Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1040/19.1T8ANS-A.C1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CURA MARIANO
Descritores: CASO JULGADO FORMAL
PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
EXCEÇÃO DILATÓRIA
ERRO NA FORMA DO PROCESSO
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
DIVÓRCIO
EXECUÇÃO
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
TORNAS
Data do Acordão: 10/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
No nosso sistema processual, a força do caso julgado formal das decisões que verifiquem a inexistência de um pressuposto processual, tem eficácia meramente intraprocessual, pelo que, num novo processo que repita o objeto e as partes de um processo anterior, que terminou com a absolvição da instância do Réu, por falta de um pressuposto processual, salvo previsão legal específica em contrário, pode ser proferida decisão divergente da emitida no primeiro processo.
Decisão Texto Integral:
                                               *

I – Relatório

No Tribunal Judicial da Comarca ... - Juízo de Execução ... - Juiz …, foi instaurado processo executivo, para pagamento de quantia certa, com processo comum, pelo Exequente, com vista a obter da Executada o pagamento da quantia de 100.095,89 €, relativa a tornas devidas por esta no âmbito da partilha efetuada em processo de inventário para separação de meações, subsequente ao divórcio, sansão pecuniária compulsória e juros de mora.

A Executada deduziu embargos à execução e à penhora efetuada, sustentando, em síntese, que o Exequente, para cobrar a dívida em questão – relativa a tornas fixadas em inventário de separação de meações –, tem de recorrer à execução especial que se encontrava no artigo 1378º do CPC, na sua anterior versão; que a decisão proferida no apenso E ao processo de divórcio e confirmada pelo Tribunal da Relação, constitui caso julgado que impede a propositura da execução embargada; e que os bens sobre os quais recaiu a penhora não respondem pela dívida exequenda. Mais alegou que detém sobre o Exequente um contra-crédito superior ao valor das tornas peticionadas, em virtude de ter liquidado um montante superior a € 1.62.892,06 do passivo comum do casal, só em valores titulados por hipotecas em ações judiciais.

Terminou, pedindo que seja julgada extinta a execução e sejam levantadas as penhoras que tiveram já lugar.

O Exequente apresentou contestação, sustentando, em síntese, que a sentença homologatória do mapa de partilha constitui título executivo para obter o pagamento de tornas, das quais nunca obteve pagamento, apesar das várias ações que já estiveram em curso, que não se verifica a exceção de caso julgado, nem existe o contra-crédito invocado pela Embargante.

Concluiu pela improcedência dos embargos e o prosseguimento da execução.

Foi proferido despacho saneador/sentença, na qual foi decidido julgar parcialmente procedente a oposição à execução e à penhora e, em consequência, foi determinado o prosseguimento dos autos de execução apenas para pagamento da quantia de 62.500,00 €, acrescida de juros à taxa anual de 4%, desde 13.05.2004, e até integral pagamento daquela quantia, tendo os demais fundamentos dos embargos sido julgados improcedentes.

Desta decisão foi interposto recurso pela Executada, para o Tribunal da Relação, que, por acórdão proferido em 18.05.2021, com fundamento na existência de caso julgado, revogou a decisão recorrida, tendo julgado procedentes os embargos e absolvido a Embargante da execução, com o consequente levantamento das penhoras efetuadas.

O Exequente recorreu desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo concluído as alegações do seguinte modo:

1) O Exequente aqui Recorrido intentou a presente ação executiva contra a Executada/Recorrente alegando o que consta de fls.;

2) A Executada/Recorrente, notificada da execução, deduziu oposição à Execução, alegando o que consta de fls;

3) Por Sentença de fls. a Meritíssima Juiz decidiu o acima transcrito;

4) O Exequente, aqui Recorrente apresentou as suas contra-alegações, alegando em conclusões, o que acima se transcreveu;

5) Por Acórdão de fls. os Venerandos Juízes Desembargadores decidiram o seguinte:

6) Nos presentes autos não há caso julgado material, visto que não foi decida a questão de mérito quanto à dívida da executada para com o Exequente quanto às tornas;

7) Conforme decorre dos autos, ficou provado que a Executada deve a quantia de 62.500,00 € a título de tornas ao Exequente e que ainda não procedeu ao pagamento das mesmas, embora o Exequente tenha intentado as competentes ações para ser ressarcido de tal valor.

