomador do seguro com pessoas estranhas ao benefício não afectam a designação beneficiária, sendo aplicáveis as disposições relativas à colação, à imputação e à redução de liberalidades, assim como à impugnação pauliana, só no que corresponde às quantias prestadas pelo tomador do seguro ao segurador”.

E vale igualmente, mutatis mutandis, o que se expende no também já referido acórdão deste Supremo Tribunal de 12 de novembro de 2013, e passamos a citar: «Como tal, o terceiro beneficiário adquire o direito à prestação como efeito imediato do contrato, independentemente da aceitação ou até do conhecimento da celebração do contrato, excepto se a prestação houver de ser efectuada após a morte do promissário, caso em que se presume que só depois do falecimento deste o terceiro adquire o direito à prestação, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 444.º, nº 1 e 451.º, nº 1 do CC, presunção que tem como objectivo evitar que a prestação prometida possa vir a ser penhorada ou apreendida, em processo de insolvência do terceiro, em vida do promissário.

Deste modo, na hipótese em análise, a aquisição do direito à prestação do seguro, pelo terceiro beneficiário, estava dependente da morte do segurado, evento de que dependia a exigibilidade daquela prestação, como termo suspensivo da sua atribuição. E só surgindo após o falecimento do promissário, o inventariado, não integra no seu património o capital segurado, pelo que nessa consonância as disposições relativas à colação, imputação e redução das doações por inoficiosidade só são susceptíveis de aplicação aos prémios pagos pelo promissário, consoante decorre do disposto nos artigos 460.º do Código Comercial, 200.º do Dec. Lei n° 72/2008 e 450.º, nº 1 do CC.

De facto, estipulava o artigo 460.º do Código Comercial que “no caso de morte…daquele que segurou, sobre a sua própria vida…, uma quantia para ser paga a outrem que lhe haja de suceder, o seguro subsiste em benefício exclusivo da pessoa designada no contrato, salvo, porém, com relação às quantias recebidas pelo segurador, as disposições do Código Civil relativas a colações, inoficiosidade nas sucessões…”, e o vigente art. 200.º do Dec. Lei n° 72/2008 dispõe que “As relações do tomador do seguro com pessoas estranhas ao benefício não afectam a designação beneficiária, sendo aplicáveis as disposições relativas à colação, à imputação e à redução de liberalidades, assim como à impugnação pauliana, só no que corresponde às quantias prestadas pelo tomador do seguro ao segurador “.

Coerentemente, o artigo 450.º, nº 1 do CC estatui que “só no que respeita à contribuição do promissário para a prestação a terceiro são aplicáveis as disposições relativas à colação, imputação e redução das doações…”.

Como se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 14/12/05, Proc. nº 3669/05, citado pela recorrente, “Por esta razão, entende-se que o valor do seguro não transita pelo património do segurado para o património do beneficiário, não é recebido, pelo beneficiário, do «de cujus», mas, directamente, da seguradora, não havendo, por isso, lugar, quanto a este bem, à aplicação das regras gerais da sucessão, designadamente, em matéria de cálculo do valor total da herança, de inoficiosidade e de colação, exceptuando a situação dos prémios de seguro pagos à seguradora, que se encontram sujeitos ao regime civilístico da colação e da inoficiosidade, porquanto a lei comercial os considera como doações indirectas (…)»

Concordantemente, expende Lopes Cardoso (Partilhas Judiciais, Volume I, 3ª ed., pp. 416 a 418), reportando-se à relacionação em inventário do seguro de vida, que tal relacionação não tem lugar, na medida em que não estando nunca as importâncias do seguro em poder do autor da herança, não podem reputar-se como bens da herança. Para o efeito estriba-se precisamente na figura jurídica do contrato a favor de terceiro subjacente. E conclui que, havendo herdeiros legitimários, o que deve ser relacionado são as quantias que o inventariado despendeu com prémios, quer para serem conferidas pelo herdeiro porventura beneficiado com o seguro, quer para os demais efeitos previstos no art. 450º do CCivil. O mesmo decorre, entretanto, do art. 200º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro.

Deste modo, considerando o estabelecido no art. 450º nº 1 do CCivil e, ademais, a analogia que, a nosso ver, deve ser feita da prestação a que está vinculado o Montepio Geral com o seguro de vida capitalização ou ligado a fundos de investimento, chegamos à conclusão que o que tem que ser relacionado no presente inventário são as quantias (quotas) que a Inventariada entregou a título das subscrições que levou a efeito.

