Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
457/18.3T8ABF.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
DOMÍNIO PÚBLICO
DOMÍNIO PRIVADO
DOMÍNIO PÚBLICO MARÍTIMO
DOMÍNIO PÚBLICO HÍDRICO
LEI APLICÁVEL
INTERESSE PÚBLICO
ÓNUS DA PROVA
TÍTULO DE AQUISIÇÃO
JUSTO TÍTULO
PROVA DOCUMENTAL
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PRESUNÇÃO JUDICIAL
PROIBIÇÃO DE PROVA
PARECER
Data do Acordão: 02/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I. A nulidade por ambiguidade ou obscuridade da decisão ocorre quando a decisão permite duas ou mais interpretações (ambiguidade), ou quando não é possível saber, com certeza, qual o pensamento exposto na sentença (obscuridade).

II. A nulidade por omissão de pronúncia somente ocorre nos casos em que a omissão de conhecimento, relativamente a cada questão, é absoluta e já não quando seja meramente deficiente ou quando se tenham descurado as razões e argumentos invocados pelas partes.

III. O interesse público subjacente à dominialidade pública das águas justifica o regime probatório estabelecido no art. 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, configurando este um justo equilíbrio entre os interesses, públicos e privados, em presença.

IV. A demonstração da propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, tem de ser feita documentalmente (cit. nº 2 do artº 15º da Lei n.º 54/2005, de 15-11). E não tendo o legislador tomado posição quanto ao tipo de documentos admissíveis para efeitos de prova, tal prova documental pode realizar-se através de quaisquer documentos e não apenas do justo título de aquisição, podendo os particulares lançar mão de todos os documentos de que disponham para demonstrar os factos dos quais decorra que os prédios reivindicados eram objecto de propriedade privada desde data anterior aos marcos temporais mencionados naquela Lei.

V. No entanto, se é certo que o art. 15.º, n.º 1, da Lei n.º 54/2005 exige uma certa espécie de prova – a documental – , porém, não fixa a força da prova documental produzida.

VI. Nos termos e para efeitos do artº 15.º, n.º 1, da Lei n.º 54/2005, os pareceres da Comissão do Domínio Público Marítimo (CDPM) são elementos de prova relevantes, ainda que a valorar livremente pelo tribunal.

VII. Já no que tange a presunções judicias, não podem, neste domínio, ser usadas, sob pena de violação de normas de direito material (ut artº 351º do Cód. Civil) – proibição que se justifica pela sua falibilidade que não é consentânea com as exigências de prova que se fazem sentir neste domínio.

VIII. O artigo 421.º do CPC pressupõe a transferência de prova entre processos, preservando tanto a sua natureza originária como o valor probatório (mas não o resultado), sendo requisito essencial que o meio de prova seja invocado perante sujeito a quem foi permitido exercer o contraditório na produção da prova.

IX. Para a prova da propriedade de bens do domínio hídrico, a que alude o art. 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, tem o Autor, não apenas fazer a prova de que o imóvel estava na propriedade particular quando se estabeleceram as presunções de dominialidade – isto é, tem de demonstrar que o terreno cuja propriedade privada reclama já era propriedade privada antes de 31 de Dezembro de 1864 ou, tratando–se de arribas alcantiladas, antes de 22 de Março de 1868, demonstração que se fará mediante prova de que a propriedade privada em causa foi adquirida por título legítimo, antes daquele marco temporal – , como também que nessa condição se manteve até à data actual; ou seja, a presunção de dominialidade terá de ser afastada relativamente a toda a “história” do bem, pois não há garantia de que o bem não tenha ingressado, depois das datas referidas nesse diploma, e por qualquer motivo admissível no domínio público.

X. Se o STJ não pode emitir pronúncia sobre os resultados da livre apreciação da prova pericial, dado estar sujeita à liberdade de apreciação do juiz, tal não significa que essa liberdade na apreciação da prova pericial produzida equivalha a arbitrariedade. Pelo que o juízo relativo à prova pericial é susceptível de censura pelo Supremo nos casos de manifesta desadequação ou ilogicidade da sua fundamentação, pois que, actuando dessa forma, o julgador incorre em patente e frontal violação da lei, redundando a conformação desse seu comportamento em inequívoca questão de direito, quadrável no âmbito dos poderes de cognição do Supremo.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível



I – RELATÓRIO


GLENMAJOR LIMITED intentou a presente acção declarativa, com processo comum, contra o ESTADO PORTUGUÊS, pedindo que este seja condenado a reconhecer a propriedade privada do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...38, freguesia ..., concelho ..., com a configuração que concretiza, fixando a linha de delimitação do prédio como aquela que resulta da ligação do marco 3, definido pelo processo de delimitação nº 3922/86 com o outro marco que identifica.


Alegou ser dona e legítima proprietária do referido prédio, o qual resultou da desanexação do prédio rústico descrito sob o nº ...11 na extinta Conservatória do Registo Predial ..., a qual foi feita à vista de uma escritura de aforamento celebrada em 21 de agosto de 1829, outra de venda de foro, celebrada em 21 de abril de 1830, um formal de partilha julgada por sentença de 25 de Janeiro de 1858 e de declaração suplementar assinada e apresentada por AA, como procurador de BB, na referida Conservatória sob o nº 1 do diário, no dia 6 de Fevereiro de 1869, conforme documento produzido pela Comissão do Domínio Público Marítimo no processo de delimitação nº 3922/86 – Parecer nº 5042 de 8 de janeiro de 1986.

Mais alegou que além do prédio de que se arroga proprietária, outros dois foram dali desanexados, tendo sido requerida quanto a estes a delimitação com o domínio público marítimo, com resultado já publicado, e que o marco nº 3 do prédio delimitado no processo administrativo que identifica é comum ao prédio objeto dos autos, sinalizando também o seu limite a nascente com o prédio já delimitado. Refere ainda a existência de um outro marco que a poente serve de delimitação do prédio da autora com aquele que com este confronta de poente e que define o ponto em que a poente o prédio da autora se diferencia da margem do domínio público marítimo, sendo que o limite do prédio da autora a sul corresponde à linha que decorre entre o referido marco nº 3 e o último mencionado.

Alegou, por último, que a Comissão do Domínio Público Marítimo concluiu nos processos de delimitação respeitantes aos outros dois imóveis alegadamente desanexados do prédio mãe de onde origina o prédio de que se arroga proprietária, que são propriedade particular anteriormente a 31 de Dezembro de 1864, o mesmo sucedendo com o prédio da autora.


O réu Estado contestou, impugnando todos os factos alegados que não resultem de documento autêntico e, quanto aos outros factos resultantes de documentos, aceitou-os apenas na exacta redação que consta dos mesmos.

Sustentou ainda o réu que a autora não juntou prova documental bastante que prove o alegado quanto à desanexação a que alude, e que o pedido de delimitação não pode ser aceite, por não corresponder aos critérios e requisitos legais em vigor.

Mais alegou que os efeitos de cada auto de delimitação são limitados a cada caso e que o vértice a considerar para efeitos de delimitação não poderá ser o referenciado pela autora como nº 3, mais a mais considerando o avanço das águas do mar. Quanto ao outro elemento não tem as características de marco de delimitação do domínio público marítimo, a tudo acrescendo a circunstância de a autora não ter juntado ao processo levantamento topográfico com características próprias.


Realizada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.


Instruído o processo, seguiram os autos para julgamento, sendo a final proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu o réu do pedido.


A autora apelou para o tribunal da Relação de Évora que, em 05-11-2020, decidiu ordenar a realização de perícia (a segunda) para esclarecer um determinado conjunto de factos.


A perícia ordenada foi realizada e foi agendada data para prestação de esclarecimentos por parte dos peritos nomeados.


Em 13-10-2022, foi proferido acórdão pelo tribunal da Relação de Évora que revogou a sentença da 1.ª instância, julgando a ação procedente e condenando o réu Estado a reconhecer a propriedade privada do prédio da autora descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...38, freguesia ..., concelho ..., com a configuração que se apresenta nas plantas de localização de fls. 46 e 48, fixando-se a linha de delimitação daquele prédio como aquela que resulta da ligação do marco 1, definido pelo processo de delimitação nº 3922/86, com o marco que está identificado em tais plantas e nas fotografias de fls. 50, 52 e 54.


Inconformado, o Autor, Estado Português, representado pelo Ministério Público, interpôs recurso de revista (suscitando, como questão prévia, a reforma do acórdão quanto a custas), apresentando alegações que remata com as seguintes


CONCLUSÕES

  A


1.ª- Nos termos do artigo 616.º, n.º 1 e n.º 3, do Código de Processo Civil, o Ministério Público, agindo em nome próprio e aqui recorrente, começa por REQUER ao Venerando Supremo Tribunal de Justiça, por via e oportunidade do presente recurso, a REFORMA do acórdão do Tribunal da Relação de Évora QUANTO A CUSTAS, no segmento decisório em que ditou: “As custas, na ação e apelação são a cargo do réu Estado”.


2.ª- Atendendo à legitimidade e posição processual da intervenção do Ministério Público, nos termos do artigo 219.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, dos artigos 4.º, n.º 1, alíneas h) e r) e 9.º, n.º 1, alíneas f) e g), do Estatuto do Ministério Público (Lei 68/2019, de 27–8), do artigo 31.º do Código de Processo Civil, o Ministério Público intervém em nome próprio nos processos judiciais que visam conhecer e decidir sobre a propriedade ou posse de parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, conforme dispõe o artigo 15.º, n.º 1, da Lei n.º 54/2005, de 15–11, tendo em conta que lhe cabe a defesa dos interesses que lhe são confiados por lei e contestar tais ações, por contenderem com interesses coletivos públicos subjacentes à titularidade dos recursos dominiais.


3.ª- Tendo em conta o pedido efetuado pela Autora (doravante, A) na presente ação, o qual é oposto à defesa de interesses coletivos públicos subjacentes à titularidade dos recursos dominiais, dita o artigo 15.º, n.º 1, da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, que “1 - Compete aos tribunais comuns decidir sobre a propriedade ou posse de parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, cabendo ao Ministério Público, quando esteja em causa a defesa de interesses coletivos públicos subjacentes à titularidade dos recursos dominiais, contestar as respetivas ações, agindo em nome próprio.”.


4.ª- Nos termos do artigo 4.º, n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais (DL n.º 34/2008, de 26 de fevereiro) “1 - Estão isentos de custas: O Ministério Público nos processos em que age em nome próprio na defesa dos direitos e interesses que lhe são confiados por lei, mesmo quando intervenha como parte acessória e nas execuções por custas e multas processuais, coimas ou multas criminais.”


5.ª- Tendo em conta o exposto está o Ministério Público isento do pagamento de custas, tanto na ação, que correu termos na 1.ª instância, como na apelação e agora na apresentação do presente recurso de revista, pelo que o douto acórdão recorrido não podia ter condenado o réu “Estado” em custas, na ação e apelação, devendo a decisão, nessa parte, ser reformada em termos que isente o réu Estado/Comunidade – Ministério Público, agindo em nome próprio, das custas, tanto da ação, como da apelação, o que se REQUER.


– B e C –


6.ª- O presente recurso de revista é interposto e admissível nos termos dos artigos 671.º, n.º 1; 674.º, n.º 1, alíneas b), c), e n.º 3 do mesmo artigo, artigo 682.º, n.º 2 e n.º 3, por incidir sobre acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, e que conheceu do mérito da causa, violando ou errando na aplicação de normas de direito adjetivo ou processual e normas de direito substantivo ou material, como de seguida se alegará.


7.ª- Acresce que não se está perante o obstáculo à revista por via da “dupla conforme”.


Sendo o presente recurso de revista admissível, fundamenta–se no seguinte:

8.ª- Na presente ação declarativa constitutiva, sob a forma única, que tem por objeto o reconhecimento da propriedade privada da Autora sobre um prédio sito em área de domínio público marítimo, mais propriamente sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo ... sob o n.º ...38, freguesia ..., concelho ..., com a configuração que concretiza, fixando a linha de delimitação do prédio como aquela que resulta da ligação do marco 3, definido pelo processo de delimitação n.º 3922/86 com o outro marco que identifica, foi proferida sentença pela 1.ª instância (Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo Central Cível ... - Juiz ...) que no respetivo dispositivo decidiu julgar a ação improcedente por não provada, absolvendo o réu do pedido.


9.ª- Da sentença proferida apelou a A, invocando erro de julgamento e assentando a sua impugnação na prova documental junta aos autos, essencialmente dirigida à impugnação de toda a matéria de facto dada por não provada e que, naquela sentença, elencou os factos não provados nas alíneas a) a g) da fundamentação de facto, designadamente, para o que aqui interessa quanto ao objeto do recurso, a alínea a) dos factos não provados, que ditou como não provado que o prédio da A resultasse da desanexação do prédio rústico, descrito sob o nº ...11 da extinta Conservatória do Registo ..., que consta de terras de semeadura, figueiras e mato, no sítio da T..., freguesia ..., e confronta do Norte com CC, do nascente com DD, do sul com o mar, e do poente com estrada que vai para o povo de ..., sendo que esta descrição foi feita à vista de uma escritura de aforamento, celebrada em 21 de agosto de 1829, um formal de partilha julgado por sentença em vinte e cinco de Janeiro de 1859 e de declaração suplementar assigada e apresentada por AA, como procurador de BB, naquela Conservatória sob o número 1 do diário, em 6 de fevereiro de 1869.


10.ª-Neste douto Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 5–11–2020, deu–se por assente a condição e dúvida necessária para determinar a produção de novos meios de prova, nos termos do artigo 662.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Civil, dúvida essa fundada na consideração de que “… seria de concluir que este prédio fazia anteriormente parte do prédio rústico nº ...11, do qual foi desanexado, como vários outros prédios, nomeadamente os que respeitam aos processos nºs 3922 e 3933 a que aludimos supra. Da análise da vasta documentação junta ao processo não é possível afirmar, sem margem de dúvida, que assim é, mas trata-se de dúvida assim como outras - que pode muito bem ser dissipada com a realização de uma perícia, a qual, aliás, foi requerida pela autora/recorrente logo na petição inicial, com indicação do respetivo objeto, e que não foi realizada, sendo indiferente para o caso que no início da audiência final, o mandatário da autora tenha prescindido da prova pericial por entender ser bastante a prova documental.”. Veio, então, a ser ordenada uma 1.ª perícia e depois esclarecimentos sobre ela e mais tarde uma 2.ª perícia, como consta dos autos e aqui se dão por reproduzidas.


11.ª-Na 1.ª perícia, cujos quesitos eram os factos dados como não provados na 1.ª instância, os peritos responderam de forma unânime ao quesito a) que: “Face à documentação disponibilizada, os peritos entendem não ter elementos suficientes para concluir que o prédio com o n.º ...38 provém do prédio com o n.º ...11. A descrição do prédio rústico n.º ...11 não se mostra suficientemente clara e inequívoca para conseguir localizar no espaço os seus limites e forma geométrica.”, conclusão que reiteraram nos esclarecimentos prestados a fls. 548–549.


12.ª-Na 2.ª perícia, tendo o mesmo objeto, os peritos do tribunal e do réu responderam de forma maioritária ao quesito a) da seguinte forma: “Relativamente ao prédio descrito sob o n.° ...11 do livro B2 fls. 155.° V da extinta Conservatória do Registo ..., após a consulta do processo e, também, da consulta efetuada no Arquivo Distrital ..., os peritos não encontraram prova documental que, inquestionavelmente, permita identificar com um mínimo de clareza: - O limite nascente deste antigo prédio; - A sua forma geométrica e área; -Qualquer associação ao prédio atual nº 4838, da freguesia ..., concelho ..., através de sucessivos atos de registo predial (por desanexação) ou mesmo por transmissão sucessiva de titulares inscritos. Na apreciação que efetuou no âmbito do processo de delimitação do domínio público marítimo (DPM) 3922/86, a própria Comissão do Domínio Público Marítimo (CDPM) levantou dúvidas quanto ao limite nascente do prédio n.° ...11, mas, mesmo assim, concluiu por remeter o processo para delimitação no terreno por uma específica comissão de delimitação a nomear para este processo a qual encarregou de esclarecer as dúvidas suscitadas no parecer. Mas no seu parecer final, 5237, de 13 de abril de 1989, em que apreciou a proposta desenvolvida e apresentada pela comissão de delimitação, a CDPM acabou por aceitar como provado que o prédio nº ...97, na confrontação com o qual fora requerida a delimitação DPM em apreço e que fica situado a nascente e é contíguo ao prédio objeto da presente ação nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, provém do referido prédio nº ...11. A CDPM aceitou também (cfr. parecer 5078, de 7 de maio de 1987) a posse privada, em data anterior a 1864, das parcelas da margem inseridas nos prédios descritos na CRP ... sob os nºs ...88 e ...58, situados a poente do prédio objeto da presente ação judicial, mas que com este não são contíguos. Contudo, os peritos desconhecem em que documentos ou outros dados a CDPM se baseou para tal, os quais também não são mencionados no referido processo CDPM. Assim sendo consideram os peritos não poder assumir que o prédio referido de 1. a 3. resulta da desanexação do prédio referido em 4.”.

Tendo o perito da A, de forma minoritária, dado a seguinte resposta: “Resposta discordante do perito EE: Atendendo a que o prédio em causa se situa, fisicamente, dentro do prédio referido em 4 (e acima transcrito), por estar situado ente a sua extrema a poente e o prédio inscrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...97, entende-se que o prédio em causa só poderá ter resultado, e portanto conclui-se que resultou, de desanexação do prédio referido em 4.”.