8) não pode o Exequente ser prejudicado pelo facto dos Meritíssimos Juízes não terem o mesmos entendimentos e, cada um decidir aplicar as leis que entende, negando ao Exequente o ressarcimento do seu crédito ao valor das tornas, conforme decidido no processo de inventário;

9) O quanto muito poderá existir caso julgado formal, com produção de efeitos dentro do próprio processo e não fora do processo;

10) A questão de mérito, ou seja, quanto ao pagamento pela Executada da quantia exequenda e em dívida ao Exequente ainda não foi decidida, nem executada;

11) O Exequente tudo tem feito para ser ressarcido de tal valor, que lhe é devido pela Executada e que lhe foi atribuído por sentença homologatória da partilha;

12) Até à data a Executada, mesmo tendo sido condenada e interpelada para proceder ao pagamento de tal quantia a mesma não o fez, obrigando o Exequente a intentar as competentes ações executivas;

13) O Exequente não se conformando com tais decisões e com a aplicação das normas que foram aplicadas, sempre intentou as competentes execuções para ver ressarcido o seu crédito;

14) Só a sentença cuja decisão verse sobre a relação material controvertida é suscetível de assumir eficácia de caso julgado material;

15) A estrutura da sentença de extinção da ação executiva sob o fundamento não ser a forma do processo adequado e de não se poder proceder ao ressarcimento de bens que não os que não os adjudicados à Executada, é de natureza meramente processual;

16) A eficácia do caso julgado formal da anterior execução, porque meramente formal, esgotou-se no termo do processo de execução em que foi proferida, não relevando fora dele;

17) Não pode falar-se na existência de caso julgado material pelo facto de não ter existido qualquer decisão judicial que tenha apreciado a relação material controvertida, isto porque provou-se que a Executada deve a quantia exequenda ao Exequente, não tendo sido proferida qualquer decisão quanto à prossecução da Execução para pagamento coercivo de tal dívida;

18) A ação executiva não visa discutir e decidir o direito, mas apenas obter a execução coerciva de uma prestação que se encontra titulada num documento a que a lei, em função

19) das respetivas qualidades e características, conferiu a faculdade do acesso à ação executiva- vide o Acórdão do STJ de 28/03/2019 no proc. 6659/08.3TBCSC.L1.S1 in www.dgsi.pt;

20) O caso julgado em qualquer uma das suas dimensões, pressupõe a existência de uma decisão judicial anterior transitada em julgado;

21) No caso em presença, o Acórdão recorrido fundamenta a existência de caso julgado na decisão judicial que foi proferida no âmbito da Execução apresentada pelo ora Recorrente no apenso E, dos factos Provados no ponto F) referindo que: “o litígio já foi objeto de decisão judicial transitada em julgado ao abrigo de um processo executivo;

22) Não podemos dizer que a sentença e Acórdão de proferidos no âmbito da anterior execução (proc. 164-A/2000) decidiu o litígio, como se refere no Acórdão recorrido, na medida em que tal decisão se limitou a decidir que não podia o credor de tornas pagar-se pelo produto de venda de outros bens que não os adjudicados ao devedor de tornas em partilha, mas não decidiu quanto;

23) Não se tratou de uma decisão de mérito que tenha avaliado e que se tenha pronunciado sobre a relação material controvertida, mas antes de uma decisão que se limita a afirmar que não pode ser ressarcido com outros bens, afirmando esse obstáculo ao prosseguimento da execução com vista à apreciação dos seus fundamentos, não chegando assim a tomar posição sobre o cumprimento da obrigação exequenda;