A matéria de facto provada não nos esclarece, porém, quais foram essas quantias (seu quantum), nem tão-pouco em que termos é que a designação beneficiária foi estabelecida (houve uma designação autónoma para cada filho, em função de uma subscrição diferente em benefício de cada um deles? A designação ou designações visaram um benefício em partes iguais?). Trata-se de questões de facto (que inclusivamente, e em tese, poderão passar pela interpretação da vontade da Inventariada) estranhas ao âmbito de intervenção deste Supremo Tribunal (v. art. 682º, nºs 1 e 2 do CPCivil), e que terão que ser esclarecidas nas instâncias. Diremos apenas que competirá em primeira linha à cabeça de casal identificar e relacionar como liberalidade a cada um dos filhos (funcionando logicamente os outros dois como pessoas estranhas a esse concreto benefício) a concreta quantia (das contribuições ou quotas entregues pela Inventariada ao Montepio Geral) que gerou a vantagem (liberalidade) que lhes acabou pessoalmente deferida. Saber em que termos é que esta matéria se poderá relacionar (visto que nos movemos no domínio da sucessão legitimária) com as figuras da colação, imputação e redução de liberalidades, é tudo assunto subsequente e que, podendo ou não interferir nos resultados da partilha, nada tem a ver com a problemática do relacionamento dos bens. E é apenas desta problemática que estamos a tratar, aliás em estrita observância do objeto do recurso.

Pelo que fica exposto resta dizer que não concordamos com a conclusão a que chegou o acórdão recorrido, e que foi no sentido de que o capital (na realidade, direito de crédito a ele) que integra a verba nº 1 da relação de bens já existia na esfera jurídica da Inventariada, logo que deve ser relacionado e partilhado.

Mas já concordamos com a Recorrente, quando sustenta que a verba nº 1 da relação de bens deve ser eliminada, precisamente porque não integra em si mesma um bem da herança. Cabe apenas observar que esta eliminação deve ser interpretada em bons termos, por isso que se impõe como que substituir o bem eliminado pelas concretas contribuições da promissária a cada um dos filhos. Se bem entendemos, isto também não vai contra o entendimento da Recorrente, pelo menos face ao que se mostra escrito na 2ª parte do sétimo ponto da conclusão J.

DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em conceder a revista e, revogando o acórdão recorrido na parte em causa, determinam, nos termos sobreditos, a eliminação do bem a que se refere a verba nº 1 da relação de bens.

Regime de custas:

Custas da instância recorrida (apelação) pelos três interessados e pela credora Externato O Lar ......, Lda., na proporção de 1/4 para cada.

Custas da revista pela interessada cabeça de casal BB e pela credora O Lar ......, Lda., na proporção de ½ para cada.

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Sumário:

I. O contrato celebrado entre uma associação mutualista e um seu associado (nos termos do qual este subscreve a modalidade de capitais de reforma/complemento de rendimento, entregando as respetivas quotas para serem geridas e capitalizadas), em que fica convencionado que em caso de morte do subscritor o capital acumulado é para ser integralmente entregue aos beneficiários designados, vale neste segmento como contrato a favor de terceiro.

II. Falecendo o associado subscritor sem ter usado da faculdade que também lhe assistia contratualmente de resgatar o capital acumulado ou de o transformar em pensão anual vitalícia, está a promitente associação mutualista obrigada a cumprir a promessa contratada, prestando aos beneficiários, pois que adquirentes do direito à prestação, o capital acumulado.

III. Nesta hipótese, o capital é devido diretamente aos beneficiários, não passando pelo património do promissário nem, consequentemente, fazendo parte da respetiva herança.

IV. As relações do associado subscritor com as pessoas estranhas ao benefício não afetam a designação beneficiária, sendo aplicáveis as disposições relativas à colação, à imputação e à redução de liberalidades só no que corresponde às quantias entregues pelo subscritor à associação mutualista.

V. Se uma tal atribuição beneficiária se traduzir numa liberalidade, não se trata de uma doação mortis causa nula, tanto porque não se está aqui perante uma liberalidade mortis causa mas inter vivos, como porque uma tal liberalidade é consentida, em qualquer caso, pelo regime jurídico específico do mutualismo.

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Lisboa, 10 de Janeiro de 2017

José Rainho (Relator)

Nuno Cameira

Salreta Pereira

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[1]  V. a propósito o art. 83º da Lei de Bases da Segurança Social (Lei nº 4/2007), que admite os regimes previdenciais complementares de iniciativa individual e coletiva. E no art. 84º estabelece-se que “Os regimes complementares de iniciativa individual são de instituição facultativa, assumindo, entre outras, a forma de planos de poupança-reforma, de seguros de vida, de seguros de capitalização e modalidadesmutualistas.”