13.ª-No douto acórdão sob recurso foi considerado, quanto à matéria de facto controvertida e quanto à valoração da prova constante dos autos, incidindo principalmente sobre a valoração a prova pericial determinada (1.ª e 2.ª perícias e esclarecimentos complementares) e sobre a documentação dos          autos, designadamente os referidos processos de delimitação do DPM nºs 3922/86 e 3933/85, mas que não respeitavam ao prédio da A, o seguinte: “… a posição unânime dos peritos na primeira perícia, e maioritária na segunda perícia, não exclui que o prédio da autora resulta da desanexação do prédio nº ...11, sucedendo apenas que os senhores peritos têm dúvidas ou reservas que assim seja, em virtude de não encontrarem arrimo na prova documental que, inquestionavelmente, o demonstre. Entendemos, porém, analisando toda a prova documental existente nos autos - incluindo a certidão integral do apenso relativo aos processos de delimitação do domínio público marítimo nºs 3922/86 e 3933/86 -, entendemos ser de acolher a posição minoritária do perito da autora na segunda perícia realizada (…).(…)Assim, reconhecendo embora que tal desanexação foi assumida no âmbito dos processos de delimitação do domínio público marítimo a que vimos aludindo, dizem que desconhecem em que documentos ou outros dados se baseou a CDPM para tal conclusão. Ora, os documentos em que a CDPM se baseou para emitir o seu parecer sobre tal matéria, são os que constam dos respetivos processos, não dizendo os senhores peritos que documentos necessitariam para responder afirmativamente ou negativamente à questão em apreço. Além de se tratarem de processos oficiais, tramitados de forma minuciosa e da vasta documentação existente nos mesmos, importa ainda ter presente que as comissões de delimitação nomeadas para o efeito em ambos os processos (3922/86 e 3933/8), deslocaram-se ao local da delimitação, podendo constatar a realidade física existente. Não se vislumbram, pois, razões para duvidar das conclusões e decisões tomadas pela CDPM, por unanimidade, homologadas pelo Chefe de Estado Maior da Armada no exercício das suas competências. Assim, eliminam-se as alíneas a) e b) dos factos não provados e aditam-se ao elenco dos factos provados os seguintes pontos: «10. O prédio referido de 1. a 3. resulta da desanexação do prédio referido em 4. (…)”.


14.ª-Na sequência da alteração da matéria de facto, dando por provada toda a matéria dada por não provada pela 1.ª instância, em especial a alínea a) dos factos aí dados por não provados, o acórdão recorrido concluiu estar provado que o prédio da A “… resulta da desanexação do prédio rústico, descrito sob o nº ...11.”; e, além do que demais considerou provado, deu provimento ao recurso, revogou a sentença recorrida e condenou o réu “Estado” a reconhecer a propriedade privada do prédio da A.


15.ª-Como nos parece resultar evidenciado do acórdão recorrido, ainda que sem prova documental bastante e direta de que o prédio da A tivesse resultado da desanexação do prédio descrito sob o n.º ...11, a decisão não atende às conclusões dos peritos, na 1.ª perícia por unanimidade e na segunda por maioria, segundo as quais a documentação disponibilizada não é suficientemente clara e inequívoca para concluir que o prédio da A provém do prédio com o n.º ...11, e, como tal, a decisão não cumpriu a regra do ónus da prova (artigo 342.º do CC e artigo 15.º, n.º 2, da Lei n.º 54/2005, de 15–11), i.e., não cumpriu com a decisão que se impunha contra a parte onerada com a prova do facto constitutivo, antes considerando suficiente o que a Comissão do Domínio Público Marítimo havia concluído nos processos n.ºs 3922/86 e 3933/86, que não respeitavam ao prédio da A, mas a um outro, ainda que os peritos desconhecessem com base em que documentos a comissão chegara às conclusões a que chegou nesses processos.


16.ª-Por outro lado, e apesar da resposta unânime e maioritária dos peritos nas duas perícias e esclarecimentos ordenados, o acórdão recorrido identificou uma inconclusividade da resposta dos peritos, tanto na 1.ª, como na 2.ª perícia, embora nesta com divergência do perito da A, para concluir que não estava excluída uma resposta positiva ao quesito a), assentando essa resposta positiva na prova documental existente nos autos, designadamente a certidão integral do apenso relativo aos processos de delimitação do domínio público marítimo n.ºs 3922/86 e 3933/86, que, sublinhe–se, respeitavam a outros prédios que não o da A, acolhendo exclusivamente, em coadjuvação, a posição minoritária do perito da A ao quesito a), que, no mínimo, é especulativa.


17.ª-Ou seja, deu por relevante não só a resposta minoritária do perito da A ao quesito a) na 2.ª perícia, como deu por relevante e bastante o que antes não tinha dado por inequívoco e isento de dúvida, i.e., a prova documental existente nos autos, que era a mesma desde sempre e sobre a qual recaiu o juízo de equivocidade e não concludência que justificou a dúvida fundada para ter sido ordenada a produção de prova nos termos do artigo 662.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil!


18.ª- Neste particular, o acórdão é ambíguo, obscuro e ininteligível e, como tal, nulo – artigos 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 4, 2.ª parte, e 679.º, artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil), sindicável por via de recurso de revista, nos termos dos artigos 674.º, alínea c), e 615.º, n.º 4, do Código de Processo Civil.


19.ª-Por outro lado, o acórdão não só não atende e não rebate a conclusão unânime da 1.ª perícia quanto ao quesito a) e maioritária da 2.ª perícia quanto ao mesmo quesito, como parece ignorar que, para a elaboração do seu relatório, os peritos não só procederam, no local, à identificação do prédio em causa e sua envolvente próxima, tendo executado correspondente levantamento topográfico, como desenvolveram diligências, nomeadamente junto do Arquivo Distrital ..., todavia sem sucesso, informação e razão de ciência que o tribunal a quo não teve, nem tinha que ter, pelo que outra coisa não podia ser aceite senão as respostas unânimes ou maioritárias apresentadas pelos peritos.


20.ª-Ora, a avaliação e valoração da prova pericial em que se ancorou a decisão recorrida – falamos da resposta ao quesito a) dada pelo perito da A, minoritariamente – não tem demonstrados os critérios em que tal preferência opinativa assentou, designadamente, porque é que a profissionalidade do perito da A era maior que a dos demais peritos (na 1.ª e 2.ª perícias efetuadas e nas declarações complementares), porque é que o seu curriculum seria mais qualificado que o dos demais, que conhecimentos e experiência profissional o destacava dos demais ou que cargo ocupa e que trajetória científica ou técnica tem em relação aos outros peritos, cuja opinião fundamentada foi desvalorizada, a que acresce o facto de o iter técnico que conduziu àquela posição minoritária, que o tribunal a quo aceitou como a mais convincente, não ter assentado em nenhuma metodologia evidenciada e sindicável, mas numa extrapolação especulativa e opinativa, que não factual, como acima se assinalou.


21.ª-Vale por dizer que se não encontram demonstrados na decisão recorrida os critérios objetivos, o rigor do método, a veracidade das premissas ou a consistência das conclusões do perito da A, em suma, a sua validade, para justificar a valoração excludente da opinião unânime ou maioritária dos demais peritos quanto ao quesito a), pois o laudo prevalecente era o da 1.ª e 2.ª perícias quanto à resposta ao mesmo quesito. Deste modo, o acórdão padece de omissão de pronúncia (artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil), sindicável por via de recurso de revista, nos termos dos artigos 674.º, alínea c), e 615.º, n.º 4, do Código de Processo Civil e, em conformidade, é nulo.


22.ª-Tal procedimento motivacional ignora as regras relativas ao standard da prova, por não haver na decisão recorrida, quanto à parte em análise, corroboração bastante para a hipótese que acolhe [prova do quesito a)]: a hipótese de que o quesito a) (não haver prova documental de que o prédio da A tenha sido desanexado do prédio n.º ...11 ou que tenha qualquer associação com ele por desanexação ou transmissão, nem qual o «limite nascente desde prédio n.º ...11, ou a sua forma geométrica) e o facto não provado a) da decisão de primeira instância fosse uma hipótese verdadeira conta com um grau de confirmação maior face à hipótese contrária, que apesar disso foi a acolhida no acórdão, e portanto, deveria o tribunal a quo ter preferido a hipótese mais provável, assente na resposta unânime ou maioritária dos peritos ao quesito a), por ser a que se apresentava mais provável de ser a verdadeira por via da probabilidade prevalecente de o ser, não havendo, como não havia, prova documental suficiente nos autos que infirmasse essa prevalência, pelo que foi violado o disposto no artigo 489.º do Código de Processo Civil, que impõe a validação e valoração conjunta das duas perícias.


23.ª-Para mais, estando–se, como no caso estamos, perante direitos indisponíveis, nos quais o standard da prova exigível nem sequer pode ser o standard da probabilidade prevalecente, comummente aceite, mas um standard mais exigente, de prova clara e convincente que, no caso dos autos, ficou muito longe de ser atingido quando a decisão recorrida acolheu a posição minoritária do perito da A na resposta ao quesito a) na 2.ª perícia, desvalorizando a posição unânime ou maioritária dos demais peritos na resposta ao mesmo quesito na 1.ª e 2.ª perícias, aliado esse facto à inexistência de prova documental inequívoca do direito da A, resultando evidenciada a violação ou errada aplicação das leis do processo no que se refere à observância das regras sobre a prova pericial e respetiva valoração e sobre a não observância das regras relativas ao ónus da prova, sindicável em recurso de revista, nos termos do artigo 674.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil.


24.ª-Sendo a decisão do tribunal a quo resultado exclusivo do uso de presunções judiciais, valorando meios de prova sujeitos à sua livre apreciação, aí se incluindo documentos que não tinham que ver com o prédio da A ou que demonstrassem que o prédio desta resultava da desanexação do prédio n.º ...11, que atestassem o respetivo limite nascente, a sua forma geométrica e área ou que tivessem qualquer associação ao prédio da A através de sucessivos atos de registo predial ou por transmissão de titulares inscritos (quesito e facto não provado a) na sentença de 1.ª instância e aditado, por provado, pelo tribunal a quo como facto 10.º), o acórdão recorrido exerceu um poder–dever cognitivo que, com o devido respeito, não observou os parâmetros formais e balizadores da respetiva disciplina processual quanto à análise crítica da prova que efetuou.


25.ª-O tribunal a quo usou erradamente de presunções judiciais, contrárias ao que da prova disponível e analisada resultava e mesmo contra essa prova, sendo manifesta a ilogicidade do juízo efetuado para dar por provado o facto a) dos factos não provados, que veio a ditar como provado, aditando–o como facto 10.º, violando o disposto nos artigos 349.º e 351.º do Código de Processo Civil, sindicável por via deste recurso de revista.


26.ª-Mas não é só o pilar da valoração errada da prova pericial ordenada em que assenta a decisão recorrida que é criticável. É–o também o segundo pilar em que o tribunal a quo se apoia para a decisão de mérito, o qual consiste na valoração da documentação existente nos autos, até então considerada insuficiente como constitutiva do direito da A, designadamente a que resulta de certidão integral do apenso aos processos de delimitação do DPM n.ºs 3922/86 e 3933/86, mas que não respeitavam ao prédio dos autos, tendo por aí o acórdão recorrido entrado, mais uma vez, e agora decisivamente, no terreno proibido da violação das leis do processo.


27.ª-Considerou o acórdão recorrido que para prova documental do direito da A, designadamente a que figurava nos factos não provados da alínea a) da decisão de 1.ª instância, bastavam os documentos em que a CDPM se baseou para emitir o seu parecer sobre a origem e localização do prédio da A em relação ao prédio n.º ...11, pois fê–lo no âmbito de processos oficiais, tramitados de forma minuciosa e da vasta documentação existente nos mesmos, com deslocações ao local, pelo que o tribunal a quo não vislumbrou razões para duvidar das conclusões e decisões tomadas pela CDPM, por unanimidade, homologadas pelo Chefe de Estado Maior da Armada no exercício das suas competências.


28.ª-Ou seja, o tribunal a quo valorou ilegitimamente como prova documental o que não era mais do que “prova” documentada, não tendo esses processos de delimitação do domínio público n.ºs 3922/86 e 3933/86 qualquer valor probatório extraprocessual que pudesse colmatar a ausência de prova documental inequívoca de que o prédio da A foi desanexado do prédio n.º ...11.


29.ª-Ora, a alegada prova que resultava dos processos de delimitação do domínio público n.ºs 3922/86 e 3933/86, que não respeitavam ao prédio da A, não foi produzida perante quem, na presente ação, tem a posição de demandado ou réu, o Ministério Público agindo em nome próprio, pelo que o Ministério Público, ora recorrente, não teve a faculdade de participar na constituição dessa alegada prova aqui valorada na decisão sob recurso, nem consta que nesses processos tivesse intervindo em qualquer qualidade processual.


30.ª-Também desses processos de delimitação do DPM não resulta que, quem neles opinou, tenha prestado qualquer juramento, que as suas conclusões tenham sido submetidas a esclarecimentos ou ao princípio do contraditório a que se aludiu, pelo que não são, e nunca serão, resultados que representem diligências com carácter ou intencionalidade probatória.


31.ª-Razão pela qual se tem que concluir que não foi observada a necessária audiência contraditória da parte contra a qual esses processos de delimitação do domínio público marítimo foram aqui apresentados, sendo que naqueles processos nem sequer a A teve intervenção, muito menos a teve o Ministério Público, não havendo, pois, identidade de sujeitos com a presente ação, o que impõe a conclusão de que não houve contraditório que garantisse ulterior aproveitamento processual da alegada prova constituenda (se é que alguma vez o poderia ser), não sendo admissível, também, invocar qualquer contraditório diferido, o qual não colhe apoio no artigo 421.º do Código de Processo Civil.


32.ª- O registo escrito das diligências e conclusões da CDM naqueles processos não constitui prova documental porque não representa o facto constituendo e a ser reconstruído na presente ação, qual seja, o de que o prédio da A proveio por desanexação do prédio n.º ...11. É apenas e só um registo escrito de diligências, análise e/ou valoração técnica da CDM que comprova as conclusões a que chegou naqueles processos, os quais, repita–se, não têm por objeto o prédio da A. É prova com a forma de documento escrito, mas não é prova documental.


33.ª-Não podiam, assim, as conclusões e pressupostos a que chegou a CDM nesses processos serem tidas como prova documental, mas única e exclusivamente como prova documentada ou materializada em documento escrito, mas que, não tendo sido objeto de audiência contraditória perante quem figura nesta ação como parte (o Ministério Público, agindo em nome próprio), não passa pelo crivo dos requisitos exigidos pelo artigo 421.º do Código de Processo Civil.


34.ª-As fontes da convicção do tribunal a quo não foram sequer as diligências e a alegada prova disponibilizada nesses processos de delimitação do DPM, antes foi o seu relato e as conclusões ou razões da CDM nesses processos, que não podem ser feitas valer pela A e muito menos podia o tribunal tê–las transmutado em prova documental, exigida pelo artigo 15.º, n.º 2, da Lei n.º 54/2005, de 15–11, ou em fonte da respetiva convicção decisória.


35.ª-De tudo resulta que a alegada prova documental reconhecida naqueles processos de delimitação do DPM não é mais do que prova pessoal, não podendo ser transfigurada em prova documental extraprocessualmente válida.


36.ª-Tal alegada prova documental resultante dos processos de delimitação do DPM não encontra qualquer apoio no regime jurídico–processual que está previsto no artigo 421.º do Código de Processo Civil. Portanto, não tem a eficácia probatória exigida pela Lei n.º 54/2005.


37.ª-Só poderia, eventualmente, ser valorada como princípio de prova, o qual não é suficiente para estabelecer, por si só, qualquer prova constituenda de que o prédio da A resultava de desanexação do prédio n.º ...11, para mais quando naqueles processos de delimitação do DPM não estava em causa o prédio da A.


38.ª-Do que vem de dizer–se mostra–se violado o disposto no artigo 421.º do Código de Processo Civil, pois o tribunal a quo contornou o seu regime processual, valorando sob as vestes de prova documental o que não passava de prova documentada, de natureza pessoal, mas sem contraditório disponibilizado à parte contra a qual foi utilizada nestes autos, resultando, mais uma vez, evidenciada a violação ou errada aplicação das leis do processo no que se refere à observância das regras sobre a prova extraprocessual e a prova documental e respetiva valoração, sindicável em recurso de revista, nos termos do artigo 674.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil.


39.ª-Portanto, era “prova” que não podia ser utilizada, valorada e tida por co–decisiva na solução de mérito, tendo um eventual valor de princípio de prova, mas insuficiente para estabelecer qualquer juízo de aceitabilidade final, muito menos se coadjuvada com uma opinião minoritária do perito da A. na 2.ª perícia, mas que não suplantam, uma e outra, e conjugadas, a exigência de prova documental de que o prédio da A provinha da desafetação do prédio n.º ...11.


40.ª-Constata–se, assim, que a valoração dos processos de delimitação do DPM a que a decisão faz referência, constituindo um eventual e mero princípio de prova, em conjugação com a opinião minoritária do perito da A. na resposta ao quesito a), redundam numa decisão assente em presunções judiciais, só admissíveis nos casos em que seja admitida prova testemunhal, o que está liminarmente proibido e arredado pelo disposto no artigo 15.º, n.º 2, da Lei n.º 54/2005, de 15–11, no qual se exige prova documental do facto constitutivo invocado pela A., i.e, de que o prédio da A. era, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868, mais uma vez se evidenciando a violação do disposto nos artigos 351.º e 349.º do CC.

Sem prescindir,


41.ª-De tudo o que vem de ser dito pode, no final das contas, vir a resultar a interpretação do venerando tribunal de revista que se está perante um erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa e, como tal, não é passível de recurso – artigos 674.º, n.º 3, 1.ª parte, 682.º, n.º 2, e 662.º, n.º 4, do Código de Processo Civil.


42.ª-Porém, o quadro factual e jurídico em que se apresenta esta parte do recurso resulta da constatação de que o Tribunal da Relação de Évora usou os seus poderes de ordenar a produção de novos meios de prova, por haver dúvida fundada sobre os factos não provados pela 1.ª instância, ainda que não houvesse prova documental ou outra que impusesse decisão diversa, com base no artigo 662.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil, tendo ordenado duas perícias e esclarecimentos complementares dos peritos à primeira e segunda, estes prestados em audiência de julgamento.


43.ª-Tratou–se de uma produção de prova ex novo, a qual veio a determinar de forma essencial o sentido da decisão de revogação da sentença de 1.ª instância; e, como vimos, foi sobre a essencialidade dessa prova – ainda que sobrelevando o parecer minoritário do perito da A na 2.ª perícia (em moldes acima impugnados) – que assentou a conjugação efetuada entre ela e a prova documental existente nos autos, por si só insuficiente para a decisão de procedência da ação, mas que ainda assim conduziu à decisão sob recurso.