24) Em virtude de não estarmos perante um caso julgado material, visto que não resolveu o litigio, uma vez que o Exequente não se mostra ressarcido do seu crédito, deve o Acórdão recorrido ser revogado e consequente ser mantida a decisão de 1ª instância com todas as consequências legais daí resultantes, o que, desde já e, aqui se requer;

25) por todos os motivos supra indicados, deverá o presente recurso ser recebido e, consequentemente, dar-se provimento ao mesmo, revogando-se o Acórdão ora recorrido, o que, desde já e aqui se requer, com todas as consequências legais daí resultantes;

26) Verifica-se que no Acórdão recorrido não se procedeu a uma correta interpretação dos elementos constantes dos autos, da prova produzida, bem como se efetuou uma incorreta interpretação e aplicação das normas jurídicas aplicáveis ao caso em concreto, sofrendo o Acórdão recorrido de nulidade;

27) Lendo, atentamente, a decisão recorrida, verifica-se que não se indica nela factos concretos verdadeiramente suscetíveis de revelar, informar, e fundamentar, a real e efetiva situação, do verdadeiro motivo da não procedência da pretensão da Recorrente.

28) O Acórdão recorrido não fundamentou de facto e de direito a sua decisão e a Lei proíbe tal comportamento;

29) O Venerando Tribunal recorrido, salvo devido respeito, limitou-se a emitir uma decisão onde apenas de uma forma simples e sintética foram apreciadas algumas das questões sem ter em conta: a prova produzida; os documentos juntos; os elementos constantes no processo, o não ressarcimento do Exequente do seu direito de crédito das tornas devidas pela Executada;

30) Deixando de se pronunciar sobre algumas questões que são essenciais à boa decisão da causa, nomeadamente as acima expostas;

31) O Acórdão recorrido tem de ser Revogado, porque não está devidamente fundamentado, tanto de facto como de direito, além de fazer uma errada interpretação das normas legais que enumera;

32) Cometendo, pois, uma nulidade.

a) Artigos 154º, alíneas b), c) e d) do artigo 615º do Código do Processo Civil; b) Artigo 601º e 817º do C.C;

c) Artigos 13º, 20º, 202º, 204º, 205º da C. R. P.

Concluiu pela manutenção da decisão da 1.ª instância.

A Executada apresentou contra-alegações, sustentando o decidido pelo Tribunal da Relação.

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II – Objeto do recurso

Tendo em consideração as conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar se o anteriormente decidido na ação executiva comum, que constitui o apenso E do processo de divórcio, tem força de caso julgado nesta nova execução?

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III – Factos

Foram considerados provados os seguintes factos processuais:

A. O Exequente apresentou como título executivo a sentença homologatória do mapa de partilha proferida no âmbito dos autos de inventário/partilha de bens em casos especiais que correu termos sob o n.º 164-A/00… no extinto … Juízo do Tribunal Judicial  ....

B. Nos referidos autos foram interessados os aqui Exequente e Executada e cumprido o n.º 1 do artigo 1373.º do CPC (na versão então vigente) foi dada no processo, sob a forma de mapa, a informação a que alude o artigo 1376º., n.º 1 do CPC, de acordo com a qual a aqui Exequente teria a receber da Executada, a título de tornas, € 62.500,00.

C. O processo seguiu a normal tramitação, tendo sido proferida, em 19.11.2004, sentença homologatória da partilha, transitada em julgado em 08.12.2004.

D. Foi o Exequente notificado, por despacho proferido na mesma data, nos termos do artigo 1378º, n.º 3 do C.P.C., designadamente para se pronunciar quanto aos bens, adjudicados à executada, que deviam ser vendidos para pagamento das tornas já então reclamadas pelo exequente.