44.ª-Ora, a entender–se que neste quadro do exercício dos poderes da Relação para ordenar a produção de novos meios de prova, que depois aprecia e valora, pela primeira vez, no âmbito da intervenção das instâncias, estamos simplesmente perante um erro na apreciação das provas e na fixação dos atos materiais da causa e, como tal, insindicável através de recurso de revista, então existe uma inconstitucionalidade dos artigos 674.º, n.º 3, 1.ª parte, 682.º, n.º 2, e 662.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, já que o tribunal a quo, neste caso, julga sem recurso possível.


45.ª-Impossibilitar o recurso quanto aos aspetos que submetemos à apreciação do venerando Supremo Tribunal de Justiça, por via da aplicação das normas citadas, que o vedam, é violar a diretriz constitucional do direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, no qual estão refletidos os princípios estruturantes de um Estado de Direito democrático, designadamente os princípios da igualdade, da proporcionalidade e da proteção da confiança, pois o respeito e observância do processo equitativo impõe que as normas processuais não impeçam os interessados de usar meios efetivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos (cf. Ac. n.º 266/15, do TC) ou que os representem ou defendam, como no caso cabe ao Ministério Público.


46.ª-Deste modo, e nesta conformidade e base, devem as normas dos artigos 674.º, n.º 3, 1.ª parte, 682.º, n.º 2, e 662.º, n.º 4, do Código de Processo Civil serem julgadas inconstitucionais, por imporem um ónus injustificado e desproporcional decorrente da inadmissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de decisão da Relação que use poderes de ordenar a produção de prova pericial nova, sem a qual não poderia fazer recair o essencial do juízo probatório que conduziu, de facto, ao julgamento de mérito da ação e da sua procedência, revogando a decisão contrária da 1.ª instância, e em consequência, desaplicadas essas normas, ser admitido, nesta parte, apreciado e julgado, o recurso que com estas alegações se interpõe.


Sem prejuízo, e dando seguimento às conclusões do que se alega na motivação,

47.ª-Como vimos, o acórdão recorrido veio a concluir que a prova documental existente nos autos, que incluía a certidão do apenso relativo aos processos de delimitação do domínio público marítimo n.ºs 3922/86 e 3933/86, os quais não respeitavam ao prédio em causa nos autos, conjugada com a posição minoritária do perito da A na 2.ª perícia, admitia o entendimento de que essa posição minoritária era a correta e processualmente verdadeira, aliada ao facto de que a documentação existente naqueles processos de delimitação do DPM levaram a decisões tomadas pela CDPM que o tribunal a quo não via razões para duvidar, o que mostra o equívoco e a ilegalidade manifestas quanto ao valor extraprocessual dessa alegada prova documental, como acima defendemos.


48.ª-Que a prova documental existente nos autos era manifestamente insuficiente para reconhecer o direito da A é conclusão que não nos merece dúvida, assim como não merece dúvida a inviabilidade de serem usadas presunções judiciais na valoração daquela prova, conjugada com a resposta minoritária do perito da A ao quesito a), pois uma e outra não obedecem à disciplina jurídica da lei de processo e da lei substantiva sobre a prova, nem respeitam raciocínios lógicos ou regras da experiência comum, pelo que não eram (nem são) prova bastante para a procedência da ação.


49.ª- Tudo redunda na constatação de que continua sem demonstração documental inquestionável que o prédio da A resultou da desanexação do prédio n.º ...11.


50.ª-Ao ter decidido como decidiu, o douto Tribunal da Relação de Évora, apesar de continuar confrontado com a inexistência de qualquer prova documental que, de forma expressa e inequívoca, correlacionasse este prédio da A com o prédio n.º ...11, concluiu, contra Direito, ao ditar, sobre o mérito da ação, a procedência do pedido da A.


51.ª-Ou seja, contra Direito, o modo como decidiu consente, admite e advoga que pode ser dispensada a demonstração documental, fundamental, de que o atual prédio da Autora terá resultado de desanexação ou sucessiva transmissão do prédio n.º ...11, este objeto de propriedade particular desde 1854 ou 1868.


52.ª-Porém, tal decisão não é consentida pela lei, porque o artigo 15.º, n.º 2, da citada Lei 54/2005, exige, na base, prova documental (e não outra, seja ela pericial ou por presunções) de que o prédio da autora era, por título legítimo, objeto de propriedade particular antes 31–12–1854 ou antes de 22–3–1868 e que, por igual prova documental o histórico de proveniências que explica a configuração atual é demonstrado de modo a permitir estabelecer a relação física causal entre o prédio mais remoto em termos de propriedade privada e o atual.


53.ª-A decisão recorrida, assentou em prova que não a documental, em sentido próprio, que em várias passagens reconheceu não existir de forma inequívoca, violando regras de prova vinculada como a que, nos termos do artigo 15.º, n.º 2, da citada Lei 54/2005, impõe a apresentação de prova documental.


54.ª-Conforme se procurou demonstrar, efetivamente, não existem fundamentos legais e processualmente válidos que permitam concluir que a A, nos termos do n.º 2 do artigo 15.º, da Lei 54/2005, de 15-11, provou documentalmente que o terreno em questão era, por título legítimo, objeto de propriedade particular antes de 1854 ou 1864.


55.ª-Aquilo de que documentalmente se dispõe nos autos, como se procurou demonstrar, e que o Tribunal da Relação de Évora aceitou como evidenciado para exercer os poderes de ordenar a produção de novos meios de prova, não chega para os efeitos pretendidos pela A. e para a procedência da causa de pedir em que baseou a ação e o respetivo pedido (artigo 15.º, n.º 2, da Lei 54/2005), nem para a resposta cabal e positiva aos temas da prova que limitaram o litígio às questões essenciais e orientaram a produção da prova (cf. artigos 596.º, 410.º, 516.º, 607.º, n.º 2 e n.º 4, todos do Código de Processo Civil), já que não se encontra estabelecida a conexão/identidade entre o prédio da A e o n.º 211 e, como tal, não existe sustentáculo documental suficiente para concluir que o prédio em causa era, por título legítimo, propriedade privada antes de 1854 ou 1864, não estando ilidida a presunção de dominialidade pública conferida após essa data ao prédio em questão, decaindo, por prejudicada e supérflua, a prova de que o prédio em questão permaneceu ininterruptamente na propriedade privada depois daquela data.


56.ª-Ao ter procedido como procedeu, o douto Tribunal da Relação de Évora, exorbitando dos seus poderes, veio a proferir decisão que, em qualquer caso, se fina ilegalmente na não observância dos parâmetros formais da disciplina processual aplicável, errando de direito na aplicação da lei de processo, pois outra deveria ser a solução jurídica do caso, segundo os ditames impostos pelo ónus da prova que recaía sobre a A, o standard da prova inerente a direitos indisponíveis, a prova tarifada exigida e que estaria de acordo com os requisitos que a própria Relação entendeu necessários à procedência do pedido – artigo 674.º, n.º 3, ex vi artigo 682.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.


57.ª-Pelo que, além do que foi acima sustentado, o douto Tribunal da Relação de Évora violou o disposto no citado artigo 15.º, n.º 2, da Lei n.º 54/2005, de 15–11, já que da prova produzida e valorável segundo a correta aplicação da lei, não resultava possível a aplicação da citada norma.


58.ª-Sendo legalmente exigido documento necessário para a prova de certo facto, e não existindo qualquer prova documental que, de forma expressa e inequívoca, sustente o direito da A, e que o douto Tribunal da Relação de Évora também não deixou de admitir amíude, a decisão do douto Tribunal da Relação de Évora, ao ditar a procedência da ação, usou poderes que ultrapassaram os limites traçados pela lei para os exercer, devendo o venerando Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito da presente revista, constatar o incumprimento dos deveres legais a que o douto Tribunal da Relação de Évora estava obrigado e substituir–se no seu cumprimento, resolvendo assim as questões relativas às invalidades do douto acórdão recorrido e à inobservância de normas e princípios fundamentais do processo que devem ser atendidas, sendo que umas e outras redundam numa errada aplicação do direito e da lei de processo (artigos 682.º, n.º 2, 674.º, n.º 1, alínea b), e n.º 3, do Código de Processo Civil).


E. PEDIDO


Pelo exposto, conforme o Direito e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido provimento ao presente recurso, requerendo–se que o Venerando Supremo Tribunal de Justiça:

- Atenda ao requerimento de reforma da decisão recorrida quanto a custas.

- Supra as nulidades invocadas – artigo 684.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

- Reconheça e declare a invocada violação e errada aplicação da ei de processo e,

- Reconhecendo a violação de disposição expressa de lei que exige certa espécie de prova para a existência do facto, revogue o acórdão recorrido e em sua substituição decida que, face à prova a atender, o pedido da A. é improcedente – artigos 674.º, n.º 3, ex vi artigo 682.º, n.º 2, do Código de Processo Civil e artigo 15.º, n.º 2, da Lei n.º 54/2005, de 15–11.


*


Contra-alegou o Recorrido Glenmajor Limited, pugnando pela improcedência do recurso, com a manutenção do acórdão recorrido.


Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO


Nada obsta à apreciação do mérito da revista.

Com efeito, a situação tributária mostra-se regularizada, o requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC). Para além de que tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).


**


Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

- Da nulidade do acórdão por ambiguidade, obscuridade e ininteligibilidade;

- Da nulidade do acórdão por omissão de pronúncia;

- Da violação de regras de direito probatório material (valoração de um relatório pericial e uso errado de presunções judiciais);

- Do erro na apreciação da prova;

- Da inconstitucionalidade das normas constantes dos arts. 674.º, n.º 3, 1.ª parte, 682.º, n.º 2, e 662.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, por violação do direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.


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§ Da suscitada “reforma da decisão quanto a custas do réu “Estado””.

Naturalmente que só importa apreciar da bondade da decisão de custas caso a revista improceda. O que só se aferirá a final.


***


III – FUNDAMENTAÇÃO


III. 1. FACTOS PROVADOS

É a seguinte a matéria de facto provada (fixada na Relação, após impugnação em recurso – os factos assinalados a negrito foram aditados pela Relação):

1. Encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º...38 o prédio a que se refere a certidão permanente junta como doc. 1 da qual entre o mais, que se dá por integrado e reproduzido, resulta: “DESCRIÇÃO EM LIVRO: N.º5895, LIVRO N.º15 URBANO SITUADO EM: Vale ..., ... ou Praia ... ÁREA TOTAL: 13242M2 ÁREA COBERTA:1424M2, ÁREA DESCOBERTA 11818M2 MATRIZ: 1781 NATUREZA URBANA COMPOSIÇÃO E CONFRONTAÇÕES: edifício destinado a exploração hoteleira. Estalagem em regime de propriedade total (…). Norte Estrada ...; sul rochas de praia; nascente Glenmajor, Ltd; poente: FF. (…)”– cfr. certidão permanente que no mais se dá por integrada e reproduzida.

2. Provado apenas que da certidão referida em 1. mais resulta “(…) INSCRIÇÕES AVERBAMENTOS ANOTAÇÕES AP. 3 de 1987/01/05     - Aquisição CAUSA: Compra SUJEITO(S) ACTIVO(S): **GLENMAJOR LIMITED (…) SUJEITO(S) PASSIVO(S) : ** KLAUS JUNG ** RENATE JUNG (Reprodução da inscrição ...51 a fls. 96, do Livro G35) (…)” – cfr. certidão permanente que no mais se dá por integrada e reproduzida.

3. O prédio referido em 1. e 2. está inscrito na matriz predial sob o n.º...81, freguesia ..., concelho ....

4. Encontrava-se descrito sob o n.º...11 do livro B2 fls. 155.ºV da extinta Conservatória do Registo ... o “prédio rústico que consta de terras se semeadura, figueiras e mato, no sítio da T..., freguesia ..., confronta do Norte com CC (…), do nascente com DD (…), do sul com o mar, e do poente com estrada que vai para o povo de ... (…) Esta descrição foi feita à vista de uma escriptura de aforamento, celebrada em vinte e um de Agosto de mil oito centos sessenta e oito, digo, centos vinte e nove, pelo tabelião GG, outra de venda de foro, celebrada em vinte e um de Abril de mil oito centos e trinta pelo tabelião (…), um formal de partilha julgado por sentença em vinte e cinco de Janeiro de mil oito centos oitenta e oito e de declaração suplementar assignada e apresentada por AA como procurador de BB, n’esta conservatória sob o número um do diário, em o dia seis de Fevereiro de mil oito centos sessenta e nove. As escripturas e formal de partilha foram entregues ao apresentante e a declaração e procuração ficam archivadas n’esta conservatória (…). Fica o prédio lançado no índice (…) a páginas cento e noventa, Declaro em tempo que o formal de partilha acha-se archivado no cartório do tabelião (…) da Cidade ... (…)” - cfr. doc. de fls. 29 e ss. que no mais se dá por integrado e reproduzido.

5. Provado apenas que correu termos processo CDPM n.º3922/86 no qual figura como “(…) requerente: HH auto publicado no DR, III série, n.º181, de 1989.08.08”, mais resultando do referido Diário da República publicação nos termos da qual, que no mais se dá por integrado e reproduzido: “Nos termos do n.º4 do artigo 10,º do Decreto –Lei n.º468/71, de 5 de Novembro, o parecer n.º 5237 da Comissão do Domínio Público Marítimo sobre a delimitação de um prédio rústico denominado “...”, situado no Vale ... ou ..., freguesia ..., concelho ..., requerida por II, foi homologado (…) aprovando o seguinte Auto de delimitação Aos 16 dias do mês de Janeiro de 1989 (…) reuniu (…) a comissão de delimitação (…) para ser lavrado o auto de delimitação com o domínio público marítimo de um prédio rústico denominado “...”, situado no Vale ... ou ..., freguesia ..., concelho ..., que a requerente diz pertencer-lhe.

A comissão (…) em face dos estudos que procedeu (…) resolveu propor a delimitação do referido prédio com o domínio público marítimo segundo a linha poligonal que, partindo do vértice 1, termina no vértice 3, a que correspondem as coordenadas (…) indicadas no quadro que se segue e conforme consta da planta de delimitação anexa a este auto (…)” – cfr. fls. certidão do processo n.º3922/86 constante dos autos e que aqui no mais se dá por integralmente integrada e reproduzida, incluindo coordenadas e planta de delimitação anexa.

6. Provado apenas que o prédio a que se refere o processo id. em 5. respeita ao prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º...97 a fls. 176 do B15 de cuja certidão além do mais que se dá por integrada e reproduzida resulta: “Prédio rústico que se compõe de terra de semear, no sítio do Vale ..., freguesia ..., deste concelho ... (…) ..., a confrontar do nascente com JJ, do norte com KK, do poente com LL e praia e do sul com herdeiros de MM, Está inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...10. (…) Av. 1 Declara-se que o prédio supra tem a área de 11.790m2, confronta do nascente com JJ e posto da guarda fiscal, do poente com Eng. NN (…) e de sul com o mar (…)” – cfr. doc. de fls. 49 junto com a certidão do P.3922/86.

7. Provado apenas que correu termos processo CDPM n.º3933/86 no qual figura como “(…) requerente OO auto publicado no DR, III série, n.º     37, de 1992.02.13 (…)”, mais resultando do referido Diário da República publicação, nos termos da qual, que no mais se dá por integrado e reproduzido: “Nos termos do n.º4 do artigo 10,º do Decreto –Lei n.º468/71, de 5 de Novembro, o parecer n.º 5196 da Comissão do Domínio Público Marítimo sobre a delimitação de dois prédios rústicos em Vale ... ..., requerida por OO, foi homologado (…) aprovando o seguinte Auto de delimitação Aos 4 dias do mês de Março de 1988 (…) reuniu-se (…) a comissão de delimitação nomeada para estudar e propor a delimitação do domínio público marítimo de uma propriedade situada em Vale ..., freguesia ..., concelho ..., que OO diz pertencer-lhe (…).

A comissão (…) em face dos estudos a que procedeu (…) resolveu propor a delimitação do domínio público marítimo com o referido terreno segundo a linha poligonal que, partindo do vértice 1, termina no vértice 5, a que correspondem as coordenadas (…) indicadas no quadro que se segue e conforme consta da planta de delimitação anexa a este auto (…)” – cfr. certidão do processo n.º3933/86 constante dos autos e que aqui no mais se dá por integralmente integrada e reproduzida, incluindo coordenadas e planta de delimitação anexa.

8. Provado apenas que os prédios a que se refere o processo id. em 7 . respeita aos prédios

a)         descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º...58 a fls. 136 do B21 de cuja certidão além do mais que se dá por integrada e reproduzida resulta: “prédio rústico que se compõe de terra de semear com árvores, no sítio de Vale ..., da freguesia ..., a confrontar do nascente e norte com PP, do poente com QQ e do sul com o mar. Artigo n.º 1898 (parte) (…)” - cfr. certidão do processo n.º3933/86 constante dos autos e que aqui no mais se dá por integralmente integrada e reproduzida;

b)         descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º...88 a fls. 130 do B17 de cuja certidão além do mais que se dá por integrada e reproduzida resulta: “ prédio rústico que se compõe de terra de semear, no sítio de Vale ..., da freguesia ..., deste concelho ..., a confrontar do nascente com RR e outro, do norte com SS, do poente com herdeiros de TT e do sul com o mar. Está inscrito na respectiva matriz sob os artigos n.º...80, ...96 e ...98 (…)” - cfr. certidão do processo n.º3933/86 constante dos autos e que aqui no mais se dá por integralmente integrada e reproduzida.

9. O prédio referido de 1. a 3. encontra-se localizado sobre arriba.

10. O prédio referido de 1. a 3. resulta da desanexação do prédio referido em 4.

11. Do prédio identificado em 4 foram também desanexados os prédios n.ºs ...97, ...58 e ...88, todos da freguesia ..., concelho ....

12. Os mapas de fls. 38 e 40 – que aqui se dão por integrados e reproduzidos – sinalizam a vermelho o limite a poente do prédio a que se refere a escritura de aforamento celebrada em 21 de agosto de 1829 referida no ponto 4 dos factos provados.

13. O marco 3 do prédio referido em 5. e 6. é comum ao prédio referido de 1. a 3.

14. um marco com inscrição “1964” que a poente serve de delimitação do prédio referido de 1. a 3. com o prédio que com este confronta do poente.

15. O prédio referido em 6. está integrado no prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...85, resultante dos números 5897, fls. 176 e 5945 fls. 200 do B-15 e inscrito a favor da A. por compra.

16. O prédio identificado de 1 a 3 tem em comum com o prédio referido em f) o marco nº 3 referido em 6.[1]


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III. 2. DO MÉRITO DO RECURSO

§ DA NULIDADE DO ACÓRDÃO POR AMBIGUIDADE, OBCURIDADE E ININTELIGIBILIDADE

Sustenta o recorrente que o acórdão recorrido é ambíguo, obscuro e ininteligível, porquanto, depois de ter considerado a prova documental constante nos autos insuficiente para a dissipação das dúvidas existentes quanto à localização do prédio reivindicado (e sua integração no prédio n.º ...11), acabou por considerar relevante a prova documental existente nos autos, conjugada com a opinião minoritária do perito da autora.

Dispõe o art. 615.º, n.º 1, al. c), do CPC que “É nula a sentença quando: (…) c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.


Como foi dito no acórdão destes Supremo Tribunal de 27.10.2022 (Fernando Baptista - proc. n.º 10662/20.7T8LSB-A.L2.S1)[2], “a nulidade por ambiguidade ou obscuridade da decisão ocorre quando a decisão permite duas ou mais interpretações (ambiguidade), ou quando não é possível saber, com certeza, qual o pensamento exposto na sentença (obscuridade).[3].

Ora, lida a decisão em recurso, resulta perfeitamente perceptível o sentido da decisão e dos seus fundamentos, sendo perfeitamente claro que o tribunal da Relação considerou, face aos elementos ponderados, que resultava demonstrado que o prédio reivindicado (n.º 4838) fazia, à data da sua desanexação, parte do prédio n.º ...11.

Assim, o sentido decisório propugnado pela Relação é claro e percetível, razão pela qual não se descortina qualquer obscuridade, ambiguidade ou ininteligibilidade.

Coisa bem diferente do acerto ou desacerto da decisão. Mas que aqui não releva.

Não se verifica, portanto, a invocada nulidade.

§ DA NULIDADE DO ACÓRDÃO POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA

Invoca o recorrente Estado Português que o tribunal recorrido omitiu a pronúncia requerida quanto à valoração da prova pericial produzida nos autos, entendendo que “não se encontram critérios objetivos na valoração excludente da opinião dissonante do perito da autora quanto ao quesito a), pois o laudo prevalente era o dos demais peritos na 1.ª e 2.ª perícias quanto ao mesmo quesito”.


Como vem sendo reiterado na doutrina e jurisprudência, a nulidade prevista no art.º 615º, n.º 1 al. d) só ocorre quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Esta nulidade está directamente relacionada com o comando previsto no art.º 608º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil, e serve de cominação para o seu desrespeito[4]. O dever imposto no art.º 608º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil diz respeito ao conhecimento, na sentença, de todas as questões de fundo ou de mérito que a apreciação do pedido e causa de pedir apresentadas pelo autor (ou, eventualmente, pelo réu reconvinte) suscitam, quanto à procedência ou improcedência do pedido formulado[5]. E para que este dever seja cumprido, é preciso que haja identidade entre a causa petendi e a causa judicandi, entre a questão posta pelas partes (sujeitos), e identificada pelos sujeitos, pedido e causa de pedir, e a questão resolvida pelo juiz, identificada por estes mesmos elementos. Só estas questões é que são essenciais à solução do pleito[6]. E é por isto mesmo que já não o são os argumentos, razões, juízos de valor ou interpretação e aplicação da lei aos factos[7]  de que as partes se socorrem quando se apresentam a demandar ou a contradizer, para fazerem valer ou naufragar a causa posta à apreciação do tribunal – embora seja conveniente que o faça, para que a sentença/acórdão, vença e convença as partes[8] .

Como ensina ALBERTO DOS REIS[9], «[Q]uando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista”; contudo, “o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão».

E tal é assim porque os conceitos de motivação (ou de argumentação fáctico-jurídica) e de questões – enquanto pontos essenciais de facto ou de direito em que as partes centralizam o litígio – não se confundem, sendo que a norma em análise apenas a estas últimas se refere.


Em suma, portanto, temos que a nulidade por omissão de pronúncia somente ocorre nos casos em que a omissão de conhecimento, relativamente a cada questão, é absoluta e já não quando seja meramente deficiente ou quando se tenham descurado as razões e argumentos invocados pelas partes[10].


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Ora, no caso que nos ocupa, o tribunal da Relação pronunciou-se sobre a impugnação da matéria de facto, valorando os meios de prova produzidos nos autos – ainda que em sentido contrário à pretensão do recorrente Estado Português (o que nesta sede não releva).

Assim, ainda que – como se verá – não concordemos com a posição assumida pelo tribunal da Relação, é inegável que este tribunal se pronunciou, como lhe competia, sobre a matéria de facto impugnada, com recurso aos meios de prova constantes dos autos, não se vislumbrando, assim, qualquer nulidade por omissão de pronúncia.


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DA VIOLAÇÃO DE REGRAS DE DIREITO PROBATÓRIO MATERIAL (valoração de um relatório pericial - valoração de pareceres da CDPM (Comissão do Domínio Público Marítimo) - uso de presunções judiciais)


De acordo com a doutrina nacional, há bens que pertencem ao domínio público por natureza, herdeiros das antigas res communes omnium, e há bens que são dominiais por assim serem declarados por lei, estando a sua dominialidade na disponibilidade do legislador[11].


Contudo, a doutrina chama a atenção para que a margem de manobra do legislador ordinário neste aspeto não é absoluta, carecendo a catalogação legal de outros bens, para além dos enunciados no artigo 84.º da Constituição de uma justificação válida à luz dos interesses constitucionalmente protegidos e do princípio da proporcionalidade. Como afirma o Tribunal Constitucional, o domínio público está associado a um regime jurídico de direito público derrogatório da propriedade privada - o que, naturalmente, não é inócuo do ponto de vista jurídico-constitucional, sobretudo no quadro de uma economia de mercado. Assim se explica que, subjacente à sujeição legal de uma dada categoria de bens ao domínio público e à consequente afirmação da propriedade pública sobre a mesma, devam estar fundamentos que atestem a indispensabilidade ou, pelo menos, a elevada conveniência dessa subordinação à satisfação de certo interesse público, tendo em conta que o legislador dispõe de meios alternativos para a consecução desse escopo, tais como as servidões administrativas e outras restrições de utilidade pública[12].


O Decreto-lei n.º 468/71, de 5 de Novembro (o Anteprojecto deste diploma, publicado no BCDPM), foi da autoria de AFONSO QUEIR. Este diploma sofreu as alterações introduzidas pelos Decretos-Leis n.º 53/74 de 15 de fevereiro, 89/87 de 26 de Fevereiro e pela Lei n.º 16/2003, de 5 de Novembro) visou definir os limites e regular o regime dos terrenos públicos conexos com o domínio público hídrico, face a uma legislação anterior que nos seus dizeres preambulares era “muito antiquada e muita dispersa”, constituindo “uma autêntica manta de retalhos”.

Esta diploma considerou que integrava o domínio público do Estado, os leitos e margens das águas do mar (artigo 5.º, n.º 1), estabelecendo que o leito das águas do mar e demais águas sujeitas à influência das marés, é limitado pela linha da máxima praia-mar de águas vivas equinociais, sendo esta linha definida, para cada local, em função do espraiamento das vagas em condições médias de agitação do mar, no caso do mar, e das cheias médias no caso das demais águas sujeitas à influência das marés  (artigo 2.º, n.º 2) e que, sendo a margem uma faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas, esta tinha a largura de 50 metros, embora quando tivesse a natureza de praia em extensão superior aos 50 metros, a margem estender-se-ia até onde o terreno apresentasse tal natureza (artº 3º, nºs 1, 2 e 5).

No entanto, como observam FREITAS DO AMARAL e JOSÉ PEDRO FERNANDES[13], em nome da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos, era possível aos particulares obter o reconhecimento da existência de propriedade privada sobre parcelas de leitos ou margens situadas dentro daqueles limites, desde que demonstrassem, documentalmente, que tais terrenos eram, por título legítimo, objecto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 (artigo 8.º, n.º 1), ou seja antes da aprovação do Decreto desta data que havia integrado pela primeira vez esses terrenos no domínio público. Este reconhecimento era indirectamente realizado pela Administração através de actos de delimitação do domínio público, previstos no artigo 10.º, os quais podiam ser impugnados para os tribunais comuns, designadamente através da propositura, a todo o tempo, de ação de reivindicação pelos particulares afetados (artigo 11º).


Deste modo se assegurava o necessário e cintilante equilíbrio entre a proteção da confiança dos cidadãos e a tutela dos interesses públicos subjacentes à dominialidade pública, numa solução que já tinha sido exigida pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Janeiro de 1935[14], assim como no Parecer n.º 57/59 do Conselho Consultivo da PGA e por diversas vozes na doutrina. Como escreveu MARCELO CAETANO, sobre o tema[15], “no momento em que determinada lei vem dispor que certas categorias de coisas são dominiais, quando elas até aí não o eram, o preceito legal não pode ter eficácia de fazer automaticamente incluir no domínio do Estado todas as coisas enquadráveis naquelas categorias: se elas já pertenciam ao património do Estado, integram-se automaticamente no seu domínio público; mas se eram propriedade particular, como tal têm de continuar, enquanto não forem expropriadas mediante a adequada indemnização, pois o contrário equivaleria pura e simplesmente a um confisco”.


Na definição do alcance do domínio público marítimo no que toca às margens do mar, o Decreto-Lei n.º 468/71 de 5 de Novembro assumiu a natureza de uma lei interpretativa, uma vez que, implicitamente, revelou a sua intenção de determinar o sentido de leis precedentes, para estas serem aplicadas em conformidade com essa leitura[16].


A versão originária da Constituição de 1976 não apresentava qualquer referência ao domínio público, tendo o atual artigo 84.º sido introduzido pela Lei Constitucional n.º 1/89, no qual se diz pertencerem ao domínio público  as águas territoriais com os seus leitos e os fundos marinhos contíguos (alínea a), do n.º 1), acrescentando o n.º 2 que a lei define quais os bens que integram o domínio público do Estado, o que, relativamente às margens do mar, já constava do Decreto-Lei n.º 468/71 de 5 de Novembro.

Em 2005, aquando da aprovação de uma lei de enquadramento da gestão das águas que transpusesse a Diretiva n.º 2000/60/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, entendeu-se que era preferível, previamente, aprovar autonomamente uma nova lei sobre a titularidade dos recursos hídricos, “clarificando e estabilizando o regime vigente...num diploma coerente”, sem que se deixasse de reconhecer que o Decreto-Lei n.º 468/71 de 5 de Novembro então vigente era “um diploma de elevada qualidade técnica”, não se pretendendo “introduzir modificações profundas no regime atual que, na linha dos sistemas de base romanística, se continua a caraterizar por atribuir ao domínio público do Estado, as águas do mar... Reconheceu-se, no entanto, que a proteção dos direitos privados não deveria ir tão longe que pudesse gerar a instabilidade permanente na base dominial, continuando- se a permitir indefinidamente a invocação de direitos privados anteriores a 1864 ou 1867, conforme se trate ou não de arribas alcantiladas, como fundamento para a anulação da dominialidade dos leitos e das margens das águas públicas. Estabelece-se, assim, um limite temporal razoável em 2014, para a reivindicação de tais direitos privados, não parecendo justificar-se prazo mais longo, tendo em conta que esta faculdade consta já do próprio Decreto-Lei n.º 468/71, ou seja, data já de 1971, e importa reconhecer que o prazo geral mais longo da prescrição aquisitiva é de apenas 20 anos”[17].


Foi então aprovada a Lei n.º 54/2005 de 5 de Novembro (que sofreu as alterações introduzidas pelas Leis n.º 78/2013 de 21 de Novembro, 34/2014 de 24 de Junho e 31/2016 de 23 de Agosto).

Perfilhando a perspectiva do anterior Decreto-Lei n.º 468/71 de 5 de Novembro, a Lei n.º 54/2005 de 15 de Novembro manteve a leitura de que, com a aprovação do Decreto de 31 de Dezembro de 1864 os leitos e margens do mar, na dimensão por ela fixada, ingressaram no domínio público, pelo que, desde essa data longínqua, não mais foi possível a constituição de direitos de propriedade sobre esses terrenos, presumindo-se, por isso, iuris tantum, a sua natureza pública, nos termos do artigo 12.º, n.º 1, a), in fine.

Neste aspeto, quer o Decreto-Lei n.º 468/71 de 5 de Novembro, quer a Lei n.º 54/2005 de 15 de Novembro, funcionaram como leis interpretativas do Decreto de 31 de Dezembro de 1864, assim como das sucessivas leis do final do século XIX, princípios do século XX que procederam à delimitação das áreas de jurisdição de determinadas entidades públicas nas margens do mar, tendo consagrado a interpretação que vinha sendo sustentada nos pareceres da Comissão do Domínio Público Marítimo.


Assim, no plano infraconstitucional, rege a Lei n.º 54/2005, de 15-11, que estabelece a titularidade dos recursos hídricos, definindo quais os recursos hídricos que integram o domínio hídrico do Estado e quais os que integram a propriedade de particulares.


Por sua vez, dispõe o artigo 84.º, n.º 1, da CRP, que “1 – Pertencem ao domínio público: a) As águas territoriais com os seus leitos e os fundos marinhos contíguos, bem como os lagos, lagoas e curso de água navegáveis ou flutuáveis, com os respectivos leitos (…);”, acrescentando o n.º 2, do mesmo preceito, que “a lei define quais os bens que integram o domínio público do Estado, o domínio público das regiões autónomas e o domínio público das autarquias locais, bem como o seu regime, condições de utilização e limites”.


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Não suscita controvérsia nos autos a inserção do prédio reivindicado nos autos no domínio público hídrico, nos termos do disposto nos arts. 1.º, 3.º c), 10.º, n.º 2, e art. 11.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 54/2005, de 15-11, na sua mais recente redação.


Pretende, nesta demanda, a autora ver reconhecido o seu direito de propriedade sobre o prédio descrito nos autos, com a inerente elisão da presunção de dominialidade pública que emerge do art. 12.º, n.º 1, al. a), in fine, do mencionado diploma legal.


O regime de reconhecimento da propriedade privada sobre prédios pertencentes ao domínio hídrico do Estado encontra-se consagrado no art. 15.º da mencionada Lei n.º 54/2005, de 15-11, justificando-se os marcos temporais ali mencionados pela circunstância de ter sido em 31-12-1864 que que os leitos e margens se tornaram públicos e de ter sido com a entrada em vigor do nosso Código Civil que as arribas alcantiladas passaram a integrar o domínio público hídrico.

Ora, reza o n.º 2, do aludido art. 15.º:

Quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis deve provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868”.


Existindo direitos de propriedade de particulares já constituídos sobre esses terrenos em data anterior a 31 de Dezembro de 1864, os mesmos não se extinguiram com o ingresso das praias na categoria dos bens do domínio público, tendo-se mantido a sua titularidade privada, independentemente da possibilidade de ficarem sujeitos a restrições e servidões administrativas, visando a proteção de interesses públicos. Daí que a Lei n.º54/2005 de 15 de Novembro (artigos 12.º a) e 15.º), tal como já havia feito o Decreto-Lei n.º 468/71 de 5 de Novembro (artigo 8.º), não tenha deixado de prever a possibilidade desses proprietários obterem o reconhecimento dos seus direitos sobre esses terrenos, ilidindo, assim, a presunção de que integram o domínio.


Esse reconhecimento deve ser efetuado em ação judicial, proposta para esse efeito pelos interessados nos tribunais comuns, sendo demandado o Ministério Público. Tratando-se de um acto, pelas suas caraterísticas e efeitos, materialmente jurisdicional[18], não podia o legislador manter os equívocos do Decreto-Lei n.º 468/71 de 5 de Novembro, nesta matéria [19]. Assim, integrando o reconhecimento da existência de uma secular propriedade particular sobre terrenos supervenientemente integrados pela lei no domínio público, a área de reserva de jurisdição, a Lei n.º 54/2005 de 15 de Novembro começou por dizer que essa finalidade deveria ser perseguida através da instauração da correspondente ação judicial, tendo a Lei n.º 78/2013 de 21 de Novembro, acrescentando que essa ação devia correr nos tribunais comuns, pondo termo à discussão entretanto suscitada sobre qual a jurisdição competente para apreciar esses pedidos[20].

A demonstração da existência desses direitos de propriedade privada em data anterior a 31 de Dezembro de 1864 pode ser efectuada por diferentes modos, os quais se encontram previstos nos n.º 2 a 4, do artigo 15.º, da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro.


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· Do regime probatório fixado no art. 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro (da espécie de prova que a norma em análise exige para a demonstração de tal aquisição)


O Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 326/2015[21], já se pronunciou sobre o regime probatório fixado no art. 15.º, referindo que: “este regime jurídico persegue, como se perceciona, um equilíbrio entre, por um lado, o princípio do respeito pelos direitos adquiridos dos particulares, e, por outro, a conveniência de que as margens de águas públicas, por condicionarem a utilização dessas águas, integrem o domínio público, ou seja, estejam sujeitas um regime especial de direito público caracterizado por um reforço das medidas de proteção das coisas que o integram.” E que “o regime jurídico assim delineado justifica-se em razão da necessidade de dar estabilidade à base dominial, visto estarem em causa coisas que o legislador, em cumprimento do mandato constitucional inscrito no artigo 84.º, n.º 1, alínea f), considera proporcionarem utilidade pública merecedora de um estatuto e de uma proteção especiais. Vale isto por dizer que as exigências vertidas nas normas em crise - que só valem, recorde-se, para as margens de águas navegáveis ou flutuáveis - encontram o seu fundamento último na proteção de interesses constitucionais a que esse tipo de águas se acha indissociavelmente ligado”.

Assim, concluiu o tribunal Constitucional que o interesse público subjacente à dominialidade pública das águas justifica o regime probatório estabelecido no art. 15.º, configurando este um justo equilíbrio entre os interesses, públicos e privados, em presença.