E. Por apenso aqueles autos, que tomou o n.º 784/14…, em virtude de remessa e distribuição no tribunal que passou a ser competente em virtude do novo mapa judiciário que resultou da regulamentação da Lei n.º 62/2013, de 26/08 (Lei da Organização do Sistema Judiciário) operada pelo DL n.º 49/2014, de 27/03 – o Tribunal Judicial da Comarca  ... – Instância Central  ... – … Secção de Família e Menores – J…, foi declarada, por despacho proferido em 25.05.2016, deserta a instância relativa ao incidente de venda do direito adjudicado à interessa AA para pagamento das tornas devidas a AA.

F. Antes, por apenso aos autos descritos em A), o Exequente havia intentado ação executiva comum para pagamento de tornas, que deu origem ao Apenso ‘E’, que foi liminarmente indeferida por despacho proferido em 22.07.2010, confirmado por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra datado de 27.03.2012.

G. No âmbito do inventário foram adjudicadas à requerente as verbas n.ºs 1 a 45, compostas por móveis (1 a 44) e um imóvel (45).

H. Nos autos de execução de que os presentes autos são apenso a quantia exequenda peticionada ascende a €100.095,89, sendo €62.500,00 de capital e €37.595,89 de juros, peticionados desde 13.05.2004.

I. A execução de que os presentes autos de embargo são apenso deu entrada no Juízo de Família e Menores, que por despacho proferido em 01.10.2019 o remeteu ao presente Juízo de Execução, nos termos do disposto nos artigos 129º e 122º da Lei n.º 62/2013, de 26.08, e artº 85º do C.P.C.

J. Na execução foram penhorados os seguintes bens: em 25.06.2019, 1/3 do vencimento que a executada aufere na Companhia Seguros Fidelidade e em 12.06.2019, depósito à ordem na CGD, no valor de 5.965,68 €.

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IV – O direito aplicável

Previamente a tomarmos posição sobre a existência de caso julgado que impeça o prosseguimento da presente execução, convém relembrar e precisar a tramitação processual ocorrida em toda esta situação.

Na sequência de divórcio entre a Embargante e o Embargado, correu termos inventário para separação de meações, no qual os bens comuns do casal foram adjudicados à Embargante, tendo o Embargado direito a tornas no valor de € 62.500,00.

O Exequente reclamou o pagamento das tornas nos termos do artigo 1377.º, n.º 1, do Código de Processo Civil de 1961, na altura vigente, não obtendo o pagamento das mesmas, pelo que, tendo, entretanto, transitado em julgado a sentença homologatória da partilha de bens, requereu a venda de bens adjudicados à Executada, nos termos do artigo 1378.º, n.º 3, do mesmo Código de Processo Civil, nos autos de inventário.

Face ao insucesso da venda desses bens, o Exequente deduziu ação executiva para pagamento de quantia certa (apenso E ao processo de divórcio), reclamando o pagamento das referidas tornas e indicando à penhora outros bens da Executada que não os adjudicados no processo de inventário.

Nessa execução foi proferida decisão, em que, oficiosamente, se conheceu da verificação da exceção dilatória da nulidade do processo, por erro na sua forma, por se ter entendido que a cobrança do valor das tornas resultantes de processo de partilha judicial só pode ser efetuada através do processo executivo especial previsto no artigo 1378.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

Esta decisão foi confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de 27.03.2012, após recurso interposto pelo Exequente [1].

Entretanto, na execução movida no processo de Inventário, foi proferido em 25.05.2016, despacho de extinção da instância, por deserção, em cuja fundamentação se afirmou que o credor de tornas não está impedido de lançar mão da competente ação executiva para pagamento de tornas a que tem direito.

O Exequente, em 30.5.2019, intentou contra a Executada nova Execução, reclamando mais uma vez o valor das tornas apuradas no referido processo de inventário, tendo, apresentando como título executivo a sentença homologatória do mapa de partilha elaborado naquele processo, pelo que estamos perante uma repetição do processo executivo que anteriormente havia sido considerado nulo, por erro na forma do processo (o apenso E ao processo de divórcio).

É relativamente a este segundo processo executivo, que o acórdão aqui recorrido decidiu que se verifica uma situação de caso julgado pela decisão proferida na execução que constitui o apenso E ao processo de divórcio.

Tendo essa anterior decisão incidido sobre a relação processual, o caso julgado por ela formado é meramente formal, tendo força obrigatória dentro do processo (artigo 620.º do Código de Processo Civil).

Com efeito, o caso julgado formal, em princípio, não obsta a que, entre as mesmas partes, o pedido deduzido seja novamente formulado, com a mesma causa de pedir, em nova ação, não havendo lugar à exceção do caso julgado, uma vez que este, sendo formal, apenas tem uma eficácia intraprocessual.

No entanto, relativamente às decisões que verificam a existência de uma exceção dilatória, por falta de observância um pressuposto processual, desde há muito que se questiona se o caso julgado formado com essa decisão também tem força extraprocessual, impedindo que, posteriormente, se proponham, entre as mesmas partes, ações com o mesmo objeto e em que se repete a situação que se considerou integrar uma exceção dilatória ou que imponham mais uma absolvição da instância.

Alberto dos Reis, em anotação ao artigo 672.º do Código de Processo Civil de 1939 [2], cujo segundo período tinha uma redação muito próxima à do artigo 620.º do atual Código de Processo Civil, tendo presente as decisões de absolvição da instância, afirmou que o caso julgado formal não tem força obrigatória fora do processo respetivo...e, portanto, nem vincula o juiz, nem pode ser alegado pelas partes em processo diferente daquele em que foi proferido. Noutra anotação ao mesmo Código [3] igualmente referiu que o benefício meramente processual que o Réu obteve com a primeira sentença (que o absolveu da instância) não encontra proteção na segunda causa. Entende-se que, não tendo a sentença anterior recaído sobre o objeto essencial do litígio, não tendo atribuído a qualquer das partes os bens ou as vantagens substanciais a que aspirava, não há razão para dar estabilidade fora do processo, à decisão proferida.

Porém, Castro Mendes, no seu Manual de Processo Civil [4], assumidamente contra a posição então corrente, afirmou que se se absolveu da instância por certo fundamento e este se repete em novo processo, é lícito neste opor a exceção do caso julgado.

Esta posição viria a ser desenvolvida e corrigida por Teixeira de Sousa [5] que, admitindo a possibilidade do caso julgado formal ter uma eficácia externa, considerou que o caso julgado incidente sobre uma decisão de absolvição da instância não só define objetivamente o conteúdo da decisão processual produzida, como vincula subjetivamente os sujeitos adjetivos à decisão processual proferida, entendendo que existe uma vinculação à identidade de julgamento de certo objeto pelo seu impedimento à contradição e à não repetição de uma decisão anterior sobre esse objeto, concluindo, no entanto, pela verificação de uma situação de autoridade de caso julgado, e não por uma exceção de caso julgado formal, quando refere que o que releva no processo subsequente não é a impossibilidade de apreciar determinado objeto mas a sujeição a julgar identicamente.

Já Anselmo de Castro [6] seguiu a posição de Alberto dos Reis, argumentando que, não estando em causa interesses materiais nada contraindica que a lei seja interpretada no sentido de afastar o caso julgado material, e o juiz possa em nova ação pronunciar divergentemente.

Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, em anotação ao artigo 279.º do Código de Processo Civil [7], limitam-se a dar nota de uma orientação doutrinal no direito processual alemão que não admite a repetição de uma causa com a falta do mesmo pressuposto processual que originou a extinção ou a não admissão da anterior, pelo menos quando esteja em causa um pressuposto que coenvolva interesses materiais, referindo que, no nosso Código de Processo Civil, a expressão nova ação usada nos n.º 2 e 3 (do artigo 279.º), pode servir de argumento literal em prol deste entendimento: a inovação da segunda ação residirá na remoção do obstáculo (a falta do pressuposto em causa) à prolação da decisão de mérito sobre aquele objeto processual.