De resto, como decorre do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 468/1971, de 05-11, que mantém inteira actualidade, “aliviando deste modo o peso do ónus da prova imposto aos interessados, vai-se ao encontro da opinião que se tem generalizado no seio da Comissão do Domínio Público Marítimo, dada a grande dificuldade, em certos casos, de encontrar documentos que inequivocamente fundamentem as pretensões formuladas à administração dominial. Não pode, no entanto, esquecer-se que esta orientação, baseada em princípios gerais firmemente assentes na nossa ordem jurídica – princípio da não retroactividade das leis e o princípio do respeito dos direitos adquiridos – , não deverá prejudicar, na prática, os interesses gerais da colectividade, em razão das quais, precisamente, se foi criando e se mantém na titularidade do Estado o domínio público hídrico”.


É neste quadro que deve ser interpretado o disposto no art. 15.º; o mesmo é dizer, se é certo que não se pretende tornar impossível a tarefa probatória atribuída aos particulares, não é menos verdade que a interpretação a conferir ao referido dispositivo legal não poderá deixar de ser rigorosa, impondo uma exigência probatória incompatível com quaisquer dúvidas sobre a matéria em discussão.

Cumpre, assim, aferir da espécie de prova que a norma em análise exige para a demonstração de tal aquisição – para, depois, se ajuizar se, eventualmente, a Relação violou regras de direito probatório material, ao assentar a sua decisão, essencialmente, nos pareceres da CDPM (Comissão do Domínio Público Marítimo) e no uso que fez das presunções judiciais.


Entendemos que o único entendimento que tem um mínimo de correspondência na lei é o de que, sendo certo que a demonstração da propriedade privada tem de ser feita documentalmente (cit. nº 2 do artº 15º da Lei n.º 54/2005, de 15-11), tal prova documental pode realizar-se através de quaisquer documentos e não apenas do justo título de aquisição[22].


Na verdade, considerando que a vontade expressa do legislador tem em si ínsita a ponderação do interesse público subjacente ao estabelecimento do domínio hídrico do Estado e os direitos adquiridos dos particulares e também os princípios da segurança e certeza jurídicas, é manifesto que o legislador optou por consagrar uma solução segundo a qual os direitos dos particulares apenas poderiam afastar o mencionado interesse público, caso fossem demonstrados por via da prova documental.

Porém, também parece evidente que o legislador não tomou posição quanto ao tipo de documentos admissíveis para efeitos de prova, motivo pelo qual entendemos ser evidente que os particulares poderão lançar mão de todos os documentos de que disponham para demonstrar os factos dos quais decorra que os prédios reivindicados eram objecto de propriedade privada desde data anterior aos marcos temporais mencionados.


Este STJ já se pronunciou, em acórdão de 14-07-2021 (Nuno Pinto Oliveira), nos seguintes termos: “ainda que o art. 15.º, n.º 1, da Lei n.º 54/2005 exija uma certa espécie de prova, não fixa a força da prova documental produzida[23]. Trata-se de um caso onde foram apreciadas cartas topográficas, enquanto prova documental sujeita ao princípio da livre apreciação. Neste sentido, vejam-se, ainda, os acórdãos proferidos em 23-03-2021[24] (Graça Amaral), de 23-03-2021[25] (Graça Amaral), de 09-06-2021[26] (Ricardo Costa) e de 09-03-2022[27] (Nuno Ataíde das Neves). Nestes arestos, o STJ, ainda que em alguns casos de forma implícita, considerou admissível a valoração de diversos documentos, ainda que sujeitos ao princípio da livre apreciação de prova – posição que também aqui sufragamos.


Sendo assim, conclui-se que:

i) Apenas a prova documental pode servir a tal desiderato.

ii) Toda a prova documental, independentemente da sua força probatória, é admissível como meio idóneo à demonstração de que determinado prédio é objecto de propriedade privada desde data anterior aos marcos temporais mencionados;


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Dito isto, como é consabido, o direito probatório material “regula o ónus da prova (estabelecendo as respetivas regras distributivas), bem como a admissibilidade e a força probatória dos diversos meios de prova.”[28]-[29].

Assim, e no que aqui releva, apenas existirá violação de direito probatório material nos casos em que se tenha considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente inadmissível ou insuficientes[30] - o que in casu se reconduz à eventual valoração de prova que não configure prova documental.

Vejamos.


Como visto, o recorrente insurge-se contra a decisão do tribunal da Relação de Évora, invocando, em suma, que o tribunal recorrido violou direito probatório material ao valorar indevidamente prova “documentada(relatórios/pareceres da CDPM - Comissão do Domínio Público Marítimo – emitidos noutros processos, mas em que, desde logo, não houve contraditório do ora recorrente) e prova pericial e fazer uso de presunções judiciais quando tal lhe estava vedado por força do disposto no n.º 2, do art. 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15-11.


Ou seja – e regressando à factualidade dos autos – , está em causa aquilatar se teve lugar tal violação de regras de direito probatório material ao ter a Relação dado como provados (recorrendo aos aludidos meios probatórios) os factos n.ºs 10 e 11, até então constantes das als. a) e b) do elenco de factos não provados, quais sejam:

10. O prédio referido de 1. a 3. resulta da desanexação do prédio referido em 4.

11. Do prédio identificado em 4 foram também desanexados os prédios n.ºs ...97, ...58 e ...88, todos da freguesia ..., concelho ....


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A Autora/Recorrida demandou o Réu alegando ser dona e legítima proprietária do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...38, invocando, para tal, que esse mesmo prédio resultou de desanexação do rústico descrito sob o n.º...11 na extinta Conservatória do Registo ..., desanexação esta que foi feita nos termos que concretiza (apelando a “documento produzido pela Comissão do Domínio Público Marítimo no processo de delimitação n.º3922/86 – Parecer n.º5042 de 8 de Janeiro de 1986” – art. 5.º PI). Alega ainda que, além daquele prédio de que se arroga proprietária, outros dois foram desanexados e foi requerida quanto a estes a delimitação com o domínio público marítimo, com resultado já publicado.

Ou seja, discute-se, em suma, se o prédio n.º ...38 (de que a A. se arroga proprietária) descrito nos pontos 1 a 3 integrava, à data da sua desanexação, o prédio n.º ...11 descrito em 4 – já que quanto a este prédio está demonstrada a sua integração no domínio privado desde data anterior a 1864.

Como visto, os mencionados factos n.ºs 10 e 11 foram considerados provados pelo tribunal da Relação. E foram-no nos termos e com a seguinte fundamentação (os destaques são nossos):

Assim, a primeira questão a resolver, é a de saber se o prédio referido nos pontos 1 a 3 dos factos provados, ou seja, o prédio da autora, resulta da desanexação do prédio referido em 4, isto é, o prédio descrito sob o n.º ...11 do livro B2 fls. 155 vº da extinta Conservatória do Registo ....

Na primeira perícia realizada, cujo relatório se encontra a fls. 511-517, os peritos responderam por unanimidade a esta questão nos seguintes termos:

«Face à documentação disponibilizada, os peritos entendem não ter elementos suficientes para concluir que o prédio com o nº ...38 provém do prédio com o nº ...11.

A descrição do prédio rústico nº ...11 não se mostra suficientemente clara e inequívoca para conseguir localizar no espaço os seus limites e forma geométrica.».

Nos esclarecimentos que prestaram a fls. 548-549, os senhores peritos, pronunciando-se sobre o prédio nº ...11, reiteraram que a insuficiência de elementos não lhes permitia concluir com rigor acerca dos limites daquele prédio «podendo este, com as suas confrontações conforme descritas, assumir as mais variadas formas geométrica».

Os senhores peritos terminaram os esclarecimentos com a seguinte frase:

«Não cabe aos peritos contradizer ou pôr em causa os atos das comissões de delimitação do DPM. No entanto, se da análise da documentação disponibilizada surgirem dúvidas ou reservas é obrigação dos peritos expô-las. Caberá depois ao tribunal analisar, ponderar e concluir se estas dúvidas e/ou reservas têm ou não fundamento e se têm peso significativo na tomada de decisão».

Na segunda perícia realizada, não houve unanimidade dos peritos na resposta à questão enunciada.

Assim, os peritos do tribunal e do réu, respetivamente Eng.º UU e Eng.º VV, deram a seguinte resposta: «Relativamente ao prédio descrito sob o n.º ...11 do livro B2 fls. 155.º V da extinta Conservatória do Registo ..., após a consulta do processo e, também, da consulta efetuada no Arquivo Distrital ..., os peritos não encontraram prova documental que, inquestionavelmente, permita identificar com um mínimo de clareza:

- O limite nascente deste antigo prédio;

- A sua forma geométrica e área;

- Qualquer associação ao prédio atual nº 4838, da freguesia ..., concelho ..., através de sucessivos atos de registo predial (por desanexação) ou mesmo por transmissão sucessiva de titulares inscritos.

Na apreciação que efetuou no âmbito do processo de delimitação do domínio público marítimo (DPM) nº 3922/86, a própria Comissão do Domínio Público Marítimo (CDPM) levantou dúvidas quanto ao limite nascente do prédio n.º ...11, mas, mesmo assim, concluiu por remeter o processo para delimitação no terreno por uma específica comissão de delimitação a nomear para este processo a qual encarregou de esclarecer as dúvidas suscitadas no parecer. Mas no seu parecer final, nº 5237, de 13 de abril de 1989, em que apreciou a proposta desenvolvida e apresentada pela comissão de delimitação, a CDPM acabou por aceitar como provado que o prédio nº ...97, na confrontação com o qual fora requerida a delimitação DPM em apreço e que fica situado a nascente e é contíguo ao prédio objeto da presente ação nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, provém do referido prédio nº ...11.

A CDPM aceitou também (cfr. parecer nº 5078, de 7 de maio de 1987) a posse privada, em data anterior a 1864, das parcelas da margem inseridas nos prédios descritos na CRP ... sob os nºs ...88 e ...58, situados a poente do prédio objeto da presente ação judicial, mas que com este não são contíguos.

Contudo, os peritos desconhecem em que documentos ou outros dados a CDPM se baseou para tal, os quais também não são mencionados no referido processo CDPM.

Assim sendo consideram os peri tos não poder assumir que o prédio referido de 1. a 3. resulta da desanexação do prédio referido em 4.».

Já o perito da autora, Eng.º EE, deu a seguinte resposta: «Atendendo a que o prédio em causa se situa, fisicamente, dentro do prédio referido em 4 (e acima transcrito), por estar situado ente a sua extrema a poente e o prédio inscrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...97, entende-se que o prédio em causa só poderá ter resultado, e portanto conclui-se que resultou, de desanexação do prédio referido em 4.».

Temos, pois, que das duas perícias realizadas, apenas o perito da autora – na segunda perícia - respondeu de forma afirmativa à questão de saber se o prédio da autora resulta da desanexação do prédio nº ...11, sendo que os restantes peritos foram inconclusivos na resposta dada, justificando essa inconclusividade, essencialmente, por - utilizando as palavras da resposta dada pelos peritos maioritários da 2ª perícia - «não encontrarem prova documental que, de forma inquestionável permita identificar com um mínimo de clareza: i) o limite nascente deste antigo prédio; ii) a sua forma geométrica e área; iii) qualquer associação ao prédio atual nº 4838, da freguesia ..., concelho ..., através de sucessivos atos de registo predial (por desanexação) ou mesmo por transmissão sucessiva de titulares inscritos».

Na segunda perícia aludiram ainda os peritos maioritários aos pareceres da Comissão do Domínio Público Marítimo4 no âmbito dos processos 3922/86 (prédio nº ...97) e 3933/86 (prédios nºs ...58 e ...88), mas referiram desconhecer os documentos ou outros dados em que a Comissão se baseou para tal, os quais também não são mencionados naqueles processos.

Ou seja, a posição unânime dos peritos na primeira perícia, e maioritária na segunda perícia, não exclui que o prédio da autora resulta da desanexação do prédio nº ...11, sucedendo apenas que os senhores peritos têm dúvidas ou reservas que assim seja, em virtude de não encontrarem arrimo na prova documental que, inquestionavelmente, o demonstre.

Entendemos, porém, analisando toda a prova documental existente nos autos - incluindo a certidão integral do apenso relativo aos processos de delimitação do domínio público marítimo nºs 3922/86 e 3933/86 -, entendemos ser de acolher a posição minoritária do perito da autora na segunda perícia realizada. Senão vejamos.

Assim, o documento 3 junto com a petição inicial, a fls. 38, identifica a confrontação poente do prédio da autora com Descrição Predial nº ...11 a fls. 155V do B-2, sendo que este documento existente no processo 3933/86 da CDPM, considerou tal confrontação válida.

Também o documento 4 junto com o mesmo articulado, a fls. 39-40, considerou essa confrontação válida.

A respeito das confrontações do prédio rústico nº ...11, pronunciou-se a CDPM, no processo nº 3922/86, nos termos acima referidos e que aqui reiteramos:

«b. Na planta de localização (documento nº 7), a requerente assinalou os limites nascente e poente do referido prédio rústico. Entre tais limites situou o terreno que pretende delimitar. Mas enquanto o limite poente (estrada que vai para o povo de ..., no documento nº 1 ou estrada que vai para a praia da ..., no documento nº 2) se afigura possível identificação no local, o mesmo não acontece com o limite nascente que apenas aparece como confrontação com WW. É necessário provar que esta confrontação corresponde ao limite nascente assinalado na planta de localização.

c. Esclarecido este aspeto, se a comissão da delimitação verificar que o terreno a delimitar está contido entre os limites nascente e poente assinalados na planta de localização, pode-se considerar reconhecida a respetiva propriedade particular anteriormente a 31 de dezembro de 1864.»

Constituída a respetiva comissão, procedeu-se à delimitação do prédio em causa, ou seja, o prédio rústico nº ...97, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...10, sito em Vale ..., tendo sido lavrado o respetivo auto de delimitação, nos termos descritos no ponto 5 dos factos provados, que aqui damos por reproduzidos.

A decisão da referida comissão de delimitação está bem justificada na “Acta Número Um” da certidão do processo nº 3922/86, apensa a estes autos:

«(…) a comissão decidiu deslocar-se ao local para fazer o reconhecimento do prédio rústico em causa e apreciar a respetiva localização. Quanto a esta última concluiu-se que a localização indicada na planta cadastral está correcta visto que o prédio se situa efectivamente junto a um cruzamento de caminhos de acesso à praia, já muito perto desta, (…).

Encontraram ainda os marcos nascente e poente que delimitam a propriedade na sua parte mais chegada à praia, de que se conclui que uma faixa de terreno do prédio está dentro da zona dominial e que a propriedade se situa dentro dos limites nascente e poente assinalados na planta de localização. (…)».

Concluída que foi a delimitação, esta veio a ser aprovada pela CDPM no parecer emitido em 13.04.1989 (cfr. fls. 2 a 6 da certidão do proc. nº 3922/86).

Por sua vez, em relação aos prédios nºs ...97, ...58 e ...88, que confrontam a sul com o mar, não parece que se possa duvidar da sua localização no interior do então prédio rústico nº ...11, tal como assumido nos processos de delimitação do domínio público marítimo nºs 3922/86 e 3933/86.

Ora, sendo aceite pela CDPM, no exercício das suas competências, as confrontações a poente e a nascente do prédio rústico ...11, alcança-se sem grande esforço que «o prédio referido de 1 a 3 resulta da desanexação» daquele prédio rústico, localizando-se no seu interior e confrontando a sul com as rochas do mar.

O documento 5 junto com a petição inicial5, extraído da planta cadastral do concelho ... identifica os prédios delimitados com o domínio público marítimo através dos processos nºs 3933/86 e 3922/86, isto é, os prédios números ...97 [proc. nº 3922/86] e ...58 e ...88 [proc. nº 3933/80], que tiveram a sua origem no então prédio rústico ...11, como se comprova nesses processos de delimitação.

Este mesmo documento identifica na planta cadastral o prédio da autora, o qual confronta do lado poente com o prédio nº ...97, sendo que os prédios nºs ...58 e ...88, se encontram, neste documento a poente do prédio da autora.

Assim, porque o prédio da autora se situa fisicamente dentro do prédio nº ...11, por se encontrar entre a sua extrema a poente e o prédio inscrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...97, só pode concluir-se que a área do prédio da autora antes da existência deste, tinha necessariamente de estar integrada na área do prédio rústico nº ...11, resultando por esse facto de uma desanexação deste prédio.

Considerou igualmente o Tribunal a quo como não provado que «do prédio identificado em 4. foram também desanexados os prédios nºs ....97, ...58 e ...86, todos da freguesia ..., concelho ...».

A resposta a esta questão obteve apenas resposta afirmativa do perito da autora na segunda perícia realizada, sendo que os demais peritos – por unanimidade na primeira perícia e por maioria na segunda perícia – deram, à semelhança da resposta à questão anterior, uma resposta inconclusiva quanto a esta matéria.

Assim, reconhecendo embora que tal desanexação foi assumida no âmbito dos processos de delimitação do domínio público marítimo a que vimos aludindo, dizem que desconhecem em que documentos ou outros dados se baseou a CDPM para tal conclusão.

Ora, os documentos em que a CDPM se baseou para emitir o seu parecer sobre tal matéria, são os que constam dos respetivos processos, não dizendo os senhores peritos que documentos necessitariam para responder afirmativamente ou negativamente à questão em apreço.

Além de se tratarem de processos oficiais, tramitados de forma minuciosa e da vasta documentação existente nos mesmos, importa ainda ter presente que as comissões de delimitação nomeadas para o efeito em ambos os processos (3922/86 e 3933/80], deslocaram-se ao local da delimitação, podendo constatar a realidade física aí existente.

Não se vislumbram, pois, razões para duvidar das conclusões e decisões tomadas pela CDPM, por unanimidade, homologadas pelo Chefe de Estado Maior da Armada no exercício das suas competências.

Assim, eliminam-se as alíneas a) e b) dos factos não provados e aditam-se ao elenco dos factos provados os seguintes pontos:

«10. O prédio referido de 1. a 3. resulta da desanexação do prédio referido em 4.

11. Do prédio identificado em 4 foram também desanexados os prédios n.ºs ...97, ...58 e ...88, todos da freguesia ..., concelho ....».”.


Temos, assim, que a Relação, embora considerando pouco esclarecedoras as perícias havidas nos autos, rejeitou a opinião unânime dos Senhores peritos que levaram a cabo a primeira perícia – que foram peremptórios em concluir (cfr. relatório de fls. 511-517) que  “face à documentação disponibilizada, os peritos entendem não ter elementos suficientes para concluir que o prédio ...38 provém do prédio com o nº ...11” –  e, outrossim, ignorou a posição maioritária da segunda perícia, que ia no mesmo sentido daquela conclusão da primeira perícia.