Também Maria José Capelo [8] se limita a referir que a questão merece ponderação, chamando a atenção para a consagração excecional da eficácia externa de um caso julgado formal no artigo 101.º, n.º 1, do Código de Processo Civil atual, e referindo a posição de Proto Pizani [9], no direito processual italiano, no sentido de que neste ordenamento jurídico, dispondo no artigo 310.º, n.º 2 (do Codice de Procedura Civile) que à extinção do processo sobrevivem as decisões de mérito e aquelas que regulam a competência, mostra inequivocamente ter optado – ao menos como regra geral – a favor da solução segundo a qual o caso julgado interno sobre questões de rito não sobrevive  à extinção do processo, sem prejuízo de algumas decisões em matéria de competência, por força da lei, ou de legitimidade, poderem ter uma eficácia panprocessual.

É esta que também nos parece ser a melhor interpretação, numa leitura sistemática, das disposições do nosso Código de Processo Civil sobre a matéria.

Se a segurança jurídica, na vertente da estabilidade processual, impõe a imutabilidade interna das decisões sobre a tramitação, com eventual sacrifício da possibilidade de se encontrar um melhor direito numa revisão do decidido, evitando-se, assim, que, no mesmo processo, sejam proferidas decisões contraditórias sobre os seus termos [10] , esse interesse deixa de pesar quando a questão processual decidida se coloca num outro processo, mesmo que este tenha igual objeto do primeiro. A necessidade daquela imutabilidade só se faz sentir no interior do processo onde foi proferida a decisão, a fim de garantir a sua estabilidade. Não sendo a decisão proferida uma decisão de mérito, uma vez que não decidiu o litígio substantivo, não tem aqui valia os fundamentos que justificam a força do caso julgado material e a sua expansão externa ilimitada [11].

Apesar de a possibilidade de serem proferidas decisões contraditórias em processos diferentes, mas com objeto idêntico e com as mesmas partes, poder causar alguma perplexidade, há que ter presente que essas decisões apenas decidem da admissibilidade daquele processo seguir os seus termos com vista à apreciação do mérito da causa, em nada definindo as relações jurídicas entre as partes em litígio, pelo que não existe qualquer solução material cuja definitividade importe salvaguardar.

Se, para a credibilidade do sistema judicial, pode ser importante a coerência e uniformização das suas decisões, mesmo que estas tenham um alcance meramente processual, esse já não é um interesse abrangido pelo princípio da segurança jurídica, enquanto princípio estruturante do Estado de direito democrático, e não tem o peso necessário para impor que, no modelo do processo equitativo, tais decisões, quando recaiam sobre a verificação dos pressupostos processuais, tenham necessariamente efeitos extraprocessuais, impondo-se em processos distintos daqueles onde foram proferidas.

O disposto no artigo 620.º do atual Código de Processo Civil que mantém, no essencial, a redação que já constava do artigo 672.º do Código de Processo Civil de 1939 [12], delimita a força do caso julgado desse tipo de decisões (dentro do processo), não excecionando aquelas que verifiquem a ausência de um pressuposto processual.

Por sua vez, como faz notar Maria José Capelo, o legislador quando quis conferir força extraprocessual ao caso julgado formado pelas decisões proferidas sobre a competência do tribunal em razão da matéria e da hierarquia (artigo 101.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), fê-lo expressamente, a título excecional, e não como reflexo de uma orientação geral.

A redação do artigo 279.º do Código de Processo Civil, quando prevê a propositura de uma segunda ação, após a anterior ter terminado com a absolvição da instância do Réu, por falta de verificação de um pressuposto processual, ao utilizar a expressão “nova ação” não deve ser lida com o sentido de que essa segunda ação, só será “nova”, se comportar uma “novidade”, corrigindo o vício que fundamentou a absolvição da instância, pelo que uma segunda ação que repetisse exatamente a primeira, estaria abrangida pela força do caso julgado da anterior decisão. Não há qualquer razão para conferir tal relevância à utilização da expressão “nova ação”, a qual apenas pretende prever a propositura de uma segunda ação, sem lhe conferir qualquer exigência de ela encerrar uma novidade, designadamente o suprimento do vício que determinou a absolvição da instância na ação anterior.