Porém, sem mais, aceita a posição do perito da Autora, na segunda perícia, que – apesar de estar isolado na resposta àquela questão – nem, sequer, foi perepmtório na resposta, pois se limitou a concluir que o prédio da Autora “poderá ter resultado da desanexação do prédio referido em 4.”.

Ora, o que deve dizer-se relativamente às perícias, é, tão somente, que tal meio de prova utilizado pela Relação, não sendo prova documental, não podia ser utilizada nos autos para a prova do direito de propriedade invocado pela Autora.

O que quer dizer que no que tange ao uso da prova pericial, a Relação incorreu em violação de regras de direito probatório material: os relatórios periciais não são …. documentos! E, como visto, a Autora só se podia servir de prova documental para tentar fazer a prova da propriedade do prédio que reivindica.


***


Mas a Relação firmou também a sua decisão nos pareceres da Comissão do Domínio Público Marítimo (em conjugação/complemento com o relatório pericial levado a cabo pelo perito da Autora na segunda perícia).

E então, pergunta-se se neste segmento probatório, também incorreu a relação em violação de regras de direito probatório material.

Como vimos, o artº 15º, nº 2 da Lei nº 54/2005, de 15.11, apenas admite, nos casos como o dos presentes, a produção de prova documental – pelas razões já supra explicadas.

No entanto, não raras vezes é necessário apelar a outros meios de prova, tais como as perícias, como forma de auxiliar o tribunal na interpretação e valoração da documentação junta, face à sua especificidade técnica e complexidade.

De facto, as acções com as características da dos autos importam, não raras vezes, a junção de prova documental vasta, complexa e de difícil compreensão para o julgador, sendo fundamental o recurso a outros meios de prova capazes de auxiliar o julgador na sua tarefa.

Neste quadro, o recurso a outros elementos de prova, para além de natural, não afasta a conclusão de que é na prova documental que reside a demonstração dos factos essenciais a provar nos autos.

Ora, lendo a fundamentação da decisão recorrida, resulta à saciedade que a Relação assentou a sua convicção, no essencial, nos documentos juntos aos autos (pareceres da CDPM), ainda que se tivesse socorrido do teor das perícias realizadas na parte em que as mesmas se debruçaram sobre aqueles documentos. É o que decorre da fundamentação de facto que se transcreveu supra, da qual resulta que o tribunal da Relação considerou os documentos n.ºs 3 a 5 juntos com a petição inicial para concluir nos termos já mencionados.

Entende-se que, nos termos e para efeitos do artº 15.º, n.º 1, da Lei n.º 54/2005, as certidões dos processos n.ºs 3922/86 e 3933/86, na parte relativa aos pareceres da Comissão, deverão ser configurados como prova documental, ainda que a valorar livremente pelo tribunal, nos termos da parte final do art. 371.º, n.º 1, e 383.º, n.º 1, do CC[31].

E configurando prova documental, não se pode dizer que a Relação, ao considerar tais documentos (embora sujeitando-os à sua livre apreciação) para a sua decisão, tenha incorrido em violação de regras de direito probatório material – assim não assistindo, nesta parte, razão ao recorrente.


Há, porém, que não confundir o plano da espécie da prova com o plano da sua força probatória. E isto porque, “não especificando o tipo de documentos admissíveis, nem tão pouco a respetiva força probatória, deixando o legislador expresso que estes apenas poderiam prevalecer caso fossem demonstrados por via da prova documental, podem os interessados recorrer a todos os documentos, autênticos ou particulares, de que disponham e que, independentemente da sua força probatória, sirvam para demonstrar factos dos quais decorra a aquisição do direito de propriedade em data anterior aos marcos temporais mencionados na norma, não sendo possível excluir, à partida, quaisquer documentos apresentados pelas partes, todos sendo idóneos para o efeito pretendido.”[32].


Em suma: ao socorrer-se dos pareceres da Comissão do Domínio Público Marítimo, não incorreu a Relação em violação de regras de direito probatório material.


Aspecto diferente é o de saber se tais Pareceres, produzidos naqueles processos 3922/86 e 3933/86, de delimitação do domínio público, têm valor probatório extraprocessual, para os presentes autos, capaz de colmatar a ausência de (outra) prova documental inequívoca de que o prédio da A. foi desanexado do prédio ...11.

E como adiante veremos, não a têm: como referido, uma coisa é a espécie de prova aqui admissível (artº 15.º, n.º 1, da Lei n.º 54/2005), com outra, bem diferente, é a sua força probatória.



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DO USO DE PRESUNÇÕES JUDICIAIS


E que dizer sobre o uso que a Relação fez de presunções judiciais – para com base na presunção presumir que o prédio reivindicado se situa fisicamente dentro do prédio nº ...11 e que foi objecto de desanexação?

Tal como na utilização que fez da prova pericial, também qui incorreu a Relação em violação de normas de direito probatório material: presunções não são …. documentos! E, como visto, só com recurso a documentos podia a Autora lograr a prova da propriedade do prédio que reivindica.


Com efeito, o artº 351º do Cód. Civil é claro: “As presunções judiciais só são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal.” – prova esta que, como visto, a lei não admite para a prova da propriedade reivindicada pela Autora.

A presunção judicial, como é sabido, define-se como “um raciocínio em virtude do qual, partindo de um facto que está provado (facto base/facto indiciário), chega-se à consequência da existência de outro facto (facto presumido), que é o pressuposto fáctico de uma norma, atendendo ao nexo lógico existente entre os dois factos”. Ora, “o nexo lógico não é um facto mas um juízo de probabilidade qualificada que assenta e deriva de uma máxima de experiência, tida por aplicável no caso, segundo a qual, perante a ocorrência de um facto, gera-se uma probabilidade qualificada de que se tenha produzido outro[33]

E é pacífico na jurisprudência do Supremo a asserção de que cabe nos poderes da Relação alterar a decisão fáctica proferida na l.ª instância, extraindo ilações em matéria de facto, induzindo, a partir dos factos provados, mediante raciocínios lógicos sobre conhecimentos radicados na experiência comum e na normalidade da vida, a existência de factos desconhecidos, que poderiam ser adquiridos nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (arts. 351.º e 396.º do CC, e 607.º, n.º 5, do CPC).

Outrossim, é igualmente pacífico que essa actividade da Relação não é sindicável pelo STJ, por envolver um juízo de facto baseado em meios de prova livremente apreciáveis pelo julgador.

Porém, assim não será se o uso de presunções pela Relação ofender qualquer normal legal, padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos julgados não provados[34].

Ou seja, na medida em que o juízo presuntivo consubstancia um julgamento da matéria de facto, encontra-se o STJ impedido de apurar a extracção da presunção judicial pela Relação, excepto nos casos de violação de lei e das normas disciplinadoras do instituto, designadamente, sempre que ocorra ilogicidade e/ou a alteração da factualidade adquirida processualmente, ou seja, quando a presunção parta de factos não provados[35].


Ora, como dito, a Relação, ao fazer uso das presunções judiciais para chegar à decisão que tomou no acórdão, incorreu em clara violação da lei – violou, como dito, normas de direito probatório material. É que, como visto, o disposto no artigo 351.º do CC só admite as presunções judiciais nos casos em que é admitida prova testemunhal, o que não acontece quando a acção em presença da qual se proferiu o acórdão recorrido assenta a sua causa de pedir no disposto no artigo 15.º, n.º 2, da lei 54/2005, de 15–11, que exige o dever de ser provado documentalmente que o prédio cuja propriedade privada se pretende ver reconhecida era, por título legítimo, objecto de propriedade particular ou comum antes de 31–12–1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22–3–1868.

É que, percute-se, a proibição do recurso a presunções judiciais nos casos, como o dos autos, em que não seja admissível prova testemunhal, justifica-se pela sua falibilidade que não é consentânea com as exigências de prova que se fazem sentir neste domínio[36].


A ilustrar com toda a evidência que a Relação também assentou a decisão da apelação recorrendo a presunções judiciais, basta atentar no seguinte segmento do acórdão recorrido, que foi determinante para que o tribunal da Relação desse como provado os factos n.ºs 10 e 11:

O documento 5 junto com a petição inicial5, extraído da planta cadastral do concelho ... identifica os prédios delimitados com o domínio público marítimo através dos processos nºs 3933/86 e 3922/86, isto é, os prédios números ...97 [proc. nº 3922/86] e ...58 e ...88 [proc. nº 3933/80], que tiveram a sua origem no então prédio rústico ...11, como se comprova nesses processos de delimitação.

Este mesmo documento identifica na planta cadastral o prédio da autora, o qual confronta do lado poente com o prédio nº ...97, sendo que os prédios nºs ...58 e ...88, se encontram, neste documento a poente do prédio da autora.

Assim, porque o prédio da autora se situa fisicamente dentro do prédio nº ...11, por se encontrar entre a sua extrema a poente e o prédio inscrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...97, só pode concluir-se que a área do prédio da autora antes da existência deste, tinha necessariamente de estar integrada na área do prédio rústico nº ...11, resultando por esse facto de uma desanexação deste prédio.” – destaque nosso.

Ou seja, a Relação limitou-se a um juízo de mera lógica (mas não cabalmente sustentado em factos provados): partindo da demonstração de que o prédio reivindicado confronta do lado nascente com o prédio n.º ...97, tendo os prédios n.ºs ...88 e ...58 do seu lado poente e que estes últimos prédios provieram do prédio n.º ...11, presumiu que a área do prédio reivindicado “tinha necessariamente de estar integrada na área do prédio rústico nº ...11”, situando-se fisicamente dentro deste prédio e que foi objecto de desanexação. Temos uma clara presunção judicial, já que aquela conclusão a que a Relação chegou não resulta da mera valoração de documentos, mas sim da conjugação de factos conhecidos com regras da lógica (a expressão “tinha necessariamente” deixa a descoberto o recurso a tal presunção judicial).

Mas, percute-se, não podia fazer tal presunção, por a tal a lei o não permitir!

Em suma: ao socorrer-se de presunções judiciais, neste segmento probatório incorreu a Relação em violação de regras de direito probatório material.


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DO ERRO NA VALORAÇÃO DOS MEIOS DE PROVA CARREADOS AOS AUTOS


Como dito, a Relação assentou a sua convicção/decisão nos documentos juntos, quais sejam, as certidões dos processos nºs 3922/86 e 3933/86, na parte relativa aos pareceres da Comissão do Domínio Público Marítimo (CDPM) – que, como dito, para efeito do disposto no artº 15º, nº1 da Lei nº 54/2005, se entende constituir prova documental, mesmo que a valorar livremente pelo tribunal – , socorrendo-se também das perícias realizadas na parte em que se debruçaram sobre tais documentos. Isto é, a Relação, para além dos referidos pareceres da CDPM, socorreu-se dos relatórios periciais para auxílio do tribunal na interpretação e valoração a fazer daqueles mesmos pareceres.


Assim sendo, assente que o recurso às presunções judicias não podia ter lugar, resta-nos aferir se a ponderação e valoração que a Relação deu aos aludidos documentos/pareceres (bem assim dos relatórios periciais de que se socorreu para a tarefa de interpretação daqueles) é bastante para a procedência da acção – afinal, se tal documentação junta aos autos pela Autora (que tinha o ónus da alegada propriedade do imóvel) permite fazer a prova do direito de propriedade, nos termos exigidos pelo artº 15º, nº2 da Lei nº 54/2005, de 15.11.


No nosso ver, a resposta impõe-se negativa, como melhor à frente se verá.


Ø   QUANTO ÀS PERÍCIAS

Entende o recorrente Estado Português que o tribunal da Relação ponderou, erradamente, as perícias realizadas nos autos, impondo-se, face ao teor das mesmas, a manutenção da decisão proferida pela 1.ª instância, em concreto no que concerne aos factos n.ºs 10 e 11 agora considerados provados.

Como é consabido, ainda que a prova pericial seja realizada com recurso a juízos técnicos emitidos por especialistas, não deixa a mesma de estar sujeita ao princípio da livre apreciação da prova.

Porém, como é salientado no acórdão deste STJ, de 15-09-2022[37], “a força probatória das perícias, incluindo das perícias médico-legais, é apreciada livremente pelo tribunal — daí que o Supremo Tribunal de Justiça não possa pronunciar-se sobre os resultados da livre apreciação da prova pericial.” – proc. n.º 786/20.6T8PVZ.P1.S1 (Nuno Pinto de Oliveira). Neste sentido, vejam-se, entre outros, os acórdãos do STJ de 31-03-2022[38] (proc. n.º 812/06.1TBAMT.P1.S1 – Rijo Ferreira), de 15-02-2018[39] (proc. n.º 4084/07.2TBVFX.L1.S1 - Fátima Gomes) e de 27-02-2018 (proc. n.º  594/13.0TBBNV.E1.S1).

Porém, não é espúrio anota que se, como dito, é certo que o STJ não pode emitir pronúncia sobre os resultados da livre apreciação da prova pericial, dado estar sujeita à liberdade de apreciação do juiz, tal não significa que essa liberdade na apreciação da prova pericial produzida equivalha a arbitrariedade.

Assim, a actuação do STJ no que tange à prova pericial não pode estar completamente vedada. Ou seja, como bem se refere no Acórdão do STJ, de 31-03-2022 (cit. proc. n.º 812/06.1TBAMT.P1.S1 - Rijo Ferreira), acima citado, o juízo relativo à prova pericial “é susceptível de censura nos casos de manifesta desadequação ou ilogicidade da sua fundamentação.”.

Ou seja, como se escreveu no acórdão do STJ de 18-10-2018 (proc. n.º 5097/05.4TVLSB.L2.S1 - Helder Almeida)[40], “embora o julgador goze de inteira liberdade na apreciação e valoração das provas, estando “liberto das regras severas e inexoráveis da prova legal”, acha-se imperativamente adstrito a fazê-lo com prudência, ou seja, com o maior aviso, de forma ponderada, racional e lógica, obviando a qualquer juízo meramente subjectivo, discricionário ou arbitrário, ditado por puro capricho ou imotivada convicção. Assim não procedendo, fora desses cânones actuando, o julgador incorre em patente e frontal violação da lei, redundando a conformação desse seu comportamento em inequívoca questão de direito, quadrável no âmbito dos poderes de cognição do Supremo.” – destaques nossos.

Ora, se parece evidente que o juízo que a Relação emitiu sobre os dois relatórios periciais – que (diga-se) ela própria ordenou fossem realizados para sua cabal informação ou esclarecimento – não parece, de todo, ter neles assento (!), não cremos, também, que o procedimento da Relação seja dotado daquela discricionariedade ou arbitrariedade que permitiria a este STJ controlar a pronúncia da Relação sobre tais perícias, emitindo juízos sobre o seu teor.

No entanto, como acima já ficou dito, não sendo os relatórios periciais prova documental, não podia nunca a Relação fazer a prova do invocado direito de propriedade da Autora com base em tais perícias.


Ø   QUANTO AOS PARECERES DA COMISSÃO (CDPM)


Atento todo o explanado, restam-nos os pareceres da CDPM como eventual suporte documental (ut artº 15º, nº2 da Lei nº 54/2005, de 15.11).

Desde logo, e antes de mais, cumpre observar que a Relação, não explicou ou mostrou, como se impunha, em que medida as conclusões a que se chegou no âmbito de um procedimento administrativo ocorrido nos anos 80 deviam prevalecer sobre o juízo técnico, especializado e atualizado dos peritos nomeados nos autos. E não explicou porque, simplesmente, não vemos como o pudesse fazer.

Com efeito, o facto de este tipo de comissões trabalharem com minúcia e cuidado não justifica tal conclusão, até porque os peritos nomeados nos autos desenvolveram um trabalho cuidadoso e aturado, avaliaram a documentação que consta das certidões constantes dos autos e também tiveram em consideração as conclusões a que ali se chegou.

Por isso, também, não se percebe a desconsideração dada pela Relação aos laudos periciais, que retiravam razão à pretensão da Autora.


Voltemos aos pareceres da CDPM.


Vermos, assim, que o acórdão do Tribunal da Relação de Évora não se baseou em documento ou prova documental que inequivocamente comprovasse que o prédio da Autora provinha, por desanexação, do prédio n.º ...11.

Aquilo em que se baseou a decisão, no que se refere ao quesito a) (facto a) dos não provados pela 1.ª instância) foi na opinião, conclusão ou parecer técnico que a CDM emitiu nos processos 3922/86 e 3933/86, nos quais (diga-se) os peritos não encontraram base documental que o justificasse.


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Acresce que uma outra questão se pode aqui suscitar: saber se aqueles processos 3922/86 e 3933/86, de delimitação do domínio público, têm valor probatório extraprocessual, a colmatar a ausência de (outra) prova documental inequívoca de que o prédio da A. foi desanexado do prédio ...11.


Não nos parece que a tenham.

E pelas razões que o Recorrente elenca (que nos parecem pertinentes e acertadas):

“⎯ A alegada prova que resultava dos processos de delimitação do domínio público 3922/86 e 3933/86, que não respeitavam ao prédio da A, não foi produzida perante quem, na presente ação, tem a posição de demandado ou réu, o Ministério Público agindo em nome próprio, pelo que o Ministério Público, ora recorrente, não teve a faculdade de participar na constituição dessa alegada prova aqui valorada na decisão sob recurso, nem consta que neles tivesse intervindo em qualquer qualidade processual.

⎯ Razão pela qual se tem que concluir que não foi observada a necessária audiência contraditória da parte contra a qual esses processos de delimitação do domínio público marítimo foram aqui apresentados, sendo que naqueles processos nem sequer a A teve intervenção, muito menos a teve o Ministério Público, não havendo, pois, identidade de sujeitos com a presente ação.

Não houve, assim, contraditório que garantisse que pudesse haver aproveitamento processual da alegada prova constituenda, mas que o acórdão recorrido valorou e aceitou para a decisão de mérito.

Qualquer admissão de um contraditório diferido não colhe fundamento no artigo 421.º do Código de Processo Civil para dar por adquirida a prova desses processos de delimitação do DPM como prova documental, sobre a qual não houve sequer qualquer controlo judicial.

⎯ Não podem as conclusões a que chegou a CDM nesses processos ser tidas como prova documental, mas única e exclusivamente como prova documentada ou materializada em documento escrito, mas que, não tendo sido objeto de audiência contraditória perante quem figura nesta ação como parte (o Ministério Público, agindo em nome próprio), não passa pelo crivo dos requisitos exigidos pelo artigo 421.º do Código de Processo Civil.”.


Como refere MARIA JOSÉ CAPELO[41], “o artigo 421.º pressupõe a transferência de prova entre processos, preservando tanto a sua natureza originária como o valor probatório (mas não o resultado), sendo requisito essencial que o meio de prova seja invocado perante sujeito a quem foi permitido exercer o contraditório na produção da prova” (destaque nosso).


Temos, assim, que o registo escrito das diligências e conclusões havidas naqueles processos de delimitação do domínio público 3922/86 e 3933/86 mais não é, afinal, do que um registo escrito de diligências, análise, valoração técnica da CDM que comprova as conclusões a que chegou naqueles processos, os quais, acentua-se, não têm por objecto o prédio da A.

Diremos, assim, que se trata de prova com a forma de documento escrito, sim, mas não é em bom rigor  prova documental[42].

Tal prova poderia ser valorada como princípio de prova, o qual não é suficiente para estabelecer, por si só, qualquer prova constituenda de que o prédio da A resultava de desanexação do prédio n.º ...11 – para mais, repete-se, quando naqueles processos de delimitação do DPM não estava em causa o prédio da A.


Assim, parecem-nos assertivas e pertinentes as observações do Recorrente:

«As questões que se colocam são, pois, as seguintes:

⎯ Ou a documentação existente no processo era insuficiente para a decisão de mérito, insuficiência que o tribunal a quo reconheceu, assentando na sua insuficiência as dúvidas que persistiam sobre os factos discutidos na ação e que justificaram ter ordenado a perícia no âmbito dos poderes conferidos pelo artigo 662.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil;

⎯ Ou a documentação existente no processo era suficiente e não se viam razões para duvidar das conclusões e decisões tomadas pela CDPM, por unanimidade, homologadas pelo Chefe de Estado Maior da Armada no exercício das suas competências, no âmbito dos processos de delimitação do domínio público marítimo n.ºs 3922/86 e 3933/86, abrindo–se então duas sub–questões:

    • Se a documentação existente no processo, que veio a ser valorada, a final, pelo tribunal a quo, era suficiente para a decisão de mérito, fica sem razão ou critério o ter–se ordenado a perícia no tribunal de recurso, pois a documentação existente era a mesma que existiu sempre nos autos.
    • Se a documentação existente no processo era suficiente, não se percebe a necessidade de ser apoiada essa suficiência na resposta minoritária do perito da A ao quesito a).


Às questões colocadas só pode ser dada uma resposta, por correta aplicação da lei de processo e da lei substantiva sobre a prova, por raciocínio lógico e de acordo com as regras da experiência comum:

⎯ A documentação existente nos autos, i.e., a prova documental, não era (nem é) bastante para a procedência da ação, ou seja, não demonstrava, nem demonstra inquestionavelmente que o prédio da A resultava da desanexação do prédio n.º ...11, tendo sido essa também a resposta unânime e depois maioritária dos peritos ao quesito em causa.

⎯ A documentação existente nos autos, designadamente a que resulta dos processos de delimitação do DPM, que nada tinham que ver com o prédio da A, não podiam ser valorados como prova constituenda nos termos do artigo 421.º do Código de Processo Civil.

⎯ Deste modo, não há suporte jurídico e processual em todo o raciocínio empreendido pelo acórdão na fundamentação que justificou a decisão de mérito.


Portanto, não podia ser, como não foi, com base na prova documental que a decisão de mérito foi proferida pelo tribunal recorrido, mas com base em presunções judiciais resultantes da avaliação que fez da prova documental (insuficiente) existente nos autos, com a opinião minoritária do perito da A na 2.ª perícia e na petição de princípio de que não havia razões para duvidar das conclusões e decisões da CDPM nos processos 39322/86 e 3933/86, que não respeitavam ao prédio da A.


(…)  essas presunções não têm sustentação jurídica, lógica, racional ou base em regras de experiência comum.

Pelo que uma conclusão se impõe:

Continua sem demonstração documental inquestionável que o prédio da A resultou da desanexação do prédio n.º ...11.».


A decisão da Relação, afinal, admite e advoga que pode ser dispensada a demonstração documental, fundamental, de que o actual prédio da Autora terá resultado de desanexação ou sucessiva transmissão do prédio n.º ...11, este objecto de propriedade particular desde 1854 ou 1868. Só que, como dito e redito, o modo de o demonstrar vem plasmado no artigo 15.º, n.º 2, da Lei 54/2005, de 15–11, ou seja, exige-se prova documental e não outra, seja ela pericial, testemunhal ou diversa – muito menos por presunções judiciais legalmente inadmissíveis ou de censurável lógica ou razoabilidade.


***



Atento todo o explanado, temos que não estão, pois, verificados os requisitos para, nos termos da lei, ser reconhecido à A o direito de propriedade privada sobre a parcela do domínio público marítimo em discussão na ação.


O art.º 12 n.º1 al. a) da Lei 54/2005 , na sua parte final, estabelece a presunção de dominialidade dos leitos e margens das águas públicas. Trata-se, como já supra dissemos, de uma presunção iuris tantum”, recaindo, em consequência, sobre o interessado a prova da sua natureza privada, nomeadamente na sequência de direitos adquiridos anteriormente.


Podia a Autora demonstrar a existência do alegado direito de propriedade privada em data anterior a 31 de Dezembro de 1864 por diferentes modos, os quais se encontram previstos nos n.º 2 a 4, do artigo 15.º, da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro.

Nas ações de reivindicação (artigo 1311.º do Código Civil) que têm como pressuposto a prova da existência do direito de propriedade, não se considerando que as aquisições derivadas do direito de propriedade sejam suficientes para demonstrar a sua existência, uma vez que se desconhece se o transmitente era o legítimo titular da propriedade transmitida (probatio diabolica), exige-se a prova da constituição originária do direito de propriedade  (v.g. ocupação, usucapião, acessão), ou a prova de um facto que permita permitir a sua existência (v.g. posse ou inscrição no registo predial)[43].

Impondo o artigo 15.º, n.º 2, a), da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, que a prova da existência do direito de propriedade privada anterior a 31 de Dezembro de 1864 seja documental, caso transpuséssemos para a prova deste direito de propriedade as exigências que imperam na ação de reivindicação, a única prova possível seria a resultante da inscrição registral em data anterior a 31 de Dezembro de 1864.

Ora, uma vez que um sistema registral predial público em Portugal, verdadeiramente, só foi instituído após esta data [44], não é crível que o legislador o tivesse elegido como único meio de prova, pelo que se entende ser admissível que a prova documental da existência de um direito de propriedade privada anterior a 31 de Dezembro de 1864, possa ser feita através da apresentação de documento que traduza uma pretérita aquisição derivada do direito de propriedade que na época fosse admitido pela ordem jurídica então vigente[45].


No caso concreto dos autos, a A. invocou como causa de pedir a propriedade privada assente na presunção registral, acrescendo a isto ter (na sua alegação) o prédio advindo por desanexação de um outro também ele de natureza privada conforme escrituras de aforamento, de venda de foro e formal de partilha respectivamente de 1829, 1830 e 1858, considerando-se, por isso, que o seu pedido e causa de pedir teriam de ser apreciados à luz do n.º2 do art. 15.º.

Sucede, assim, que era sobre a A. que recaía o ónus da prova (art. 342.º n.º1 CC), impendendo sobre ela a obrigação de instruir os autos com os elementos necessários que permitissem ao Tribunal estabelecer, inequivocamente, a ligação entre o alegado prédio constante em 4. dos factos provados e aquele que hoje resulta inscrito a seu favor (factos 1. a 3.).

Melhor dito, cabia à Autora: 1. fazer a prova da originária aquisição privada do prédio por algum dos modos legítimos de adquirir, aludidos no artº 1316º do CC; 2. a que acrescia o ónus de demonstrar que a natureza privada se manteve até à actualidade, e; 3. que é a proprietária actual, podendo então prevalecer-se (finalmente) da presunção registral.


Com efeito, como referem JOSÉ MIGUEL JÚDICE e JOSÉ MANUEL FIGUEIREDO, incumbia à A. “… ter de demonstrar que o terreno cuja propriedade privada reclama já era propriedade privada antes de 31 de Dezembro de 1864 ou, tratando–se de arribas alcantiladas, antes de 22 de Março de 1868, demonstração que se fará mediante prova de que a propriedade privada em causa foi adquirida por título legítimo, antes daquele marco temporal”[46], acrescentando que o Autor tem de provar não apenas que o imóvel estava na propriedade particular quando se estabeleceram as presunções de dominialidade, como também que nessa condição se manteve até à data atual, ou seja, “a presunção de dominialidade terá de ser afastada relativamente a toda a “história” do bem, pois não há garantia de que o bem não tenha ingressado, depois daquelas datas, e por qualquer motivo admissível no domínio público”[47]sendo que será, relativamente à prova da propriedade actual que a inscrição registral entretanto ocorrida desempenhará seguramente um papel importante, na maior parte dos casos.

Conforme explicam os mesmos AA[48], a razão de ser de tais marcos temporais plasmados na lei “prende-se com o facto de os leitos e as margens que constituem o âmbito da acção se terem tornado do domínio público em 31 de Dezembro de 1864 [data da publicação do decreto que estabeleceu a dominialidade pública dos leitos e margens], enquanto as arribas alcantiladas, passíveis de subsunção no conceito actual de margem, apenas terem integrado o domínio público em 22 de Março de 1868” [data da entrada em vigor do Código Civil de 1867][49].


Consciente das dificuldades de obtenção da prova documental dos títulos anteriores a 31 de Dezembro de 1864, o legislador admitiu, no entanto, que o reconhecimento da propriedade privada pudesse também resultar da prova que antes daquela data os terrenos em causa estavam na posse, em nome próprio, de particulares (artigo 15.º, n.º 3, da Lei n.º 54/2005 de 15 de Novembro).

O legislador estabeleceu aqui uma presunção legal iuris et iure[50] de que a posse privada corresponde à existência de um direito de propriedade privada, pelo que basta ao demandante provar a existência de uma situação de posse, em nome próprio, por parte de particulares em data anterior a 31 de Dezembro de 1864, e que é ele o actual proprietário, para que lhe seja reconhecido o direito de propriedade sobre esses terrenos. A prova da situação possessória pretérita pode ser efectuada por qualquer meio admitido em direito[51].

O legislador previu ainda a possibilidade dos documentos comprovativos da existência de uma propriedade privada anterior a 31 de dezembro de 1864, terem existido, mas serem ilegíveis ou terem sido destruídos por incêndio ou facto de efeito equivalente ocorrido na conservatória ou registo competente, situação em que esses terrenos se presumirão particulares, sem prejuízo dos direitos de terceiros, caso se prove que antes de 1 de dezembro de 1892 eram já objecto de propriedade ou posse privadas (artigo 15.º, n.º 4, da Lei n.º 54/2005 de 15 de novembro). Nestas situações em que há uma probabilidade de terem existido documentos que comprovavam a existência de uma propriedade privada anterior a 31 de dezembro de 1864, mas que, actualmente, devido à sua ilegibilidade ou destruição, resultante de incêndio ou outro facto semelhante ocorrido na conservatória ou outro registo competente, não podem ser utilizados como meio de prova, o legislador estabeleceu uma presunção legal iuris tantum da existência do direito de propriedade privada anterior a 1864, desde que o demandante prove que tais terrenos eram, objecto de propriedade particular, por título legítimo, ou de posse, em nome próprio, por particulares, em data mais recente, mais precisamente, antes de 1 de dezembro de 1892. Esta data corresponde à do Decreto n.º 8 que procedeu à organização dos serviços hidráulicos e que reafirmou a dominialidade pública das praias, sendo nessa reafirmação que alguns autores vislumbram a razão para a escolha desta segunda data[52].


Ora, tal prova, como vimos, não a fez a Autora.

Limitou-se, na verdade, a Relação a fazer uso – indevido – , quer de relatórios periciais, quer de presunções judiciais, para, dessa forma, procurar situar o prédio reivindicando no citado nº 211, concluindo que dele foi desanexado, à semelhança do que ocorreu com os dois outros prédios a que se reportam os processos de delimitação do domínio público marítimo referidos supra (nºs 3922/86 e 3933/80).

Porém, para além da impossibilidade de recurso a qualquer dos referidos meios de prova (por se não tratar de prova documental), ficou amplamente demonstrado que não há elementos minimamente consistente que permitam localizar fisicamente o prédio reivindicado nos termos pretendidos pela Autora (aceitando-se, embora, que os Pareceres da CDPM podem considerar-se documentos para efeitos do artº 15º da Lei 54/2005, de 15 de Novembro, não resulta inequívoco – de todo – dos referidos processos que correram termos pela CDPM prova bastante para localizar fisicamente o prédio reivindicado nos termos pretendidos pela Autora, como, aliás, nem podia considerar-se resultar até porque ali não foi visado o prédio ora em causa e não teve lugar qualquer contraditório das partes destes autos, maxime do Estado Recorrente).


Ou seja (e concluindo): 1. dos meios de prova utilizados pela Relação, é inequívoco que as presunções e a prova pericial não integram a prova documental exigida pelo aludido artº 15º da Lei 54/2005, razão pela qual não podiam ser utilizados neste processo; 2. quanto aos Pareceres da CDPM, embora se admitindo que os mesmos devam ser considerados como documentos nos termos e para efeitos daquele artº 15º, deles não se extrai prova bastante da localização física do prédio reivindicado, tal como pretendido pela Autora (como tal, prova do alegado direito de propriedade).


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Uma nota adicional:

As conclusões e decisões tomadas pela CDPM nos referidos processos nºs 3922/86 e 3933/80, que, definindo as confrontações dos prédios, serviram de suporte à inserção dos prédios na propriedade privada, tiveram, para tal, de ser homologadas pelo Chefe do Estado-Maior da Armada, no exercício das suas competências.

Ora, esta delimitação administrativa por despacho do Chefe do Estado-Maior da Armada, relativamente aos prédios a que se referiam aqueles processos, corresponde a um acto administrativo que visa definir a extensão dos bens do domínio público, relativamente aos bens privados confinantes.

Acontece, porém, que os efeitos da delimitação são meramente declarativos, não introduzindo modificações na ordem jurídica, apenas retratando situações pré-existentes, esclarecendo-as [53]. Como referiu AFONSO QUEIRÓ [54] apenas declara aquilo que resulta da própria lei, a qual, na verdade, enuncia os requisitos da dominialidade, uma vez que não cria a dominialidade antes simplesmente a verifica e torna conhecida do público.

E os factos provados, como dito, não permitem, de forma alguma, concluir com um grau de certeza pelo menos razoável que a factualidade pré-existente relativamente aos prédios a que se reportam os aludidos processos (maxime a sua exacta localização física – leia-se) da CDPM valha para o prédio reivindicado pela Autora.

Veja-se, v.g., que à 1ª questão suscitada nas perícias – qual seja, a de saber se o prédio reivindicado pela Autora resultava da desanexação do prédio ...11 – , ambos os relatórios periciais responderam (o 1º por unanimidade e o 2º por maioria – embora o perito da A., aqui discordante, não apresentasse razões minimamente aceitáveis, para a sua posição) que não havia elementos para se concluir ter ocorrido aquela alegada desanexação: na primeira perícia (por unanimidade) concluíram que a descrição do prédio rústico ...11 não se mostra suficientemente clara e inequívoca para conseguir localizar no espaço os seus limites e forma geométrica (…), podendo este, com as suas confrontações descritas, assumir as mais variadas formas geométricas;  na segunda perícia (por maioria) foi observado que “Na apreciação que efetuou no âmbito do processo de delimitação do domínio público marítimo (DPM) 3922/86, a própria Comissão do Domínio Público Marítimo (CDPM) levantou dúvidas quanto ao limite nascente do prédio n.º ...11,…”, acabando, porém, a CDPM “por aceitar como provado que o prédio nº ...97, na confrontação com o qual fora requerida a delimitação DPM em apreço e que fica situado a nascente e é contíguo ao prédio objeto da presente ação nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, provém do referido prédio nº ...11”.

Posição que, como acima ficou dito e demonstrado, não se aplica, necessariamente, ao prédio reivindicado, quer porque se trata de prédio sobre o qual a dita Comissão se não pronunciou, quer porque, como referem os senhores peritos, desconhece-se em que documentos ou outros dados a CDPM se baseou para tal, os quais também não são mencionados no referido processo CDPM.


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Assim, portanto, não se vislumbra como não dar razão ao Recorrente:  « …situando–se a causa de pedir da presente ação no âmbito do atual n.º 2 do artigo 15.º, disposição legal a que aludem a sentença recorrida, as alegações de recurso e o acórdão recorrido, a qual dispõe que “Quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis deve provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868”, a prova documental deverá comprovar a existência de título legítimo para fundamentar o ingresso no domínio privado, com respeito pelas datas referidas e a expressão “título legítimo” é sinónima de “justo título”, significando qualquer modo legítimo de adquirir – logo, entre outros, os expressamente indicados no artigo 1316.º do CC[55].

Dos documentos disponíveis nos autos e juntos pelas partes, segundo o princípio da aquisição processual, não resulta, com a exigível segurança, que pudesse ter sido dado como provado, quer pelo Tribunal da 1.ª instância, quer pelo Tribunal da Relação de Évora, o facto que a 1.ª instância efetivamente deu como não provado, i.e., que “a) O prédio referido de 1. a 3. resulta da desanexação do prédio referido em 4.”, pelo que a demonstração que aquele prédio era objeto de propriedade privada, por título legítimo, antes de 31 de dezembro de 1854 ou de 22 de março de 1868, não se encontra efetuada nos termos exigidos pela lei, ou seja, documentalmente.