Por estas razões, deve considerar-se que se mantém no nosso sistema processual a força meramente intraprocessual do caso julgado formal das decisões que verifiquem a inexistência de um pressuposto processual, tal como Alberto dos Reis já havia salientado, com referência ao Código de Processo Civil de 1939, pelo que, num novo processo que repita o objeto e as partes de um processo anterior, que terminou com a absolvição da instância do Réu, por falta de um pressuposto processual, salvo previsão legal específica em contrário, pode ser proferida decisão divergente da emitida no primeiro processo [13].

Assim, após um processo em que a instância foi declarada extinta, por se ter considerado existir erro na forma processual, sem possibilidade de aproveitamento dos atos praticados, como ocorreu na situação sub iudicio, proposto um segundo processo com o mesmo objeto e as mesmas partes, sob a mesma forma, não se verifica uma situação de exceção do caso julgado, nem o juiz deste segundo processo está vinculado a proferir decisão idêntica à prolatada no primeiro processo, por respeito à autoridade do caso julgado formal, estando antes livre para decidir que a forma do processo é a adequada.

A decisão proferida no apenso E ao processo de divórcio que, oficiosamente, conheceu da verificação da exceção dilatória da nulidade do processo, por erro na sua forma, por se ter entendido que a cobrança do valor das tornas resultantes de processo de partilha judicial só pode ser efetuada através do processo executivo especial previsto no artigo 1378.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, não tem força de caso julgado extraprocessual, pelo que o saneador-sentença proferido na presente execução, ao determinar o prosseguimento dos autos, para pagamento da quantia de 62.500,00€, acrescida de juros à taxa anual de 4%, desde 13.05.2004 e até integral pagamento daquela quantia, admitindo a insistência do Exequente na forma de processo escolhida, não desrespeita a força do caso julgado da decisão proferida no referido apenso E.

Face a esta conclusão, deve o acórdão do Tribunal da Relação ser revogado, repondo-se a decisão da 1.ª instância.

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Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a revista, revogando-se o acórdão recorrido e repondo-se integralmente o saneador-sentença proferido na 1.ª instância.

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Custas dos recursos de apelação e revista pela Embargante.

                                               *

Notifique

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Lisboa, 14 de outubro de 2021

João Cura Mariano (relator)