Efetivamente, não se pode concluir que a A, nos termos do n.º 2 do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15-11, provou documentalmente que o terreno em questão era, por título legítimo, objeto de propriedade particular antes de 31 de dezembro de 1854 ou de 22 de março de 1868, pelo que também não se pode concluir, como o Tribunal da Relação de Évora fez, com base em presunções judiciais legalmente inadmissíveis que “Sendo a autora titular de prédio rústico que resultou de desanexação de outro prédio rústico no qual se provou que em 21 de Agosto de 1829 se exerciam atos de domínio privado, não pode deixar de reconhecer-se a propriedade privada daquele prédio (artigo 15º, 1, da Lei 54/2005, de 15 de novembro).”.


Aquilo de que documentalmente se dispõe nos autos, (…), e que o Tribunal da Relação de Évora aceitou como evidenciado para exercer os poderes de ordenar a produção de novos meios de prova, não chega para os efeitos pretendidos pela A. e para a procedência da causa de pedir em que baseou a ação e o respetivo pedido (artigo 15.º, n.º 2, da Lei 54/2005), nem para a resposta cabal e positiva aos temas da prova que limitaram o litígio às questões essenciais e orientaram a produção da prova (cf. artigos 596.º, 410.º, 516.º, 607.º, n.º 2 e n.º 4, todos do Código de Processo Civil), já que não se encontra estabelecida a conexão/identidade entre o prédio da A e o n.º 211 e, como tal, não existe sustentáculo documental suficiente para concluir que o prédio em causa era, por título legítimo, propriedade privada antes de 1854 ou 1864, não estando ilidida a presunção de dominialidade pública conferida após essas datas ao prédio em questão[56], decaindo, por prejudicada e supérflua, a prova de que o prédio em questão permaneceu ininterruptamente na propriedade privada depois daquela data».


Assim sendo, impõe-se a procedência do recurso, com a consequente reposição do decidido na sentença.



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Face à procedência do recurso, nos sobreditos termos, prejudicada fica a apreciação da suscitada inconstitucionalidade (das normas constantes dos arts. 674.º, n.º 3, 1.ª parte, 682.º, n.º 2, e 662.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, por violação do direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa).


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IV. DECISÃO 

Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso e, consequentemente, conceder a revista, revogando-se o acórdão recorrido e mantendo-se o decidido na sentença da 1ª instância.


Custas pela Autora.


Fernando Baptista de Oliveira (Juiz Conselheiro Relator)

Vieira e Cunha (Juiz Conselheiro 1º adjunto)

Ana Paula Lobo (Juíza Conselheira 2º Adjunto)

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[1] Embora por lapso conste da decisão recorrida, na sua página 26, uma repetição do facto n.º 15, resulta claro da sua interpretação que se trata de um facto autónomo, a que atribuímos o n.º 16.
[2] Disponível em www.dgsi.pt.
[3] Neste sentido, ver, também, os acórdãos do STJ de 12-01-2021 (proc. n.º 4258/18.0T8SNT.L1.S1), de 26-01-2021 (proc. n.º 2350/17.8T8PRT.P1.S2), de 23-02-2021 (proc. n.º 50/07.6TBCRZ.P1.S1) e de 20-05-2021 (proc. n.º 69/11.2TBPPS.C1.S1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[4] Vd. J. A. REIS, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, págs. 142-143 nota 5 e 53 e segs.; J. RODRIGUES BASTOS, Notas ao Cód. Proc. Civil, Vol. III, pág. 247 nota 5 e 228 nota 2.
[5] J. RODRIGUES BASTOS, Notas…, loc. cit.
[6] Vd. Ac. do STJ de 09-07-1982: B.M.J. 319 pág. 199.
[7] Vd. J. A. REIS, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, págs. 49 e segs.; J. Rodrigues Bastos, Notas…, loc. cit.; J. LEBRE DE FREITAS e outros, Cód. Proc. Civil Anot, Vol. 2, Coimbra Editora – 2001, págs. 645-646 nota 2. No sentido de que os motivos, argumentos, razões, juízos de valor ou interpretação e aplicação da lei aos factos não figuram entre as questões a apreciar no art.º 660º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil, como jurisprudência unânime, pode ver-se, de entre muitos exemplos, p. ex., RT 61º-134, 68º-190, 77º-147, 78º-172, 89º-456, 90º-219 citados apud ABÍLIO NETO, Cód. Proc. Civil Anot. 8.ª Ed. (1987), págs. 514-515 nota 5, em anotação ao art.º 668º. Vd. ainda, v. g., Ac. do STJ de 01-06-1973: B.M.J. 228 pág. 136; Ac. do STJ de 06-01-1977: B.M.J. 263 pág. 187. 
[8] Vd. . RODRIGUES BABSTOS, Notas…, loc. cit.
[9] Código de Processo Civil Anotado, Volume V, 3.ª ed., 1952, reimpressão por Coimbra Editora, Coimbra, 2007, págs. 142-143).
[10] Cfr., v.g., os acórdãos do STJ de 22-01-2015 (proc. n.º 24/09.2TBMDA.C2.S1), de 28-04-2016 (proc. n.º 1723/06.6TVPRT.P3.S1), de 15-02-2017 (proc. n.º 3254/13.9TBVCT.G1.S1), de 09-01-2019 (proc. n.º 4175/12.8TBVFR.P1.S1), de 14-01-2020 (proc. n.º 383/17.3T8LSA.C1.S1), de 30-06-2020 (proc. n.º 274/09.1TBLRA.C1.S1) e de 08-10-2020 (proc. n.º 1886/19.0T8LLE.E1.S1), disponíveis em www.dgsi.pt e www.stj.pt.
[11] Por todos, RAQUEL MONIZ, em O Domínio Público. O Critério e o Regime Jurídico da Dominialidade, Almedina, Coimbra, 2006, pág. 280 e seg. e JOÃO CAUPERS, em Introdução ao Direito Administrativo, 12.ª ed., Âncora Editora, Lisboa, 2016, pág. 181-182.
[12] Ac. nº 326/2015, de 23 de junho de 2015, acessível em www.tribunalconstitucional.pt.
No mesmo sentido GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, em Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pág. 1004, e RUI MEDEIROS e LINO TORGAL, em Constituição Portuguesa Anotada, tomo II, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, pág. 81-82.
[13] Em Comentário à Lei dos Terrenos do Domínio Hídrico (Decreto-Lei n.º 468/71 de 5 de novembro), Coimbra Editora, Coimbra, 1978, pág. 150-151.
[14] Publicado na Revista dos Tribunais, Ano 53, n.º 1251, pág. 35-36.
[15] In Manual de Direito Administrativo, vol. II, 9.ª ed., Almedina, Coimbra, 1983, pág. 901-902.
[16] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Dezembro de 1974, no Boletim do Ministério da Justiça n.º 242, pág. 286 e seg..
[17] Exposição de motivos da proposta de lei n.º 19/X que esteve na origem da Lei n.º 54/2005 de 15 de Novembro.
[18] Neste sentido JOÃO MIRANDA, em A Titularidade e a Administração do Domínio Público Hídrico por Entidades Públicas, em “Direito Administrativo do Mar, Almedina, Coimbra, 2014, pág. 170, MANUEL BARGADO, est. cit., pág. 446, e JOSÉ MIGUEL JÚDICE e JOSÉ MIGUEL FIGUEIREDO, em Ação de Reconhecimento da Propriedade Privada sobre Recursos Hídricos, Almedina, Coimbra, 2013, pág. 103.
[19] Este reconhecimento nunca poderá resultar do procedimento administrativo de delimitação do domínio público hídrico, pelo qual são fixados os limites dos leitos e margens dominiais confinantes com terrenos de outra natureza (artigo 17.º, n.º 1, da Lei n.º 54/2005 de 15 de Novembro), conforme resulta da ressalva contida no n.º 7 deste artigo, devendo as ofensas que resultarem para o direito de propriedade dos particulares daqueles atos de delimitação serem julgados pelos tribunais comuns, uma vez que esse julgamento terá sempre como pressuposto o reconhecimento do direito de propriedade ofendido (neste sentido, MANUEL BARGADO, ob. cit., pág. 447).
A delimitação dos terrenos do domínio público hídrico é feita nos termos do referido artigo 17.º da Lei n.º 54/2005 de 15 de Novembro, do Decreto-Lei n.º 353/2007, de 26 de Outubro, e do Despacho Normativo, n.º 32/2008, de 20 de Junho.    
[20] Ver RAQUEL MONIZ, em Do Reconhecimento de Propriedade Privada sobre os Terrenos do Domínio Público Marítimo, anotação ao Ac. da Relação de Lisboa de 21.1.2012, em Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 102, pág. 71-76.
[21] Relatado por João Pedro Caupers e disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20150326.html
[22]Sobre o conceito de justo título, pronunciaram-se Freitas do Amaral e Pedro Fernandes, Comentário à Lei dos Terrenos do Domínio Hídrico, Coimbra Editora, 1978, p. 127;[22]. Manuel Bargado, in O reconhecimento da propriedade privada sobre terrenos do domínio público hídrico, Julgar online, 2013, p. 21; e Menezes Cordeiro, A Posse, Perspectivas Dogmáticas Actuais, Almedina, 2.ª edição, p. 91.
[23] Proc. n.º 569/10.1TBVRS.E2.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[24] Proc. n.º 16389/18.2T8PRT.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[25] Proc. n.º 618/17.2T8ETR.P1.S1.
[26]Proc. n.º 1784/13.1TBSCR.L1.S1.
[27] Proc. n.º 183/19.6T8PVZ.P1.S1.
[28] Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, vo. II, 2ª ed., p. 247.
[29] Quanto a este tema, veja-se VAZ SERRA, Provas - Direito Probatório Material, Lisboa 1962, pp 22-25.
[30] Cfr. acórdão deste STJ de 08-09-2021 (Rosa Tching), acessível em www.gdsi.pt.
[31] Isto sem embargo de se reconhecer que há divergência sobre saber se os pareceres técnicos devem, ou não, ser valorados como prova documental (ver Albertos dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, pág. 29; Abrantes Geraldes, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, em anotação ao artigo 426 e o acórdão do STJ de 15.01.2004 - Rel. Santos Bernardino).
[32] Cfr. acórdão do STJ, de 09-03-2022, cit. supra.
[33] LUIS FILIPE DE SOUSA, Direito Probatório Material, Almedina, 2.ª edição, pp. 75 e 76.
[34] Cfr. Ac. STJ de 23-02-2021- Revista n.º 2445/12.4TBPDL.L1.S1 (Maria Clara Sottomayor).

Cfr., ainda, os acórdãos de 25.11.2014, no processo n.º 6629/04.0TBBRG.G1.S1 (Pinto de Almeida), de 29.09.2016, no processo n.º 286/10.2TBLSB.P1.S1 (Tomé Gomes) e de 11.04.2019, no processo n.º 8531/14.9T8LSB.L1.S1 (Rosa Tching), todos em www.dgsi.pt.; na doutrina, refutando a hipótese de o STJ controlar o iter dedutivo das presunções judiciais, cfr. Lebre de Freitas, “Ónus do recorrente que impugne a decisão de facto. Controlo pelo STJ do uso de presunções judiciais”, em https://portal.oa.pt.

[35] Ac. STJ de 14-01-2021 - Revista n.º 2342/15.1T8CBR.C1.S1 (Oliveira Abreu); de 28-01-2021, Revista n.º 1790/17.7T8VFX.L1.S1 (Maria da Graça Trigo); de 28-01-2021 - Revista n.º 140/14.9TNLSB.L1.S1 (Tomé Gomes); de 09-03-2021 - Revista n.º 9726/17.9T8CBR.C1.S1 (Henrique Araújo).

[36] Neste sentido, LUIS FILIPE PIRES DE SOUSA ob. cit., p. 88.
[37] Acessível em www.dgsi.pt.
[38] Acessível em www.dgsi.pt.
[39] Acessível em www.dgsi.pt.
[40] Não publicado nas bases de dados disponíveis.
[41] A transferência de prova entre processos: um diálogo com a jurisprudência, RLJ, ano 151.º, n.º 4033, mar/abr 2022, p. 247.
[42] LUIS FILIE DE SOUSA, ob cit., Direito Probatório Material, comentado. Coimbra: Almedina, 2021, pp 108 ss.
[43] Ver MANUEL SALVADOR, Suplemento aos Elementos da Reivindicação, Lisboa, ed. do autor, Lisboa, 1962, pág. 49-61, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. III, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1984, pág. 115, MENEZES LEITÃO, Direitos Reais, Almedina, Coimbra, 2009, pág. 256-257, CARVALHO FERNANDES, em Lições de Direitos Reais, Quid iuris, Lisboa, 1996, pág. 228, SANTOS JUSTO, Direitos Reais, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pág. 278, e HENRIQUE ANTUNES, Direitos Reais, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2017, pág. 265.
[44] Em Portugal, em que a transmissão da propriedade foi durante muito tempo efetuada por simples “traditio” física, como refere CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, chegou-se ao século XIX sem que a publicidade predial tenha feito a mais tímida ou longínqua aparição entre nós (em Publicidade e Teoria dos Registos, Livraria Almedina, Coimbra, 1966, pág. 147), existindo apenas descrições dispersas e avulsas de terras e seus donos nos forais, nos alvarás de concessão e nos tombos da Casa Real, dos municípios, das ordens religiosas, das casas principescas, nos registos Chancelaria etc. (CUNHA GONÇALVES, Tratado de Direito Civil, em Comentário ao Código Civil Português, vol. V, Coimbra Editora, Coimbra, 1932, pág.546).
Em 1801, um Alvará Régio de 9 de Junho, que nunca teve concretização, determinou que em cada Comarca houvesse um Matemático, que fosse um Cosmógrafo, que procedesse à formação de vários livros, sendo que num se deveriam descrever todas as herdades e outros bens rurais e urbanos com as suas dimensões e demarcações e noutro se deveriam registar os títulos de cada um dos possuidores das respetivas propriedades, ordenando-se que sempre que uma propriedade passasse de um possuidor para outro, fosse o novo possuidor obrigado a fazer registar o seu competente título sob pena de não ser reconhecido por senhor daquela propriedade.
Pelo Decreto de 26 de outubro de 1936, foi criado o Registo das Hipotecas, posto em execução pelo polémico Decreto de 3 de Janeiro de 1837, o qual correspondia a um registo público obrigatório, mas restrito aos encargos que incidiam sobre bens prediais. Apenas eram registados os prédios hipotecados por convenção, última vontade ou lei; litigiosos por ação sobre o domínio ou penhora; doados ou por qualquer outro contrato alienados, com reserva de usufruto.
Só pela Lei Hipotecária de 1 de julho de 1963, que teve na sua base a proposta de um Código de Crédito Predial da autoria de Carvalho Martens, inspirada no sistema registral germânico, se prevê finalmente a criação de um verdadeiro registo público de bens prediais, tendo a sua entrada em vigor apenas ocorrido em 1 de Abril de 1867 com a instalação das repartições necessárias.
Sobre estes primeiros passos de um registo público predial em Portugal, vide, além das obras já referidas nesta nota, FERREIRA DE MELLO, em Commentário Crítico Explicativo à Lei Hypotecária Portugueza de 1 de julho de 1863, Typografia de António Augusto Leal, Porto, 1864, Azevedo Souto, Registo Predial, Lisboa, 1914, e MÓNICA JARDIM, em Efeitos Substantivos do Registo Predial. Terceiros para Efeitos de Registo, Almedina, Coimbra, 2013, pág. 329-345.
[45] Cfr. FREITAS DO AMARAL e JOSÉ PEDRO FERNANDES, ob. cit., pág. 127-18, e JOSÉ MIGUEL JÚDICE e JOSÉ MIGUEL FIGUEIREDO, ob. cit. pág. 80.
[46] Acção de Reconhecimento da Propriedade Privada sobre Recursos Hídricos. Coimbra: Almedina, 2013, p. 80.
[47] Ob. Cit., p. 81 – destaque nosso.

[48] Na mesma obra, 2015, 2.ª edição, a fls. 27 (cit. no Ac. TRE de 08.02.2018, P. 1704/15.9T8PTM, in www.dgsi.pt).

[49] No mesmo sentido, cfr. MANUEL DO CARMO BRAGADO “O reconhecimento da propriedade privada sobre terrenos do domínio público hídrico”, julgar on-line, pág. 11.
[50] Na redação original do artigo 15.º, da Lei n.º 54/2005 de 15 de Novembro, esta presunção era apenas iuris tantum.
[51] Neste caso não é admitida a prova por confissão, por estarmos perante direitos indisponíveis.
[52] JOSÉ MIGUEL JÚDICE e JOSÉ MIGUEL FIGUEIREDO, ob. cit., nota 127.
[53] MARCELLO CAETANO, ob. cit., pág. 925.
[54] Em Uma Questão sobre o Domínio Público Marítimo, em “Estudos de Direito Público”, vol. II, tomo I, Imprensa da Universidade, Coimbra, 2000, pág. 389 e 395.
[55] Cf. DIOGO FREITAS DO AMARAL e JOSÉ PEDRO FERNANDES, Comentário à Lei dos Terrenos do Domínio Hídrico. Coimbra: Coimbra Editora, 1978, p. 127.
[56] Cf. JOSÉ MIGUEL JÚDICE e JOSÉ MANUEL FIGUEIREDO, Acão de Reconhecimento da Propriedade Privada sobre Recursos Hídricos. Coimbra: Almedina, 2013, pp-. 95–96. Cf. MANUEL ANTÓNIO DO CARMO BARGADO, A INTERAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO COM O DIREITO CIVIL: O DOMÍNIO PÚBLICO HÍDRICO. Lisboa: CEJ, novembro  2016, em linha <URL: https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=cXUPFoHiBpc%3d&portalid=30>, ISBN: 978-989-8815-39-2, p. 116, onde se lê: “A propósito desta questão, seguimos aqui a sistematização adotada por JOSÉ MIGUEL JÚDICE e JOSÉ MANUEL FIGUEIREDO, havendo que distinguir entre: i) a prova de que os terrenos estavam na propriedade, na posse ou na fruição conjunta, antes de 1864, 1868 ou 1892; ii) a prova de que os terrenos permaneceram ininterruptamente na propriedade privada depois daquelas datas; iii) a prova de que o terreno é atualmente propriedade do autos; iv) a prova de que o terreno se encontra ocupado por construção anterior a 1951. Na primeira situação enunciada, o n.º 2 do art. 15.º exige que o autor faça prova documental de que os terrenos cuja propriedade quer ver reconhecida eram objeto de propriedade particular ou comum, antes de 31 de dezembro de 1864 ou, tratando-se de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868”.