Fernando Baptista

Vieira e Cunha

__________

[1] A tese atualmente dominante aponta no sentido contrário ao decidido neste acórdão, como se pode constatar da leitura de Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, 2020, pág. 133-134, e dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23.01.2020, Proc. 798/18 (Rel. Maria da Graça Trigo), da Relação do Porto de 10.10.2019, Proc. 3797/16 (Rel. Carlos Portela) e de 11.05.2020, Proc. 3519/18 (Rel. Manuel Domingues Fernandes), e da Relação de Coimbra de 18.05.2021, Proc. 976/20 (Rel. Sílvia Pires).
[2] No Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, reimpressão, vol. V, pág. 157-158
[3] Na ob. cit., vol. III, pág. 97.
  Aqui, Alberto dos Reis, dá o seguinte exemplo.: Suponhamos agora, que proposta ação de investigação de paternidade ilegítima, o processo finda por sentença que absolve o Réu da instância com fundamento na ilegitimidade deste ou na nulidade de todo o processo. Esta sentença, uma vez transitada, constituirá caso julgado formal; obstará a que a questão por ela resolvida seja novamente suscitada no mesmo processo , mas não impedirá que em nova ação de investigação de paternidade, se profira decisão que lhe seja contrária.
[4] Edição da Coimbra Editora, 1963, pág. 458.
[5] Em O Objeto da Sentença e o Caso Julgado Material (O Estudo sobre a Funcionalidade Processual), no B.M.J. n.º 325, pág. 155-159, sobretudo, pág. 157-159.
[6] Em Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Almedina, 1982, pág. 15/16, embora referindo que, quando a exceção dilatória é uma ilegitimidade, o facto de poder existir uma pronúncia sobre a relação jurídica em litígio é suscetível de conferir a essa decisão efeitos extraprocessuais.
[7] No Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, 4.ª ed., Almedina, pág. 566.
[8] Em A Sentença entre a Autoridade e a Prova. Em Busca de Traços Distintivos do Caso Julgado Civil, Almedina, 2016, pág. 96-97, nota 328.
[9] Em Lezioni di Diritto Processuale Civile, 5.ª ed., Jovene, 2006, pág. 82.
[10] Lê-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 151/15, de 4 de março:
 A intangibilidade do caso julgado formal, que torna as decisões judiciais transitadas em julgado, proferidas ao longo do processo, insuscetíveis de serem modificadas, tem como finalidade imediata assegurar a disciplina da tramitação processual, uma vez que seria caótico e dificilmente atingiria os seus objetivos o processo cujas decisões interlocutórias não se fixassem com o seu trânsito, permitindo um interminável refazer do percurso processual. Este subprincípio tem como fundamento último os valores imanentes ao Estado de direito democrático da segurança e da certeza jurídica. Dentro do processo, uma decisão transitada em julgado sobre uma questão processual não deixa de constituir uma resolução judicial de uma questão de incerteza, mediante a colocação de uma das afirmações nela envolvidas numa situação especial de indiscutibilidade. São, na verdade, ainda exigências de ordem e de segurança que impõem que sobre questões processuais já decididas se forme a preclusão da possibilidade de renovar a mesma questão no mesmo processo. É preciso, também nestes casos evitar que a mesma questão processual seja novamente colocada, obstar a que sobre ela recaiam soluções contraditórias e garantir a resolução definitiva dos litígios que os tribunais são chamados a dirimir. O chamado caso julgado formal não deixa, pois, de ser expressão dos valores de segurança e certeza que são imanentes a qualquer ordem jurídica.
[11] Manuel de Andrade ensinava:
Sem o caso julgado material estaríamos caídos numa situação de instabilidade jurídica (instabilidade das relações jurídicas) verdadeiramente desastrosa – fonte perene de injustiças e paralisadora de todas as iniciativas. Seria intolerável que cada um nem ao menos pudesse confiar nos direitos que uma sentença lhe reconheceu; que nem sequer a estes bens pudesse chamar seus, nesta base organizando os seus planos de vida; que tivesse constantemente que defendê-los em juízo contra reiteradas investidas da outra parte, e para mais com a possibilidade de nalgum dos novos processos eles lhe serem negados pela respetiva sentença. Não se trata propriamente de a lei ter como verdadeiro o juízo – a operação intelectual – que a sentença pressupõe. O caso julgado material não assenta numa ficção ou presunção absoluta de verdade, por força da qual, como diziam os antigos, a sentença faça do branco preto e do quadrado redondo ou transforme o falso em verdadeiro. Trata-se antes de que, por uma fundamental exigência de segurança, a lei atribui força vinculante infrangível ao ato de vontade do juiz, que definiu em dados termos certa relação jurídica, e, portanto, os bens (materiais ou morais) nela coenvolvidos. Este caso fica para sempre julgado. Fica assente qual seja, quanto a ele, a vontade concreta da lei. O bem reconhecido ou negado pela pronuntiatio judicis torna-se incontestável.
   Vê-se, portanto, que a finalidade do processo não é apenas a justiça – a realização do direito objetivo ou a atuação dos direitos subjetivos privados correspondentes. É também a segurança – a paz social (Em Noções Elementares de Processo Civil).
[12] Dispunha este artigo que as sentenças e os despachos que recaírem unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória  dentro do processo.
[13] Nas situações de repetição do mesmo processo em que não haja razão para alterar a decisão proferida em processo anterior, o autor arrisca a ser sancionado como litigante de má-fé, nos termos do artigo 542.º do Código de Processo Civil.